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Ea obra foi public originate comings com o alo al, 1999, para a present eda 1 igh fever de 1999 ‘Dados Inernaconas de Catalog na Pains (CUP) (Chmara Beaira do List, SP Bea) Tne para aay sea Todos os direitos para o Brasil reservados & “Livraria Martins Fontes Editora Lida ‘Raa Consetheiro Ramsatho, 3801540 '01325-000 Sao Paulo SP Brasil Tel (011) 239-3677 Fax (011) 3103-6867 ‘e-mail: infogemartingfontes.com nptwww:martingfontes.com OIMPERIO DO DIREITO Ronald Dworkin Tradusao JEFFERSON LUIZ CAMARGO, Revisio técnica DR. GILDO RIOS Martins Fontes Sao Paulo 1999 Capitulo I O que é0 direito? Por que é importante E importante o modo como os juizes decidem os casos. E muito importante para as pessoas sem sorte, litigiosas, mas ou santas © bastante para se verem diante do tribunal. Learned Hand*, que foi um dos melhores ¢ mais famosos juizes dos Estados Unidos, dizia ter mais medo de um processo judicial que da morte ou dos impostos. Os processos criminais sao os mais temidos de todos, ¢ também os mais fascinantes para 0 pliblico. Mas os processos civis, nos quais uma pessoa pede que outra a indenize ou ampare por causa de algum dano cau- sado no passado ou ameaga de dano, tém as vezes conseqiién- cias muito mais amplas que a maioria dos processos criminai A diferenca entre dignidade e ruina pode depender de um sim- ples argumento que talvez nao fosse to poderoso aos olhos de outro juiz, ou mesmo o mesmo juiz no dia seguinte. As pes- soas freqiientemente se véem na iminéncia de ganhar ou per- der muito mais em decorténcia de um aceno dz cabega do juiz do que de qualquer norma geral que provenha do legislativo. Os processos judiciais so importantes em outro aspecto que nao pode ser avaliado em termos de dinheiro, nem mesmo de liberdade. Ha, inevitavelmente, uma dimensio moral asso- 4 OIMPERIO DO DIREITO ciada a um processo judicial legal e, portanto, um risco perma- nente de uma forma inequivoca de injusti¢a publica, Um juiz deve decidir nao simplesmente quem vai ter 0 qué, mas quem agiu bem, quem cumpriu com suas responsabilidades de cida- dao, e quem, de propésito, por cobiga ou insensibilidade, igno- rou suas proprias responsabilidades para com os outros, ou exagerou as responsabilidades dos outros para consigo mes- mo. Se esse julgamento for injusto, entio a comunidade teré infligido um dano moral a um de seus membros por té-lo estig- matizado, em certo grau ou medida, como fora-da-lei. O dano € mais grave quando se condena um inocente por um crime, mas ja é bastante consideravel quando um queixoso com uma alegacio bem fundamentada nao é ouvido pelo tribunal, ou quando um réu dele sai com um estigma imerecido. Zo estes os efeitos diretos de um processo judicial sobre as partes € seus dependentes. Na Grd-Bretanha e nos Estados Unidos, entre outros paises, as decisdes judiciais também afe- tam muitas outras pessoas, pois a lei freqiientemente se torna aquilo que 0 juiz afirma. As decisdes da Suprema Corte dos Estados Unidos, por exemplo, sio de importancia notéria nesse sentido. Essa Corte tem 0 poder de revogar até mesmo as decisdes mais ponderadas © populares de outros setores do governo, se acreditar que elas so contrarias 4 Constituigao, tendo, portanto, a iiltima palavra na questo de se © como os estados podem executar assassinos, proibir abortos ou exigir preces nas escolas publica, ou se 0 Congresso pode ou nado convocar soldados para lutar numa guerra ou forgar um presi- dente 2 tornar piblicos os segredos de seu gabinete. Quando a Corte decidiu, em 1954, que nenhum Estado tinha o direito de segregar as escolas puiblicas por raga, levou 0 pais & mais pro- funda revolucdo social j4 deflagrada por qualquer outra insti- tuigdo politica’. ‘A Suprema Corte é 0 testemunho mais significativo do poder judiciario, mas as decisdes de outros tribunais também costumam ser de grande importincia em termos gerais. Aqui 1, Brown vs, Board of Educ., 347, U.S. 486 (1954). 0.0Ue £0 IREITO? 5 esto dois exemplos retirados, quase aleatoriamente, da hist6- ria juridica inglesa. No século XIX, os juizes ingleses declara- ram que 0 operirio de uma fabrica no podia exigir indeniza- Gao judicial de seu patrao se tivesse sido lesado devido a negl géncia de outro operario®. Afirmavam que um trabalhador “assume o risco” da imprudéncia de seus “companheiros de trabalho”, que, de qualquer modo, o trabalhador sabe melhor que seu empregador quem so os operarios imprudentes e tal- vez. tenha mais influéncia sobre eles. Essa norma (que parecia menos tola quando as imagens darwinianas do capitalismo eram mais populares) teve um profundo efeito sobre a lei das indeni- zagdes por acidentes de trabalho, até que foi definitivamente abandonada’. Em 1975, a Camara dos Lordes, a mais alta corte britanica, criou leis estipulando por quanto tempo um oficial de gabinete deveria esperar, depois de aposentar-se, para publi- car relatos de reunides confidenciais do gabinete*. Essa deci- sio determinou a quais arquivos oficiais tém acesso jornalistas ¢ historiadores contempordneos que criticam um governo, ¢ des- se modo afetou o comportamento do governo, Divergéncias quanto ao direito Uma vez que ¢ importante, como se vé nesses diferentes casos, 0 modo como os juizes decidem as causas, também & importante saber 0 que eles pensam que é 0 direito, e, quando divergem sobre esse assunto, 0 tipo de divergéncia que estao tendo também importa. H4 algum mistério nisso? Sim, mas precisamos de algumas distingdes para saber qual é esse misté- rio. Os processos judiciais sempre suscitam, pelo menos em principio, trés diferentes tipos de questdes: questdes de fato, questdes de direito e as questdes interligadas de moralidade 2. Priestley vs. Fowler [1837] 3 M. & W.1 3. Ver Law Reform (Personal Injuries) Act 1948, 35 Halsbury’s Statutes of England S48 (3? ed.) 4. Attorney-General vs, Jonathan Cape Ld. [1975] 3 All E.R. 484, 6 OIMPERIO DO DIREITO politica ¢ fidelidade. Em primeiro lugar, 0 que aconteceu? O homem que trabalhava no torno mecanico realmente deixou cair uma chave inglesa no pé de seu companheiro de trabalho? Em segundo lugar, qual € a lei pertinente? A lei permite que um operério assim ferido obtenha indenizacao de seu patrio? Por ultimo, se a lei negar o ressarcimento, ser injusto? Se for injus:o, devem os juizes ignorar a lei e assegurar a indenizagao de qualquer modo? ‘A primeira dessas questdes, a questo de fato, parece bas- tante direta. Se os juizes divergem quanto aos fatos concretos © histéricos envolvidos na controvérsia, sabemos sobre 0 que es- to divergindo e que tipo de evidéncia decidiria a questo caso ela estivesse disponivel. A terceira questéo, da moralidade © fidel:dade, é muito diferente, apesar de igualmente conhecida. As pessoas muitas vezes divergem quanto ao que € certo € er- rado em termos morais, € esse tipo de divergéncia nao suscita nenhum problema especial quando se manifesta no tribunal Que dizer, porém, da segunda questio, a do direito? Advoga- dos e juizes parecem divergir com muita freqiiéncia sobre a lei que rege um caso; parecem divergir, inclusive, quanto as for- mas de verificagao a serem usadas. Um juiz, propondo um con- junto de provas, afirma que a lei favorece 0 setor escolar ou 0 ‘empregador, ¢ outro, propondo um conjunto diferente, acredita que a lei favorece os alunos da escola ou o empregado. Se este € realmente um terceiro tipo de discussio, distinta dos demais ¢ diferente tanto das discussées sobre fato histérico quanto das discussdes morais, de que tipo de discussdo se trata? Sobre 0 que é a divergéncia? Chamemos de “proposigdes juridicas” todas as diversas afirmagoes e alegagdes que as pessoas fazem sobre aquilo que a lei lhes permite, proibe ou autoriza. As proposigdes juridicas podem ser muito gerais — “a lei profbe que os Estados neguem a qualquer pessoa igual protecdo no contexto da acepgao da Décima Quarta Emenda” — ou muito menos gerais ~ “a lei ndo prevé indenizacaio para danos provocados por companheiros de trabalho” ~ ou muito concretas ~ “a lei exige que a Acme Corporation indenize John Smith pelo acidente de trabalho que OQUE £0 DIREITO? a sofreu em feverciro Ultimo”. Juristas ¢ juizes, bem como as pessoas em geral, pressupdem que pelo menos algumas das proposigdes juridicas podem ser verdadeires ou falsas’. Mas ninguém pensa que elas possam refletir as declaragdes de al- gum fantasma: nao se referem aquilo que o direito sussurrou aos planetas. Os advogados, na verdade, falam sobre aquilo que a lei “diz”, ou se a lei é “muda” sobre esta ou aquela ques- to. Isto, porém, so apenas figuras de retérica. ‘Todos pensam que as proposicdes juridicas so verdadei- ras ou falsas (ou nem uma coisa nem outra) em virtude de outros tipos mais conhecidos de proposicdes, das quais as pro- posicdes juridicas sio parasitdrias, como poderiamos dizer. Essas proposigées mais conhecidas oferecem aquilo que cha- marei de “fundamentos” do direito. A proposicaio de que nin- guém pode dirigir a mais de 90 quilémetros por hora na Ca- lifornia é verdadeira, pensa a maior parte das pessoas, porque a maioria dos legisladores daquele estado disse “sim”, ou levan- tou a mao quando um texto sobre o assunto veio parar em suas mesas. Podia nio ser verdadeira se nada disso tivesse aconteci- do; ndo poderia entio ser verdadeira apenas pelo que tivesse dito um fantasma, ou pelo que se tivesse encontrado no céu, em tabuinhas transcendentais. Agora podemos distinguir duas maneiras pelas quais advogados ¢ juizes poderiam divergir a propésito da verdade de uma proposicao juridica. Eles poderiam estar de acordo so- bre os fundamentos do direito — sobre quando a verdade ou fal- sidade de outras proposices mais conhecidas torna uma pro- posicao juridica especifica verdadeira ou falsa —, mas pode- riam divergir por nao saberem se, de fato, aqueles fundamen- tos foram observados em um determinado caso. Advogados juizes podem concordar, por exemplo, que a velocidade-limite na California € de 90 quilémetros por hora se a legislaco des- 5. Eo que fazem os que corrigem exames nas escolas de direito. Algu- mas pessoas nio gostam de utilizar os termos “verdadeiro” e “falso” dessa for- ‘ma, mas gostam de dizer que as proposi¢des juridicas podem ser’ das” ou “infundadas”, ou algo do género, que no presente caso vem a dar no mesmo. Ver a discussio sobre ceticismo em direito nos capitulos Il e Vil 8 O IMPERIO DO DIREITO se estado contiver uma lei nesse sentido, mas podem divergit quanto ao fato de ser este o limite de velocidade, por discorda- rem quanto a existéncia de tal lei na legislagdo estadual vigen- te. Poderiamos dar a isso o nome de divergéncia empirica so- bre o direito. Ou eles poderiam discordar quanto aos funda- menios do direito, sobre quais outros tipos de proposigdes, quan- do verdadeiras, tornam verdadeira uma certa proposi¢o juri dica. Podem concordar, empiricamente, quanto Aquilo que os repertorios de legislagdo e as decisdes judiciais precedentes tem a dizer sobre a indenizagao por danos provocados por compa- nheitos de trabalho, mas discordar quanto aquilo que a lei das indenizagées realmente é, por divergirem sobre a questio de se © corpus do direito escrito e as decisdes judiciais esgotam ou nao os fundamentos pertinentes do direito. Poderiamos dar a isso o nome de divergéncia “tedrica” sobre o direito. A divergéncia empirica sobre o direito quase nada tem de misteriosa. As pessoas podem divergir a propésito de quais pa~ lavras esto nos cédigos da mesma maneira que divergem so- bre quaisquer outras questdes de fato. Mas a divergéncia teéri- ca no direito, a divergéncia quanto aos fundamentos do direito, € mais problematica. Mais adiante, neste capitulo, veremos que advogados juizes tém, de fato, divergéncias tedricas. Di- vergem, por exemplo, sobre o que o direito realmente é, sobre a questo da segregaydo racial ou dos acidentes de trabalho, mesmo quando esto de acordo sobre quais leis foram aplica~ das, ¢ sobre o que as autoridades piiblicas disseram e pensaram no passado. De que tipo de divergéncia se trata? Como nés pré- prios julgariamos quem tem o melhor argumento? 0 piiblico em geral parece bastante alheio a esse proble- ma; na verdade, parece bastante alheio A divergéncia teérica sobre 0 direito. O piblico esté muito mais preocupado com a questio da fidelidade. Politicos, editorialistas e cidadios co- muns discutem, as vezes acaloradamente, a questio de saber se 08 juizes dos grandes processos que atraem a atengao publica “descobrem” ou “inventam” o direito que anunciam, ¢ se “in- ventar” o direito é estadistica ou tirania. Mas a questio da fide- lidade quase nunca é muito veemente nos tribunais anglo~ me- O.QUE Eo DIREITO? 9 ricanos; nossos juizes raramente refletem sobre se devem ou nao observar o direito uma vez que tenham decidido qual seu verdadeiro sentido; ¢ 0 debate pablico é na verdade um exem- plo, ainda que extremamente disfargado, da divergéncia teéri- ca sobre o direito. Num sentido trivial, é inquestionavel que os juizes “criam novo direito” toda vez que decidem um caso importante. Anun- ciam uma regra, um principio, uma ressalva a uma disposi¢o — por exemplo, de que a segregaco é inconstitucional, ou que 0s operirios no podem obter indenizacao em juizo por danos provocados por companheiros de trabalho — nunca antes ofi- cialmente declarados. Em geral, porém, apresentam essas “no- vas” formulacdes juridicas como relatos aperfeigoados daquilo que 0 direito jé é, se devidamente compreendido. Alegam, em outras palavras, que a nova formulagdo se faz necessaria em fungao da correta percepgao dos verdadeiros fundamentos do direito, ainda que isso nao tenha sido previamente reconheci- do, ou tenha sido, inclusive, negado. Portanto, o debate publico sobre a questio de se os juizes “descobrem” ou “inventam” o direito constitui, na verdade, um debate sobre se e quando essa ambiciosa pretensdo é verdadeira. Se alguém diz que os juizes descobriram a ilegalidade da segregacdo nas escolas, é porque {jf acreditava que a segregacio era de fato ilegal, mesmo antes da deciso que a declarou como tal e ainda que nenhum tribu- nal tivesse afirmado isso anteriormente. Se alguém diz que eles inventaram essa parte do direito, quer dizer que a segrega- ao nao era ilegal antes, e que os juizes mudaram o direito com sua decisio. Esse debate seria suficientemente claro — e pode- ria ser resolvido com facilidade, pelo menos caso a caso ~ se todos estivessem de acordo quanto ao que é 0 direito, se nao houvesse divergéncia tedrica sobre os fundamentos do direito Entio, seria facil verificar se o direito antes da deciso da Su- prema Corte era, de fato, aquilo que tal decisao declarou ser. Contudo, tendo em vista que advogados e juizes realmente vergem no campo tedrico, o debate sobre a questo de se os juizes criam ou encontram o direito faz parte dessa divergén- 10 OIMPERIO DO DIREITO cia, ainda que em nada contribua para resolvé-la, uma vez que a verdadeira questo nunca vem a tona. O direito como ples questo de fato Por incrivel que pareca, nossa doutrina ndo tem nenhuma teoria plausivel acerca da divergéncia tedrica no direito. Os fildsofos do direito esto, sem ditvida, conscientes de que a divergéncia teérica é problematica, de que nao € claro, a pri- meira vista, de que tipo de divergéncia se trata. Mas a maioria deles jé se decidiu por aquilo que, como logo veremos, é mais uma evasiva que uma resposta. Afirmam que a divergéncia tedrica 6 uma ilusdo, que na verdade advogados e juizes estio de acordo quanto aos fundamentos da lei. Darei a isso 0 nome de ponto de vista da simples questo de fato dos fundamentos do direito; aqui esti uma exposicao preliminar de suas princi pais alegagdes. O direito nada mais & que aquilo que as insti- tuigdes juridicas, como as legislaturas, as cémaras municipais ¢ os tribunais, decidiram no passado. Se alguma corporagio desse tipo decidiu que os trabalhadores podem ser indenizados por danos ocasionados por colegas de trabalho, sera isso, en- to, o direito. Se a decisdo for contraria, entao este seré o direi to. Fortanto, as questées relativas ao direito sempre podem ser respondidas mediante 0 exame dos arquivos que guardam os registros das decisées institucionais. E claro que se necessita de uma formacao especial para saber onde procurar e como com- preender 0 misterioso vocabulario em que tais decisdes so escritas. O leigo nao possui essa formagao ou vocabulario, mas ‘0s advogados sim, e portanto nao pode haver controvérsia en- tre eles quanto ao direito assegurar ou nao a indenizagao por danos ocasionados por companheiros de trabalho, por exem- plo, a menos que algum deles tenha cometido um erro empii co a propésito daquilo que, na verdade, foi decidido no passa- do. “Em outras palavras, o direito existe como simples fato, € 0 que 0 direito é nao depende, de modo algum, daquilo que ele deveria ser, Por que, entdo, advogados e juizes as vezes pare- oquEEo piREITO? u cem ter uma divergéncia tedrica sobre 0 direito? Porque, quan- do eles parecem estar divergindo tcoricamente sobre o que € 0 direito, estio na verdade divergindo sobre aquilo que ele deve- ria ser. Divergem, de fato, quanto a questées de moralidade ¢ fidelidade, nao de direito.” ‘A popularidade desse ponto de vista entre os tedricos do direito ajuda a explicar por que os leigos, quando pensam nos tribunais, se preocupam mais com a conformidade para com 0 direito do que com qual 0 direito. Se os juizes se dividem em algum grande processo, ¢ se sua divergéncia ndo pode dizer respeito a nenhuma questio de direito, por ser este uma ques- to apenas de fato, que se decide facilmente entre advogados bem informados, um dos lados deve estar desobedecendo a lei ou ignorando-a, ¢ este deve ser o lado que sustenta uma deci- sio inusitada, no sentido trivial do termo. Assim, a questao da fidelidade & a questo que exige um debate piblico ¢ a atengao do cidadio precavido. Na Gri-Bretanha e nos Estados Unidos, a opiniio mais popular insiste em que os juizes devem sempre, a cada decisdo, seguir o direito em vez de tentar aperfeigod-lo. Eles podem nao gostar do direito que encontram — este pode exigir que despejem uma vitiva na véspera do Natal, sob uma tempestade de neve — mas ainda assim devem aplica-lo. Infe- lizmente, de acordo com essa opiniao popular, alguns juizes no aceitam essa sabia submissao; velada ouabertamente, sub- metem a lei a seus objetivos ou opinides politicas. Sao estes os maus juizes, os usurpadores, os destruidoresda democracia. Essa é a resposta mais popular a questio da fidelidade, mas nio é a Ginica. Algumas pessoas sustentam 0 ponto de vi ta contrério, de que os juizes devem tentar melhorar a lei sem- pre que possivel, que devem ser sempre politicos, no sentido deplorado pela primeira resposta. Na opinigo da minoria, o mau juiz é 0 juiz rigido e “mecdnico”, que faz cumprir a lei pela lei, sem se preocupar com o sofrimento, a injustiga ou a ineficiéncia que se segue. O bom juiz prefere a justiga a lei As duas versées do ponto de vista do leigo, a “conserva- dora” e a “progressista”, baseiam-se na tese académica de que 0 direito vigente é uma simples questio de fato, mas, sob cer 12 OIMPERIO DO DIREITO tos aspectos, a tese académica é mais sofisticada. A maioria dos leigos supde que, nos repertérios, existem normas juridi cas para decidir cada questo que se possa trazer a presenga de um juiz. A verso académica do ponto de vista da simples questo de fato nega tal concepcao. Ela enfatiza que o direito pode ser silencioso a propésito do litigio em questo porque nenhuma decisdo institucional anterior emite, sobre ele, qual- quer opinitio. Talvez nenhuma instituigo competente jamais tenha decidido se os trabalhadores podem ou nio pedir indeni- zagio por danos provocados por colegas de trabalho. Ou o direito pode silenciar porque a decisdo institucional pertinente apenas estipulou vagas diretrizes ao declarar, por exemplo, que um locador deve dar a uma vitiva um tempo “razoavel” para pagar seu aluguel. Nessas circunstancias, de acordo com a ver- sio académica, nenhuma decisio pode fiar-se em que aplicar a lei ¢ preferivel a mudé-la. O juiz, portanto, ndo tem nenhuma ‘opgio a no ser exercer seu discernimento para criar uma nova norma, preenchendo as lacunas onde o direito silencie ¢ tor- nando-o mais preciso onde for vago. Nada disso justifica 0 ponto de vista da simples questio de fato, segundo 0 qual o direito é sempre uma questao de fato histérico ¢ nunca depende da moralidade. Apenas acrescenta que, em certas ocasides, advogados experientes podem desco- brir que ndo existe absolutamente norma juridica alguma. To- das as questées sobre a natureza do direito tém, ainda, uma resposta histérica categorica, embora algumas tenham respos- tas negativas. A questio da fidelidade é entio substituida por uma questo diferente, igualmente distinta da questao do dire’ to, que podemos chamar de questo da reparagio. O que fariam 0s juizes na auséncia da norma juridica? Essa nova questo po- litica abre espaco a uma divergéncia de opiniées muito seme- Ihante a divergéncia original sobre a questo da fidelidade, pois 08 juizes que nao tém escolha a nao ser criar um novo direito podem introduzir ambicdes diferentes nessa iniciativa. Devem preencher as lacunas com prudéncia, preservando ao maximo © egpirito do ramo do diteito em questo? Ou devem fazé-lo democraticamente, tentando chegar ao resultado que, segundo o.QuE Eo pIREITO? 13 acreditam, represente a vontade do povo? Ou devem arriscar- se, tentando tornar o direito resultante to justo e sabio quanto possivel, em sua opiniao? Cada uma dessas atitudes muito diferentes tem seus partidarios nos cursos de direito e nos dis- cursos que se seguem aos jantares nas organizacées profissio- nais. Sdo as bandeiras — desgastadas pelo uso ~ das cruzadas da ciéncia do direito. Alguns juristas académicos extraem conclusdes especial- mente radicais da sofisticada versio do ponto de vista do direi- to como simples questio de fato‘. Afirmam que as decisdes institucionais do passado nao somente as vezes, mas quase sempre, so vagas, ambiguas ou incompletes e, com freqiién- cia, também incompativeis ou mesmo incoerentes. Concluem que realmente nunca existe direito relativo a nenhum t6pico ou questo, mas apenas retérica que os juizes utilizam para mas- carar decisdes que, na verdade, so ditadas por preferéncias ideologicas ou de classe. A seqiiéncia que descrevi, da con- fiante crenca do leigo em que o direito esta por toda parte, até a zombeteira descoberta do cinico de que ele absolutamente no existe, é © curso natural seguido pela conviccdo, uma vez que aceitemos 0 ponto de vista do direito como simples ques- tdo de fato © sua conseqiiente alegaciio de que a divergéncia tedrica é apenas politica disfargada. Pois quanto mais aprende- mos sobre o direito, mais nos convencemos de que nada de im- portante sobre ele é totalmente incontestavel. Devo acrescentar que 0 ponto de vista da simples questo de fato nao é aceito por todos. E muito popular entre os leigos © 08 escritores académicos cuja especialidade € a filosofia do dircito. Mas é rejeitado nas explicagdes que advogados e juizes ponderados e atuantes fazem de seu trabalho. Eles talvez endos- sem o modelo do simples fato como uma pega da doutrina for- 6. Tenho em mente os “realistas”juridicos discutidos mais adiante nes- te mesmo capitulo, como Jerome Frank (Law and the Modern Mind {Nova York, 1949), e © movimento dos “estudos juridicos criticos", diseutido no ‘capitulo VIl (ver, de modo geral, 38 Stanford Law Review 1-674 {1984}, sir ésio sobre os conhecimentos critico-juridicos), 14 OIMPERIO DO DIREITO mal sempre que solicitados, em tom devidamente grave, a emi- tir sua opinido sobre o que € 0 direito. Em momentos de menos reserva, porém, contarao uma histéria diferente, mais romanti- ca. Dirdo que direito & instinto, que no vem explicitado numa doutrina, que s6 pode ser identificado por meio de técnicas especiais cuja descricao ideal é impressionista, quando nao mi teriosa. Dirdo que julgar é uma arte, ndo uma ciéncia, que o bom juiz mistura analogia, ciéncia, sabedoria politica e a conscién- cia de seu papel para chegar a uma decisao intuitiva, que ele “v8” o direito com mais clareza do que consegue explicé-lo, de tal modo que sua opiniao escrita, por mais cuidadosamente ra- cional que possa ser, nunca ser capaz de aprender a plenitude de seu discernimento’ Muito freqiientemente, acrescentam aquilo que acreditam ser uma modesta retratacdo. Dizem que nao existem respostas certas, mas apenas respostas diferentes a dificeis questdes juri- dicas; que em tiltima anlise o discernimento é subjetivo; que é apenas 0 que parece certo, seja 0 que for, a um determinado juiz em um determinado momento. Na verdade, porém, essa modéstia contradiz 0 que eles dizem primeiro, pois quando os juizes finalmente decidem de um jeito ou de outro, consideram seus argumentos melhores do que os argumentos contririos — no simplesmente diferentes: embora possam pensar a esse respeito com humildade, desejando que sua confianca fosse maior ou que dispusessem de mais tempo para decidir, ainda assim € naquilo que acreditam. De qualquer maneira, 0 ponto de vista roméntico da “ciéncia” ¢ insatistatério; € excessiva- mente desestruturado, por demais complacente com os misté- rios que cultiva para ser considerado uma teoria avancada do que seja 0 argumento juridico. Precisamos disciplinar a idéia do direito como ciéncia, ver de que modo a estrutura do “‘ins- tinto” juridico difere de outras convicgdes que as pessoas pos- sam ter sobre o governo ¢ a justiga 7. Ver, por exemplo, Benjamin Cardozo, The Nature of the Judicial Process, em especial pp. 165-80 (New Haven, 1921). o.QuE EO DIREITO? 15 Ainda nio apresentei as razdes para minha alegagdo de que 0 ponto de vista do direito como simples fato, que predo- mina nos meios académicos, é mais uma evasiva do que uma teoria. Precisamos de exemplos concretos de divergéncia te6ri- ca, que fornecerei em breve. Mas, se eu estiver certo, estare- mos numa situagio dificil. Se leigos, professores de direito, advogados em exercicio e juizes nao tém uma boa resposta para a pergunta de como ¢ possivel a divergéncia tedrica, e do que se trata, nao dispomos do essencial de um aparato razoavel que nos permita fazer uma critica inteligente ¢ construtiva da atuagio de nossos juizes. Nenhum ministério é mais importan- te que nossos tribunais, e nenhum é tdo inteiramente mal com- preendido pelos governados. A maioria das pessoas tem opi- nides bastante claras sobre 0 modo como congressistas, pri- meiros-ministros, presidentes ou ministros das Relagdes Exte- riores devem desempenhar suas fungdes, e opinides claras so- bre o verdadeiro comportamento dessas autoridades. Mas a opiniao popular sobre os juizes ¢ 0 exercicio da justica é um caso lamentavel de frases vazias, ¢ ai incluo as opinides de muitos juizes e advogados em exercicio sempre que escrevem ou falam sobre aquilo que fazem. Tudo isso é vergonhoso, 0 que é apenas uma parte do dano. Afinal, temos interesse pelo direito nao s6 porque o usamos para nossos proprios propési- tos, sejam eles egoistas ou nobres, mas porque o direito é a nossa instituigao social mais estruturada e reveladora. Se com- preendermos melhor a natureza de nosso argumento juridico, saberemos melhor que tipo de pessoas somos. Uma objegao liminar Este livro é sobre a divergéncia teorca no direito. Seu objetivo é compreender de que tipo de divergéncia Se trata e, entio, criar e defender uma teoria particular sobre os funda- mentos apropriados do direito. E evidente, porém, que nele se aborda mais a pratica judicidria do que os argumentos sobre 0 16 OIMPERIO DO DIREITO direito, e © livro negligencia grande parte daquilo que a teoria do direito também estuda. Ha muito pouco aqui sobre questdes de fato, por exemplo. E importante 0 modo como os juizes decidem se um operario tem ou nao o direito legal de ser inde- nizado quando um companheiro de trabalho derruba uma chave inglesa em seu pé, mas também importa saber como um juiz ou um juri decide que, pelo contrario, foi o préprio operi- rio (como alega o empregador) que derrubou a chave inglesa no pé. Também nao discuto a administragdo adequada da deli- beragao judicial, as solugSes conciliatérias que os juizes de- vem as vezes accitar, declarando 0 direito de modo um pouco diferente daquele que consideram mais perfeito, com a finali- dade de conquistar os votos de outros juizes, por exemplo. Es- tou preocupado com a questo do direito, ndio com as razdes que os juizes possam ter para atenuar suas afirmagées sobre 0 que é 0 direito. Meu projeto também é limitado em outro senti- do. Concentra-se na decisao judicial, nos juizes togados, mas estes no so os tinicos protagonistas do drama juridico, nem mesmo os mais importantes. Um estudo mais completo da pra- tica do direito levaria em consideragao os legisladores, pol ciais, promotores publicos, assistentes sociais, diretores de es- colas € varios outros tipos de autoridades, além de pessoas como banqueiros, administradores e dirigentes sindicais, que nao sao considerados funciondrios ptblicos, mas cujas deci- sdes também afetam os direitos juridicos de seus concidadaos. Alguns criticos estardo ansiosos por dizer, a esta altura, que nosso projeto ndo somente é parcial nesses varios aspec- tos, mas também é falho; que teremos uma compreensiio equi vocada do processo legal se dermos atengo especial aos ar- gumentos doutrinarios dos advogados acerca do que é 0 direi- to. Dizem eles que esses argumentos obscurecem — ¢ talvez pretendam obscurecer — a importante fungao social do direito enquanto forca ideolégica e evidéncia. Um bom entendimento do direito como fenémeno social exige, na opiniao desses criti- cos, uma abordagem mais cientifica, sociolégica ou histérica, que dé pouca ou nenhuma atengiio as complicagées da doutrina QUE £0 DIREITO? a sobre a correta caracterizacaio do argumento juridico. Devemos nos voltar, pensam eles, para questées muito diferentes, como estas: até que ponto, ¢ de que modo, sao os juizes influenciados pela consciéncia de classe ou pelas circunstincias econémicas? As decisdes judiciais tomadas nos Estados Unidos no século XIX desempenharam papel importante na formagao da versao tipicamente norte-americana de capitalismo? Ou ser que essas decisdes nao passaram de espelhos que refletiam transforma- des ¢ conflitos ~ transformacdes que nao ajudaram a promover € conflitos que nao ajudaram a solucionar? Estaremos nos des viando de questdes sérias como essas, advertem os criticos, se nos deixarmos levar por argumentos filos6ficos sobre se e por que as proposicdes juridicas podem ser polémicas, tal como antropdlogos que se deixassem envolver por debates teolégicos sobre alguma cultura antiga e primitiva. Essa objecdo fracassa em decorréncia de seus proprios ctitérios. Pede realismo social, mas o tipo de teoria que preco- niza € incapaz de oferecé-lo. O direito é, sem diivida, um fend- meno social. Mas sua complexidade, fungiio e conseqiiéncias dependem de uma caracteristica especial de sua estrutura. Ao contrario de muitos outros fenémenos sociais, a pratica do di- reito & argumentativa. Todos 0s envolvidos nessa pritica com- preendem que aquilo que ela permite ou exize depende da ver- dade de certas proposigdes que s6 adquirem sentido através no ambito dela mesma; a pratica consiste, em grande parte, em mobilizar e discutir essas proposigdes. Os povos que dispdem de um direito criam e discutem reivindicagées sobre 0 que 0 direito permite ou proibe, as quais setiam impossiveis — por- que sem sentido — sem 0 direito, € boa parte daquilo que seu direito revela sobre eles s6 pode ser descoberta mediante a ob- servaciio de como eles fundamentam e defendem essas reivin- dicagdes. Esse aspecto argumentativo crucial da pritica do direito pode ser estudado de duas maneiras, ou a partir de dois, pontos de vista. Um deles & o ponto de vista exterior do socié logo ou do historiador, que pergunta por que certos tipos de argumentos juridicos se desenvolvem em certas épocas ou ie OIMPERIO DO DIREITO Cunstncias, € nao em outras, por exemplo. O outro é 0 ponto de vista interior daqueles que fazem as reivindicagdes. Seu in- teresse nao é, em tiltima andlise, histérico, embora possam considerar a histéria relevante; & pratico, exatamente no senti de que a presente objec ridiculariza. Essas pessoas ndo que- rem que se especule sobre as reivindicagdes juridicas que fa- ro, mas sim demonstragdes sobre quais dessas reivindicagdes so bem fundadas e por qué; querem teorias nao sobre o modo como a hist6ria e a economia formaram sua consciéncia, mas sobre o lugar dessas disciplinas na demonstragao daquilo que 0 diteito exige que elas fagam ou tenham. As duas perspectivas sobre o direito, a externa e a interna, ‘so essenciais, e cada uma delas deve incorporar ou levar em conta a outra. O ponto de vista do participante inclui o do his- toriador quando algum pleito juridico apéia-se numa questio de fato hist6rico: quando, por exemplo, a questo de saber se a Segregagdo ¢ ou nio ilegal volta-se para os motivos dos politi- Cos que escreveram a Constituigao ou daqueles que segrega- ram as escolas". A perspectiva do historiador inclui a do parti- cipante de modo mais abrangente, pois o historiador naio pode compreender o direito como pritica social argumentativa, nem ‘mesmo 0 suficiente para rejeité-lo como enganador, enquanto nao tiver a compreenso de um participante, enquanto nao dis- Puser de sua propria opiniao sobre o que se considera boa ou mé argumentaco no ambito dessa pratica. Precisamos de uma teoria social do direito, mas exatamente por essa razio ela deve fazer parte da doutrina juridica. Portanto, serio perversas as teorias que, em nome de questdes supostamente mais amplas de historia e sociedade, ignorarem a estrutura do argumento juridico. Por ignorarem as questdes sobre a natureza interna do argumento no direito, suas explicagdes so pobres e incomple- tas, como as histérias da matematica se escritas na linguagem de Hegel ou de Skinner. Foi Oliver Wendell Holmes, penso, que defendeu de modo mais convincente esse tipo de teoria “exter 8, Essas possibilidades sio discutidas nos capitulos IX e X. QUE LO DIREITO? 19, na” do direito’; a deprimente historia da doutrina socioteérica em nosso século serve para nos mostrar quao errado cle estava. Estamos ainda a espera de explicacio ©, enquanto esperamos, as teorias ficam cada vez mais programaticas e menos substan- tivas, mais radicais na teoria e menos criticas na pratica. Este livro adota 0 ponto de vista interno, aquele do parti- cipante; tenta aprender @ natureza argumentativa de nossa pritica juridica ao associar-se a essa pritica e debrugar-se so- bre as questdes de acerto ¢ verdade com as quais os participan- tes deparam, Estudaremos o argumento juridico formal a partir do ponto de vista do juiz, nfo porque apenas os juizes sto im- portantes ou porque podemos compreendé-los totalmente se prestamos atencdo ao que dizem, mas porque 0 argumento juridico nos processos judiciais € um bom paradigma para a exploragio do aspecto central, proposicional, da pratica juridi- ca. Os cidadaos, 05 politicos ¢ os professores de direito tam- bém se preocupam com a natureza da lei ¢ a discutem, e cu poderia ter adotado seus argumentos como nossos paradigmas, € nao os do juiz. Mas a estrutura do argumento judicial é tipi- camente mais explicita, e 0 raciocinio judicial exerce uma in- fluéncia sobre outras formas de discurso legal que nao é total- mente reciproca. O mundo real Precisamos atenuar 0 peso das prodigiosas abstragdes contidas nessas observacées introdutérias. Tentarei mostrar como a tese do simples fato distorce a pritica juridica, e come- carei pela descrigao de alguns casos reais que foram decididos por juizes ingleses e norte-americanos. Sio casos famosos pelo menos entre os estudantes de direito, continuam a ser discutidos nas salas de aula. Apresento-os aqui, conjuntamen- te, por diversas razGes. Eles introduzem certos termos técnicos 9. Oliver Wendell Holmes, “The Path of the Law", 10 Harvard Law Review (1897). 20 0 IMPERIO DO DIREITO aos leitores que no possuem formagao em direito, ¢ oferecem novos exemplos de diferentes argumentos e discussées conti dos nos capitulos seguintes. Espero que oferegam, de modo mais geral, algum entendimento da textura ¢ do tom verdadei- ros dos argumentos juridicos. Esta ultima razdo é a mais im- Portante pois, no fim das contas, todos os meus argumentos so reféns da idéia que tem cada leitor sobre 0 que acontece e pode acontecer nos tribunais. O caso Elmer Elmer assassinou 0 av6 por envenenamento em Nova York, em 1882", Sabia que o testamento deixava-o com a maior Parte dos bens do avd, e desconfiava que o velho, que voltara a casar-se havia pouco, pudesse alterar 0 testamento e deixi-lo sem nada. O crime de Elmer foi descoberto; ele foi declarado culpado e condenado a alguns anos de prisao. Estaria ele legal- mente habilitado a receber a heranga que seu avé the deixara no tltimo testamento? Os legatarios residuais incluidos no tes- tamento, habilitados a herdar se Elmer tivesse morrido antes do avé, éram as filhas deste. Como seus nomes nao so men- cionados, vou chamé-las aqui de Goneril e Regan. Elas proces- saram © inventariante do espélio, exigindo que o patriménio ficasse com elas, e néo com Elmer. Argumentavam que, como Elmer havia matado o testador, seu pai, a lei nao the dava direi- toanada. O direito relativo aos testamentos encontra-se, em sua maior parte, disposto em leis especiais, geralmente chamadas de leis sucess6rias, que determinam a forma que um testamen- to deve ter para ser considerado legalmente valido: quantas, ¢ que ‘ipos de testemunhas devem assinar; qual deve ser o estado mental do testador; de que maneira um testamento valido, uma vez firmado, pode ser revogado ou alterado pelo testador, € assim por diante. A lei de sucessdes de Nova York, como mui- 10. Riggs vs. Palmer, 115, Nova York, 506, 22 N.E. 188 (1889). OQUE £0 DIREITO? 24 tas outras em vigor naquela época, nao afirmava nada explici- tamente sobre se uma pessoa citada em um testamento poderia ou no herdar, segundo seus termos, se houvesse assassinado 0 testador. O advogado de Elmer argumentou que, por nao violar nenhuma das cldusulas explicitas da lei, 0 testamento era val do, ¢ que Elmer, por ter sido nominalmente citado num testa mento vilido, tinha direito a heranga. Declarou que, se 0 tribu- nal se pronunciasse favoravelmente a Goneril e Regan, estaria alterando o testamento e substituindo o direito por suas pré- prias convicgdes morais. Todos os juizes da mais alta corte de Nova York concordavam que suas decisdes deveriam ser toma- das de acordo com 0 direito. Nenhum deles negava que se a lei sucess6ria, devidamente interpretada, desse a heranga a Elmer, eles deveriam ordenar ao inventariante do espalio que assim pro- cedesse. Nenhum deles dizia que, naquele caso, a lei deveria ser alterada no interesse da justiga. Divergiam quanto a solucao correta do caso, mas sua divergéncia — pelo menos assim nos parece com base na leitura dos pareceres que redigiram —dizia respeito A verdadeira natureza do direito, Aquilo que determina a legislagdo quando devidamente interpretaca. ‘Como podem as pessoas que tém diante de si o texto de uma lei divergir quanto ao que ele realmente significa, quanto a0 tipo de direito que ela criou? Precisamos estabelecer uma distingao entre dois sentidos da cxpressio “lei”. Ela pode des- crever uma entidade fisica de um certo tipo, um documento com palavras impressas, as préprias palavras que os congres- sistas ou membros do Parlamento tinham diante de si quando votaram para aprovar esse documento. Mas também pode ser usada para descrever o direito criado ao se promulgar o docu- mento, 0 que pode constituir uma questo bem mais complexa. Considere-se a diferenga entre um poems concebido como uma seqiiéncia de palavras que podem ser declamadas ou es- critas, e um poema concebido como a expresstio de uma teoria metafisica ou de um ponto de vista especificos. Todos os criti- cos literdrios concordam quanto ao que representa 0 poema “Sailing to Byzantium” (“Navegando para Bizancio”) no pri- meiro sentido. Concordam que se trata de uma seqiiéncia de 22 (O IMPERIO DODIREITO palayras designada como aquele poema de W. B. Yeats. Mas di- vergem quanto ao que representa 0 poema no segundo sentido, ou seja, nao hé consenso sobre o que o poema realmente diz ou significa. Eles divergem sobre o modo de interpretar 0 “verda- deiro” poema, 0 poema no segundo sentido, a partir do texto, 0 poerna no primeiro sentido. De modo muito semelhante, os juizes que tém diante de si uma lei precisam interpretar a “verdadeira” lei — uma afirma- do de que diferengas a lei estabelece para os direitos de dife- rentes pessoas —a partir do texto da compilagdo de leis. Assim como 0s criticos literarios precisam de uma teoria operacional, ou pelo menos de um estilo de interpretagao, para interpretar 0 poema por trs do texto, os juizes também precisam de algo como uma teoria da legislagao para fazer 0 mesmo com rela- Gio is leis. Isso pode parecer evidente quando as palavras con- las nas compilagdes sofrem da mesma deficiéncia semanti ca; quando so ambiguas ou vagas, por exemplo. Mas uma teo- ria da legislagdo também se faz necessaria quando, do ponto de vista lingiiistico, essas palavras sio impecaveis. Os termos da lei sucessdria que figuravam no caso Elmer nao eram nem va- gos nem ambiguos. Os juizes divergiram sobre o impacto des- ses termos sobre os direitos legais de Elmer, Goneril e Regan porque divergiram sobre 0 modo de interpretar a verdadeira lei nas circunstancias especiais daquele caso. 0 voto dissidente, escrito pelo juiz Gray, defendia uma teo- da legislagio mais aceita na época do que hoje em dia. A isso as vezes se dé o nome de teoria da interpretagdo “literal”, embo- ra esta no seja uma descri¢do particularmente esclarecedora. Essa teoria propde que aos termos de uma lei se atribua aquilo que melhor chamariamos de seu significado acontextual, isto é, © significado que Ihes atribuiriamos se nao dispuséssemos de nenhuma informagaio especial sobre o contexto de seu uso ou as intengdes de seu autor. Esse método de interpretagao exige que nenhuma ressalva tacita e dependente do contexto seja feita a linguagem geral; 0 juiz Gray, portanto, insistia em que a verda- deira lei, interpretada da maneira adequada, no continha exce- Ses para os assassinos. Seu voto foi favoravel a Elmer. OQUE £0 DIREITO? 23 Os estudantes de direito que hoje Iéem seu parecer mos- tram-se geralmente desdenhosos com relago a esse modo de interpretar uma lei a partir do texto; eles véem nisso um exem- plo de doutrina mecdnica. Mas nao ha nada mecanico no argu- mento do juiz Gray. Hé muito a dizer (¢ ele em parte 0 disse) em favor de seu método de interpretar uma lei, pelo menos no caso da lei sucesséria. Os testadores deveriam saber como seus iestamentos serdo tratados quando eles nao mais estiverem vi- ‘vos para fornecer novas instrugdes. Talvez 0 avo de Elmer tives- se preferido que seu patriménio ficasse corn Goneril e Regan na hipétese de Elmer envenené-lo. Mas pode ser que nao: ele poderia ter pensado que, mesmo com as maos manchadas pelo assassinato, Elmer continuaria sendo melhor objeto de sua generosidade que suas filhas. A longo prazo, talvez fosse mais sabio que os juizes assegurassem aos testadores que a lei su- cess6ria sera interpretada segundo 0 chamado modo literal, para que os testadores possam fazer todas as estipulagdes que dese- jarem, confiantes de que suas disposiges, por mais engragadas que sejam, ainda assim sero respeitadas. Além disso, se Elmer perder a heranga por ser um assassino, estara sofrendo uma pu- nigdo adicional por seu crime, além dos anos que passaré na prisdo. E um principio importante da justiga que a punigdo de um determinado crime seja estabelecida com antecedéncia pe- Ia legislaco e nfo seja aumentada pelos juizes depois que crime foi cometido. Tudo isso (€ mais ainda) pode ser dito em defesa da teoria do juiz Gray sobre como interpretar uma lei so- bre testamentos. (O juiz Earl, porém, escrevendo em nome da maioria, usou uma teoria da legislaco muito diferente, que da as intengdes do legislador uma importante influéncia sobre a verdadeira lei. “EE um conhecido canone da interpretagdo”, escreveu Earl, “que algo que esteja na intengdo dos legisladores seja parte dessa lei, tal como se estivesse contida na propria letra; e que uma coisa que esteja contida na letra da lei somente faga parte da lei, se estiver presente na intengo de seus criadores.”* (Observe-se como ele 11. fl, 189, 24 0 IMPERIO DO DIREITO se apega a distingdo entre o texto, que chama de “letra” da lei, e @ propria lei, que chama de “lei” propriamente.) Seria absurdo, Pensava ele, imaginar que os legisladores de Nova York que ori- ginalmente aprovaram a lei sucesséria pretendessem que os as- sassinos pudessem herdar, e por essa razdo a verdadeira lei que promulgaram nio continha tal conseqiiéncia Precisamos ter um certo cuidado ao explicar 0 que o juiz Earl quis dizer sobre o papel que a intengdo deveria desempe- nhar na interpretago das leis. Ele ndo quis dizer que uma lei nao possa ter nenhuma conseqiléncia que os legisladores nao tivessem em mente. Isso é claramente muito radical enquanto Tegra geral: nenhum legislador pode ter em mente todas as conseqiténcias de qualquer lei a favor da qual ele vote. Os Ie- gisladores de Nova York nao poderiam imaginar que as pessoas um dia deixariam computadores em heranga, mas seria absu! do concluir que a lei no compreenda tais legados. Tampouco quis ele dizer, apenas, que uma lei no possa conter nada que 05 legisladores nao pretenderam que ela contivesse. Isso pare- ce mais plausivel, mas é muito frigil para ser de qualquer utili- dade no caso Elmer, pois parece provavel que os legisladores de Nova, York nao tinham em mente, de modo algum, 0 caso dos assassinos. Eles no pretendiam que os assassinos herdassem, mas também no pretendiam que eles nao pudessem fazé-lo. Nao 0s movia nenhuma intengao em qualquer desscs dois sen. tidos. Earl pretendia apegar-se a um principio, que poderiamos chamar de intermediario, entre esses principios excessivamen- te dristicos e frigeis: queria dizer que uma lei no pode ter ne- nhuma conseqiiéncia que os legisladores teriam rejeitado se nela tivessem pensado!, (O juiz Earl nfo se apoiou apenas em seu principio sobre a intengao do legislador; sua teoria da legislagio continha outro principio relevante. Ele afirmava que na interpretagdo das leis & partir dos textos nao se deveria ignorar o contexto histérico, ‘mas levar-se em conta os antecedentes daquilo que denomina. 12. Ha problemas bastante sérios nesse principio intermediitio, e exa- ‘minaremos alguns deles no capitulo 1X. oQuE EobIREITO? 25 va de principios gerais do dircito: ou seja, que os juizes deve- riam interpretar uma lei de modo a poderem ajusté-la o maxi- mo possivel aos principios de justiga pressupostos em outras partes do direito. Ele apresentou duas razées. Primeiro, é ra- zoavel admitir que os legisladores tem uma intengdo genérica e difusa de respeitar os principios tradicionais da justiga, a me- nos que indiquem claramente o contrario. Segundo, tendo em vista que uma lei faz parte de um sistema compreensivo mais vasto, 0 direito como um todo, deve ser interpretada de modo a conferir, em principio, maior coeréncia a esse sistema. Earl ar- gumentava que, em outros contextos, o direito respeita o prin- cipio de que ninguém deve beneficiar-se de seu préprio erro, de tal modo que a lei sucess6ria devia ser lida no sentido de ne- gar uma heranga a alguém que tivesse cometido um homicidio para obté-la. Os pontos de vista do juiz Earl prevaleceram. Outros qua- tro juizes acompanharam-no em sua decisio, enquanto o juiz Gray sé conseguiu encontrar um aliado. Elmer, portanto, no recebeu sua heranga. Usarei esse caso para ilustrar muitas ques- tes diferentes na argumentagio que se segue, mas a mais im- portante de todas € esta: a controvérsia sobre Elmer nao dizia respeito & questo de se os juizes deveriam seguir a lei ou adap- té-la, tendo em vista os interesses da justica. Nao pelo menos se considerarmos as opinides que apresentei da forma como foram apresentadas, e (como afirmarei mais adiante) nada justi- fica que as consideremos de qualquer outro modo. Foi uma controvérsia sobre a natureza da lei, sobre aquilo que realmen- te dizia a propria lei sancionada pelos legisladores. O caso do snail darter Passarei agora a descrever um caso bem mais recente, atra- vés do qual pretendo demonstrar que esse tipo de controvérsia continua a ocupar os juizes". Em 1973, durante um periodo de 13. Tennessee Valley Authority vs. Hill, 487 U.S. 153 (1978) John Oakley chamou a atengio para o valor desse caso como exemplo. 26 OIMPERIO DO DIREITO grande preocupagao nacional com a preservagao das espécies, © Congresso dos Estados Unidos promulgou a Lei das Espé- cies Ameagadas. Essa lei autoriza o ministro do Interior a designar as espécies que, em sua opiniao, estariam correndo 0 risco de desaparecer devido a destruicao de alguns habitats que ele considere essenciais a sobrevivéncia delas, e também exige que todos os érgdos e departamentos do governo tomem “as medidas necessdrias para assegurar que as agdes autorizadas, firanciadas ou executadas por eles ndo ponham em risco a continuidade da existéncia de tais espécies ameagadas”™. Um grupo de preservacionistas do Tennessee vinha se opondo aos projetos de construgao de uma barragem da Ad- ministragio do Vale do Tennessee, nao devido a alguma amea- as espécies, mas porque esses projetos estavam alterando a geografia da rea ao transformarem regatos que corriam livre- mente em feios ¢ estreitos fossos, com a finalidade de produzir um: aumento desnecessério (como pensavam os preservacio- nistas) de energia hidrelétrica. Esse grupo descobriu que uma barragem quase concluida, que ja consumira mais de cem milhdes de délares, ameagava destruir 0 tnico habitat do snail darter, um peixe de 7,5 cm, destituido de qualquer beleza, in- teresse bioldgico ou importancia ecolégica especiais, Conven- ceram o ministro a apontar esse peixe como uma espécie amea- sada de extingio e a tomar as medidas legais para impedir que a barragem fosse concluida e usada. Quando ministro assim procedeu, a Administragiio do Vale argumentou que a lei ndo podia ser interpretada de modo a impedir a conclusao ou operagdo de qualquer projeto ja em fase avancada de construcdo. Afirmou que as palavras “agdes autorizadas, financiadas ou executadas” deviam ser entendidas como uma referéncia ao inicio de um projeto, néo a conclusao de projetos ja iniciados. Para sustentar seu pedido, chamou-se a atencao para varias leis do Congreso, todas aprovadas de- pois de 0 ministro ter declarado que a conclusao da barragem 14. Lei das Espécies Ameagadas de 1973, Pub. L. N°93-205, sec. 7, 87 Lei, 884, 892 (codificada como foi emendada em 16 U.S.C. sec. 1536 [1983]) ove EO DIREITO? 27 destruiria 0 snail darter, 0 que sugeria que o Congresso dese- java que a barragem fosse concluida a despeito da declaragio. ‘© Congresso autorizara, especificamente, a dotagdo de recur- sos para a continuidade do projeto mesmo ap6s o ministro ter apontado aquele peixe como espécie ameagada, ¢ varias de suas comissdes declararam, especifica ¢ reiteradamente, dis- cordar do ministro, aceitar a interpretagao da lei feita pela Ad- ministragdo do Vale e desejar que 0 projeto prosseguisse. Nao obstante, a Suprema Corte ordenou que a barragem fosse interrompida, apesar do enorme desperdicio de recursos pibblicos. (0 Congreso entio aprovou uma outra lei, estabele- cendo um procedimento geral para excluir a incidéncia da Lei das Espécies Ameagadas com base nas conclusdes de uma jun- ta revisora."") O presidente da Suprema Corte, Warren Burger, teve seu voto acompanhado pela maioria dos juizes. Nele afir- mava, em palavras que lembram a opiniao do juiz Gray no caso Elmer, que quando 0 texto é claro a corte ndo tem o direi- to de recusar-se a aplicé-lo apenas por acreditar que os resul- tados serio tolos. Os tempos mudam, porém, ¢ sob um aspec- to a opinido do presidente da Suprema Corte era muito dife- rente da do juiz Gray. Burger reconhecia a importincia das intengdes do Congresso sobre a decisaio de qual interpretagao este deveria adotar. Mas nao aceitou o principio de Earl sobre © modo como as intengdes do Congresso so relevantes. Re- cusou-se a considerar a prova contrafactual que a andlise de Earl tornava decisiva. “Nao cabe a nés”, afirmou, “especular, © muito menos agir, com base na questao de se 0 Congreso teria alterado sua posicao se os eventos especificos deste caso tivessem sido previstos.”"* Em vez disso, adotou aquilo que, ao discutir 0 parecer de Earl, chamei de versao excessivamente fragil da idéia de que 0s juizes, ao interpretarem uma lei, devem respeitar as inten- des do legislador. Essa versio se resume a isto: se o significa- 15, Emendas & Lei das Espécies Ameagadas de 1978, Pub. L. N° 95-632, 92 Lei 3571 (codificada como foi emendada em 16 US. C. sec. 1536 [1982]). 16. Tennessee Valley Authority vs. Hill, 437 U.S, 153, 185 (1978) 28 OIMPERIO DO DIREITO do acontextual das palavras do texto for claro ~ se a palavra “executar” normalmente incluisse a continuagdo, bem como 0 inicio de um projeto -, entao o tribunal deve atribuir esse sig- nificado aquele termo, a menos que se pudesse mostrar que, na verdade, o legislador pretendia obter 0 resultado contrario. O histérico do processo legislative que leva a promulgagao da Lei das Espécies Ameacadas nao autorizava tal conclusio, dizia ele, pois era claro que o Congresso queria dar as espécies em extingao um alto grau de protecao, mesmo em detrimento de outros objetivos sociais, ¢ é certamente possivel, ainda que improvavel, que os legisladores com esse objetivo geral dese- Jaciam ver 0 snail darter a salvo, mesmo ao extraordindrio pre- ge da destruigo de uma barragem. Ele rejeitou as provas con- tidas nos relatos posteriores das comissdes, bem como as agdes do Congresso que aprovavam o financiamento para a conti- nuag&o da barragem, nas quais se poderia ter visto a indicagao de uma intengao real de ndo sacrificar a barragem a essa espé- cie particular. As comissdes que se manifestaram em favor da barragem nao eram as mesmas que haviam apoiado inicial- mente a lei, afirmou ele, e os congressistas muitas vezes votam a emissdio de recursos sem considerar plenamente se os gastos propostos so legais de acordo com as decisdes anteriormente tomadas pelo Congresso. O juiz Lewis Powell apresentou voto dissidente, acompa- nhado por outro juiz. Declarou que a decisdo da maioria dava uma interpretagao absurda ao texto da Lei das Espécies Ame gadas. “Nao cabe a nés”, disse ele, “retificar politicas ou jui 20s politicos emanados do Poder Legislativo, por notério que seja 0 desservico que prestem ao interesse piblico. Mas quan- do a formagao da lei e 0 processo legislative, como neste ca- so, ndo precisam ser interpretados para chegar a tal resultado, considero dever desta Corte adotar uma interpretagao eficaz, que seja compativel com um pouco de bom senso ¢ com o bem-estar puiblico.”” Isto demonstra ainda outra teoria da le- gislagao, outra teoria sobre 0 modo como as intengdes da legis- 17. d., 196 (Powell, J. em desacordo). 0 QUE EO DIREITO? 29 atura afetam a lei por tras do texto, e é muito diferente da teo- ria de Burger. Este afirmava que se deveria exigir 0 cumpri- mento do significado acontextual do texto, por mais estranhas ‘ou absurdas que fossem as conseqiiéncias, e menos que a corte descobrisse fortes indicios de que o Congresso realmente pre- tendia 0 contrario. Powell dizia que os tribunais sé deveriam aceitar um resultado absurdo se encontrassem uma prova ine- quivoca de que fosse isso o pretendido. A teoria de Burger é a mesma de Gray, ainda que numa forma menos rigida, que atri- bui algum papel a intengdo do legislador. A teoria de Powell & semelhante 4 de Earl, embora neste caso substitua os princi pios de justica encontrados em outras partes do direito pelo bom senso. ‘Mais uma vez, se tomarmos as opinides desses dois juizes por seu significado aparente, eles ndo divergiram sobre nenhu- ma questo de fato histérico. Nao divergiram quanto ao estado mental dos varios congressistas que se reuniram para promul- gar a Lei das Espécies Ameagadas. Ambos os juizes presumi- ram que a maioria dos congressistas jamais se perguntara se a lei poderia ser usada para interromper uma barragem que, além de muito dispendiosa, j4 estava quase concluida. Nem discordaram sobre a questo da fidelidade. Ambos admitiram que a Corte deveria seguir a lei. Discordaram sobre 0 sentido da lei; discordatam sobre © modo como os juizes deveriam de- cidir sobre qual norma juridica resultava de um texto especifi- co promulgado pelo Congresso, quando os congressistas ti- mham as crengas ¢ intengdes que os dois juizes concordavam. que eles tinham nesse caso. MeLoughlin O caso Elmer e 0 caso do snail darter tém, em sua ori- gem, uma lei. Em cada caso, a decisio dependia da melhor interpretagao da verdadeira lei, a partir de um texto legislativo especifico. Em muitos processos judiciais, porém, o pleiteante ndo se fundamenta em uma lei, mas em decisdes anteriormente 30 OIMPERIO DO DIREITO tomadas por tribunais. Ele argumenta que 0 juiz do seu caso deve seguir as normas estabelecidas nesses casos anteriores, os quais, segundo alega, exigem um veredito que Ihe seja favori- vel. O caso McLoughlin foi assim". © marido e os quatro filhos da sra. McLoughlin foram feridos num acidente de carro na Inglaterra, mais ou menos as quatro da tarde do dia 19 de outubro de 1973. Ela estava em casa quando um vizinho lhe trouxe a noticia do acidente, por . volta de seis horas, e dirigiu-se imediatamente ao hospital, onde foi informada de que a filha havia morrido e o marido e 0s outros filhos estavam em estado grave. Teve um colapso nervoso € mais tarde processou o motorista cuja negligéncia Provocara o acidente, bem como outras pessoas de alguma for- ma envolvidas, exigindo uma indenizagao por danos morais. Seu advogado chamou a atengo para varias decisbes anterio- res dos tribunais ingleses concedendo indenizagao as pessoas que haviam sofrido danos morais ao verem um parente proxi- mo gravemente ferido. Em todos esses casos, porém, o plei- teante tinha estado na cena do acidente ou ali chegara logo em seguida. Em um caso de 1972, por exemplo, uma mulher foi ressarcida — recebeu indenizagao ~ por danos morais; ela cadaver do marido imediatamente apés o acidente que Ihe tira- raa vida”. Em 1967, um homem sem parentesco algum com as vitimas de um acidente de wen trabalhou durante horas ten- tando resgaté-las; a experiéncia o levou a um colapso nervoso, ¢ ele conseguiu obter a indenizagao que pediu®. 0 advogado da sra. McLoughlin fundamentou-se nesses casos como prece- dentes, decisées que haviam incorporado ao direito a norma Juridica segundo a qual pessoas na situagdo dela tém direito a set indenizadas. Os juristas britanicos e norte-americanos falam da doutri- na do precedente; referem-se 4 doutrina segundo a qual deci- 18, McLoughlin vs. O'Brian [1983] | A.C. 410, modificando [1981] Q.3. 599. 19. Marshall vs, Lionel Enterprise Inc, (1972] O.R. 177. 20. Chadwick vs. British Transport (1967) 1 W.LR.912. son 0 QUE £0 DIREITO? 31 sdes de casos anteriores muito semethantes a novos casos de- vem ser repetidas nestes tiltimos. Estabelecem, contudo, uma distingdo entre aquilo que poderiamos chamar de doutrina es- trita e doutrina atenuada do precedente. A doutrina estrita obri- ga os juizes a seguirem as decisdes anteriores de alguns outros tribunais (em geral de tribunais superiores, mas as vezes no mesmo nivel na hierarquia dos tribunais de sua jurisdigao), mesmo acreditando que essas decisdes foram erradas. A forma exata da doutrina estrita varia de lugar para lugar; é diferente nos Estados Unidos ¢ na Gra-Bretanha, e difere de Estado para Estado nos Estados Unidos. De acordo com o que pensa a maioria dos juristas ingleses com relacdo 2 doutrina estrita, 0 Tribunal de Apelacao, cuja autoridade s6 é inferior a da Cama- ra dos Lordes, nao tem outra escolha a nao ser seguir suas pro- prias decisdes anteriores; ja os juristas norte-americanos ne- gam que os tribunais de hierarquia comparavel tenham essa obrigacdo. Os juristas de uma jurisdigdo especifica as vezes di- vergem — pelo menos quanto aos detalhes ~ da doutrina estrita tal como esta se aplica a eles: a maioria dos juristas norte-ame- ricanos pensa que os tribunais federais inferiores so absoluta- mente obrigados a seguir as decisdes ja tomadas pela Suprema Corte, mas esse ponto de vista é contestado por alguns” Por outro lado, a doutrina atenuada do precedente exige apenas que 0 juiz atribua algum peso a decisdes anteriores sobre o mesmo problema, ¢ que ele deve segui-las a menos que as considere erradas o bastante para suplantar a presungio ini- cial em seu favor. Essa doutrina atenuada pode adotar as deci- ses anteriores ndo somente de tribunais acima do juiz, ou no mesmo nivel de sua jurisdi¢do, mas também de tribunais de outros estados ou paises. Obviamente, muito depende de q) forte se considere a presuncdo inicial. Uma vez mais, as opi- nides variam entre os advogados de diferentes jurisdigdes, mas 21. Ver, por exemplo, Jaffree vs. Board of School Comm'rs, 554 F. Supp. 1104 (S.D. Ala. 1982) (0 juiz da vara federal se recusa a seguir o prece- dente da Suprema Corte), rev'd sub nom. Jaffree vs. Wallace, 105 F.2d 1526 (11? Cire. 1983), af'd 605 S, Ct. 2479 (1985) 32 OumPERIO Do DIREITO também é provavel que variem, numa mesma jurisdigo, em muito maior grau do que a opinido sobre as dimensdes da dou- trina estrita, Contudo, é mais provavel que qualquer juiz atri- bus mais importancia a decisdes anteriores de tribunais supe- riores de sua propria jurisdicdo, ¢ a decisdes anteriores de to- dos 0s tribunais, superiores e inferiores de sua jurisdigao, e nio de tribunais de outras jurisdigdes. Ele também pode atribuir mais importincia a decisdes recentes de qualquer tribunal, e no as anteriores, bem como favorecer as decises tomadas por juizes famosos, ¢ nao por juizes mediocres, etc. Ha duas décadas, a Camara dos Lordes declarou que a doutrina estrita do precedente no exige que se adotem as decisdes que ela mesma tomou no passado™ — antes dessa declaragdo, os juris- tas britanicos presumiam que a doutrina estrita impunha tal exi- ‘gércia ~, mas a Camara dos Lordes, ndo obstante, atribui gran- de importancia a suas decisdes passadas, mais que a decisbes passadas de instancias inferiores da hierarquia britanica, e mui- to mais que a decisdes de tribunais norte-americanos. ‘As diferengas de opinido sobre a natureza da doutrina es- trita e a forga da doutrina atenuada explicam por que certos processos sao polémicos. No mesmo caso, diferentes juizes divergem sobre ponto de serem ou nao obrigados a seguir alguma decisio tomada no passado, envolvendo a mesma questo de direito com que deparam no momento. Nao foi esta, porém, a esséncia da controvérsia no caso McLoughlin. Seja qual for o ponto de vista dos advogados sobre a natureza e a forga do precedente, a doutrina s6 se aplica a decisdes passa- das que apresentem suficiente semelhanga com 0 caso atual para serem consideradas, como dizem os advogados, “perti- nentes”. As vezes, uma faccdo argumenta que certas decisées passadas so muito pertinentes, enquanto a outra afirma que essas decises sdo “discriminaveis”, querendo com isso dizer que sio diferentes do caso atual em algum aspecto que as isen- ta da doutrina. O juiz diante do qual a sra. McLoughlin apre- sentou sua petigao pela primeira vez, 0 juiz de primeira instan- 22. Exposi 10 de Pritica (Precedente J idicial) [1966] 1 W.L.R. 1234. ooueé opiRetro? 33 ia, decidiu que os precedentes citados por seu advogado, so- bre outras pessoas que haviam sido indenizadas por danos morais sofridos ao verem vitimas de acidentes, eram discrimi- naveis porque, em todos aqueles casos, 0 colapso nervoso ‘ocorrera na cena do acidente, enquanto ela s6 sofrera 0 colapso cerca de duas horas mais tarde, em outro local. E evidente que nem todas as diferen¢as nos fatos relativos a dois casos tornam anterior discriminavel: ninguém podia imaginar que seria im- portante o fato de a sra. McLoughlin ser mais jovem que a plei- teante nos casos anteriores. juiz de primeira instincia considerou que o fato de 0 co- Iapso nervoso ter ocorrido longe da cena do acidente constituia uma diferenga importante, pois significava que 0s danos mo- rais da sra, McLoughlin nao eram “previsiveis” no mesmo sen- tido daqueles sofridos por outros pleiteantes. Os juizes britani- cos e norte-americanos seguem o principio do direito consuetu- dinario, segundo o qual as pessoas que agem com negligéncia 86 sio responsdveis por danos razoavelmente previsiveis causa- dos a terceiros, danos que uma pessoa sensata poderia antever se refletisse sobre a questio, O juiz de primeira insténcia foi obrigado, em virtude da doutrina do precedente, a admitir que 0 dano moral de parentes proximos na cena de um acidente é ra- zoavelmente previsivel, mas afirmou que 0 mesmo nao se pode dizer do dano sofrido por uma mae que viu os resultados do aci- dente mais tarde. Portanto, achou que desse modo podia fazer ‘uma distingao entre os supostos precedentes, e decidiu contra a reivindicagao da sra. McLoughlin. Ela recorreu de sua deciso ao tribunal imediatamente su- perior na hierarquia briténica, o Tribunal de Apelago”. Esse tribunal confirmou a decisio do juiz de primeira instancia ~ recusou a apelagdo da sra. McLoughlin ¢ manteve a decisio judicial -, mas no com base na argumentagao usada pelo juiz. Tribunal de Apelacio afirmou que era razoavelmente previ- sivel que uma mie corresse para o hospital para ver os mem- bros feridos de sua familia, e que sofresse um colapso emocio- 23. [1981] Q.B. 599. ea OIMPERIO DO DIREITO nal ao vé-los nas condigdes em que a sra. McLoughlin os encon- trou. Esse tribunal discriminou os precedentes, no por esse motivo, mas pela razdo muito diversa de que aquilo que ele chamou de politica judiciéria justificava uma distingdo. Os pre- cedentes haviam estabelecido responsabilidade por dano moral em certas circunsténcias restritas, mas segundo o Tribunal de Apelacdo o reconhecimento de uma esfera mais ampla de res- Ponsabilidade, incluindo danos a parentes que no estavam na cena no momento, poderia ter muitas conseqiiéncias adversas Para a comunidade como um todo. Incentivaria um néimero mui to maior de processos por danos morais, 0 que exacerbaria o problema da saturago dos tribunais. Abriria novas oportunida- des a reivindicagées fraudulentas de pessoas que nao haviam sofrido danos morais realmente graves, mas que podiam perfeita- mente encontrar médicos dispostos a testemunhar 0 contrario, Aumentaria o custo do seguro de responsabilidade civil, encare- cendo 0 ato de dirigir carros e, talvez, impedindo para sempre que alguns pobres dirigissem. As alegagdes dos que haviam so- frido um verdadeiro dano moral longe da cena do acidente se- tiam mais dificeis de comprovar, ¢ as incertezas do litigio pode- iam coniplicar seu estado de satide e retardar sua recuperacao. A sra. McLoughlin apelou da decisao uma vez mais, desta vez 4 Camara dos Lordes, que revogou a decisio do Tribunal de Apelacao ¢ ordenou um novo proceso. A decisio foi und- nime, mas os lordes divergiram sobre aquilo que chamavam de verdadeiro direito. Varios deles afirmaram que as razdes de senso comum, do tipo descrito pelo Tribunal de Apelagao, po- deriam, em algumas circunsténcias, ser suficientes para discri- minar uma série de precedentes ¢, desse modo, justificar a re- cusa de um juiz em estender o principio daqueles casos a uma esfera mais ampla de responsabilidade. Mas ndo acharam que essas razdes de politica judiciaria fossem suficientemente plausi veis ou meritérias no caso da sta. McLoughlin. Nao acredit Tam que 0 risco de um “dilivio” de litigios fosse suficiente- 24, [1983] 1 A.C. 410. O.QUE EO DIREITO? 35 mente grave, ¢ afirmaram que os tribunais deveriam ser capa- zes de estabelecer uma distingo entre as reivindicagdes autén- ticas e as fraudulentas, mesmo no caso dos que sofressem 0 alegado dano varias horas apés 0 acidente. Nao se comprome- teram a dizer quando argumentos de politica judiciaria pode- riam ser utilizados para limitar as indenizagdes por danos mo- rais; deixaram em aberto, por exemplo, a questo de se a irma da sra. McLoughlin na Australia (caso ela tivesse uma irma la) poderia ser indenizada pelo choque que sofreria ao ler sobre 0 acidente semanas ou meses depois, em uma carta, ; Dois lordes adotaram uma concepgao do direito bem dife- rente. Disseram que seria errado que os tribunais negassem a indenizagéo a um pleiteante meritério, pelos tipos de razées que o Tribunal de Apelagio havia mencionado, os quais, para 08 outros lordes, podiam ser suficientes em algumas circuns- tancias. Os precedentes deviam ser vistos como discrimina- veis, diziam eles, somente se, por alguma tazao, os principios morais admitidos nos casos anteriores nao se aplicassem da mesma maneira ao pleiteante. E, uma vez. admitido que o dano causado a uma mae no hospital, horas depois do acidente, é razoavelmente previsivel a um motorista negligente, nenhuma diferenga pode ser encontrada entre os dois casos. A saturagdo dos tribunais ou o aumento do preco do seguro de responsabi- lidade civil para os motoristas, diziam cles, por mais que re presentem um inconveniente para a comunidade como um to- do, nao podem justificar a recusa em fazer satisfazer direitos e deveres individuais que anteriormente se reconheceram ¢ fi- zeram cumprit. Afirmavam que esses eram os tipos errados de argumentos a se fazer aos juizes enquanto argumentos de di- reito, por mais convincentes que pudessem ser quando dirigi dos a legisladores como argumentos favoraveis a uma mudan- gana lei. (A opinidio de lorde Searman foi particularmente cla- ra e elogiiente sob esse aspecto.) A argumentagao dos lordes revelou uma importante diferenga de opinio sobre o papel que cabe as consideragdes de politica judiciaria ao se decidir a quais resultados tém direitos as partes de uma agao judicial. 36 OIMPERIO DO DIREITO Brown Terminada a Guerra Civil norte-americana, 0 norte vito- rioso emendou a Constituigo para pér fim a escraviddo e a muitos de seus incidentes ¢ conseqiiéncias. Uma dessas emen- das, a Décima Quarta, declarava que nenhum Estado poderia negar a ninguém “igualdade perante a lei”. Depois da Recons- trugdo, os Estados sulistas — de novo no controle de suas pré- rias politicas ~ praticaram a segregagao racial em muitos ser- vigos piiblicos. Os negros tinham de viajar na parte de tras dos Snibus ¢ s6 podiam freqiientar escolas segregadas, junto com outros negros. No famoso caso de Plessy vs. Ferguson", o réu alegou, perante a Suprema Corte, que essas priticas segrega- cionistas violavam automaticamente a ckiusula da igualdade pe- raate a lei. A Corte rejeitou a alegacao, afirmando que as exi- géncias dessa clausula estariam sendo atendidas se os Estados oferecessem servigos separados, porém iguais, e que, por si sd, © fato da segregacao nao tornava esses servigos automatica- mente desiguais. Em 1954, um grupo de criangas negras que freqiientavam uma escola em Topeka, no Kansas, provocou a retomada da discussdo do problema™. Nesse interim, muitas coisas haviam acontecido nos Estados Unidos — um grande numero de negros havia morrido pelo pais numa guerra recente, por exemplo —, € a segregagdo parecia agora mais profundamente errada aos olhos de muito mais pessoas do que quando se decidira o caso Plessy. Nao obstante, os Estados que praticavam a segregacao resistiram ferozmente a integracdo, sobretudo nas escolas, ‘Seus advogados argumentavam que, sendo Plessy uma decisio da Suprema Corte, era necessario respeitar o precedente. Des- sa vez, a Corte tomou uma decisdo favoravel aos queixosos. 25, 163 US. $37 (1896), 26, Brown vs. Board of Education, 347 U.S. (1954), O julgamento con- solidou casos ocorridos em escolas segregadas em Topeka, Kansas: condado de Clarendon, Carolina do Sul; condado de Prince Edward, Virginia, e conda. do de New Castle, Delaware. Ver 347 U.S. na pagina 486 n.1 0 QUE oDIREITO? 37 Sua decisio foi inesperadamente undnime, ainda que a unani- midade tenha sido obtida gragas ao voto escrito por Earl Warren, presidente do Supremo Tribunal, 0 qual sob muitos aspectos era uma solugdo conciliatéria. Ele ndo rejeitou cabal- mente a formula “separado porém igual”; em vez disso, ba- seou-se em controvertidas evidéncias sociolégicas para mos- trar que as escolas nas quais se praticava segregagao racial ndo podiam ser iguais por esta tinica razo. Ele também nio disse, ‘de modo categérico, que a Corte estava entdo revogando 0 caso Plessy. Disse apenas que se a presente decisio estivesse em contradigo com o caso Plessy, entio aquela decisio anterior estaria sendo revogada. Em termos praticos, 0 compromisso mais importante estava na intencdo de reparagdo que o parecer outorgou aos queixosos. Esse voto no ordenou que as escolas dos Estados sulistas abolissem imediatamente a segregacao, ‘mas apenas, segundo uma expresso que se tornou um emble- ma de hipocrisia e demora, “a toda velocidade adequada™”, A decisao foi muito polémica, 0 processo de integracao que se seguiu foi lento, ¢ o progresso significativo s6 foi obti- do ao prego de muitas outras batalhas juridicas, politicas e até mesmo fisicas. Os criticos afirmaram que a segregagao, apesar de deplorivel em termos de moralidade publica, no era in- constitucional’*. Observaram que, por si mesma, a expresso “igual protecdo” ndo determina se a segregacdo ¢ proibida ou no; que os congressistas que haviam aprovado a Décima Quarta Emenda tinham plena consciéncia da segregacao nas escolas e, a0 que parece, achavam que a emenda preservaria sua legitimidade; ¢ que a decisio da Corte no caso Plessy era um importante precedente, de linhagem cuase antiga, e nao deveria ser levianamente derrubada. Tratava-se de argumentos sobre os fundamentos reais do direito constitucional, nio de 27, Essa frase foi usada num segundo julgamento sobre o assunto relati- vo a remédios juridicos. Brown vs. Board of Education, 349 US. 294, 301 95s) 28. Ver Charles Fairman, “Forward: The Atuck on the Segregation Cases”, 70 Harvard Law Review 83 (1956). 38 OMPERIO DO DIREITO alegagdes de moralidade ou reparago: muitos dos que as sus- tentavam estavam de acordo quanto & natureza imoral da se- gregacao e admitiam que a Constituigao seria um documento melhor se a houvesse proscrito. Tampouco os argumentos da- queles que concordavam com a Corte eram argumentos de seu valor moral ou reforma, Se, do ponto de vista juridico, a Cons- tituigdo nao proibia a segregacao racial oficial, entdo a decisio do caso Brown era uma emenda constitucional ilicita, ¢ muito Poucos dos que apoiaram a decisdo pensariam estar apoiando tal coisa. Em torno desse caso, como de outros que aqui apre- sentamos como exemplos, travou-se uma batalha sobre a ques- tio do direito. Ou assim pareceu aos que travaram essa batalha, ‘Teorias semiinticas do direito Proposicdes e fundamentos do direito No inicio deste capitulo, descrevi aquilo que chamei de Ponto de vista do direito como simples questio de fato. Tal pon, to de vista sustenta que o direito apdia-se apenas em questoes de mero fato histérico, que a unica divergéncia sensata sobre o direito é a divergéncia empirica sobre aquilo que as institut. G8es juridicas realmente decidiram no passedo, que aquilo que denominei divergéncia teorica é ilusério e pode ser mais bem compreendido, enquanto argumento, ndo no que diz respeito a natureza da lei, mas sim aquilo que ela deveria ser. Os casos ue usei como exemplos parecem oferecer um contra-exemplo do ponto de vista do direito como simples questio de fate. o argumentos nesses casos parecem remeter ao direito, no A moral, a fidelidade ou a reforma do direito. Precisamos, portanto, co. locar esse desafio a0 ponto de vista do direito Como simples questo de fato: por que insistir em que a aparéncia é aqui uma ilusio? Alguns filésofos do direito oferecem uma tesposta sur, preendente. Dizem eles que a divergéncia teérica sobre os fan. damentos do direito deve ser um pretexto, pois o proprio signi ficado da palavra “direito” faz o direito depender de certos crité. QUE EO DIREITO? os rios especificos, ¢ que qualquer advogado que rejeitasse ou contestasse esses critérios estaria dizendo absurdos que con- tradizem a si mesmos. Seguimos regras comuns, afirmam eles, quando usamos qualquer palavra: essas regras estabelecem critérios que atri- buem significado & palavra. Nossas regras para o uso de “direi- to” ligam 0 direito ao fato histérico puro e simples. Nao se se- ‘gue dai que todos os advogados tenham consciéncia dessas re- gras no sentido de serem capazes de enuncid-las de alguma forma nitida e abrangente. Pois todos nés seguimos regras di- tadas pela lingua que falamos, e delas nao temos plena cons- ciéncia. Todos usamos a palavra “causa”, por exemplo, de um jeito que, grosso modo, parece ser © mesmo — concordamos so- bre os eventos fisicos que causaram outros, desde que todos te- nhamos conhecimento dos fatos pertinentes -, ¢ ainda assim a maioria de nds nao tem idéia dos critérios que utilizamos para fazer esses julgamentos, ou mesmo do sentido em que empre- gamos esses critérios. Cabe a filosofia explicé-los ands. A ta- refa pode apresentar uma certa dificuldade, os filésofos po- dem muito bem divergir. Talvez nenhum conjunto de critérios para 0 uso da palavra “causa” se ajuste exatamente & pratica comum, e a questo serd, entdo, saber qual conjunto oferece, em termos gerais, o melhor ajuste (ou os melhores ajustes) aos principais casos de causalidade. Além disso, a exposigao do conceito de causalidade por um filésofo deve nao apenas ajus- tar-se, mas ser também filosoficamente respeitivel e atraente sob outros aspectos. Para explicar nosso uso de causalidade, nao deve incorrer em peti¢ao de principio, usando 0 proprio conceito em sua descrigZo do modo como o utilizamos, e ¢ necessirio que empregue uma ontologia pleusivel. Nao aceita- riamos um relato do conceito de causalidade que recorresse deuses causais residentes em objetos. Segundo o ponto de vista que no momento descrevo, 0 mesmo se aplica ao conceito de direito. Todos usamos os mesmos critérios factuais para formu- lar, aceitar ¢ rejeitar afirmagSes sobre a natureza do direito, mas ignoramos 0 que so esses critérios. Os fildsofos do direito de- vem elucida-los para nés, procedendo a um profundo estudo 40 OIMPERIO DO DIREITO do modo como falamos. Eles podem divergir entre si, mas por si 86 isso nao langa davidas sobre seu pressuposto comum, de que compartilhamos algum conjunto de padrdes sobre 0 uso que deve ser dado a palavra “direito”. Os filésofos que insistem em que os advogados seguem, todos, certos critérios lingiiisticos para avaliar as proposicdes Juridicas, talvez inadvertidamente, produziram teorias que iden- tificam esses critérios. Darei ao conjunto dessas teorias 0 no- me de teorias seminticas do direito, mas o termo em si requer uma elaboragao. Durante muito tempo, os filésofos do direito embalaram seus produtos ¢ os apresentaram como definigdes do direito. John Austin, por exemplo, de cuja teoria apresenta- rei uma breve descrigdo, dizia estar explicando o “significado” Co direito. Quando os filésofos da linguagem desenvolveram tworias mais sofisticadas do significado, 0s fildsofos do direito tornaram-se mais cuidadosos em suas definigdes, ¢ passaram entio a afirmar que estavam descrevendo 0 “uso” dos concei- tos juridicos, com 0 que queriam dizer, em nosso vocabulario, as circunstancias nas quais as proposigées juridicas sao cons deradas como verdadeiras ou falsas por todos os juristas com- Petentes. Em minha opinido, porém, isso nio foi muito além de uma troca de embalagem; de qualquer modo, pretendo in- cluir as teorias sobre 0 “uso” no grupo das teorias semanticas do direito, bem como as teorias anteriores, que tinham um ca- rater de definigao mais claro” 29. As vezes se diz que 0 objetivo das teorias que chamo de semanticas rio & como o nome sugere, desenvolver teorias sobre o significado da pala. via “dircito”, mas sim descobrir os tragos distintivos que caracterizam 0 direito como fenémeno social. Ver, por exemplo, Ruth Gavison, “Comments ‘on Dworkin”, em Papers of the Jerusalem Conference (no prelo). Mas essa ‘oposigao é, em si, um equivoco. Os filésofos que tenho em mente, cujas teo- rias sio deseritas nas paginas seguintes, reconhecem que o aspecto mais dis. tintivo do direito como “fendmeno social” ¢ que 0s participantes das institu ses juridicas apresentam e debatem proposigées juridicas © consideram importante, em geral decisivamente, saber se s80 aceitas ou rejcitadas. As teorias clissicas tentam explicar esse aspecto central e abrangente da pratica Jwidica ao descreverem 0 sentido das proposigdes juridicas — 0 que signifi- ‘cam para os que as utilizam ~,€ essa explicago assume a forma de definig&es 0 QUE EO DIREITO? 4l Positivismo juridico As teorias semanticas pressupdem que os advogados e ju zes usam basicamente os mesmos critérios (embora estes se- jam ocultos e passem despercebidos) para decidir quando as proposigdes juridicas sao falsas ou verdadeiras; elas pressu- pdem que os advogados realmente estejam de acordo quanto aos fundamentos do direito. Essas teorias divergem sobre quais critérios os advogados de fato compartitham e sobre os funda- mentos que esses critérios na verdade estipulam. Os estudantes de direito aprendem a classificar as teorias semanticas segun- do 0 esquema aproximado que apresentamos a seguir. As teo- rias semanticas mais influentes sustentam que os critérios co- muns levam a verdade das proposicdes juridicas a depender de certos eventos histéricos especificos. Essas teorias positivis- tas, como sio chamadas, sustentam 0 ponto de vista do direito como simples questo de fato, aquele segundo o qual a verda- deira divergéncia sobre a natureza do direito deve ser uma diver- géncia empirica sobre a historia das instituigdes juridicas. As teorias positivistas, contudo, diferem entre si sobre quais fatos hist6ricos sio cruciais, e duas versdes tém sido particularmen- te importantes na doutrina britanica. John Austin, advogado ¢ académico inglés do século XIX, dizia que uma proposicao juridica é verdadeira no interior de uma determinada sociedade politica desde que transmita, cor- retamente, o comando precedente que ocupe uma posicao so teoria foi objeto de um caloroso debate, o “dircito” & maneira antiga ou de avaliagdes, no estilo mais modemo, sobre as “condigdes de autenticidade” das proposigées juridisas ~ as cireunstancias ‘em que os juristas as aceitam ou rejeitam, 30. VerJ. L. Austin, The Province of Jurisprudence Determined (H. L.A. Hart, org., Nova York, 1954) e Lectures in Jurisprudence (51 ed.. 1885). Ver também Jeremy Bentham, An Introduction t0 the Principles of Morals and Legislation (J. H. Barns e HL. A. Hart, orgs., Londres, 1970). 42 OIMPERIO Do DIREITO que muitas vezes teve matizes escolisticos. Os filésofos do direito discutiam se certas proposigdes juridicas obviamente verdadeiras — proposiges sobre o mimero de assinaturas ne- cessarias para tornar um testamento legalmente valido, por exemplo — podiam, de fato, ser consideradas verdadeiras em virtude da ordem de alguém. (Afinal, ninguém ordenou ao lei- tor, ou a mim, a fazer um testamento, muito menos um testa- mento valido.) Também discutiam se algum grupo poderia ser considerado soberano (no sentido atribuido a esta palavra por Austin) numa democracia, como a dos Estados Unidos, onde 0 Povo, em sua totalidade, tem o poder de alterar radicalmente a forma de governo ao emendar a Constituigio. Contudo, ainda que a teoria de Austin se mostrasse deficiente em varias ques- tes de detalhe, o que resultou na sugestio de 2 aperfei ua idéia central de qui importante e fundamental reformulagao dessa idéia encontra-se no livro The Concept of Law (O conceito do direi- to), de H. L. A. Hart, publicado pel irmava que os verdadeiros fundamentos do direito contram-se na aceitagdio, por parte da comunidade como wi todo, de uma regra-mestra fundamental (que ele chamou “regra de reconhecimento”) que atribui a pessoas ou grupk especificos a autoridade de criar leis. Assim, as proposicd juridicas nio so verdadeiras apenas em virtude da autorida de pessoas que costumam ser obedecidas, mas, fundamental mente, em virtude de convengdes sociais que representam aceitagao, pela comunidade, de um sistema de regras que ot torga a tais individuos ou grupos o poder de criar leis valida: Para Austin, a proposigao de que o limite maximo de velocic: de na California € 90 quilémetros é verdadeira apenas porque 31. HLL, A. Hart, The Concept of Law (Londres, 1961). ooueéo pikstr0” 3 ‘08 legisladores que promulgaram tal lei estavam ento no poder; para Hart, € verdadeira porque o povo da California aceitou, ¢ continua aceitando, 0 sistema de autoridade usado nas Constituigdes estaduais e nacionais. Pare Austin, a propo- sigdo de que os motoristas negligentes devem indenizar as mies que sofrem danos morais na cena de um acidente & ver- dadeira na Grd-Bretanha porque as pessoas que tém poder politico fizeram dos juizes seus representantes e, tacitamente, adotam os comandos deles como se fossem seus. Para Hart, essa proposigao é verdadeira porque a regra de reconhecimen- to aceita pelo povo inglés transforma as declaragdes dos juizes em direito sujeito ao poder de outras pessoas — os legisladores. — de revogé-lo quando quiserem. A teoria de Hart, como a de Austin, gerou um grande ni- mero de debates entre aqueles que foram atraidos por sua idéia ica. Em que consiste a “aceitagao” de uma regra de reco- jecimento? Muitos oficiais da Alemanha razista obedeciam ordens de Hitler como se fossem leis, mas s6 0 faziam por jo. Isso significa que aceitavam uma regra de reconheci- nto que © autorizava a criar leis? Se assim for, entao a dife- nga entre a teoria de Hart e a de Austin torna-se ilusoria, por- {que entio nao haveria diferenca entre um grupo de pessoas que aceita uma regra de reconhecimento e outro que, por medo, simplemente adota um modelo forgado de obediéncia. Se nao, for assim, se a aceitagdo exige algo além da mera obediéncia, entio parece possivel afirmar que nao havia direito na Ale- manha nazista, que nenhuma proposicao juridica era verdadei- ra, Id ou em muitos outros lugares nos quais a maioria das pes- soas afirmaria a existéncia de um direito, ainda que malévolo ‘ou impopular. E assim a teoria de Hart nao seria capaz de apreen- der, afinal, 0 modo como todos os advogados usam a palavra “direito”. Os especialistas refletiram sobre este € outros aspec- tos da teoria de Hart, porém, uma vez mais, sua idéia fundamen- tal, de que a verdade das proposicdes juridicas depende essen- cialmente de padrdes convencionais de reconhecimento do direito, conquistou um amplo assentimento. = “3 owéno vo iesrro | Outras teorias semanticas ' As teorias positivistas nfo estdo a salvo de contestages 1a literatura da doutrina clissica; devo mencionar, aqui, dois outros grupos de teorias geralmente tidas como suas rivais. A primeira costuma ser chamada de escola do direito natural, ainda que as varias teorias agrupadas sob tal designagao sejam muito diferentes entre si, € que o nome nao se ajuste a nenhu- ma delas”. Se as tratarmos como teorias semanticas (no capi- tulo III, apresentarei um modo methor de compreendé-las), elas tém isto em comum: sustentam que os juristas seguem critérios que nao sio inteiramente factuais, mas, pelo menos até certo ponto, morais, para decidirem que proposicées juridicas sao verdadeiras. A mais radical dessas teorias ressalta que o direi- to ea justica so idénticos, de tal modo que nenhuma proposi- sao juridica injusta pode ser verdadeira. Essa teoria radical 6 bastante implausivel enquanto teoria semantica, pois os advo- zados fiegiientemente falam de maneira que a contradiz. Na Gra-Bretanha ¢ nos Estados Unidos, muitos juristas consideram 0 imposto de renda progressivo injusto, por exemplo, mas nenhum. deles pde em ditvida o fato de que a lei desses paises fixa 0 impos- to a tdxas progressivas. Algumas teorias menos radicais do “direi- to natural” afirmam apenas que a moral é as vezes relevante para a verdade das proposicées juridicas. Sugerem, por exemplo, que quando uma lei petinite diferentes interpretagdes, como no caso Elmer, ou quando os precedentes so inconclusivos, como no ca- so da sra. McLoughlin, a interpretago que foi moralmente supe- rior sera a afirmagao mais exata do direito. Mas mesmo essa ver- sfio moderada do direito natural é pouco convincente se a tomar- mos como uma teoria seméntica sobre 0 modo como todos os juristas usam a palavra “direito”; o juiz Gray parece ter concor- dado com 0 juiz Earl quanto ao fato de que o direito seria me- Ihor se negasse a Elmer sua heranga, mas nao estava de acordo com 0 fato de que, por isso, o direito nao tha concedesse 32. Para uma discussdo extremamente ilustrativa sobre as teorias do di- reito natural e a defesa de uma versio moderna, ver J. Finnis, Narural Law and Natural Rights (Nowa York, 1980). O.QUE £0 DIREITO? 45 Os estudantes aprendem que 0 segundo rival do positivis mo é a escola do realismo juridico. As teorias realistas foram desenvolvidas no inicio deste século, sobretudo nas escolas de direito norte-americanas, embora 0 movimento tivesse ramifi- cages em outros lugares. Se as tratarmos como teorias seman- ticas, elas afirmam que as regras lingilisticas seguidas pelos advogados tornam as proposiges juridicas adjuvantes e pre- nunciativas. A melhor verso sugere que 0 exato significado de uma proposisao juridica — as condigdes nas quais os advo- gados irdo considerar verdadeira a proposi¢do — depende do contexto. Se um advogado afirma a um cliente que o direito permite que os assassinos herdem, por exemplo, deve-se en- tender que ele esta prevendo que é isso que os juizes vio deci- dir quando 0 caso for levado ao tribunal. Se um juiz faz tal afirmagio ao emitir seu voto, esta apresentando um outro tipo de hipétese prenunciativa sobre o mais provavel curso a ser se- guido pelo direito na esfera geral de sua deciso”. Alguns rea- listas expr idéias ndamen- te cética. dizer que ndo existe nada que se possa chamar de direito, a ndo ser esses diferentes tipos de previsdes. Contudo, mesmo assim ‘compreendido, o realismo permanece extremamente implaus: vel enquanto teoria semantica. Pois raramente é contraditorio ~ na verdade, é até comum — que os advogados prevejam que os juizes cometerao um erro a propésito do direito, ou que os juizes manifestem seu ponto de vista sobre o direito para acrescentar, em seguida, que esperam que ele venha a ser modificado. A defesa do positivismo Vou concentrar-me no positivismo juridico porque, como acabei de dizer, essa € a teoria seméntica que sustenta 0 ponto 33. Ver, porexemplo, Holmes, acima (a. 9). 46 OIMPERIO DO DIREITO de vista do direito como simples questo de fato ¢ a alegagio de que o verdadeiro argumento sobre o direito deve ser empiri- co, nao tedrico. Se o positivismo esta certo, ento a aparente divergéncia tedrica sobre os fundamentos do direito, no caso Elmer, no caso McLoughlin, no caso do snail darter ¢ no caso Brown, é de certo modo enganadora. Nesses casos, as institui- Ges juridicas precedentes nao haviam decidido expressamente a questo de nenhuma maneira, ¢ os advogados que usavam corretamente a palavra “direito”, segundo o positivismo, te- riam concordado quanto a nao haver direito algum a descobrir. Sua divergéncia, portanto, deve ter sido um debate disfargado sobre qual deveria ser a natureza do direito. Mas podemos rea- firmar essa inferéncia como um argumento contra 0 positivis- mo. Afinal, por que advogados e juizes deveriam simular uma divergéncia tedrica em casos como esses? Alguns positivistas tém uma resposta rapida: os juizes fingem divergir sobre a natureza do direito porque o piiblico acredita que o direito sempre existe € que os juizes deve sempre segui-lo. De acor- do com esse ponto de vista, advogados e juizes conspiram sis- tematicamente para esconder a verdade das pessoas, para nao desiludi-las nem provocar sua raiva ignorante. Essa resposta rapida é pouco convincente. Por que tal fin- gimento seria necessario, ou como ele poderia ser bem-sucedi- do, & um mistério. Se todos os juristas concordam que nao existe um direito claro em casos Como esses que usamos a titu- lo de exemplo, por que, entio, esse ponto de vista nao se tor- nou parte de nossa cultura politica popular? E se assim nao foi — se a maioria das pessoas ainda pensa que sempre existe um direito que os juizes devem seguir -, por que os juristas te- mem corrigir seus erros tendo em vista os interesses de uma pratica mais honesta da justiga? Seja como for, como essa si- mulagio pode funcionar? Nao seria ficil, para a parte decepcio- nada, demonstrar que realmente ndo havia direito segundo os fundamentos que todos sabem ser os fundamentos corretos? £, se a simulagiio é tao facil de demonstrar, por que preocupar-se com a charada? Tampouco existe alguma prova, nos referidos casos, de que os advogados ou juizes realmente acreditavam 0 QUE £0 DIREITO? 47 naquilo que essa alegagao Ihes atribui. Muitos de seus angu- mentos seriam totalmente inadequados enuanto argumentos em favor da alteragdo ou do aperfeigoamento do direito; s6 tem sentido enquanto argumentos sobre aquilo que os juizes devem fazer em razio de sua responsabilidade de eplicar o direito tal como ele é. Parece estranho descrever Gray ou Burger como propensos & reforma ou ao aperfeigoamento, por exemplo, pois cada um admitiu que aquilo que considerou como direito esta- va aberto a sérias objegGes na esfera da eqiiidade e da sabedo- ria. Em sua argumentacao, afirmaram que a lei em questo devia ser interpretada de uma certa maneira, a despeito de suas evidentes falhas, quando assim interpretada, ‘Uma vez, porém, que o positivista admita que Gray estava tentando afirmar a natureza do direito, e nao aquilo que ele deveria ser, deve também admitir que o ponto de vista de Gray sobre os fundamentos do direito eram polémicos até mesmo em seu proprio tribunal. A posigio contraria, aquela defendida por Earl, também deve set compreendida como uma afirmagao sobre as exigéncias do direito — uma afirmagao de que Gray estava errado —, ndo como uma manobra disfarcada para alte~ rar ou revisar 0 direito. No caso McLoughlin, os juizes do Tri- bunal de Apelacio realmente pareciam pensar que, sendo os precedentes restritos a danos morais na cena do acidente, nao havia dircito algum sobre danos morais sofridos longe da cena, € que, portanto, a tarefa que lhes cabia era corrigir a lei, desen- volvé-la no methor sentido possivel, levando-se todos os as- pectos em conta. Mas nao era esse o ponto de vista da Camara dos Lordes, em especial o de lorde Scarman, que se achava ligado a principios fundados nos precedentes. Até onde sabe- mos, lorde Scarman concordava com os juizes do Tribunal de Apelagao que a comunidade como um todo se tornaria pior se concedesse uma indenizacao em tais circunstancias. Os dife- rentes juizes que decidiram o caso da sra. McLoughlin diver- giam quanto a fora e a natureza do precedente enquanto fonte de dircito, ¢, ainda que a divergéncia tenha sido sutil, tratou-se na verdade de uma divergéncia sobre 0 centetido do direito, ndo sobre o que se deveria fazer na auséncia de direito. 48 OIMPERIO DO DIREITO De fato, nao existe nenhuma evidéncia de que, quando ad- ‘vogados e juizes parecem discordar sobre a lei, eles nado estejam falando a verdade. Nao ha argumentos que favorecam essa con- cepsao do problema, com excegaio da petigao de principio, de quem afirma que, se a tese de direito como simples questiio de fato & bem fundada, eles s6 podem estar fingindo. Existe, porém, uma estratégia mais sofisticada de defesa do positivis- ‘mo, que admite, nos casos que usamos como exemplo, que os advogados ¢ juizes pensavam estar divergindo sobre o direito, mas argumenta que, por uma razdo um tanto diversa, essa auto- descrigdo ndo deve ser tomada ao pé da letra. Esse novo argu- mento enfatiza a importincia de se estabelecer uma distingao entre os usos padrdo ou os usos intrinsecos da palavra “direito” € 08 usos limitrofes ¢ nebulosos dessa mesma palavra. Pretende esse argumento que todos os advogados e juizes seguem aquilo que é basicamente a mesma regra para o uso da palavra “direi- to”, e que, portanto, todos concordam com o limite de velocida- de oficial na California e 0 indice basico de tributagao na Gra- Bretanha. Mas, como as regras para 0 uso de palavras nao sio precisas ¢ exatas, clas permitem a existéncia de casos nebulo- sos ou limitrofes nos quais as pessoas falam de mancira um tanto diferente entre si. Assim, os juristas podem usar a palavra “direito” de modo diferente nos casos excepcionais em que al- guns — mas nem todos — fundamentos especificados pela regra principal sao respeitados. Isso explica, segundo o presente argumento, por que eles discordam em casos dificeis, como esses que nos serviram de exemplos. Cada um utiliza uma ver- sdo ligeiramente diferente da regra principal, ¢ as diferencas tornam-se manifestas nesses casos especificos". A esse respei: to, prossegue o argumento, nosso uso da palavra “direito” no & 34, Ver Hart, acima (n. 31), pp. 129-80, e “Positivism and the Separa- tion of Law and Morals”, 71 Harvard Law Review $93 (1958), Hart se baseia na distingdo entre miicleo e penumbra a0 explicar por que os juizes devem ter poder discricionario para corrigir lacunas nas leis, e em seguida sugere que a regra principal que qualquer comunidade usa para identificar a extensio do direito tende, ela propria, a possuir uma area de penumbra que pode gerar con- {tovérsias nas quais "tudo que se sai bem & um sucesso”. i ogue ko piREIo? 49 diferente de nosso uso de muitas outras palavras que ndo consi- deramos problemiticas. Estamos todos de acordo sobre o signi- ficado padrao da palavra “casa” (house), por exemplo. Quem negar que as moradias separadas entre si das ruas de um bairro residencial de Londres so casas, simplesmente nao entende a lingua inglesa. Nao obstante, existem casos duvidosos. Nem todas as pessoas seguem exatamente as mesmas regras; algu- mas diriam que o palicio de Buckingham é uma casa, enquan- to outras nao. Essa defesa mais sofisticada do positivismo nos conta, quanto aos casos que usamos como exemplos, uma historia bem diferente daquela de um simples fingimento. De acordo com essa nova historia, Earl e Gray e os outros juizese advoga- dos ndo estavam, de modo algum, fingindo ou tentando enga- nar o ptiblico. Estavam divergindo sobre o conteiido do direito, mas sua divergéncia era “puramente verbal”, como a divergén- cia quanto ao palacio de Buckingham ser ou ndo uma casa. De nosso ponto de vista enquanto criticos, de acordo com essa explicagdo do positivismo, é melhor pensar que seus argumen- tos seriam mais adequados ao aperfeigoamento do direito, ao que © direito deveria ser, porque entenderemos melhor 0 processo juridico se somente usarmos a palavra “direito” para descrever ‘© que se encontra no amago desse conceito, isto é, se a usar- mos somente para abranger proposiges juridicas verdadeiras segundo a regra central ou principal do uso de “direito” aceito por todos, como as proposigdes das leis de transito. Seria me- Ihor que os advogados e juizes usassem “direito” nesse senti do, assim como seria melhor que as pessoas, em vez de discuti- rem a correta classificagdio do palacio de Buckingham, concor- assem em usar “casa” no mesmo sentido, sempre que possivel. Assim, 0 positivismo, defendido dese modo diferente, tem um carater tanto reformador quanto descritivo. Seja como for, a defesa favoreceu a tese do direito como simples questo de fa- to, Trata a questo principal de cada um de nossos exemplos como uma questio de aperfeigoamento do direito, ainda que os proprios juizes talvez ndo a tenham concebido dessa maneira, € nos estimula a avaliar seu desempenho indagando de que 50 OIMPERIO DO DIREITO forma os juizes devem criar um novo direito quando algum caso no puder ser resolvido mediante a aplicacao de regras fundadas no direito aceitas por todos os advogados. Em certo sentido, porém, a explicagao é semelhante aque- la do fingimento: ela nao explica, de modo algum, por que os profissionais do direito agiram por tanto tempo da forma como a tese positivista diz que o fizeram. Afinal, as pessoas sensatas no discutem se o palécio de Buckingham é ou nao uma casa; elas entendem de imediato que essa nao é uma questo genui- na, mas apenas uma questo de como se escolhe utilizar uma palavra cujo significado nao tem limites fixos, no seu sentido mais amplo. Se “direito” é realmente como “casa”, por que os advogados deveriam discutir por tanto tempo se o direito real- mente d4 ao ministro do Interior o poder de interromper uma barragem quase pronta para salvar um peixinho, ou se a lei proibe a segregacao racial nas escolas? Como poderiam pensar ter argumentos favoraveis 4 decisio essencialmente arbitréria de usar a palavra em um sentido, e ndo em outro? Como pode- riam pensar que decisdes importantes sobre o uso do poder do Estado pudessem se transformar em um mero jogo de pala- vras?De nada adianta dizer que advogados e juizes so capa- zes de se enganar porque, na verdade, esto discutindo uma outra questo, a questo politica de se ministro deve ter esse poder, ou se 05 estados devem ser proibidos de praticar a se- gregacdo nas escolas. Ja vimos que muitos dos argumentos que 0s juizes utilizam para sustentar suas afirmagdes polémicas so- bre 0 direito nao sao apropriados a essas questdes diretamente ligadas a politic zes como mentirosos bem-intencionados; a tese do caso limi trofe mostra-os, por outro lado, como individuos simplérios. Além do mais, a tese do caso limitrofe 6 pior que um insulto, pois ignora uma importante distingdo entre dois tipos de divergéncia, a distingao entre casos limitrofes e casos expe- rimentais ou essenciais. As pessoas as vezes interpretam mal uumas as outras quando conversam, do modo como descreve a 0. QUEEO DIREITO? SI tese do caso limitrofe. Elas concordam sobre a maneira correta de verificar a aplicacao de alguma palavra em contextos que consideram como casos normais, mas usam a palavra de modo muito diferente nos contextos que todos reconhecem como ca- sos excepcionais, como caso do palicio. As vezes, porém, discutem a adequacao de alguma palavra ou descri¢do porque divergem sobre a maneira correta de verificar uso da palavra ou expresszio em qualquer ocasiaio. Podemos ver essa diferen- a imaginando duas discussdes entre criticos de arte sobre se a fotografia deve ou nao ser considerada uma forma de arte. Eles podem concordar quanto aos aspectos em que a fotografia € igual ou diferente de outras atividades que reconhecem como exemplos “padrao” e incontestaveis de arte, como a pintura e a escultura. Podem concordar que a fotografia nao é total ou essencialmente uma forma de arte no mesmo sentido em que silo essas outras atividades; quer dizer, podem concordar que a fotografia é, quando muito, um caso limitrofe de arte. Em seguida, é provavel que também concordassem que a decisio quanto a incluir ou ndo a fotografia nessa categoria é, em ilti- ma anilise, arbitraria, que deveria ser tomada quando se tives- se em vista a conveniéncia ou a facilidade de uma exposicao, ‘mas que, de outro modo, nao existe nenhuma questo genuina para discutir se a fotografia ¢ ou no uma arte “de verdade”. Consideremos, agora, um tipo totalmente diferente de debate Um grupo argumenta que (ndo importa o que pensam os ou- tros) a fotografia é um exemplo central de uma forma de arte; ‘que qualquer outro ponto de vista revelaria uma profunda in- ‘compreensao da natureza essencial da arte. Outro grupo assu- mea posic&o contraria, de que qualquer concepgdo bem funda- da da natureza da arte mostra que a fotogrefia no pertence a seus dominios; que as técnicas fotograficas sio totalmente es- tranhas as finalidades da arte. Em tais circunstancias, seria um grande erro descrever a discuss4o como um debate sobre onde tracar uma linha diviséria. A discussdo diria respeito ao que a arte, devidamente compreendida, de fato é; revelaria que os dois grupos tém idéias muito diferentes sobre as razdes pelas 52 O IMPERIO Do DIREITO quais mesmo as formas artisticas padraio que ambos reconhe- cem —a pintura e a escultura — podem reivindicar tal titulo. O leitor pode pensar que o segundo debate que acabei de descrever é tolo, algo como uma deformagao académica. Mas, seja ld o que pense, discussdes desse tipo de fato ocorrem”* € sao diferentes daquelas do primeiro tipo. Seria um grave erro misturar as duas, ou afirmar que uma € apenas um caso espe- cial da outra. A defesa “sofisticada” do positivismo interpreta mal a pratica juridica exatamente nesse sentido. Os diferentes advogados e juizes que debateram os casos que citamos como exemplos nao pensavam estar defendendo direitos marginais ou /ato sensu. Suas divergéncias sobre a legislagdo e o prece- dente eram fundamentais; seus argumentos mostravam que eles divergiam no s6 quanto 4 questo de se Elmer deveria ou nao receber sua heranga, mas também sobre a razio pela qual qualquer ato legislativo, inclusive as leis de transito ¢ as taxas de tributago, impde os direitos e deveres que todos reconhe- cem; nao apenas sobre a questo de indenizar ou ndo a sra. McLoughlin, mas sobre como e por que as decisdes judiciais anteriores alteraram a lei do pais. Eles divergiram sobre aquilo que torna uma proposigao juridica verdadeira, nao somente na superficie, mas em sua esséncia também. Os casos que apre- sentamos como exemplos foram compreendidos por aqueles que os discutiram nos tribunais, salas de aula ¢ revistas de di- reito como casos centrais que punham a prova principios fun- damentais, ¢ ndo como casos diibios que pediam apenas a de- marcagdo mais ou menos arbitréria de uma linha diviséria. O verdadeiro argumento em favor das teorias semanticas Se o argumento juridico diz respeito sobretudo, ou ainda que mesmo parcialmente, a questdes vitais, os advogados nao podem usar 0s mesmos critérios factuais para decidirem quan- 35. Ver Svetlana Alpers, The Art of Describing, 243-4, n. 37 (Londres, 1983), e material ali citado. QUE £0 DIREITO? 53 do as proposigdes juridicas so verdadeiras ou falsas. Seus ar- rentos diriam respeito, sobretudo ou em parte, a quais cri- térios utilizar. Assim, o esquema das teorias semanticas, de ex- trair regras comuns de um criterioso estudo daquilo que os ad- yogados dizem e fazem, estaria condenado ao fracasso. Esse desafio protelatério agora amadureceu. Por que os positivistas esto to convencidos de que o argumento juridico nao € 0 que parece ser? Por que esto tdo seguros, contra todas as evidén- cias, de que os advogados seguem regras comuns para 0 uso da palavra “direito”? Nao pode ser a experiéncia que os convence disso, pois esta ensina o contririo. Eles dizem que a pritica judicidria e juridica ndo é 0 que parece. Mas, ent&o, por que ‘nao? Os sintomas sdo classicos, e meu diagnéstico ¢ conheci- do. Os filésofos da teoria semantica sofrem de algum bloqueio. ‘Mas que bloqueio ¢ esse? Observem o argumento seguinte. Se dois advogados estiio de fato seguindo regras diferentes ao empregar a palavra “direi- to”, usando critérios factuais diferentes para decidir quando uma proposigio juridica é verdadeira ou falsa, ento cada qual deve ter em mente algo diferente quando afirma o que ¢ 0 direito. Earl e Gray devem pensar em coisas diferentes quando afirmam ou negam que 0 direito permite que os assassins possam herdar: Earl quer dizer que seus fundamentos para 0 direito sé ou nao sao respeitados, e Gray tem em mente seus préprios fundamentos, e no os de Earl. Portanto, os dois jui- zes nao esto realmente divergindo sobre coisa alguma quando um nega ¢ 0 outro afirma essa proposicaio. Ocorre, apenas, que estdio falando sem entender um ao outro. Seus argumentos si0 inuteis no sentido mais trivial e vexatdrio do termo, como em uma discussdo sobre bancos na qual uma pessoa tem em mente ‘08 bancos de investimento ¢ a outra, os bancos de uma praca. Pior ainda, mesmo quando os advogados parecem estar de acordo sobre a natureza do direito, seu acordo se mostra igual- mente falso, como se as duas pessoas que acabei de imaginar chegassem a um acordo quanto ao fato de haver muitos bancos nos Estados Unidos. Essas bizarras conclusdes devem se: falsas. O direito € uma profissio florescente e, apesar dos defeitos que possa ter, 54 OIMPERIO DO DIREITO inclusive aqueles fundamentais, nfo se trata de uma piada gro- tesca. Significa alguma coisa afirmar que os juizes devem aplicar a lei, em vez de ignoré-la, que 0 cidadio deve obedecer alei, a ndo ser em casos muito raros, e que os funciondrios pibli- cos so regidos por suas normas. Parece estipido negar tudo isso simplesmente porque as vezes divergimos sobre o verda- deiro conteiido do direito. Desse modo, nossos filésofos do direito tentam salvar aquilo que podem. Para fazé-lo, agarram- se a qualquer coisa que encontram: afirmam que, nos casos dificeis, os juizes apenas fingem divergir sobre o conteiido do direito, ou que os casos dificeis nd passam de discussdes li- mitrofes, 4 margem daquilo que é claro © comum a todos. Ou ento pensam que devem entrar em alguma forma de niilismo a propésito do direito. A légica que preside a essa devastacaio & aquela que descrevi ha pouco, 0 argumento de que, a menos que os advogados ¢ juizes compartilhem critérios factuais so- bre os fundamentos do direito, nio poderé haver nenhuma idéia ou debate significativos sobre 0 que é 0 direito. Nao te- mos outra opgao a nao ser confrontar esse argumento. Trata-se de um argumento filos6fico, razio pela qual a proxima etapa de nosso esquema deve ser também filoséfica.

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