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ANANICENTINIDEAZEVEDO, eve sobre Leonardo da Vina A constugio da psicandse om seus fdesiencontras com arte Hi DossiéE ANAVICENTINIDEAZEVEDO mM Freud sobre Leonardo da Vinci: A construgao da psicandlise em seus (des)encontros com a arte ‘Texto originalmente escrito eminglés Tradugéo: Vinicius Oliveira Godoy Revisio técnica Elizabeth Cancel RESUMO A partir da controvertida discussio de Freud sobre Leonardo da Vinci, 0 presente artigo examina a relacdo das elaboracées freudianas com a arte, tendo no horizonte a construcao tedrica da psicandlise. PALAVRAS-CHAVE Construgao da psicandlise, Leonardo da Vinci, arte. EE weromromneromonscanwianet noni Dossié a. Daa ane, ena ei. FREUD SOBRE LEONARDO DA VINCI: A CONSTRUGAO DA PSICANALISE EM SEUS (DES)ENCONTROS COM A ARTE (Que é isto de método, sendo, como é, uma coisa indispensdvel, todavia <é melhor té-lo sem gravata e suspensérios.. ‘Machado de Assis Em um elogiado estudo sobre a contribuigao das idéias de Freud para o campo da cestética, Jack Spector argumenta que a tese desenvolvida por Freud em Leonardo da Vinci ¢ Uma Lembranca de sua Infancia! tem sido corretamente criticada “por todos, a excecao dos mais miopes sustentadores da psicandlise” (|974:56). Esta avaliagao critica nos traz ‘questées importantes que se relacionam com o quadro especifico no qual eu gostaria de situar a presente discussio. Em primeiro lugar, 0 uso feito por Spector da metéfora visual para elaborar sua apreciacio chama aatengao e remete ds diferentes maneiras pelas quais ‘© texto de Freud pode ser visto ou abordado e, mais ainda, resultar nas mais diferentes apreciagées que emiergem de acordo coma perspectivaa partir da qual o texto é percebido. Narrealidade, as questdes desenvolvidas em torno de Leonardo da Vinci... inserem- se em um campo de visio multifacetado. Por um lado, temos o olhar psicanalitico de Freud sobre Leonardo, que, por seu turno, é mirado por outros olhares inquisitivos, notavelmente aqueles dos historiadores, dos criticos de arte e dos psicanalistas (incluindo co préprio Freud), que circunscrevem texto em diferentes visualizacdes. Esta implicito neste metaférico campo de visdes que se digladiam, a relacao entre os lugares epistemolégicos dos “olhos criticos” eo que eles véem. Como bem apontou Foucault ‘em seu Nascimento da Clinica, cada olharcritico vé 0 que foi treinado para ver, e torna Visivel o que the foi requerido e permitido ver pelo treinamento de sua disciplina: “fo ‘olho] tem o poder de trazer uma verdade 4 luz que ele recepta apenas na medida em ‘que Ihe foi levada a luz” (1973:xii). Neste sentido, a critica de Spectro a alguns olhares psicanaliticos e suas “percepgdes miopes” sobre o texto Leonardo da Vinci... deve ser Vista como um problema que afeta nao somente os “sustentadores da psicandlise”", mas ‘0 olhar investigativo de uma forma geral. Enno interior desta tensio entre vis6es que minha discussao sobre o Leonardo da Vinci... ‘toma lugar. Através do exame das tensdes internas e externas ao texto, o olhar de Freud sobre Leonardo ira apontar no sentido de mostrar este seu ensaio como uma insténcia do ANAWICENTINI DE AZEVEDO, Feud sotre Leonardo a nc: construc de pscandise om sous (deskencontras com arte H processo de elaboracio do edifcio psicanalitico; um processo marcado pela contemplacio, pela conceitualizacao e (re)formulagao de procedimentos. O termo geralmente utilizado para descrever estes passos & método,a partir do qual eu gostaria de destacar seu sentido etimolégico de caminho, via através da qual se segue algo. No sentido de enfatizar este procedimento metodolégico do texto, ire focar as caracteristicas acima mencionadas com a.expectativa de poder trazer outras lentes que desafiem esta suposta miopia. “As sessées do suave e silencioso pensamento”? Na constelagao de personagens que gravitam em torno de Freud e de suas idéias nas origens da psicandlise, a do médico e biélogo Wilhelm Fliess (1858-1928) pode iluminar a génese de algumas das idéias e métodos revolucionérios de andlise que seriam desenvolvidos por Freud. Em particular na vasta correspondéncia (284 cartas, cartées- postais e notas) que estabeleceram os dois pensadores por um periodo de quinze anos, ha uma carta que abre uma frutifera abordagem para a compreensio do texto de Freud, Leonardo da Vinci A carta 98, datada de 9 de outubro de 1898, é marcada, desde seu inicio, por um tom um tanto pessoal e quotidiano: “Meu humor, minha faculdade critica reflexes — ‘em resumo, todas as minhas atividades mentais secundarias — tém sido soterrados por uma avalanche de pacientes que me sobrecarrega hé uma semana. Estando despreparado para isto e mal acostumado_pelas férias, de inicio me senti aniquilado. Mas agora recuperei meu vigor, embora eu nao tenha energia de sobra para qualquer outra coisa, Tudo esta concentrado no trabalho com meus pacientes” (1954:267-8). Depois de detalhar o ntimero de sessées e horas devotadas ao trabalho clinico, a carta se resumiu “Mas 0 domingo esté quase inteiramente livre. Reflito sobre varias coisas, testo-as e as modifico aqui e ali, e nao estou inteiramente desprovido de novas pistas. Se topar com qualquer coisa, vocé logo sabera. Metade dos meus pacientes si homens, de todas as idades, dos quatorze aos quarenta e cinco anos(...) Leonardo, do qual ndo se conhece nenhum relacionamento amoroso, foi talvez 0 mais famoso caso de canhotismo. Vocé poderia usé-lo? Cordiais saudagbes, seu... * (1 954:268). Esta mengo casual a Leonardo da Vinci é, nos termos configurados pelo trabalho teérico de Freud, casual demais para passar desapercebida. O que faz Freud recorrer uma figura to remota de seu intenso trabalho com os pacientes? O que ele vé em Leonardo? Gostaria de procurar algumas respostas para esta questo no interior da prépria narrativa epistolar, ao invés de perseguir a tentadora, mas impossivel,alternativa de psicanalisar Freud (O proprio Freud salientou na carta Fliess que, em meioa seu intenso trabalho, ha algum tempo livre para meditar, para conjecturar; é quando ele pode “refletir sobre as coisas”. De sua lista de publicacées neste periodo?, podemos inferir sobre o que Freud andava refletindo. “A Sexualidade na Etiologia das Neuroses” (898) e “O mecanismo nos seguintes termos possié gq W.Sralespear, Sone No ik" When he sss feet silent thoughy/ I summon up ramerance of igs past...) ee Bega ds rats pb dep Fu, fornia pls tare de he Origin acai cat t Wal ls New Yc Basic Bois, 1954, p, 5 EBD eswrorronnte rorromscre v4. nae manne possié gO excel emia de Freud deve ser cada a "eck pode él, tle peut lias afi de a cara (p26; eugene 4 que ala dceameme ain tere de Fleas na reas ence bielidade ea ecaha doje ena en ina ida op prio Fed gu ak wo doco de manera ing psiquico do esquecimento” (18986) sao dois ensaios publicados neste ano. Neles, seu maior interesse é adiantado pelos seus préprios titulos. De acordo com os editores de Freud, da Edigao Standard, 0 primeiro texto foi finalizado em fevereiro de 1898, e 0 Uitimo em setembro do mesmo ano (S.E.,II:261 & 288, respectivamente). Ja quea carta em questio data de outubro de 1898, parece necessario estender o olhar em direcéo as publicagdes de Freud parao ano seguinte. ‘Ao longo de 1899, somnente um ensaio foi publicado: “Lembrangas Encobridoras” (1899), que trata da projecdo de um evento passado em uma lembranga recente. Acescassez de escrita é reveladot A nterpretacéo dos Sonhos (1900a), 0 trabalho fundador da teoria psicanalitica. O proprio Freud destacou-o em seu prefécio a terceira edigao em inglés, de 1931, nos seguintes ste ano em particular precede a publicagéo de termes: “ele contém, mesmo de acordo com meu julzo atual, a mais valorosa de todas as descobertas que coube a minha boa sorte fazer. Insight como este é uma sorte que acontece a alguém apenas uma vez na vida" (1938: 181). Em face da importincia e complexidade deste texto fundador, parece plausivel supor que ele nao veio a luz no curso de apenas um ano, mas que, a0 contrario, foi o produto de muitos anos de observacdo e meditacao, de muitos domingos nos quais sua mente estava live para “refletir sobre as coisas”, para testé-las e enti modifcé-las aqui e ali (carta 98, p. 268), e encontrar algumas “novas pistas”. Gostaria de propor a seguinte "hipétese permissiva” (tomando de empréstimo a expresséo de Lacan) de que aalusdo de Freud a Leonardo em sua carta Fliess e, mais do que isto, em seu interesse nesta fascinante personagem, manifestado em seu Leonardo da Vinci e Uma Lembranga de sua Infancia, las, para que novas pistas possam ser encontradas, Este processo parece ser emblemético do método psicanalitico de interpretacao que nés vernos tomando lugar, ainda que debilmente, no momento de sua carta, e com mais clareza através dos escritos de Freud, Seu Leonardo da Vinci... gostaria de argumentar, oferece um estimulante exemplo desse processo de construcio de um inquietante método de analisar o psiquismo que, como um processo, esta longe de ser linear e monolitico, mas, ao contrario, parece estar informado por contradic6es, erros, corregées € realizacées, Aiinesperada referéncia de Freud a Leonardo pode ser observada, agora, sob uma. nova luz. O dia nove de outubro de 1898 foi um domingo, e, como tal, devotado as “segdes de suaves e silenciosos pensamentos”. Leonardo entra nestes pensamentos parte de um processo de refletir sobre as coisas, de analisi-las e modifica marcados por duas caracteristicas bésicas: 1) nenhum relacionamento amoroso foi registrado por seus numerosos bidgrafos; 2) ele era canhoto. Dois tragos que apontam para sua nao convencionalidade, para sua posigéo 4 margem das convengdes socials. Parece ter sido isto 0 que atraiu a atencao de Freud, ou seja, 0 fato de esta personage marginal poder ser “utilizada’ empreendimento teérico ao qual Freud esta se dedicando. De fato, tal como muitos como objeto de investigacdo que impulsionaré 0 ANAVICEVTINIDEAZE\EDO, feud sabre Leona LIne consti nani om ses fdeslncontns com aatle escritores e pensadores do século dezenove (por exemplo, Stendhal, Shelley, Burckhardt), Freud faz uso deste notivel representante do Renascimento com o objetivo de desenvolver suas préprias pesquisas sobre as "leis que governam tanto a atividade normal quanto a patolégica”, tal como ele declara na abertura de seu Leonardo da Vinci (19843). Deve ser notado, entretanto, queo recurso a Leonardo como um significante que articula preocupag6es teéricas e metodolégicas nao é simplesmente algo pragmitico ‘ou oportunista. Desde a emergéncia desta personagem no pensamento de Freud, em 1898, até a composigao final do texto sobre Leonardo, em 1910, ha um lapso de doze ‘anos, que compreende a elaboracao de alguns dos principios fundadores do pensamento psicanalitico, tal qual aqueles enunciados em A Psicopatologia da Vida Cotidiana(190|b), Trés Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, e em seus trés maiores estudos de caso: Dora (1905), © Pequeno Hans e O Homem dos Ratos (909d), além do jd mencionado A Interpretacéo dos Sonhos (1900a). Estes textos demonstram que Leonardo nao é 0 Linico recurso disponivel ao escrutinio teérico de Freud, mas torna-se um interessante objeto de investigacio devido as pecullaridades que oferece aos avancos de suas investigacées, isto é, as caracteristicas limitrofes que Freud identifica em Leonardo. Este fato corrobora o argumento que tenho delineado: 0 de que Leonardo da Vinci. deve ser tomado como um experimento tedrico e metodolégico nos limites e nas possibilidades do modo psicanalitico de investigacao. Tal postura, por seu turno, implica que este trabalho nao pode ser visto como um estudo biografico que tem como objetivo langar luzes sobre a vida da personagem, mas que deve ser tomado como algo no qual a informacao biografica é utilizada para o avango do projeto tedrico. Esta visio se contrapée.a nota do editor, James Strachey, na qual firma que “esta monografia sobre Leonardo nao foi somente a primeira, mas também a ultima das incursdes em larga escala de Freud no campo da biografia” (1984:5). E preciso notar, a este respeito, que o préprio Freud, desde o principio do livro, busca desengajar seu estudo da esteira das biografias tradi posicéo de entendé-lo [Leonardo] melhor” (1984:1 1. Mais tarde, Freud explicita esta posicao em termos de uma diferenca nao somente a partir do tipo de material biografico als: “estamos em uma que esté sendo examinado, como também no tipo de tratamento que este material deve nada é mais distante dos desejos dos biégrafos de Leonardo do que tentar resolver os problemas da vida mental de seu heréi partindo de suas pequenas fraquezase peculiaridades (..) Eles esquece que o que pede explicacio nao ¢ o comportamento de Leonardo, mas fato de que ele deixou para trés (.)algumas evidéncias (..)" (1984:59). ‘Contrariamente aos métodos tradicionais de estudos biogréficos, Freud centra seu foco nas mindcias, desapercebidas ou desprezadas por outros estudiosos, que vao desde Vasari (1968) até Pater (1983). Trazer para o campo de visdo o que é negligenciado em outras abordagens constituiu uma importante ruptura da teoria de Freud e de seu método de receber: Dossié BEM evstaPonTOarTe: PORTOALEGRE V14,N°24, MAVO/2008 possié a “Addi, del passat, bei ogni vile." Nei, 2 evita aeons 0 Heide Michel”, ub ca snoinanente a Jae Inu. andlise. A maneira pela qual este rompimento ¢ articulado na estrutura narrativa de Leonardo da Vinci... era o objeto de minha discussao na préximo seco. “Sogni Ridenti”s: questdes de teoria e método em Leonardo da Vinci... Em um estudo dedicado a outro icone da Renascenca— Michelangelo — Freud faz referéncia a técnica revolucionéria desenvolvida por Morelli, um médico italiano do século dezenove. Esta técnica - empregada no reconhecimento da autoria pictérica~ cconsiste fundamentalmente na atengao que deve ser dada as mindcias, endo Aimpressao geral que uma pintura provoca. Pode ser claramente percebido, a partir desta breve descrigio, que a técnica de Morelli fornece a Freud um importante correlato ao entao incipiente método que ele estava tentando desenvolver e para o qual buscava sustentacéo. ) © método de investigacao [de Morelli] tem estreita relagdo com a técnica da psicanilise. Ele [o método de investigacao] também esta habituado a adivinhar coisas que estio secretas ou escondidas, de tragos desapercebidos ou disfargados” (...) (1914a:222).. © olhar inquisitive sobre Leonardo é dirigido por uma atengao similar a certas triviliaridades da vida do artista e revelacdo de seus significados. Uma trilha metodolégica que se mostra de dificil acompanhamento face escassez de informacoes biogréficas disponiveis para Freud, e para nés, a respeito da vida de Leonardo. Atento aesta dificuldade - “sobre a juventude de Leonardo sabemos muito pouco” (1984:30) —, Freud concentra a maior parte de seu exame inicial sobre o registro do artista de uma meméria de infancia. Quero enfatizar que, em meu foco de anilise,o errona traducao de ibbio” como abutre nao parece invalidar a interpretacao de Freud, como alguns criticos sustentam (por exemplo, Schapiro, 1956; Spector, 1974). Minha principal questo na discussao desta recordatione é com as maneiras pelas quais Freud desmonta discurso de Leonardo e estabelece novas relagdes entre suas partes, Op memeéria ocorre: o relato de Leonardo sobre o vo dos “nibbi” é interrompido pela \eiro ponto da andlise nos chama a atencao para as circunstancias em que a recordagao de um momento de sua infancia. Esta rememoragio emerge através do processo de associagao, um mecanismo psiquico que estabelece conexées entre coisas, em base a uma logica que nao é necessariamente de natureza consciente. A identificagao dos principios que regem o estabelecimento destas conexées constitui um dos objetivos do trabalho interpretativo, e aquele que Freud se determinard a explorar nas poucas mindicias da memoria de Leonardo. A crenca de que “(...) memérias residuais... encobrem inestimaveis evidéncias sobre os tracos mais importantes do desenvolvimento mental [de uma pessoa] (1984:35) é um dos pontos de partida conceituais de Freud. Ber¢o, abutre, boca, rabo séo objetos que pertencem a um mundo infantil e que, apesar disso, sao negligenciados pelas mentes inquisitivas que procuram descrever e ‘explicar o brilhantismo de Leonardo. Na andlise de Freud, entretanto, estes objetos so ANAVIGETINIDE AZIVEDO, Freud sot icone not constucde ds pstcanssc cm scus deslencontas comaarte a7 | ‘transpostos do segundo ao primeiro plano, um método de leitura que a critica ltersria, Mieke Bal chama de “contra-coerente” (1988:20), e que permite o desvelamento de signficados alternativos (recalcados). Que relacdes significativas podem existir entre berco, abutre, boca e rabo, contrarias & desqualficagdo desses objetos feitas pelo senso comum que 0s associa ao universo da fantasia infant? Freud prontamente dé aresposta: uma sintaxe erética aticula estas palavras de maneira significativa. A crianga Leonardo, vicariamente, executa um ato homoerético de felacio em sua narrativa Freud parece antecipar ofato de que leituras contra-coerentes ou, mais rdicalmente no caso do projeto analitico como um todo, rupturas em um dado paradigma necessitam de sustentagao e de evidéncias suplementares (Kuhn, 1970). E nesse sentido que faz um apelo: “dem uma justa escuta ao trabalho de andlise, que de fato ainda no deu sua Ultima palavra”. Um trabalho em processo é 0 que Freud nos convida a observar aqui Eum pouco mais. Esta afirmagio também esboca um dos tragos mais caracteristicos da psicandlise: a0 mesmo tempo em que é teérica, é forgosamente clinico-analitica. Como Freud claramente observa em suas "Recomendag6es aos médicos que exercem a psicanalise, “uma das postulagées que distingue a psicandlise 6, sem dvida, que em sua pritica a Pesquisa e o tratamento coincidem” (1912e:1 14)” ‘Oempreendimento conjunto de elaboracio teérica pritica analitica encontrana lembranca ou na fantasia de Leonardo uma instancia produtiva: Tendo trabalhado a relacio entre boca e rabo, Freud segue no sentido de integrar as conexées entre obergo ce oabutre em sua andlise contra-coerente. E & aqui que 0 processo de pér idéias a prova, de “testé-las” (carta 98, p. 268), encontra alguns de seus limites. Na tentativa de desvendar os caminhos pelos quals o inconsciente fala através de uma “linguagem [que] faz uso de substitutos” (1984:46), Freud tropecano erro da traducio de “nibbio” e,além disto,nafalta de informacio sobre a vida de Leonardo. O desvelamento do signo abutre/mae cai por terra, a despeito do levantamento mitogréfico que acompanha sua exegese (1964:37-41). ‘Além disso, a intensa fixagao na figura da mie, manifestada na imagem do abutre, € portanto desenvolvida de forma duvidosa, é ampliada para a discussio da relacéo de Leonardo com um questionével pai ausente. ‘A natureza inexata ou contraditéria desta letura, vis-a-vis a evidéncia factual, no pode deixar de ser notada. Ainda que o ato interpretativo tenha sempre sustentacéo em ma subjetividade, ele é, em Gikima andlise, restrto por certos limites que sio estabelecidos nalinteragdo com o texto (Bal, 1988:238). A este respeito & possivel lerainterpretacio de Freud sobre o “sonho de voar” de Leonardo como um outro tipo de véo, propelido por uma imaginacao inquiridora e investgativa.® Sobrepondo-se ao sonho de Leonardo, temnos ode Freud. Sonhos nos ensinam bastante, como vimos até aqui. Este duplo onirico é transposto para a anélise de algumas pinturas de Leonardo, notadamente a Mona Lisa e A Virgem e o menino com Santana. O “sorriso enigmatico” possié OO a inincada lagi parte sr repens par agus un pole tics, em mi empredier etic jem, cacias pias desis de sea ime i, ze pace nora repo que = Oral earn cd Fd rope um vo da imaging’ (198818) como uma esratéia argent. BBD ese ror ante ronromecre 1.ne2s maces Dossié (1984:96) das trés figuras femininas & considerado por Freud como “a lembranca de Leonardo do sorriso feliz de éxtase sensual de sua mae” (1984:96). © Sogni ridenti ultrapassa a falta de informagao factual. Freud constréi o sorriso como um enigma e entdo inicia seu deciframento, baseado na premissa de que hé uma conexao linear, direta, entre vida psiquica do artista e a producio artistica. Ele declara, a propésito do likimo quadro: “a pintura contém a sintese da histéria de sua infancia: seus detalhes devem ser explicados em relacio as impresses mais particulares na vida de Leonardo” (1984:71). Esta relacao imediata entre biografia e criacio artistica, contudo, [é havia sido problematizada pelo préprio Freud no inicio do capitulo no qual ele desenvolve esta andlise: “se considerarmos as profundas transformag6es pelas quais tem que pasar ‘uma impressio na vida de um artista, antes que esta impressio possa vir a contribuir na obra dearte, ficarfamos limitados, em urna demonstragao, a manter qualquer pretensao & certeza a limites bastante modestos. Isto é particularmente verdadeiro no caso de Leonardo” (1984:65). A “mente artistica” pée limites ao método psicanalitico de interpretagio e expe algumas de suas contradig6es. Um movimento interno 6, desse ‘modo, confrontado com um movimento externo, e natensio entre o “por” €0 “expor”, percepges miopes podem ser re-focalizadas. Este movimento dialétco corrobora outra faceta do argumento que tenho desenvolvido ‘aqui: 0 Leonardo da Vinci... mio diz respeito & aplicacao mecénica de um quadro teéricoa tum conjunto de informacées; 20 contrério, é um processo de construgao de uma teoriano interior (endo meramente a partir de) uma pritica analitica, um traco distintivo jé apontado por Freud . Além disto, o entendimento da psicanilse como umn processo dialético significa no sé que ela ainda no deu sua tikima palavra, como Freud afirmou anteriormente, mas ‘que, tendo sua génese na contradicao, no pode aspirar 20 fechamento e a0 dogmatismo. ito ea pritica analitica 0, como no caso da problemitica explicagio dos “sorrisos enigmaticos” em termos das fantasias ou dos sonhos infantis de Leonardo. Por outro lado, temos ainda outras “ligacoes einter-retagbes” que esto sendo experimentadas aqui. ‘Aconex mais significativa parece ser aquela entre a configuracio edipica (ainda ‘uma nogéo incipiente na obra de Freud) e as conseqiiéncias que ela acarretaré na selecao do objeto amoroso, Como Freud sublinha em sua discussao sobre ainfancia de Leonardo, uma forte ligagao com amae ou a fixacio nela pode levara uma “escolha homossexual de objeto” (1984:54). Esta relacdo mantém-se verdadeira para o pensamento psicanalltico ainda hoje, no importando se Leonardo tivesse uma fixacdo na sua mae ou De um lado, temos os encontros e desencontros entre o con se ele fosse, de fato, suscetivel a belos rapazes. Inter-relacionado ao complexe de Edipo € homossexualidade, Freud também esta desenvolvendo, através de Leonardo, o conceito de narcisismmo: “o menino reprime o amor por sua mae: ele pdeasi mesmo no lugar dela, identifica-se com ela, e toma sua prépria pessoa como um modelo em cuja ANANICENTINIDE AZEVEDO, Freud sale Lconard da inc 4 canstrunto da pscanditsc om scus(deslencontrascom arte semelhanca ele escolhe os novos objetos de seu amor. Deste modo, ele se torna um homossexual. O que ele fez de fato foi retroceder ao auto-erotismo... ele encontra os objetos de seuamor ao longo da trlha do narcisismo” (1884:55; grifo de Freud). Como no caso do primeiro par de relacées, uma visio diacrénica da teoria e da pritica psicanalitica poderia confirmar que a triangula¢ao aqui estabelecida com os conceitos de “estagio edipico”, de homossexualidade e narcisismo”é valida e, portanto, vai além da realidade de Leonardo". ‘A enunciagao de Freud da nogao de narcisismo, claramente subsume Leonardo sob afguradeum “menino” genérico. Tal tratamento parece ser consistente com os parametros do ensaio como um todo. Apesar de Leonardo da Vinci... ter sido escrito em meio publicagao de importantes estudos de caso, como Dora e O Homem dos Ratos, como notado anteriormente, 0 estudo nao pode ser visto como estes dois iimos. Leonardo nao & um analisando de Freud!', apesar do fato de Freud ter tido um paciente com caracteristicas muito semelhantes, o qual poderia ter permitido a ele compreender alguns dos “mistérios” de Leonardo (Turner, 1993:142). © que é entao Leonardo? E Leonardo? Conclusio : “Um Método sem Gravata ou Suspensérios” Comecei procurando explicacées sobre o interesse de Freud por Leonardo em sua vasta correspondéncia, motivada pela crenca de que a veia mais ensaistica!? de Freud poderia ser encontrada nesse género. Entio, mais uma vez, volto-me para sua producao epistolar, para comecar a responder ds questées postas acima. Em uma carta a escritora e psicanalista Lou Andreas-Salome, de 9 de fevereiro de 1919, Freud diz que “Leonardo [é] a Unica coisa verdadeiramente bela que jd escrevi” (1972:90). Dois aspectos parecem dignos de nota: o encantamento de Freud com seu préprio livro e 0 tom incisivo de sua avaliacdo. Eu sugeriria que a Unica beleza de Leonardo do Vind... sua impressao sobre Freud, encontra sua razo de ser no argumento que procurei desenvolver neste artigo, a saber, no fato de que Leonardo funciona como uma metéfora especial que permite a expressao da natureza dual da empreitada psicanalitica: a teoria comojna pritica. Por causa deste uso metaférico, o discurso de Freud encontra o tipo de liberdade metodolégica definida pela epigrafe acima, de Machado de Assis, para “refletir sobre as coisas”, sobretudo, para “testé-las e modificé- las”, no curso de seu pensamento, podendo até “esbarrar em novas pistas”. Ascontradigées que presidem a discussdo do sonho ou da recordatione de Leonardo, ‘em sua relacdo com sua vida e com seu trabalho, levam o Leonardo da Vinci... aos limites centre o discurso fiecional eo discurso teérico. Esta posicio limiar encontra um “correlato objetivo" na personalidade de Leonardo, tal como descrito por Freud na carta aFliess citada acima: 0 homossexual celibatario e o canhoto. A partir dessas margens, Freud pode conduzir em Leonardo da Vinci... uma exploracao metaférica de alguns dos limites fades de seu empreendimento a teérico. Ele leva. efeito neste texto o que Dossié i Fut aa pstsoree em ot 0 al xara agi ge ait io de eat de aii re preston um cine psa (© (9821) mea pica, , Aste ret, wer, pr ego, "ages en pasa’, de lanai AO | er aie, 1864, espelmene p62, a. Abide da afimaa prec tersida mini pr alguns coisa saa, cen «ners de Fd pr Usa Spec, pr eeml, nama ine reac seagen én Fred ona “dspscio, até mesmo uma capi, em ire a figura de lesa, 0 sei defo ona proj de pip psn ade (17450 i Con Vina Capa na bra, nensio um no ut i a pad deeper aientermente agus dos pas reso, infra eats, pevitcia pfs «fae, tects, qe apr cae: in lads no aig 08 ‘alo xadénica” (1922) zg __ ‘ore una pl peta ec tic. pagum ua ene io prc um seiner se prc ern alata ov uma sa ects, se ies ou eens gu vogue nos possié a Noe poe dear waar ag ea pias der ids mes siege a0 Leonard do Vine. © sgiiasemente imininds “sPespectis Fras (a Teaputca Picanalitia” (10, a Hol Blom pareceecabecr ee oc pice psa pi: cant, qed dn pre Te esa de Pas, qe" psicandle, 2 despite de seu etc, €apras ota fra clara leds" (Pate, Ist posteriormente elaborard como uma “construgio em andlise”, isto é, uma elaboracéo ficcional ou factual que faré emergir uma dimensao de verdade histérica do discurso do analisando (19374). Leonardo parece oferecer a Freud uma outra situacio limite. Através do recursoa tum passado impalpavel, ele pode sondar os limites de suas conceituacées atuais, na tentativa de inscrevé-las no futuro ™, Passado, presente e futuro sao entio entrelacados de uma maneira que, para Freud, é caracteristica da imaginagio postica'’: “assim, ppassado, presente e futuro so emaranhados... no fio do desejo que a todos eles atravessa” (1908c:148). Leonardo da Vinci. pode entrelagar-nos através desses momentos, se estivermos preparados para fazer ajustes em nossas miopes percepcdes (BRAS CITADAS BAL, Micke (1988). Death and Dissymetry: The Politics of Coherence in the Book ofjudgges. Chicago & London: The University of Chicago Press. CRAPANZANO, Vincent (1992). Hermes’ Dilemma & Hamlet's Desire: On the Epistemology of Interpretation. Cambridge, Mass. & London: Harvard University Press. FOUCAULT, Michel (1971). The Birth ofthe Clini: An Archeology of Medical Perception. 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