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forayN0)) ey rey SS cS A VIOLENCIA ‘Sumario 1.0 problema das definigées __ & a T. Os sentidos de “violéncia” ¢ a etimologia__— IL. As definigdes do direito ssi III. Definigdes da violéncia, a TV. A violencia ¢ 0 caos___ a V. Balangg Notas 15 a EA TT 2. Historia e sociologia da violéncia 16 1. Os fatores de incerteza no conhecimento da violéncia 16 D. Asguerrs_ IIL. A violénciaipolitica og TV. A criminalidade Fg V. A violéncia da vida" OF" Notas 40 $$ 3. Tecnologia da violéncia contemporanea___ 42 I. Tecnologia da destruiggo ___-_ gg Il, Midia e violencia 49 IIL. Vulnerabilidade e resisténcia das socledades Contemporineas Notas 54 ee 4, Gestao e controle da violéncia 1. A administragao do terror __ Il. As estratégias da violéncia III. Gestao da desordem e do risco IV. As valorizacées da violéncia Notas. 5. As causas da violéncia: 0 ponto de vista antropoldgico 1. 0 ponto de vista neurofisiolégico UI. Etologia e agressividade IIL. A contribuicao da antropologia pré-hist IV. Psicologias da agressividade V. As contribuigdes da psicandlise VI. Balango Notas 6. As causas da violéncia: as abordagens sociolégicas I. As abordagens empiricas IT. A violéncia e a teoria social __ IIL. Os estudos microssociolégicos Notas. 7. As filosofias da violéncia I. As ontologias da violéncia __ IL. As filosofias da reciprocidade IIL. Conclusao filoséfica. Notas Bibliografia sumaria. 55 56 59 62 66 68 70 n n 5 71 82 84 86 88 89 92 98 100 102 103 106 10 14 15 1 O problema das definicdes Sio violencia o assassinato, a tortura, as agressdes ¢ vias de fato, ‘as guerras, a opressiio, a criminalidade, o terrorismo etc. Como passar destes fatos disparatados para uma definicdo que revele sua natureza? 1. Os sentidos de Uma boa maneira de entrar no “yioléncia” e a etimologia —assunto consiste em procurar os usos correntes € a etimologia, 1) Os diciondrios de francés contemporaneos (por exemplo, 0 Robert, 1964) definem a violéncia como: a) 0 fato de agir sobre al- fguém ou de fazé-lo agir contra a sua vontade empregando a fora (ou a intimidacdo; b) 0 ato através do qual se exerce a violencia; c) uma ‘disposic&o natural para a expresso brutal dos sentimentos; d) a for- 6a irresistivel de uma coisa; e) o carter brutal de uma acdo. Tais sentidos diversos indicam duas orientagdes principais: de um lado, o termo “‘yjoléncia’” designa fatos,e acSes;,de, outro, designa.uma_ maneira.de-ser.daforga, do, sentimento,ou,de um elemento. natural. violéncia.de-uma.paixdo ou da natureza. No primeiro caso, a violéncia opée-se & paz, A ordem que ela perturba ou questiona. No outro, € a forca brutal ou desabrida que desrespeita as regras e passa da medida. &_AvioLencia 2) E o que nos ensina a etimologia do termo? 4 “Violéncia’’ vem do latim violentia, que significa violéncia, ca- | rater violento ou bravio, forga. O verbo violare significa tratar com / violéncia, profanar, transgredir. Tais termos devem ser referidos a vis, que quer dizer forga, vigor, poténcia, violencia, emprego de for- ca fisica, mas também quantidade, abundancia, esséncia ou cardter essencial de uma coisa. Mais profundamente, a palavra vis significa a forga em ago, 0 recurso de um corpo para exercer sua forca e por- tanto a poténcia, o valor, a forga vital A passagem do latim para o grego confirma este niicleo de sig- nificagdo. Ao vis latino corresponde o is homérico (¥s) que significa misculo, ou ainda forca, vigor, e se vincula a bia (Bia) que quer di- zer a forca vital, a forga do corpo, o vigor e, conseqilentemente, 0 emprego da forga, a violncia, o que coage ¢ faz violéncia. Os espe- Gialistas ligam tais termos ao sanscrito j(iJy@ique significa predomi- nancia, poténcia, dominagao gue prevalece 3) Para onde quer que nos voltemos, encontramos portanto no Amago da nogdo de violéncia a idéia de uma forga, de uma poténcia natural cujo exercicio contra alguma coisa ou contra alguém torna 0 carater violento. A medida que nos aproximamos desse nticleo de significacdo, cessam os julgamentos de valor para dar lugar forca nao qualificada. Tal forga, virtude de uma coisa ou de um ser, ¢ 0 [auee é, sem consideracdo de valor. Ela se torna violéncia quando pas- | sa.da.medida ou perturba uma ordem. } 4) Oexame dos usos correntes também nos ensina algo relativo a margem de variacdo das significagdes da palavra. A idéia de forca constitui 0 seu niicleo central e contribui para fazé-la designar priori tariamente uma gama de comportamento ¢ de ages fisicas. A vio- léncia é, antes de tudo, uma questdo de agressdes e de maus-tratos. forts a considerames evidente ela dei marcas. No entanto essa } forga assume sua qualificagdo de violéncia em fungdo de normas de- | finidas que variam muito. Desse ponto de vista, podem haver quase 4 tantas formas de violéncia quantas forem as espécies de normas. ll. As det do direito igSes Ao contratio da amplitude do sentido cor- rente, 0 direito fornece definiges estritas. Em direito penal, todos os atentados pessoa humana pig. s20. chamados, violéncias. © homicidio volun- j 0 PROBLEMA DAS DEFINIGOES 9 tario constitui um caso a parte, como o estupro. As violéncias pro- priamente ditas so consideradas nos artigos 309, 310 ¢ 311 do Codi- g0 Penal na rubrica “Agressdes, violéncias ¢ vias de fato” Dizem os juristas: s4o ‘‘atos através dos quais se exprimem a agressividade ¢ a brutalidade do homem, dirigidas contra seus seme- Ihantes e causando-Ihes lesdes ou traumatismos mais ou menos gra- Wes’’!, Tal definicdo sublinha o vinculo entre violéncias e emprego “da forga fisica seguida de danos fisicos duradouros. Todavia a evolu- G0 do direito desenvolveu-se no sentido de ampliar a incriminagao: ‘As agressdes propriamente ditas que compreendem apenas as lesdes -causadas por um contato brutal com um agente exterior acrescenta- ram-se aspectos internos (doengas provocadas, danos fisicos) que nao exigem violéncia exercida sobre 0 proprio corpo da vitima’”. Rafa substituicdo, da nogio, wtilizada até agora de violéncias, agressdes e” ferimentos pela nogao de violéncias ¢ vias de fato, mais imaterial. As viglgncias e vias de fato caracterizam gestos menos graves que as agres- s6es, que no entanto constituem danos ao corpo da vitima. Jogar al- guém no chao, cuspir nele, arrancar-lhe os cabelos constituem vio- lencias e vias de fato. O mesmo ocorre com as ameacas ou o dano brutal aos bens, que conduzem a perturbagdes psicoldgicas. Existe ainda uma categoria das violéncias leves (art. R 38-10 do Cédigo Pe- nal) que constitui uma contravenco de quarta categoria. Sao assim caracterizados atos sem verdadeira troca de agressdes, tais como em- purrar alguém, cuspir nele sem atingi-lo, atirar-lhe detritos. yj Por outro lado, nao se deve esquecer que a lei permite certas Pictencis em condigdes bem definidas: no ambito do esporte, da g rurgia ou da manutengao da ordem. Em direito civil, a yioléncia caracteriza a coagdo exercida sobre a yontade de uma pessoa para ford-la a concordar,,A lei romana exigia que essa violéncia acarretasse um metius atrox — um medo ater- rorizante, O direito\civil francés (art. 1112 do Cédigo Civil) pede ape- fas que ela seja ‘de natureza a causar impressdo sobre uma pessoa razoavel”, reconhecendo que nesse sentido ha diferencas “segundo a idade, 0 sexo, a condigdo das pessoas"’. A violéncia deve inspirar © temor presente de um mal consideravel para a pessoa, seus bens e eventualmente aqueles com quem ela esta solidamente ligada; o sim- ples temor respeitoso nao pode ser considerado como uma violencia suscetivel de viciar os acordos. Essa abordagem juridica, destinada a tratar de casos precisos, mantém as caracteristicas ja esbogadas: a violéncia é primeiro um dano t 10_AVIOLENCIA ‘ Hsico.mas também se.refere.a.normas (no.caso, aqui, as da integrida- i de.da pessoa humana),.e quando a norma muda, nao ha mais violén- ‘cia, O que ocorre nos casos do esporte, da cirurgia ¢ do emprego da ‘violéncia legitima a servico da lei. Por outro lado, uma sensibilidade imaior para com a violéncia tende a surgir através da evolucao das incriminacdes. ‘Asta altura, ja surgiram dois aspectos: um elemento de forea; fisica identificavel com seus efeitos, e um outro, mais imaterial, de transgressio, vinculado ao dano a uma ordem normativa. Como da no fisico, a violéneia é facilmente identificdvel; como violagao de nor- mas, quase qualquer coisa pode ser considerada uma violéncia. Ill, Definicdes da violéncia Tal situacdo provoca a difi- culdade de se definir a violén- cia — e também a diversidade das definigdes propostas. Podemos tentar estabelecer uma definigao objetiva levando em conta apenas os fatos. Assim, 0 socidlogo H. L. Nieburg define a vio- Téncia como “uma ago direta ou indireta, destinada a limitar, ferit ‘ou destruir as pessoas ow os bens'’’, Por sua vez, H. D. Graham ¢ T_R. Gurr escrevem: ‘a violéncia se define, no sentido estrito, como ‘um comportamento que visa causar ferimentos as pessoas ou prejut 205 aos bens. Coletiva ou individualmente, podemos considerar tais atos de violéncia como bons, maus, ou nem um nem outro, segundo quem comeca contra quem’"*. Todavia ndo temos certeza de que tais definigdes estejam isentas de qualquer referéncia a normas, aqui as da integridade da pessoa de seus bens. Na verdade, no essencial elas coincidem com as distin- Bes juridicas embora tentando apreender a violéncia como se todos 1098 atores sociais estivessem em pé de igualdade — 0 que nad € 0 caso. Essa opedo de método, além de abstrair as categorias de legitimo ¢ ile- g{timo, também corre o risco de continuar plat6nica: as estatisticas no sfo feitas nem pelos manifestantes nem por observadores neutros. No extremo oposto, também poderfamos censuré-las por serem. insuficientemente objetivas: consideram atos de violencia com contor- nos € efeitos definidos, ignorando estados de violéncia mais insidiosos. . Tentamos dar uma definig&o que dé conta tanto dos estados ‘quanto dos atos de violéncia. “Ha violéncia quando, numa situacao 0 PROBLEMA DAS DEFINIGORS 11 , de interagdo, um ou varios atores agem de maneira direta ou indire- Ta, macica ou esparsa, causando danos a uma ou varias pessoas em “aus vanidvels- soja ev sua Tntegridade Tica, seja em sua integrida “de moral, em suas posses, ou em suas participagGes simbélicas ¢ cul” tural. — Pucreepec Unteacoe. 0 objetivo é dar conta de varios fatos: a) Inicialmente, do cardter complexo das situagdes de interacao nas quais podem intervir multiplos atores, até maquinas administra- tivas (a maquina judiciéria, « organizacdo burocratica da deportacao € dos campos nos regimes totalitérios) que diluem as responsabilida- des multiplicando os participantes. A violéncia entdo nao € mais ape- nas,q enfrentamento aberto de dois adversarios, mas 0 efeito de uma empresa anénima na qual todo mundo se subtrai a responsabilidade (genocidios do século XX, campos soviéticos ou nazistas) ») Das diversas modalidades de produgao da violencia segundo 05 instrumentos em causa, Nao é a mesma coisa matar com a prépria mao, fuzilar e assinar uma ordem de bombardeio. Qs progressos tee: nolégicos se.orientaram no sentido de uma violéncia produzida indi- | retamente por meios cada vez mais “limpos”- ~~ ~~ 7 ¢),Do timing, isto é, da distribuicdo temporal da violéncia. Es- ta pode ser ministrada de uma vez (maciga) ou gradualmente, até in- sensivelmente (distribufda). Pode-se matar, deixar morrer de fome ou | favorecer condigdes de subnutrigdo. Pode-se fazer desaparecer um ad- ' versério ou afasté-lo progressivamente da vida social e politica atra- | vvés de uma série de proibigdes profissionais ¢ administrativas. Aqui | yparece claramente a distincdo entre estados ¢ atos de violéncia. En- ‘4retanto a dificuldade reside no fato de que esses estados de violencia” | “fupdem situacdes de dominacao que abrangem todos os aspéctos da i ‘Yida social ¢ politica e se tornam, assim, cada vez menos passiveis ‘de localizacao. - } 4) Dos diferentes tipos de danos que podem ser impostos: da- nos.fisicos mais ou menos graves, danos psiquicos e morais, danos 1 aos bens, danos aos préximos ou aos lacos culturais. Aqui também, i rapidamente a situagao torna-se inextricavel. Os prejuizos materiais | ¢ fisicos sto considerados mais importantes, nem que seja porque sio | visiveis, mas as perseguicdes morais e psicoldgicas, a intimidacdo rei- terada, os danos sacrilegos as crengas e aos costumes também podem ser graves. No fundo, a questo € saber quais so 0s contornos exa- tos da pessoa e nada garante que esta se limite apenas & individuali ‘| dade fisica. te Ve de ck } Na verdade, os defeitos das detinigdes objetivas se devem ao seu principio: trata-se de afastar os julgamentos de valor e de encon- tar critérios que permitam um estudo quantitative. Ora, tais crité- ios coincidem com os inventarios e estatisticas sociais (por exemplo os dos Inventatios da Justiga) e correspondem a normas sociais de- terminadas; em outras palavras, a tentativa de descartar todos os jul- gamentos de valor fracassa, a0 menos parcialmente. Nao obstante, tais definigdes tém um interesse critico de con. \ duzir aos fatos, relativizando o recurso indignado ao sagrado social e aos valores. Elas também permitem avaliagdes quantitativas e por- ; tanto melhor conhecimento do funcionamento social e uma acao mais ; eselarecida, IV. A violéncia e o caos Naxendade, ¢ um erro pensar que a violéncia pode ser concebida ¢ ser institucionais, juridicos, sociais, as yezes pessoa | segundo a Vulnerabilidade fisica ou 9 fragilidade psicalgica dos dividuos. Uma abordagem objetiva se esforca para pér entre parén- teses todas as normas, ou se contenta com as da integridade fisica * da pessoa. Assim, ela deixa de fora o que na nogio de violéncia é gninentemente normativo, Na idéia que fazemos dela, entram, com efeito, 0 caos, a con- flagragdo ¢ a transgressao da ordem. De modo significativo, G. Sorel eH. Arendt dedicaram livros inteiros ao assunta sem realmente defi- nir a nogdo. Assim, G. Sorel diz que a violéncia da greve geral “‘com- porta a concepeao de uma subversdo irreformavel” ®, Quanto a H. Arendt, ela fala “‘desse elemento de imprevisibilidade total que en- contramos.no.instante.ei. que nos, cease fo ambito a. A violéncia ¢ portanto assimilada ao imprevisivel, a auséncia de forma, ao desregramento absoluto, Nao é de espantar se nao po- § demos defini-la. Como as nogdes de caos, de desordem radical, de 4 transgressdo, cla com efeito envolve a idéia de uma distancia em rela- sao as normas e as regras que governam as situagdes ditas naturais, normais ou legais. Como definir o que ndo tem nem regularidade nem } estabilidade, um estado inconcebivel no qual, a todo momento, tudo tea qualquer coisa) pode acontecer? Como transgressdo das regras pendentemsnte de critérios ¢ de pontos.de.vista. Es" 0 PROBLEMA DAS DEFINIGOES € das normas, a ‘‘violéncia"” deixa entrever a ameaga do imprevisi- vel. Num mundo estavel ¢ regular, ela introduz 0 desregramento ¢ © caos. A,palays9, svioléncia:! ¢.entdo-.como a denominagao.de.uma, sitiagAo de caos absoluto, comparavel.ao estado de natureza de Hob; bes, onde reina a guerra de todos contra todos, *. ‘Também excontramos tal imprevisibilidade da violéneia na idéia AgJnscauranca.Q.sentimento da inseguranca, que se encontra no co-_ ragao das discusses sobre o aumento da violéncia, raramente repou- sa sobre a experiéncia direta da violéncia, Ele corresponde & crenca, fundada ou ndo,' de que tudo pode acontecer, de que devemos espe- rar tudo, ou ainda de que nao podemos mais ter certeza de nada nos comportamentos cotidianos. Wi i Nieburg (H.L.), Uses of violence , in Journal of Conflict Resolution, margo de vol. VEl-1, p. 43 ii marco de 1963, * Graham (H.D.) e Gurr (T.R.), The history of violence in America, New York, Ban- tam Books, 1969, introd: p. XXX. . Yor ichaud (¥.), Violence et politique , Col. "Les Essais", Paris, Gallimard, 1978, p. 20 * Sorel (G.), Réflexions sur la violence , Paris, Ed. Marcel Rivigre, reed. 1946, p. 436. ~ Arendt (H.), On violence, New York, Harcourt, Brace & World Inc, 19 francesa: Sur la violence, in Du mensonge & la violence, Col. "Liberté de ! Paris, Calman-Lévy, 1972, p. 118, * Na Colémbia, 0 termo fa Violencia designa uma época da histéria contemporanea (entre 1946 e 1966) que fez no mfnimo 200.000 vitimas, das quais mais de 100.000 s6 no periodo 1948-1950, Guerra civil, motins, centativas de golpe de Estado, revoltas, banditismo, confrontos regionais se misturaram e houve momentos em que $0 a 100.000 ‘combatentes se enfrentavam em bandos rivais. enquanto havia nada menos do que onze repiiblicas auténomas proclamadas em todo o pais. Essa desorganizagio social pro- funda, de multiplas eausas mas ainda reforgada pelo desmoronamento do Estado, foi acompanhada por uma violéncia inimaginavel entre grupos rivais que se entregaram 2 crueldades loucas. Como se todas as regras socials tivessem desabado, néo podia mais haver nenhum limite ao processo contagioso da violéncia. Os partidos, 0 Exérei- to ea Igreja tiveram realmente muita dificuldade em conter o processo, apesar de vi- rias coalizdes politicas contra a violéncia, Ver Oquist (P.), Violence, conflict and poli ties in Colombia, New York, Academic Press, 1980, em particular cap. 5, p. 155. Histoéria e sociologia da violéncia Uma répida pesquisa histérica e sociologica dara uma idéia das incertezas que cercam a apreensao da violéncia. Preparando a com- paracdo, ela sugerira também a tese do préximo capitulo: que a vio- Iencia contemporanea muda de fisionomia e de escala porque ¢ 0 pro- duto de sociedades nas quais também mudaram a administragao de todos os aspectos da vida social, a tecnologia '¢ os meios de comuni- cago de massa (midia) I. Os fatores de —_ Antes de qualquer investigagao, ¢ preciso incerteza no sublinhar os obstaculos para um conheci- conhecimento da mento histérico ou sociolégico da vio- violéncia lencia. . 1) Como foi indicado no capitulo ante- rior, é preciso levar em consideragao a diversidade das normas juri- dicas e institucionais. Assim, numa sociedade como a da China anti- ga onde a regulacdo demografica passa pelo infanticidio, o assassi- nato dos recém-nascidos nao era considerado um crime ¢ ¢ dificil ava- liar sua amplitude. Os estudos de C. Petonnet! sobre a populacdo ‘ORIA E SOCIOLOGIA DA VIOLENCIA 17 das cidades-dormitério descrevem condigGes de vida ¢ visdes de mun- do nas quais a violéncia é um aspecto normal da existéncia, 6 normal “cair” por pequenos roubos ou ter os bens confiscados pelo oficial de justiga. A maioria das sociedades comporta subgrupos cujo nivel de violéncia é incompativel com 0 da sociedade global ou, de qual- quer modo, comvas avaliagdes em vigor na sociedade global. 2) Um segundo obstaculo prende-se a0 conhecimento que as so- ciedades t8m ou nao de si mesmas gragas ao registro e & conservasio dos dados. Temos ou nao dados confiaveis que permitam uma apreciagio quantitativa da violéncia numa dada sociedade? Se se trata de crimi- nalidade, por exemplo, uma estatistica como a dos Tribunais de Jus- tiga s6 existe na Franca a partir de 1825. Podemos seguir a evolugdo estatistica dos crimes ¢ delitos desde essa data, mas para periodos mais distantes ¢ preciso passar pela vasculhagem dos arquivos, com 0 que isso pode significar de incompleto ¢ parcial. As incertezas so ainda mais espetaculares no tocante as guer- ras. Os estudos estatisticos sobre o seu mimero, a sua extensdo, 0 nti- mero de vitimas, sua intensidade, também comecam no século XIX. O estudo de J. D. Singer e M. Small? fornece dados para o periodo 1816-1965, O deiL. F. Richardson’ estuda 0 periodo 1820-1949. As informagSes sobre épocas anteriores ndo faltam, mas nao sdo con- fidveis. Que sabemos nds do balango exato da guerra do Peloponeso no século V a.C.? $6 depois do inicio do século XIX se desenvolve- ram as coletas de dados ¢ os aparelhos estatisticos, ao mesmo tempo que se desenvolvia a administracao burocratica das sociedades. Ho- je, com a revolugio dos sistemas informaticos, o registro dos dados ‘muda ainda de natureza e permite visualizar num painel a vida so- cial, autorizando feedbacks que respondem num tempo curtissimo. Portanto, o projeto de uma histéria da violencia freqiientemente esbarra na falta de dados piecisos. Do mesmo modo, na sociologia, EAificil avaliar o volume de violéncia de sociedades que nao se preo- cupam ou nao tém_meios.para guardar trago. de dados deste tipo. 3) Um terceiro fator prende-se ao fato de que a apreensao, 0 registro e a avaliagdo da violéncia nunca séo neutros, mas pelo con- trario, 0 foco de um conflito que desdobra 0 confronto direto dos adversarios. Os que dominam os canais de comunica¢ao ou os proce- dimentos de arquivamento tém, dependendo do caso, interesse em exa- gerar ou diminuir a violéncia de seus adversirios ou a deles préprios. Portanto, & preciso contar com as mentiras e as omiss6es dos docu- _AWIOLENCIA mentos: “O proprio documento tende a ocultar os tragos do rebelde. Os documentos histéricos mais detalhados e mais voluminosos vém das deliberagées dos tribunais, das chefaturas de policia, das unidades mi- litares ou de outras repartigdes governamentais que trabalham para prender e punir seus adversarios. Por isso mesmo os documentos sus- tentam as opinides daqueles que detém 0 poder. Todo contestatério que escapa da pristio também escapa da histéria’"*. Ao adversario po- de ser atribuida mais violéncia do que a que ele cometeu realmente, como foi o caso dos anarquistas franceses dos anos 1892-1894 (Rava- chol, Emile Henry). A menos que, no caso contrario, sua atividade seja sistematicamente silenciada, como quando o governo das Forcas ‘Armadas uruguaias proibiu, em 1969-1970, qualquer mengéo & ativi- dade dos rebeldes Tupamaros ou até mesmo 0 emprego do seu nome. Charles Tilly também observa que enquanto nos prendemos & historia “vista de cima”, as tinicas violéncias que contam so “‘aque- Jas que acarretam uma reorganizacao do poder’’*. Os que fracassam ow 0s vencidos tém toda a chance de cair no esquecimento. Mais ain- da, as vitimas, porque ndo esta¢ mais lé para testemunhar ou porque &perigoso falar delas, perdem o seu lugar na histéria. E 0 que ocorre com povos inteiros que desapareceram, com minorias destruidas ou assimiladas (0s Astecas, os indios da América do Norte). No século XX em que os meios de destruigao e sua organizacdo racional pro- grediram continuamente, os genocidios se multiplicaram (genocidio dos arménios pelos turcos, genocidio nazista dos judeus, genocidio soviético da nagdo ucraniana), mas paradoxalmente as vitimas pare- cem existir mais do que nunca. Quando a importancia da comunica- gio € to grande, a prépria presenca ou auséncia do povo das som- bras e dos mértires se torna 0 foco de uma batalha. Para os turcos, os arménios nunca foram massacrados; alguns afirmam que as cd- maras de gas nazistas so invenedes da propaganda sionista. Quanto aos milhdes de deportados soviéticos, foi preciso a divulgagao do re- latério Kruschev para que muitos abrissem os olhos. Do mesitio mo- do, a multiplicagio dos desaparecimentos nas ditaduras ¢ nos paises totalitarios mostra que muitos compreenderam que la onde nao ha mais vitima nao houve crime. I. As guerras — Especialistas como Quincy Wright, Richardson, Singer e Small concordam em definir a guerra como “a manifestacao da violéncia internacional direta’” quando ela HISTORIA E SOCIOLOGIA DA VIOLENCIA 1 é seguida de mortos ¢ feridos em mimero significative — o que deixa de lado 0s enfrentamentos belicosos entre tribos primitivas. Mas pa- ra tanto é preciso dispor de dados diplomdticos e mimeros de comba- tentes. E preciso saber também se devemos considerar apenas as viti- ‘mas diretas ow ainda a violencia indireta que atinge as populacoes atra- vés de restricdes, epidemias ¢ devastagdes. Considerando os critérios de uma mobilizacao minima de 5 000 combatentes ¢ de um balango de pelo menos 1 000 vitimas, Singer ¢ Small recensearam 367 guerras entre 1816 ¢ 1965 ¢ Richardson, 317, entre 1820 e 1949, Considerando-se apenas as grandes guerras que envolvem Esta- dos independentes de mais de 500 000 habitantes e que gozam de um reconhecimento diplomatico, obtém-se o seguinte quadro®, para o pe- riodo 1816-1965: Vitimas de querras —_Vitimas de guerras Reale entre varias nagdes entre duas nacdes 2 eee eee Europa 22.430 000 21 973 700 América 459 300 929500 Africa 8376 200 29.800 Oriente Madio 10.986 700 783 800, Asia 16639 700 5472800 2 ee De todo modo, é dificil dar crédito a extrapolacdes como a de N. Cousins que, a partir de estatisticas do género, afirma que, de 3 600 a.C. até hoje, cerca de 14 500 guerras teriam feito aproximadamente 3,5 bilhies de vitimas (mais do que a populagdo do mundo em 1965). Outras comparacées estatisticas podem ser feitas. P, Sorokin tragou 0 quadro reproduzido abaixo’ das vitimas das guerras em eS Forgas Século Vitimas —Populagdo. yp imragag civis sec mm a 22035 150 401000000 60425000 340575 000 1 xix 3645620 298000000 24333800 213.666 200 xvi 4505990 135000000 31055500 103 944 500 XvIl 3711090 100000000 25796000 74 204 000 Ee -— 20_a viouencta nove paises europeus (Austria, Franga, Inglaterra, Ruissia, Polonia, Espanha, Itélia, Holanda e Alemanha) entre 1601 e 1925, com rela. $80 a0 tamanho da populacdo e importancia das Forgas Armadas. Scjam quais forem as incertezas manifestas desses mimeros, 0 que choca evidentemente ¢ a mudanga de escaia no século XX. Tal evolu- sao € confirmada pela estatistica das guerras mais mortiferas até 1965 ee Portanto a guerra do Vietna e aquela entre o Iraque e 0 Ira): eee Segunda Guerra Mundial 15 milndes Primeira Guerra Mundial 9 Guerra da Coréia 2 Guerra sino-japonesa 125 Russia-Turquia (1877-1878) 285.000 Guerra da Criméia (1853-1856) 264 000 Franca-Prussia (1870) 187 500 RussiaTurquia (1828-1829) 130 000 Russia-Japao (1904-1905) 130.000 Paragual-Bolivia (1932-1935) 190.000 eee (De maneira geral, as guerras contemporaneas sio mais morti- }feras ¢ implicam mais os civis, ao mesmo tempo que mobilizam mais \'as populacdes. Entretanto elas parecem separadas por maiores perio- 1 dos de calma, Em contrapartida as guerras antigas parecem mais nu- | Merosas € menos terriveis, 7 —__Avioléncia militar depende de modo decisive dos meios de des- truicdo disponiveis, da organizaga das forcas em presenca ¢ da lo- gistica. Tais fatores também estao ligados as possibilidades financei- ras, Como afirmava F. Engels em 1890, ‘‘atualmente, a violéncia sio © Exército ¢ a esquadra de guerra e ambos custam um dinheiro lou- £0, como todos nés sabemos, as nossas custas’”*. O recrutamento e amanutengao de um soldado do século XVII ou XVIII custavam ca~ ro ¢ as batalhias em linha eram mortiferas (em 1758, em Zorndorf, © Exército russo perdeu 42 000 homens, a metade de seus efetivos, numa batalha®). Dai as manobras, destinadas a evitar a batalha, ¢ a guerra de usura que visam obrigar o inimigo a gastar suas provi- sdes. A Revolugdo Francesa, com o decreto de alistamento em massa de 1793, inaugura uma guerra total : R. Leckie"? conta sete mudancas que conduzem A guerra mo- jerna: HISTORIA E SOCIOLOGIA DA VIOLENCIA _21 — 0 alistamento que a partir da Revolugdo Francesa instaura a guer- ra de massa; — a revolugdo industrial, gragas a qual, a partir dos anos 1860, as armas e os meios de comunica¢4o e transporte tornam-se mais eficazes; — a revolugao da gestéo que aplica as técnicas de administragdo efi- cazes a guerra. Comeca a guerra dos Estados-maiores, longe da frente, que fazem as contas dos meios ¢ do material; — a revolugdo mecdnica do tanque e do avido: os engenhos mecani- cos tornam a-guerra fluida e mével e estendem o campo de bata- Iha a todo o'espago; — a revolugdo cientifica que, a partir da Segunda Guerra Mundial, multiplica a inovagdo em matéria de armamento cada vez mais so- fisticado. Os combatentes da guerra de 1870 terminaram a guerra com o mesmo fuzil, mas ndo os da Segunda Guerra Mundial; — aetapa das guerras subversivas localizadas sob 0 guarda-chuva da dissuaséo nuclear atomiza os conflitos; — finalmente, a revolucao dos meios eletrénicos ¢ informaticos nas comunicagdes, na conducao ¢ na automatizagdo dos processos aperfeigoa tanto as possibilidades de devastago quanto de neu- tralizagdo. Nao € facil avaliar os graus comparados de crueldade das guer- ras. O emprego do terror e da crueldade parece uma pratica constan- te ea elaboragao de leis de guerra ou de acordos como o de Genebra ndo parece modificar consideravelmente a situagao. Embora ndo se liquide mais os prisioneiros (bocas intiteis e, de novo, inimigos em potencial), os campos de detencdo nao sdo menos duros ¢ os casos de sevicias e de torturas ndo desapareceram. A Segunda Guerra Mun- dial viu se multiplicarem os massacres de prisioneiros e de ndo- combatentes. © ‘que muda sio a extensio da implicacdo da popula- cdo e sua vulnerabilidade. Durante uma guerra como a dos Trinta Anos no século XVII, os exércitos devastaram os paises trazendo epi- demias ¢ a fome. Em 1618, 0 Império da Alemanha contava com 21 milhdes de habitantes, e em 1648 apenas 13,5. Em 1632, a batalha de Nuremberg parece ter sido ganha principalmente pelo tifo e pela variola, que mataram 18 000 soldados. Os meios de destrui¢ao eram limitados, mas 0s de socorros, de higiene e de aprovisionamento tam- bém, Na época contempordnea a tecnologia é mais destrutiva, mas 05 meios de protegao ¢ de abastecimento s4o mais desenvolvidos. As guetras so ao mesmo tempo menos fregiientes e mais mortiferas, 2_AvIOLENcIA enquanto as guerras do passado se caracterizavam principalmente por suas devastacdes indiretas. avaliacdes precisas. Também é pre- ciso distinguir entre fenémenos diferentes, embora tais disting6es pos- sam parecer artificiais, Uma classificacao aceitavel consiste em distinguir entre violén- . cia politica difusa (rixas, motins esponténeos, revoltas), violencia anti- poder “de baixo”” (levantes e revolugdes), violéncia do poder *de ci- ma” (manutencdo da ordem, repressdo, terror, tirania, golpes, ‘putschs), terrorismo, e finalmente violéncia relativa ao desmorona- mento da comunidade politica (guerras civis). Tais distingdes visam, antes de tudo, a clareza; na verdade, as situagdes politicas reais véem essas formas se misturarem 1. A violéncia sociopolitica difusa — Ela cobre comportamen- { tos como as rixas, as rivalidades entre grupos, seitas, comunidades \, de aldeias, as batalhas entre corporagées, as insurreigdes pelo pio e | contra a carestia, sem esquecer a pilhagem e o banditismo. Trata-se de uma violéncia primitiva que permanece local, pouco organizada € bastante espontinea. Autores como Y. M. Bercé "! mostraram que esse tipo de violéncia domina até o final do século XVIII. Em socie- dades sem meios de comunicacao rapidos, onde a préséiica policial € reduzida e pouco eficaz, movimentos de multidao, insurreigdes agré- rias, manifestac&es contra 0 imposto ou contra os funciondrios do poder central levam muito tempo até se tornarem conhecidos — quan- do 0 conseguem — ¢ raramente chegam a se coordenar e a adquirir amplitude. Os Croquants do final do século XVI e do século XVII na Aquiténia, os Va-Nu-Pieds normandos de 1639, as revoltas na Ca- talunha, na Sufga, em Népoles no século XVII sao explosdes da mi- séria ou exprimem violentamente a recusa da modernizacdo estatal ¢do imposto. Deles encontramos eco nas modernas manifestagdes de agricultores e viticultores da Franga. Tais movimentos nao deixam tragos e ndo suscitam a reorganizagao do poder. Seus estragos sao paroxisticos, mas limitados. Eles atestam sobretudo o estado de so- ciedades onde o recurso coletivo a violéncia ainda nao esté excluido, onde a violéncia ainda nao ¢ monopélio do Estado mas permanece | um elemento normal da vida social e politica: “A histéria das antigas HISTORIA E SOCIOLOGIA DA VIOLENCIA 23 —_____tisronia & soctonoaia pa vioutncia 23 violéncias politicas rio pode ser encarada como uma colegdo de fa- tos excepcionais. Elas néo podem ser confundidas com, digamos, as revolugdes do século XIX gue irrompiam no jogo corrente das inst tuigdese vinham trazer uma subversio dos governos, O recurso cole- tivo a violéncia era muito freqiiente. Ele decorria da autodefesa dos habitantes constantemente armados, das tradigdes de escaramucas, da endemia guerreira de certos confins, ou ent&o das condig6es privi- legiadas de determinadas pessoas ow provincias etc. A violencia poli- tica era uma instancia possivel, um recurso extremo mas ainda legit \ mo ¢ sem diivida bem distante de qualquer idéia ou chance de sub- | verso. Essas justificagdes e banalizagdes da revolta iam durar en- | quanto o Estado nao estivesse em condigées de pacificar as relagdes 'sociais de confiscar para si mesmo o emprego da forca’”?. 2.As ia contra o poder ow violéncia de baixo — Diferen- temente. da precedente,.esta visa uma reorganizacéo do poder. Ela as sublevagSes_e das revolucdes, ¢ também dos golpes de Esta- dos.e. putschs. As revolucdes inglesas de 1642 € depois, de 1688; a Revolugio Francesa de 1789, as jornadas revolucionarias francesas ao longo de todo o século XIX, a Revolugio Russa de 1917 sao seus exemplos mais conhecidos, mas os imimeros golpes de Estado con- tempordneos na Africa ou na América Latina também sao parte de- la, assim como os motins, greves violéntas, conflitos politicos que se inscrevem numa perspectiva de confronto politico pelo poder. Duas séries de condigdes so necessérias: € preciso que exista (€ seja identificado como tal) um poder central em condigdes de ser ocupado por grupos com idéias, projetos e interesses antagGnicos. Por outro lado, é preciso que grupos conscientes proponham: projetos ge- rais, relativos & organizagao da sociedade, do poder politico e do Es- tado. Mitos fundadores de.origem religiosa como. milenarismo, ra~ dicalismo religigso da Reforma, messianismos religiosos.seculariza- dos.sob a forma.de ideal revaluciondrio ou projetos politicos racio- nalizados como_os do.contrato social, da igualdade politica, do cialismo motores dessa violéncia que ¢ ‘‘modérna”’, por opo- sigao A violéncia difusa da autodefesa das comunidades. Diante de si ela encontra a organizagao crescente do Estado, sua apropriacaio cada vez maior da violéncia legitima, bem como os mecanismos de Titualizagao dos conflitos que amortecem a competi¢ao pelo poder. Na evolucdo histérica, 0 que choca é a organizagdo e a racionaliza- so crescentes dessas formas de violéncia bem como sua ritualizacao cada vez mais abrangente, Estudada por Charles Tilly’? ou E. J. Hobsbawm'*, a historia das democracias ocidentais ilustra bem tais processos. Como subli- nha Charles Tilly, ‘a histéria ocidental depois de 1800 é uma histé- ria violenta, cheia de revolugdes, de golpes de Estado, de guerras ci- vis ¢ absolutamente constelada de conflitos em menor escala""!S. Co- mo na historia da Inglaterra vitoriana, pode-se falar aqui de uma dia- \ética da reforma e da violéncia. Assim, na Franga, é preciso lembrar nao sé as jornadas revolu- cionérias de 1830 ¢ 1848, a Comuna de Paris em 1871, mas também © movimento anarquista do final dos anos 1880, as insurreigdes dos viticultores de 1907, as greves violentas de Lyon em 1831 ¢ 1834, de La Ricamarie em 1869, da Alsdcia em 1870, os tumultos de 1890, 1906, 1919-20, 1936, 1947, 1968. Eis 0 quadro dos acontecimentos violentos que colocam em jo- g0 pelo menos um grupo de mais de 50 pessoas na Franga durante 05 periodos 1830-1860 e 1930-1960 estabelecido por Charles Tilly apés pesquisa em dois jornais nacionais!*. Os periodos de relativa calma entre 1850-1860 e 1940-1950 so evidentemente devidos a extrema repressdo do Segundo Império e do periodo da ocupagao alema. Como observa Tilly, apesar da urbani- zaco, da industrializacdo e da modernizagdo, a Franga no se tor- nou um pais mais calmo. hee Ne de Ne de par- ” Ne de grupos por —_ticipantes Penrodo: acontec grupos acontec = (em milha menioe mento res) 1890-1839 259 565 22 293 1840-1849 292 738 25 511 1850-1860 114 258 23 106 1930-1939 333 808 28 737 1940-1949 93 248 26 228 1950-1960 302 637 24 664 Examinando 05 tipos de formacdes em causa, Tilly estabelece © seguinte quadro, em porcentagens '7: HISTORIA E SOCIOLOGIA DA VIOLENCIA_25 1830. 7840- 1850-1930. 1940-1950 Mike de.grupe. 1838 184918601939 19491980 Multidao simples ne Multidao organizada 17,5 104 323 © 48,3 «21,9 -35,2 Militares. my 7 ee Policia * 109 «1692452429 31,8 Funcionarios 35 60430378 Grupo detrabaiho 17,017,347 146249 17,7 Usuarios de um * mesmo local 25 44 19 07 000 Outros W747 8283128105 Total 10,1 100,1 100,0 10,0 10,0 100,1 ‘Como se pode constatar, assiste-se ao progressivo desapareci- mento das multidées espontdneas ou procedentes de uma comunida- de sem identidade afirmada nem objetivo claramente politico em be- neficio de grupos definidos profissional e politicamente, sustentando posigdes determinadas. Ao mesmo tempo, a responsabilidade do con- trole e da repressao passa das Forgas Armadas para a policia, A defi- nigéio mais precisa dos manifestantes corresponde a da forga repres- siva, Se a violéncia politica é mais organizada, a repressdo torna-se mais seletiva e mais adaptada. Vamos encontrar essa tendéncia para a especializagio e para a profissionalizagdo na questo do terrorismo. Deste ponto de vista, o que € necessario é uma histéria do sur- gimento ¢ do desenvolvimento das forcas policiais. Embora Paris tenha tido wm tenente de policia jd em marco de 1667, cuja responsabilidade passou para as maos do prefeito de Paris 16 de julho de 1789, a idéia da Policia como um grande servigo de | manutencdo da ordem é um produto do século XIX. O primeiro cor- , Po de agentes fardados parisiense data de margo de 1829. Os “‘gar- diens de la paix” néo armados foram instituidos em marco de 1848 ¢ foi o Segundo Império que organizou metodicamente as forcas poli- ciais (decretos de outubro de 1854). Em. 1872 havia em Paris 6 000 “‘gar- diens de la paix’, Na Inglaterra a evolugdo foi similar. Em face da agitagdo operdria que desembocou no massacre de Peterloo em 1819, diante também da inseguranga das cidades, foi preciso considerar a cria- do de uma policia moderna, mas a resisténcia a tais projetos foi for- te, por causa dos maus exemplos das policias napolednica e prussia- 26 _AVIOLENCIA, na: “E dificil conciliar um sistema de policia eficiente com essa per- feita liberdade de ago ¢ a auséncia de interferéncia que sio os gran- des privilégios ¢ bens da sociedade neste pais. E vosso comité estima que o desaparecimento de tais vantagens seria um sacrificio grande demais em relaco ao progresso na policia e nas possibilidades de de- tectar o crime’’."? Na verdade, 0 volume e as formas da violéncia voltada contra © poder dependem de fatores variados, e entre eles, em primeiro lu- ‘gar, da organizacdo dos poderes e do grau de severidade da repres- sio. Deste ponto de vista os regimes democraticos so mais vulnerd- veis que os regimes autoritarios ou totalitarios cujas forcas de manu- tengao da ordem sao hipertrofiadas e, a violéncia repressiva, dissua- siva. Amitide as tiranias sangrentas escapam de qualquer questiona- mento através da violéncia. Também intervém o grau de tolerancia da sociedade diante da violéncia como meio de aco politica — 0 que os especialistas denominam a facilitacdo social. Assim, a Franca, por oposigao as democracias mais comprometidas com comportamentos legalistas, é um pais onde um alto nivel de contestag&o violenta é co- mumente admitido, Também seria preciso considerar fatores como a densidade dos centros de poder (no caso dos golpes de Estado ¢ putschs) e sua proximidade com relagao aos cidadaos, os graus da consciéncia coletiva e, evidentemente, o estado das técnicas de des- truigdo e de comunicagio. Quando o potencial de destruicdo e de neu- tralizagdo miituas progride, esboca-se um movimento de ritualizacao dos conflitos: os confrontos violentos sdo substituidos por demons- tragdes de forca € manifestagdes 3. A violéncia do poder ou violéncia de cima — Trata-se da vio- Jencia acionada para estabelecer 0 poder politico, manté-lo ¢ fazé-lo funcionar. Como 0 Estado é um aparelho estruturado ¢ diferenciado de organizagio da vida social e de gestao da vida politica, a idéia de violencia do poder é mais ampla que a de violéncia do Estado. A) As formas despéticas e tirdnicas do poder politico — Elas sfo tdo antigas que foram muito cedo estudadas pelos pensadores po- liticos. Em sua Politica, Aristételes denomina tirania a monarquia absohita — eventualmente fundada sobre 0 consentimento dos stidi- tos —, na qual o poder absoluto se exerce sem responsabilidade e no interesse exclusivo do tirano. Os tiranos se mantém por meios que podemos chamar de terroristas: a represséo contra os homens supe- riores, a liquidagéo dos homens generosos,.a proibicdo das reunides, a limitagdo das associagdes ¢ da instrugdo, a introducao da descon- HISTORIA £ SOCIOLOGIA DA VIOLENCIA 27 fianga entre 0s cidadaos e 0 quase desaparecimento da vida privada. “Aristoteles resume essa politica terrorista nos trés temas do aviltamento dos cidados, da desconfianga entre eles e da impossibilidade de agin’. A seus olhos, a tirania ¢ 0 resultado de um desequilibrio da monar- quia (¢ nfo 0 defeito dos erros exacerbados do regime democratico como afirmava Platao na Repiiblica). O rei ouo principe ja nao cum- prem mais os deveres que t8m para com seus stiditos ou para com leis divinas, E maximo de arbitrariedade ¢ também de violéncia. Tal conceppao da tirania e do despotismo se transmite da Anti- guidade até o século XVIII. Dela encontramos eco numa autora con- temporanea comd H, Arendt. Ela atesta que a idéia de um contrato entre o soberano € seus stiditos nunca esteve inteiramente ausente do pensamento politico, mesmo quando a obedigncia era o primeiro prin- cipio da vida politica. A rica literatura que justifica o tiranicidio, desde 0 Vindiciae Contra Tyrannos (Vingangas contra os tiranos) de Du- plessis Mornay contra Carlos IX em 1579, apds 0 massacre da Noite de Sao Bartolomeu, até o Killing 0 Murder (Matar nao é um crime) de Edward Saxby contra Cromwell em 1651, dela tira os seus areu- mentos. ‘No entanto.a titania permanece um fenémeno préprio das pe- s comunidades: o tirano faz imperar 0 terror no circulo restrito de seus préximos ow de sua corte, certificando-se do apoio do povo 5 através das medidas demagégicas. Unta vez ultrapassados esses cir- culos, 0 aparelho do terror se manifesta através das intervenes a0 mesmo tempo espetaculares ¢ intermitentes — suplicios ¢ execucdes capitais. Assim, a tirania tem como contrapartida a relativa autono- mia daqueles que tém a chance de permanecer distantes dos centros de poder. Em muitos aspectos, as coisas no mudaram até hoje, se- néo no tocante ao poderio do aparelho de Estado e A eficiéncia dos meios de comunicagdo: continua sendo possivel sobreviver a tirania desde que se aceite a passividade politica ¢ a despolitizacao. B) A repress — Aos desafios e revoltas, 0 poder responde com negociagdes, concessdes € repressao. Nas sociedades que conhecemos estamos habituados & aco répida das forcas de manutengao da or- dem especializadas e diversificadas. Nem sempre foi assim. © sobera- no ou seus representantes nas provincias tinham & sua disposicdo guar- das e gente armada, Os prefeitos das cidades podiam apelar para mili- cias burguesas. Em ultimo caso, era preciso fazer intervir o Exército. Quando a revolta era passageira, ritual ow endémica, a repres- sao também tinha os seus rites. O poder castigava os lideres e prati- 2 _AVIOLENCIA cava uma anjstia bastante ampla com relagao aos outros participan- tes. Mas, principalmente, a repressio dirigia-se a um corpo coletivo impondo a ele encargos ou contribuigdes excepcionais, dele retiran- do honras e privilégios. Assim, apds sua revolta de 1542, a cidade de La Rochelle perdeu suas magistraturas comunais, ¢ depois, apés a de 1628, perdeu suas muralhas, seus privilégios e dignidades?!, Quando a revolta assume uma amplitude que chega a ameagart 0 Estado, a repressao torna-se feroz e extensa, As guerras campone- sas dos séculos XVII ¢ XVIII na Europa terminaram com represses terriveis. Na Riissia, a revolta cossaca de Razin, iniciada em 1666, foi esmagada em 1671 de modo mais Sangrento que a revolta de Pu- gatchev, um século depois (1773-1774): a represstio durou varios me- ses e fez dezenas de mithares de vitimas*?. A intensidade e a ferocidade da repressio esto na verdade li- gadas vontade do Estado de afirmar sua supremacia e seu monopé- lio do poder. Nesse sentido, a ascenso do Estado moderno desde final da Idade Média se fez através da destruigao dos particularismos ¢ da organizagao brutal da vida social: ‘tam 08 principais simbolos do Estado moderno’*, Para reservar pa- ra si o monopdlio da violéncia legitima o Estado teve de destruir os Particularismos regionais, acabar com minorias religiosas, estabele- cer novas formas de organizacao do trabalho e da vida social. Assim, {no reinado de Henrique VIII (1509-1547), o poder real decidiu con- trolar a multidéo dos vagabundos lancada nas estradas pelo movi- mento dos enclosures. Um édito de 1530 prevé a pena do chicote pa- ra todo vagabundo preso; em 1547, as penas tornam-se mais severas: um ano de servidao para a primeira detencdo, servidao perpétua pa- ra a segunda, forca para a terceira, C) O terror — O terror pelo chicote e pelo suplicio assume ou- tras dimensdes quando se trata nao mais de estabelecer o Estado mas de renovar a sociedade. O Terror de 1793-1794 durante a Revolucao Francesa fornece um primeiro exemplo. Até a instauragio do Comité de Salvagao Publica no vero de 1793, a repressdo revoluciondria havia sido uma mistura de justiga suméria (durante os massacres revolucionarios de 1792, por exemplo) com processos regulares, como 0 que levou & execugao de Luis XVI. Em face do perigo interno da revolta federalista e externo dos exérci- tos estrangeiros, diante ainda das reivindicagdes maximalistas dos Sans-Culottes parisienses, a Convengao decidiu colocar o Terror na ordem do dia de modo a intimidar os opositores e a castigé-los rapi- “O chicote e'o patibulo fo-~ HISTORIA E SOCIOLOGIA DA VIOLENCIA 29 da e duramente. O Comité de Seguranga Geral é 0 instrumento poli- cial desse Terror 05 tribunais revolucionérios o seu érgao judici rio. Os grandes processos politicos comecaram em outubro de 1793. Uma primeira onda prosseguiu até 0 inicio de 1794, Depois, apesar da oposi¢ao dos Indulgentes (Danton), comecou uma nova fase de fevereiro de 1794 até a queda de Robespierre. Danton e os Indulgen- tes foram liquidados em margo de 1794. A partir de junho desse ano 0 movimento se acelerou: 0 procedimento dos tribunais foi simplifi- cado (abolicao do interrogatério antes do processo, as provas apenas morais so consideradas suficientes, as sentengas resumem-se a liber- dade ou a morte), generalizam-se os amalgamas de acusados sem re- lagGes entre si. Contando as execug6es sem julgamento, o nimero de mortos gira em torno de 35 000-40 000. Foram presos entre 100 000 € 300 000 suspeitos. Os tribunais revolucionarios pronunciaram 17 000 condenagdes a morte. De outubro de 1793 a junho de 1794, foram pronunciadas 11 000'sentencas e em junho e julho de 1794, 2 600. 16% das condenagdes ocorreram em Paris e 51% nas regides em se- cessdo. 71% dos condenados pertenciam ao terceiro-estado, 8,5% & nobreza ¢ 6,5% ao clero. 0 Terror revoluciondtio tinha sido concebido por seus partida- tios como um instrumento de defesa interna e externa, e permitia, ainda, impor medidas econémicas radicais e a centralizagao jacobi- na; quando as circunstncias sio tais que a virtude nao é mais sufi- ciente, 0 terror torna-se a forga coatora que faz a unidade revolucio- naria ¢ defende a revolugdo contra seus inimigos. Apesar de sua esca- la reduzida, a experiéncia terrorista da Revolugdo Francesa manifes- ta todas as caracteristicas que iriam surgir depois: a pratica do amal- gama, a justica expeditiva, a definigdo muito ampla de categorias de suspeitos, a continua depuracdo do corpo social e dos préprios gru- pos dirigentes. No século XX 0 terror soviético apresenta todas estas caracte- risticas em escala inigualavel. Da revolugdo de 1917 a 1921 desenrola-se um primeiro periodo de luta contra os grupos contra-revolucionarios (os exércitos brancos, os socialistas, a burguesia) que corresponde & etapa “normal”? de instauracao de um novo poder. A partir de 1927-1928, tornam-se alvo os inimigos de classe, aqueles a quem si0 atribuidos os fracassos do novo regime (os funcionarios , os campo- neses contrérios & coletivizacao). A partir de 1934, a ameaga stalinis- ta visa a sociedade toda através dos expurgos, dos processos comuns e dos grandes processos politicos. O corpo politico é incessantemente an _Avronencia agitado e remodelado pelos processos terroristas. O cruzamento dos dados eo estudo das anomalias das estatfsticas demograficas soviéti- cas permitem fazer um balanco aproximado: “As execugdes néo fo- ram inferiores a um milhao. A populagio dos campos (0 Gulag) manteve-se permanentemente entre 8 € 15 milhdes de zeks. A porcen- tagem das mortes nos campos era de cerca de 10% ao ano; admitin- do portanto que a populac&o dos campos tenha sido em média de 8 milhdes de pessoas durante todo o perfodo que se estende de 1936 a 1950 ¢ que a taxa anual de mortalidade tenha sido de 10%, 0 total das mortes se elevaria a 12 milhdes. A esta cifra convém acrescentar um milho de execugdes, estimativa bastante moderada. Finalmente, também é preciso contabilizar as perdas registradas durante o perio- do anterior a Yejovtchina, isto é, 3 055 000 individuos exterminados durante a coletivizagdo e um mesmo mimero de camponeses e kulaks enviados aos campos ¢ que morreram no ano seguinte. Obtemos as- sim um balanco de 20 milhdes de mortos e, sem exagero, poderfamos aumentar 0 débito do regime de Stalin em 50%, para um perfodo que cobre quase um quarto de século’””*, Os trés volumes do Arquipéla- go do Gulag de Soljenitsin fornecem informagdes ainda mais pessi- mistas. De maneira geral, essas empresas de terror so caracterizadas pela instauracdo de jurisdicdes de excecdo que pronunciam uma jus- tiga expeditiva e caricatural, pela hipertrofia da drea de ago policial que se torna um Estado dentro do Estado (prisdes preventivas, se- gilestros, detencdes arbitrérias, desaparecimentos) e pela extrema ge- neralidade da ameaca que pode atingir qualquer cidadao em qualquer circunstancia. Assim, no Terror revoluciondrio eram definidos como suspeitos os parentes de emigrados, a menos que tivessem manifesta- do sua fidelidade & Revolucdo, todos os que no tinham conseguido um certificado de civismo, os funcionarios suspensos ou demitidos, todos os que por sua conduta ou suas relacdes, por suas declaragdes, ou seus escritos haviam se mostrado partidérios da tirania ou do fe~ deralismo e inimigos da liberdade, todos os que nao podiam justifi- car seus meios de subsisténcia. Do mesmo modo, o primeiro paré- grafo do artigo ‘“de omnideteneao”’ n? $8 do Cédigo Penal soviético de 1926 reza que ‘*é contra-revoluciondria toda aco que tende a en- fraquecer 0 poder"’. Evidentemente, a diferenca consiste nos:meios do terror con- | temporaneo: esquadrinhamento da sociedade, organizacao da dela- do © promogdo de uma industria de eliminacao dos adversirios HISTORIA © SOCIOLOGIA DA VIOLENCIA 31 (policias, transportes, campos, trabalhos forgados) — como anteci- pou G. Orwell em 1984. 4. O terrorismo — O desenvolvimento recente ¢ espetacular do terrorismo parece ter introduzido uma dimensao inédita no Ambito dos comportamentos politicos. Mas a novidade nao é total. Como foi sugerido (ver seco 3a), 0 tiranicidio é, em muitos aspectos, a for- ma mais antiga do terrorismo, pois ele se propde uma mudanca radi- cal de poder através de um ato também radical. Se o terrorismo con- siste no assassinato sistematico dos inimigos politicos, com um obje- tivo de intimidagao pelo terror, encontramos exemplos muito anti- 05 nos Sicdrios da revolta dos Zelotas, em 66-73 a.D. que, naciona- listas, extremistas e anti-romanos, assassinavam os judeus modera- dos, mas que amitide também nao passavam de meros ladrdes; evi- dentemente devemos citar ainda os Assassinos dos séculos XI ao XIII que, na Siria, matavam governadores, califas, representantes do po- der central ¢ que tentaram matar Saladino. Sem remontar até essas seitas terroristas, as origens do terrorismo moderno devem ser situa- das no século XIX. E 0 século dos tedricos da conspiracao e do golpe de Estado como Buonarotti, Blanqui e depois Bakunin e Netchaev Além disso, na segunda metade desse século multiplicam-se os movi- mentos € 0s atentados terroristas e anarquistas, Na Ruissia, ¢ 0 terro- rismo de Narodnaya Volya em 1878-1881 e depois o dos social- revoluciondrios, de 1902 a 1911. E 0 terrorismo das minorias irlande- sa, maced6nia, sérvia, arménia, o dos grupos operarios anarquistas na Franga, nos Estados Unidos ou na Espanha. Essa onda de terror toma a profissao real uma das mais perigosas. Em 1878, € 0 atentado de Vera Sassulitch contra 0 chefe de policia Trepov. No mesmo ano Guilherme I, Afonso XII, o rei Humberto da Italia so vitimas de atentados que fracassam. Em 1879, Alexandre Il escapa de dois aten- tados, ¢ 0 mesmo se repete em 1880; mas acaba sendo morto em 1881, no mesmo ano em que o presidente americano Garfield, Em 1882 ¢ a vez da rainha Vitoria escapar da morte. Em 1887, hd dois complés contra Alexandre III. Os anos 1880-1894 so 0s dos grupos anarquis- tas na Franca ¢ em 1894 o presidente Sadi Carnot é morto por Case- rio, Em 1898 a imperatriz Elizabeth da Austria é assassinada, em 1900, o rei Humberto da Itdlia. Em 1900-1901 sao realizados dois atenta- dos contra Guilherme II da Alemanha. Em 1901 0 presidente ameri- cano McKinley é assassinado por um anarquista, Em 1912 ha um no- vo atentado contra Afonso XII. Em 1908 o rei de Portugal Carlos 1éassassinado e em 1912 Vitor-Emanuel III da Italia é vitima de um 22 _avioLencta atentado. Por sua vez, os atentados por explosivo séo muito nume- rosos: em 1892, foram $00 nos Estados Unidos e mais de 1 000 em toda a Europa. Tal florescimento do terrorismo as vezes ¢ explicado por uma tradigao do banditismo herdico (Sérvia, Macedonia, Arménia), dos restos do romantismo assassino no estilo Lacenaire (como por exem- plo em Ravachol ou Emile Henry), ¢ mais freqiientemente por uma concepséo mecanica da tomada do poder, uma constatagao ativista que uma vanguarda esclarecida faz do atraso das massas em sua to- mada de consciéncia politica; intervém ainda as novas possibilidades técnicas, particularmente em matéria de explosivos e de armas de mao, Pensando que o Estado encontra-se cortado das raizes da sociedade, os terroristas concluem ser possivel o seu aniquilamento automatico através do desaparecimento daqueles que o dirigem. Freqiientemente préximo de uma concepgdo da guerrilha urbana, o terrorismo con- temporaneo nem sempre escapou dessa maneira de pensar, buscando tornar-se o elo de ligagdo de uma vanguarda consciente e organizada junto as massas que ele deve sensibilizar. Em contrapartida, a manei- ra pela qual tornou-se um instrumento de politica internacional in- troduz um elemento novo sobre o qual voltaremos. 5. As guerras civis —As guerras civis sao palco de violéncias que ultrapassam todos os limites: torturas, execugdes sumérias, expurgos, taigdes manifestam uma espécie de hipervioléncia caracteristica de situagdes em que o desmoronamento da comunidade politica deixa 0s adversarios sem convencaio comum: “Essa transgresséo ocorre du- rante as fases.de mudanga social rpida nas. quais so destruidos os mecanismos tradicionais do controle social que contém.a anarquia destruidora”’ ?5. E essa hipervioléncia que encontramos na crueldade da Violencia colombiana (ver cap. I, segao IID), ¢ hoje nos conflitos internos da América Central (El Salvador, Guatemala). Tueidides, no livro III da Guerra do Peloponeso, descreve a mesma situago quan- do fala da guerra civil que devastou Corciro em 427 a.C.: € 56 trai- $0es, incertezas, desconfianca entre os grupos, excessos respondendo a excessos, até mesmo antecipando-os para se prevenir. O desapare- cimento de qualquer acordo é tal que até as palavras no tém mais sentido, é “o confronto de espiritos desafiadores”: “Nao havia pa- lavra que tivesse valor nem juramento que fosse terrivel — avaliando através do céleulo a incerteza das garantias, os mais fortes sempre procuravam se prevenit, em vez de chegar a confiar” (liv. II, segao 82-83). Nao se trata apenas de um alto nivel de violéacia mas da trans- HISTORIA E SOCIOLOGIA DA MIOLENCIA_33 gressdo generalizada que resulta do desmoronamento de todos os fun- damentos da comunidade: ¢ a guerra de todos contra todos no Esta- do de natureza, segundo Hobbes, que insiste sobre a absoluta impte- visibilidade das interagGes num mundo que a lei comum do Leviata niio rege. IV. A criminalidade Atuaimente a maioria das consideragdes sobre a violéncia se concentra na crimi- nalidade, cujo aumento quer denunciar. Mas essa progressdo da vio- léncia criminal ndo foi provada e o que se assiste é, em vez, uma pa- cificagdo progressiva da sociedade; admitindo-se ou néo, os costu- mes se civilizaram. O,fato-de.a.opiniao publica preocupar-se com uma crescente inseguranca nda tem entretanto nada a ver com o volume efetivo da criminalidade, mas sim com as.normas a partir das quais sdo,concebidos os fendmenos criminosos. Ao contrério das socieda- des do pasado, as nossas esto habituadas a uma seguranca cada vez maior, que nao depende sé dos numeros da criminalidade, mas tam- bem ¢ até mais da organizagdo dos seguros ¢ da previdéncia social, da homogeneidade de um espaco de livre circulagao, da regulagao de :miiltiplos aspectos da vida através do Estado. Sobre o pano de fundo de wma seguranga crescente — e invasora —, os comportamieritos cri- minosos so percebidos-com‘uma ansiedade desproporcionial' em re- Jago ao seu volume real, No entanto isso nao significa que’ mudan- ga das normas possa ser subestimada. Do ponto de vista histérico é dificil dispor de informagdes quan- titativas certas sobre um pasado distante, mas nossa ignordncia nao € total; em todo caso, tudo o que sabemos vai na mesma direcéo: a violéncia é a marca registrada de periodos inteiros do passado. Tomemos a Idade Média ¢ 0 inicio dos Tempos Modernos; os mais sérios historiadores (Marc Bloch, Georges Duby, Robert Man- Grou, Jacques Le Goff) so unanimes em reconhecer a inseguranca da vida ¢ a onipresenga da violencia nias relagdes humanas. As pes. quisas sobre a vida criminosa confirmam essa visdo. Assim, em An- vers, durante a segunda metadé do século XLV, os registros de crimes atestam a freqiiéncia das brigas e das rixas violentas e mortais*®. Alias, 9s roubos sio temidos quase tanto quanto as violéncias fisicas. Em Genebra, em 1562, em 197 delitos e crimes, hd 20% de roubos, 20% de relagdes extraconjugais, 11% de infragdes:profissionais e 11% de M_AvioLeNctA brigas. Em Paris, em junho de 1488, de uma centena de pessoas pre- sas em uma semana, a metade o foi por violéncias fisicas, 13% por | Toubo e 12% por dividas’’. Os criminosos se associam em bandos que vao dos bandos de ladrdes mitidos aos dos bandidos organizados. Eles so recrutados entre os ex-soldados, os estudantes que romperam com a universidade, os vagabundos. As legislagdes repressivas contra os vagabundos (cf. abaixo III, 3, b) s4o particularmente destinadas a vigiar e controlar esse meio criminégeno. A criminalidade urbana es- {4 ligada a brutalidade da vida, & pobreza e as caréncias, e também se deve a marginalizacao dos grupos desenraizados pelas transforma- Ges agrarias, as catdstrofes naturais e as epidemias. Os individuos perambulam e buscam as cidades e a comunidade rural no pode mais assegurar sua propria regulagao da violencia e da delingiténcia, Mesmo em perfodos mais recentes, os estudos confitmam um alto nivel de violencia criminosa e de brutalidade, particularmente nas ¢idades onde a populacdo é pobre e constituida em parte por migran- es € pessoas sem domicflio fixo. As violéncias fisicas ¢ 0 roubo so 4 que ha de mais corrente na criminalidade, A. Farge escreve, a respeito da vida em Paris na segunda meta- de do século XVIII: **A violéncia da rua espanta nossas sensibilida- des modernas. Os relatérios dos médicos e dos cirurgides de Chatelet encarregados de examinar os ferimentos e de prescrever os cuidados necessarios nos informam sobre a gravidade dos ataques. Para ata- car, vale tudo: utensilios cortantes, garrafas, banquinhos de madei- ra, podadeiras, cacarolas e caldeirdes, garfos de assadeiras. Tanto os objetos como os gestos da violéncia espelham as condigdes de vida. A agressio ¢ simplesmente uma resposta a outra violencia, a dos tem- pos’’”*, E uma violéncia dos pobres entre si: violéncia nos mercados, no trabalho (entre operdrios, entre mestres e aprendizes, entre mes- \ tfes e empregados), violéncia entre os cénjuges, violéncias sexuais. {no entanto a repressao permanece i Ela s6 se dirige as classes superiores através das forcas de manuten- co da ordem que so “‘o lugar limite sobre o qual se fixa a célera do pobre contra os poderosos’”*. Ocorrem entdo tumultos, choques com a policia e breves mo- tins. Por outro lado, essa criminalidade endémica ¢ essa violéncia a flor da pele se desenvolvem sem que as infragdes sejam forgosamente punidas: as fraquezas do aparelho repressivo deixam uma margem de liberdade em torno do ato criminoso. Se os castigos sao terriveis, termitente e casual: a ordem ¢ || seguranca nao so as bases da vida social. Atesta isso a simpatia HISTORIA E SOCIOLOGIA DA VIOLENCIA 35 duradoura pelo bandido. Os aparelhos de vigilancia do Estado mo- derno que comecam a ser implantados (particularmente em Paris com © desenvolvimento da policia desde o final do século XVIII) ainda nfo monopolizaram a violéncia. Tais constatagdes s4o tiradas de pesquisas nos arquivos. Um tra- balho preciso*’ fornece uma apreciacao estatistica do homicidio na Inglaterra no século XII. J. B. Given examinow os arquivos dos “Eyres” reais. Os “Byres” eram as sessdes judicidrias periddicas mantidas pela jus- tiga real nos condados. Elas tinham competéncia para todas as ages civis, os crimes ¢ também para 0 comportamento dos agentes da autoridade real. Seus arquivos sdo pormenorizados ¢ cobrem espe- cialmente bem os homicidios, cujo processo e puni¢ao eram da alca- da exclusiva da justica real. Relacionando o mimero de homicidios examinados pelos ‘Eyres’? com as avaliacdes da populacao dos con- dados, a taxa de homicidios para 100 000 habitantes pode ser calcu- lada de modo bastante satisfat6rio. Eis um quadro dessas taxas em relacdo as diversas avaliages demograficas para 0 periodo 1202- 1276, ‘Taxa de homicidio por 100 000 habitantes Em relagdo as Ne de Aaloggo Avtagso Condado ines ‘Gognen derunee) ema a we ee B Beste o 4 Kent er 18 Sorok 0 3B " ois ths Mane ee ins Vues ME Para comparacao, eis um quadro das taxas de homicidio nas diversas sociedades, em periodos diversos: 36_AMIOLENCIA A i Local Periodo Taxa —_ Gra-Bretanha 1930-1939 04 Gra-Bretanha 1940-1949 04 Gra-Bretanha 1950-1954 04 Gra-Bretanha 1956-1956 04 Gra-Bretanha 1957 od Gra-Bretanha 1958 03 Gra-Brotanha 1959 4 Estados Unidos 1974 a7 Middlesex (GB) 1580-1603 6.3 Filadéitia 1948-1952 57 Milwaukee 1948-1952 23 Miami 1948-1952 6A Italia 1951-1956 12 Japao 1951-1956 22 Franga 1951-1956 07 Belgica 1951-1956 08 Srl Lanka 1957 58 Nottinghamshire (GB) 1590-1558 3,874.8 Como se pode constatar, as taxas da Inglaterra do século XIII sao nitidamente mais altas que as de outras épocas e de outras so- ciedades. Afinando sua pesquisa, Given constata inicialmente que o ho- micidio era freqiientemente realizado por cimplices, por causa das solidariedades de familia, de vizinhanga, de ocupacao, de domestici- dade e de amizade: as rixas se transformam em batalha campal entre clas. 90% dos criminosos so homens, A maior parte deles tem sta- us social muito humilde, se julgarmos pelo valor dos bens confisca- dos: 60% néo tém nada, 17% mal possuem o valor de uma jornada de trabalho de um lavrador. Quase 85% dos criminosos nao possuem bens que Ihes permitiriam comprar um cavalo numa sociedade agré- tla onde este é condigo de independéncia — nao passam portanto de diaristas. Muitos clérigos parecem ter estado implicados nesses ca- 0s criminosos. Como atesta a taxa de homicidio extremamente alta de Oxford: 35,4 homicidios para 100 000 habitantes. Em contrapar- tida, as classes dirigentes nao sao muito implicadas: “A violéncia era um instrumento dos pobres e dos fracos. Era um modo amplamente difundido do camponis resolver seus conflitos. No essencial, os ricos £08 poderosos, embora educados numa ética que glorificava as proe- zas militares, abstinham-se das violéncias fisicas diretas entre si. OLOGIA DA VIOLENCIA_37 Com as cortes de justiga, eles dispunham de um meio eficaz para solu- cionar suas disputas’””. O estudo dos vereditos confirma que a punigao era improvavel e a violéncia vista como bastante normal ou desculpavel: © culpado permanecia desconhecido para 21% das vitimas. 27% dos acu- sados eram libertados, 41,4% postos fora da lei, o que significa que ha- viam fugido para outra regio, e 7,1% tinham sido executados. A vio- lencia era to normal a ponto de ter se tornado a atividade profissional de lacrSes e bandidos que viviam das comunicagdes comerciais das tro- cas em expansio, refugiando-se periodicamente nas cidades, apoiados por seus cimplices, inclusive aps sua detengio. De qualquer maneira, havia Pouca policia e era necessario recorrer a milicias de habitantes, A comparagao entre regides faz surgirem diferengas notéves: Id onde © senhorio é fraco, a comunidade ¢ fraca, a heranga divisivel e 0 habitat disperso, as taxas so altas. A uma liberdade maior somespande peas, viole igo. ente a cidades, que so uma caracteristica domnans oaclsis aie aes smhais trangiilas, provavelmente Porque. a.ruptura dos grupos sociais enfraquece os, mecanismos de vio- lencia coletiva — exceto_no tocante & competisao politica. “~~ O estudo de Given confirma o diagnéstico de violéncia feito pe- los historiadores: a violéncia criminosa era um modo normal de com- portamento num mundo em que os meios juridicos eram inacessiveis & maioria. A atmosfera geral de violéncia se traduz ainda pela fre- aiiéncia dos castigos corporais, pelo interesse por divertimentos bru-, tais como os torneios, as justas, a luta. - Se considerarmos agora a evolugtio da criminalidade desde o st- culo XIX, apoiando-nos nas estatisticas judicidrias ou sanitérias, cons tataremos uma regressdo dos honiicidios em quase toda parte. Bis um} quadro da taxa de homicidio na Franga desde 1825: ‘Anos Numero Taxa 1625-800 438 1831-1840 397 yesrres0 408 1851-1860 332 ie5118/0 300 4871-1880 352 1881-1890 397 1891-1900 373 4901-1910 227 1821-1930 448 4991-1998 ara 3946-1080 are 1951-1960 170 1961-1970 219 is7i-t975 240 Mesmo se levarmos em conta um leve aumento nos iiltimos vin- te anos, ainda assim as taxas dos anos 70 sao trés vezes mais baixas do que a do perfodo 1825-1830. Tal evolugdo se confirmaria para as violéncias fisicas graves que acarretam incapacidade ou morte; quanto as lesGes, seu volume de- pende estreitamente das variagdes do consumo de alcool. Em compensagao, se considerassemos os danos & propriedade entre as violéncias criminosas a serem levadas em conta, a apreciagao seria diferente; mas entdo seria preciso atentar para o fato de que os danos aos bens multiplicam-se em sociedades de abundancia e de se- guro, onde o roubo nao tem mais a mesma gravidade e banalizou-se. s.conhecimentos histéricos permitem, portanto perceber uma progressiva.civilizacdo dos costumes.e.uma diminuicao da violéncia criminosa. Tal processo tem como.contrapartida uma gestdo cada vez mais restritiva da vida social ¢.a ascensfo-dos controles sociais. Em todo caso, se h4 um aumento-da violéncia, ela ndo_se encontra do lado da criminalidade, ou entéo ¢ porque nos tornamos extraordina- riamente sensiveis a uma inseguranca,que nunca foi to fraca. V. A violéncia da vida Para terminar esta reviséio dos fend- menos de violéncia, é preciso evo- car as variagdes que afetam a brutalidade da vida segundo as épocas ou 0s grupos sociais. Durante 0 percurso ja pudemos vislumbrar v: rias delas. Como mostram as pesquisas sociolégicas, um alto nivel de vio- léncia constitui 0 aspecto normal da vida de muitos grupos sociais Isso € valido para os bandos de jovens nas ruas, para a populacio das cidades-dormitérios, para os praticantes de determinados espor- tes, para certas unidades militares de elite. Podemos falar de culturas da violéncia, como foi a dos pioneiros da fronteira do Oeste america- no, no século XIX. Um viajante francés que partiu para a Califérnia no momento da corrida para o ouro descreve a cidade de Sao Fran- cisco como “povoada de celerados, de assassinos ¢ bandidos” ¢ apavora-se com a maneira pela qual os americanos acertam suas con- tas & bala nos cassinos™. Do mesmo modo, a violéncia e a perma- nente perspectiva da morte parecem fazer parte dos valores da socie- dade mestica mexicana’®, © México tem uma‘das maiores taxas de homicidio do mundo. HISTORIA F SOCIOLOGIA DA MIOLENCIA_» Tal violencia pode estar ligada & dureza das condicdes de vida ¢ de sobrevivéncia, por exemplo nos meios populares: “Na verdade, sejam quais forem as melhorias recentes, a vida das classes populares, 6 sempre mais terra a terra que a dos outros grupos sociais: a sujeira onipresente, a promiscuidade, 0 aperto da moradia jé foram suficien- temente descritos. E preciso lembrar que as condigdes de trabalho dos operarios e de certas categorias de operdrias se tornam insuportaveis, por causa do barulho, da sujeira, do fedor. (...) Nas nossas socieda- des ainda existem trabalhos de animal de carga e so 0s membros das classes populares que os executam — tais condigdes de vida nao vao, favorecer os ritmos comedidos de conversacdo ou os tons velados’***. Por muito tempo essa dureza e brutalidade foram a norma da vida { nas sociedades antigas. N, Elias estudou pormenorizadamente 0 pro- | cesso de civilizagdo dos costumes que vé se instaurarem as boas ma- neiras ¢ a polidez, que vé 0 refinamento se desenvolver, e a agressivi dade se amenizar™”. lores pelos quais 0 ‘05: € 0 caso da gangue de rua ou da equipe esportiva. Finalmente, ela pode estar ligada a uma relagao quase metafisica ou religiosa com a existéncia ea morte, como em certas seitas (os Assassinos, os Thugs hindus) ou na soci dade mexicana, onde a auséncia de transcendéncia deixa os mesticos diante do arbitrio e do acontecimento: “Ansiosos por vencer 0 desti- no para se libertarem dele, eles querem provocar o face a face, medir-se com a morte, numa perpétua busca do acontecimento, que exige o riso e as mascaras, 0 humor, as vezes o cinismo e essa capacidade de fazer as leis virarem de perna pro ar, de fazer de outrem um ou- tro, no instante, simplesmente pelo prazer... para que 0 jogo seja pos- sivel, para confrontar-se com o arbitrio. (...) Nesse ponto do confronto com o destino a morte surge de um nada’, 3 _ Tecnologia da violéncia contemporanea Nada garante que 0 munuy contemporéneo seja mais violento que as épocas passadas. Na verdade a comparago no tem muito sen- tido-pois os termos so muito diferentes: & brutalidade e A selvageria de sociedades pouco desenvolvidas, agressivas mas com meios mor- tais fracos, sucederam-se a instrumentacao e a gestio de sociedades tecnolégicas — nas quais as possibilidades de destruigao sao conside- raveis — que racionalizam a violéncia como racionalizam todo 0 res- to, Assim, entre elas e as sociedades do passado cavou-se um fosso profundo relativo tanto aos meios de destruicao e de controle quanto a0s meios de comunicacio de massa (midia) ¢ as técnicas de gesto € de instrumentaco social. Paralelamente, a racionalidade técnica instrumental ¢ de gestdo que opera nas sociedades contemporaneas leva a valorizar 0 controle dissimulado dos problemas e a solugdo ra- cional dos conflitos, condenando o recurso a violéncia aberta, brutal ¢ sangrenta, Desenvolve-se assim uma antinomia entre potencial de violéncia sem precedentes e um ideal de funcionamento racional e sem sobressaltos. __ Para ser bem preciso, ¢ preciso matizar essa oposigiio to cate- gérica entre dois tipos de sociedade: 0 mundo contemporiineo nao constitui uma realidade homogénea, é feito de paises diferentes TEENULOG 1) CONTEMPORANEN 48 vivendo em eras diferentes ¢ nele os fendmenos de violencia sdo chs pares. Subsistem casos de violéncia comunitaria andlogos aos das re- voltas camponesas dos séculos XVII e XVIII (por exemplo na América Latina), movimentos milenaristas (no Pert! com os guerrilheiros do Sendero Luminosoy; alguns aspectas do terrorismo sao ao mesmo tem- po arcaicos em suas reivindicagdes e contemporaneos em sua colabo- ragao com 0 terrorismo internacional (0 terrorismo arménio contra 0s diplomatas turcos). Tais disparidades subsistem entre os grupos sociais dentro de uma mesma sociedade: a violéncia nos Estados Uni- dos é a dos guetos negros e das cidades, mas também a do crime or~ ganizado, a do assassinato politico, a dos loucos do gatilho (Gun Nuts) num pais onde o principio da autodefesa do cidadao permanece vivi do. Em suma, toda a violéncia hoje nao assume a fisionomia que vai ser descrita, mas decorre de comportamentos que o historiador ja en controu. Vamos apenas tentar evidenciar as tendéncias de uma evo luego e os tracos dominantes de uma situacdo nova. I. Tecnologia da destrui¢ao As sociedades contempora - neas dispdem de uma tecno || logia de morte aterradora que nao se limita ao arsenal nuclear. Quais|: sdo suas caracteristicas? 1. Diversidade dos instruments — A consulta dos catélogos dos fabricantes de armas ou dos anudrios do arsenal militar (como o Ja- ne para as Forcas Armadas das grandes nagées) mostra que ha armas para todas as ocasides, todos os usos ¢ todos os bolsos, desde os ma \tetiais mais sofisticados (misseis, avides. meios de teleguiagem cle trénica, armas de infantaria com mira laser ou infravermelha), até ; as mais simples, mais sélidas e mais baratas como as armas de mao ou de caca, os explosives para uso agricola e os coquetéis Molotov A indiistria de armamentos elabora seus produtos segundo as regras do markering: ela busca produzir para todos os mercados pos- siveis desde a guerra nas areias, a contraguerrilha ou 0 contra terrorismo, até 0 confronto nuclear universal. Existe assim uma es pécie de hipermercado da violéncia. 2. Gradacaodos meios ¢ acesso a eles — O arsenal se dispde em séries e organiza-se em pandplias nas quais os instrumentos se com- pletam uns aos outros para responder a diversidade das situacdes. As- sim ha panéplias para a manutencdo da ordem, para a luta antiter 4_AWOUENCIA orista ou para a batalha blindada. A dissuasdo nuclear nao exclui 8 possibilidade de confrontos convencionais para os quais devem ser previstos equipamentos especificos, segundo a diversidade dos terre- nos de operagilo ¢ das forgas. Nesse sentido, a Franca comecou a im- plantar ha alguns anos a Fora de Acio Rapida (FAR) destinada a Operacdes a distancia a curto prazo e com alto poder de fogo. ___ A série inferior ¢ relativamente acessivel. Alguns materiais so livremente vendidos para outros usos que nao a violéncia — é 0 caso das armas de caga ou dos explosivos para utilizagdo profissional. Além disso os armamentos sao freqiientemente mal vigiados (roubos nos depésitos de armas ou desvios de materiais durante a remessa). Mas, Principalmente, é preciso amortizar os investimentos e renovar as ar. mas superadas, o que leva & liquidacdo de estoques. Na competigio scondmica internacional, a industria de armamento também é um pos- to lucrativo para a exportagao e ela contribui para estreitar as alian. $as, reforgando a dependéncia das nagGes clientes em matéria de pe- gas de reposi¢ao ou de materiais compativeis. Todos esses inconve- nientes culminam em ampla difuso das armas, inclusive dos mais sofisticados instrumentos, _Asradacdo das armas em séries tem por conseqiiéncia favore- cer situagdes de relative equilibrio entre adversdrios que possuem os meios de se neutralizarem mutuamente: a um avango tecnolégico ra- pidamente corresponde um contra-avango que o neutraliza. j___ Por outro lado, a relativa facilidade de acesso permite que 0 {monopélio de fato do Estado sobre os meios da violéncia seja fre- ; dilentemente rompido: grupos terroristas podem facilmente dispor de | armas terriveis. Sobretudo nos paises pobres, os opositores politicos * podem, com o auxilio de poténcias estrangeiras, ser tZo bem equipa- dos quanto as forgas da ordem; & 0 que ocorre em Mogambique com 0s guerrilheiros do Unita, na Nicar’igua com as forgas anti-sandinistas no Marrocos com as forgas saharauis. : 3. Sofisticagdo, poténcia, precisdo dos instrumentos — Atual- mente os materiais militares so produtos de alta tecnologia que re- correm aos Ultimos progressos cientificos: tecnologias espaciais para 08 vetores nucleares e os satélites de observago, logo seguidos por Satélites militares na perspectiva da Guerra nas Estrelas, tecnologia fisica para o armamento nuclear, tecnologia quimica para as pesqui- { S28 (em principio proibidas mas muito desenvolvidas) sobre a guerra | Quimica. Hé uma transferéncia imediata dos progressos cientificos pa- 4 0 campo militar e as vezes este comanda o progresso cientifico ¢ TECNOLOGIA DA VIOLENCIA CONTEMPORANEA _45 técnico, Apés as revolugdes industrial, cientifica e mecdnica que mo- dificaram a poténcia das armas e as possibilidades de movimento, é preciso insistir nas mudangas consideraveis introduzidas hoje pela in- formética e pelos meios automaticos de detecgo e guiagem. Em ni- yel do combate aéreo, por exemplo, nao é a superioridade das células dos avides que conta (os desempenhos s4o mais ou menos os mesmos em todos 0s construtores), mas sim a dos meios de guiagem, de pilo- tagem ¢ de detecedo, e também a dos meios de contramedidas para enganar o adversério ¢ neutralizar suas armas. Esta acima da eapaci- dade de um piloto fazer sua maquina dar uma volta completa subita- mente ou virar 180° em algumas centenas de metros. O computador de bordo e 0 pilot automatico podem fazé-lo se forem programados para reagir a um sinal registrado pelos meios de detecgao. Na mesma ordem de ideéias, a regulagem e 0 acionamento das pecas de artilharia sio cada vez mais fruto da identificagao por /aser e medidas automa- ticas. Nao esté muito longe o dia em que nao serdo os préprios com- batentes da infantaria que mirarao contra seus adversarios. A poténcia desse arsenal é sem equivalente na histéria. As pri- meiras bombas A, como as que foram langadas sobre Hiroshima e Nagasaki em 1945, ja tinham uma poténcia correspondente a 20 000 toneladas de TNT. A menor bomba H a faz passar para 1 milhao de toneladas de TNT. Em 1968 avaliava-se a poténcia total do arse- nal nuclear a 100 toneladas de explosivo classico por ser humano. Tal poténcia se estende ao campo dos explosivos convencionais ¢ armas individuais que atiram cada vez mais projéteis numa velocidade cada vez maior. Essa poténcia pode ser sutilmente graduada e controlada. O de- senvolvimento das armas nucleares no se direcionou apenas para a producao dle bombas cada vez mais potentes, mas também para bom- bas ‘sujas’” ou limpas (que desprendem uma radiatividade maior ou menor), “disfarcadas”” ou nao, bombas de todos os tamanhos bem como ogivas nucleares téticas adaptadas a um campo de batalha con- vencional. As pesquisas para construir bombas de néutrons visam mi- nimizar as destruigdes materiais em beneficio da eficiéncia antipessoal da arma. O controle da poténcia de destrui¢ao foi possivel gragas aos pro- gressos técnicos (miniaturizacdo, aperfeigoamentos), mas também & automatizagdo do acionamento que escapa, assim, as limitagdes da percepeao, as incertezas e aos erros dos agentes humanos que sempre correm 0 risco de reagir tarde demais, sem informagdo clara ou en- w_amorenc, to de se afobarem. Ele também se torna possivel gragas A coleta e & analise automatica de uma quantidade crescente de informagbes pe- los computadores. Isso ocorre ao nivel da pilotagem e da regulagem dos blindados, da artitharia, da aviacdo nos quais os serventes huma- nos so e serZio cada vez mais auxiliados por microcomputadores, po- dendo até serem suprimidos. Isso ocorre ainda ao nivel da organiza- do do combate: seja dentro das unidades, seja no conjunto do cam- po de batalha, a coleta, a andlise ¢ a transmissao das informacdes passam por computadores. Em conseqiiéncia, 0 fato de dispor de po- Gerosas redes de comunicagao, particularmente por satélite, torna-se um importante fator de superioridade, como mostrou a guerra das Malvinas. Num nivel ainda mais elevado, 0 controle das operagdes ea escolha das iniciativas dependem das informacdes de que dispdern 0s adversérios. A coleta da informacao e sua andlise automatica pe- los servigos de informac6es permitem que os chefes militares ou poli- ticos disponham de um conhecimento quase exaustivo do campo de batalha, dos meios a serem postos em aco, dos custos material e hu- mano, das consegiiéncias politicas e diplomaticas das iniciativas to- madas. Durante a guersa do Vietna, o prdprio presidente Lyndon Johnson escolhia os objetivos a serem bombardeados e recebia na mes- ma noite um relatério de seus resultados. Essa sutileza no emprego da violéncia tira-Ihe boa parte do que constituia a sua antiga especificidade: seu cardter imprevisivel. En- trar em confronto foi por muito tempo considerado a hora da verda- de, o tempo da prova no qual a sorte das armas decide. Isso ja no é mais inteiramente valido: o imprevisivel da violéncia da lugar a0 calculo. 4. A profissionalizigao dos serventes — A sofisticagao destas armas complexas, as dificuldades de seu emprego, as possibilidades de controle conduzem a uma especializaco técnica crescente dos ho- ‘mens que as servem: cles devem se tornar profissionais qualificados, bem remunerados, que formam uma categoria sociolégica como era a dos guerreiros nas sociedades antigas. Se a Revoluc&o Francesa ha- via instaurado a guerra de massa através do alistamento, agora a evo- Tucdo tende novamente para um exército profissional composto por profissionais aguerridos ¢ especializados. O avango patriético do soldado-cidadao, a obediéncia sob a imposicao da disciplina sd subs- tituidos pela competéncia e pelas motivagdes profissionais do téenico especialista. As tropas de choque e os grupds de intervenc&o como a Legitio Estrangeira na Franga ou os Marines americanos sto ha mui- MIOLENCLA CONTEMPORANEA #7 to tempo formados por profissionais calejados, unidos por um espi- rito de corporacao construfdo & base de automatismos. A esses com- batentes profissionais, é preciso acrescentar os engenheiros-soldados — oficiais de marinha, pilotos, serventes de bases de misseis, pessoal de treinamento, organizadores da logistica, sem esquecer os agentes secretos. © movimento de profissionalizagao atinge areas cada vez mais diversas: a manutengao da ordem na rua, a Juta contra 0 terro- rismo ou o grande banditismo. Aos seqiiestros de aviao e raptos de reféns, agora os governos opdem grupos especialmente formados, for- midavelmente equipados e treinados como 0 Special Air Service bri- tanico (SAS) ou o Groupe d’intervention de la Gendarmerie Nationale (GIGN) na Franca. ‘A profissionalizacao atinge até o mundo do terrorismo. Isso ndo é totalmente novo: se em 1869 Bakunin ainda fazia 0 elogio dos ban- didos herdis salvadores do povo, no mesmo ano, Catequismo revo- luciondrio de Netchaev descreve o revoluciondrio como aquele que 6 sabe uma cigncia, a da destruieao, aquele que transformou a pai- xo revolucionaria em um “‘habito empregado com sangue-frio ¢ cal- culo”. A tendéncia acentuou-se: o terrorista seguiu treinamentos em campos especiais, sabe utilizar instrumentos sofisticados e divide a sua vida entre aeroportos, hotéis ¢ bases de apoio ou de refiigio de seus aliados. A mobilizacio ideolégica tende a ser substituida pela do profissional e do mercendio. Ultima observacdo: a profissionalizacao insinua-se por toda par- te, atingiu até mesmo 0 campo da tortura que, de suja ¢ sangrenta, tormou-se medicalizada: em vez de queimar as pessoas aos pouqui- hos, agora Ihes dao choques elétricos ou drogas psicotrépicas sob controle médico. 5. A contaminacao de novas dreas — Assim como determina- das técnicas que nao tm nada de especificamente militar encontram- sea servigo da violéncia, o potencial de controle e de instrumentacao do mundo humano também desemboca, por sua vez, em tipos de a¢ao imos da violéncia: ‘As técnicas de propaganda, de condicionamento dos espiritos ow de lavagem do cérebro entram nesta categoria. A invaridvel repe- ticdo dos slogans e mensagens, a demanda de constante participacao, a ctiagdo de situagdes comandadas por recompensas ou punicdes, 0 recurso a personalidades de prestigio como veiculo das mensagens, todos esses tracos caracterizam tanto a lavagem de cérebro tal como foi —e é — praticada nos campos de reeducacao quanto as técnicas elementares do condicionamento através da midia $_AVIOLENCIA Quando se deixa portanto de recorrer a violéncia aberta trocando-a por técnicas mais refinadas, nem por isso ela deixa de existir, mas sim, assume a fisionomia neutra e cinza da manipula- so. A diferenca entao encontra-se apenas entre uma violencia aber- ta ¢ uma outra surda ¢ dissimulada. E 0 tema do filme de Stanley Kubrick, Laranja mecinica: entre a violéncia do delingiiente Alex € a do tratamento antivioléncia do Prof. Brodsky, é impossivel fa- zer uma distineao. Entre um tipo de controle e um outro, nao ve- mos mais a diferenca dos métodos, mas apenas a identidade dos ob- jetivos. 6. O custo da violencia — Portanto, nestas condigdes, nao é de espantar que a violéncia custe “‘um dinheiro louco”” Como se sabe, esse custo é 0 das tecnologias avangadas. Ele é quase inimaginavel para particulares como nos: um Super-Mirage cus- {a 200 milhdes de francos em valores de 1985, um missil ar/ar custa 8, um tanque uiltimo tipo 24 mjlhées de francos. A corrida armamen- lista desembestou no final do século XX, no momento em que se de- senvolviam os grandes grupos industriais ¢ 0 complexo industrial- militar se torna mais e mais importante. Como podemos verificar no peso dos gastos militares no orcamento dos Estados, inclusive dos mais pobres. Tais gastos so tao volumosos que 0 comércio de armas tor- na-se uma necessidade para fazer com que o fardo seja partilha- do por outras nagdes, Além disso, eles sao particularmente rigidos ¢ implicam uma programagao de orcamentos a médio e longo praz © novo avido de combate europeu cuja construcdo acaba de ser deci dida s6 entrara em ago na metade dos anos 90. Por este viés, os gas- tos militares pesam sobre 0 conjunto de projetos: eles so cat fator de planejamento ¢ contribuem para a militarizagdo da so- Entretanto nao hé apenas o arsenal. Um outro aspecto do cus- to da violéncia prende-se aos prejuizos efetivos: prejuizos materiais ¢ ruinas, prejuizos demogréficos que hipotecam dezenas de anos da vida de um pais como foi 0 caso dos adversérios da Primeira Guerra Mundial, da Unido Soviética apés trinta anos de tertor stalinista, co- mo é 0 caso agora do Vietnd, além dos custos das pensdes, das inde- nizagGes e auxilios aos ex-combatentes, as familias dos mortos e aos invélidos. Para nao dizer nada dessas outras conseqiiéncias — as per- turbagdes psicoldgicas da populacdo e a socializacdo das criancas pa- “ta a violéncia (como na Irlanda ou no Libano). TECNOLOGIA DA VIOLENCIA CONTEMPORANEA e violéncia A existéncia dos meios de comunicacao de massa (radio, televisao, cinema, jor- nais, fotografia) constitui um dos tragos mais caracteristicos das so- ciedades desenvolvidas contemporaneas. O fato da violéncia se apresentar como uma crise em relagdo ao estado normal cria, por principio , uma afinidade entre ela e a mi- dia. Como podemos constatar, num dia calmamente banal fica dif cil fazer um jornal qu um noticidrio de TV para anunciar que nao aconteceu nada, A midia precisa de acontecimentos e vive do sensa- cional. A violéncia, com a carga de ruptura que ela veicula, é por prin- cipio um alimento privilegiado para a midia, com vantagem para as violéncias espetaculares, sangrentas ou atrozes sobre as violéncias co- muns, banais ¢ instaladas. Dai a fortuna dos atos de terrorismo: des- de o atentado contra as forgas francesas e americanas no Libano no outono de 1983, o terrorismo xiita iraniano fez falar dele mais do que | a guerra Ird-Iraque, que se desenrola de drama; mas em vez de Teco-. nhecer nela sem dificuldade 9 éxito dos mais fortes, denuncia ao con- trério as artimanhas que permitem aos mais fracos, numerosos.¢.or- ganizados, sujeitar os mais fortes através do proceso. de. domestica~ cao da civilizagao que termina no niilismo, Antidarwinista, Nietzs- che percebe a civilizagio como domesticagao dos mais fortes e em seu Zaratustra (1891) € no Ecce Homo (1908) invoca 0 advento do além- do-homem com seu amor pelo risco e pelos perigos redescoberto, com sua afirmagao superior da vida, com sua vontade de poténcia. Nessa “ perspectiva nietzschiana, a forga e a violéncia nfo podem mais ser consideradas juntas, como quando o evolucionismo vé nelas afirma- } go natural da vida. Doravante é preciso distinguir entre a forca re- pressiva, domesticadora, a dos fracos e dos homens do ressentimen- \ to, ea forga dos fortes, a forca afirmativa, No préprio interior da } violéncia produz-se entdo uma separacdo entre uma violéncia boa e ( uma outra pervertida, desfigurada, travestida porque voltada contra \ a vida. : 3. G, Sorel.— O pensamento politico e a filosofia da violéncia de G. Sorel? retinem no mais alto grau todas as ambigiiidades das fi losofias da vida, do pragmatismo e dos pensamentos socialistas revo- lucionarios. A violéncia da qual Sorel faz 0 elogio é.a da greve geral sindicalista cuja forca de subversdo sera tal que pord fim a existencia do Estado, nada mais nada menos. Absolutamente incompativel com as respostas repressivas que o poder burgués pode Ihe dar, movimen- to desproporcional de insurreicdo de toda uma classe, ela s6 pode ven- AS FILOSOFIAS DA VIOLENCIA 108 cer, A violéncia permite tomar 0 poder, mas ela também serve para que o proletariado se realize, se identifique e se afirme em sua especi- ficidade. Assim realizada, a tomada do poder inauguraré um mundo politico inédito: nao se trata de substituir um grupo dominante por_ outro, mas de abrir uma nova era politica purificada pela violencia A filosofia cientifica bastante instrumentalista de Sorel 0 faz conce-~ ber as hipéteses como meios de agdo sobre as coisas — as hipdteses cientificas nado tém de descrever exatamente a natureza, mas devem nos permitir agir sobre ela. Q mesmo se da em politica onde a hipste- se assume o nome de mito. Um mito é “um Sistema de imagens que deye ser considerado em blovo como fosgas hiskaricas'..A violéncia e - purificadora, sem nenhuma medida comum com a repressao do Bs j tado. Tal orientagao 0 coloca junto das filosofias da revolta e da pu- rificagdio; mas de um outro ponto de vista, 0 elogio dos mitos e de sua fungdes pragméticas abre a porta a todas as aventuras politicas e ao culto da violéncia’. O proprio Sorel nao vai escapar destas vicis- situdes, pois contribuiu para inspirar determinados aspectos do fas- cismo de Mussolini. 4. Violéncia e messianismo — Uma outra tradigio filosdtfica, herdeita do pensamento messidnico judeu, concebe a violéncia de um | ponto de vista religioso, mesmo que consideravelmente laicizado e se- | cularizado, como o andlogo humano da cdlera pela qual o Deus bi- , blico afirma sua poténcia absoluta diante daqueles que nao o reco- | nhecem. Tal € a posicao que encontramos em Walter Benjamin em Para uma critica da violéncia*. Estudando a violéncia enquanto meio ¢ as relagdes entre a violéncia eo direito, Benjamin distingue uma primei- ra violéncia fundadora e criadora do direito, aquela que o direito in- terina apés confrontos das forgas sociais. Ela se combina com uma outra violéncia-meio, aquela que contribui para conservar o direito fazendo-o ser respeitado. E um erro portanto afirmar a natureza pa- cifica do direito: se 0 direito pacifica as relagdes sociais, o faz sobre © fundo de uma primeira violéncia indispensavel para estabelecé-lo, a ele proprio. Para Benjamin, a ignominia da pena de morte — ao ‘mesmo tempo que seu carter terrivel — deve-se ao fato dela ser con- servadora do direito, de estar a servico da represso, mas também porque nela encontramos a repeticao sangrenta da violéncia primeira através da qual o direito se institui. Benjamin acaba entdo se per- A.WIOLEN guntando se existem “‘outras formas de violencia além das que toda teoria juridica considera’”®, Ele acha que sim: uma violéncia pura, que de modo algum seria meio, mas sim pura manifestacao da cdl do fundadora de direito mas destruidora de direito, E una vio- Iéncia que literalmente ndo exige nada e no quer nada, que ndo ma- nifesta nenhuma vontade € no instaura nenhuma ordem, que des- tri os bens, o direito e até a vida, mas para melhor afirmar‘a alma do ser vivo, 0 carter sagrado de sua dignidade. Embora faga uma critica severa da violéncia e dos elogios contempordneos que sao fei- tos a ela, Hannah Arendt entrevé rapidamente essa pureza de uma_ violéncia ditada pela célera®, Infelizmente essa pureza € vigiada pela racionalidade, pelo séquito, desfigurante da histéria. Essa idéia de uma violéncia pura, imediata, intratavel, na ver- dade no estava totalmente ausente do pensamento de G. Sorel para quem a violéncia proletdria nao busca nada, nao quer nada, nem mes- mo a derrubada do Estado, mas constitui apenas a afirmacao da exis- téncia do trabalhador, produtor livre. F. Fanon, fortemente influen- ciado por Sorel, também nao esté longe da concepeao de uma violén- cia pura, total, na qual o oprimido reencontra sua humanidade nu- ma revolta selvagem e irracional, cuja irracionalidade mesma prote- ge da recuperacao’, Jean Genet, quando tomou posicao em favor dos Panteras Negras americanos ou em defesa do bando de Baader na ‘Alemanha (1976), opunha, do mesmo modo, violéncia e brutalidade, isto é, a pureza de uma violéncia afirmativa, prépria da vida e da ju- ventude, ¢ a brutalidade da repressdo organizada e racionalizada. Toda a dificuldade consiste em saber até onde a pureza permanece pura, até onde consegue escapar das mediacdes, da racionalizagao, isto é, da recuperacao. Il. As filosofias da Uma abordagem filoséfica muito diferen- reciprocidade te consiste em considerar a violéncia do ponto de vista da relacdo com outrem e da intersubjetividade. ; 1. Hegel — Hegel na Fenomenologia do espirito (B, IV, A) inau- gura a via para essas andlises com a dialética do senhor e do escravo. Para ele, 0 eu subjetivo € inicialmente apenas uma consciéncia imediata vazia. Ela precisa se desenvolver e adquirir um contetido es- tabelecendo uma rela¢do com algo exterior, através do desejo que nega as realidades independentes apropriando-se delas e principalmente consumindo-as: a consciéncia se coloca entdo através da supressio do que é outro. Como cada episddio de satisfagao suprime 0 desejo, a conscién- cia esta sempre se abolindo e s6 pode se manter se o desejo se repro- duz. Assim, Hegel termina afirmando que o verdadeiro objeto do de- sejo, aquele que asseguraria a realidade duradoura da consciéncia, deve ser um objeto a0 mesma tempo outro e auténomo, um objeto que se opie e escapa A consciéncia que o deseja. O.verdadeiro objeto do desejo s6 pode ser entzio uma outra cons é através. dos objetos que a consciéncia adquire consisténcia, é no encontro com “uma outra con: Toda a dificuldade esta no fato de que, tornando-se objeto do desejo, uma consciéncia acaba reificada, transformada em coisa, ¢ que ha ai uma fonte de confronto e de violencia entre duas conscién- cias que se desejam e se reificam mutuamente. No confronto cada uma quer ser reconhecida como consciéncia, enquanto a outra quer transformé-la em objeto. A luta de morte que existe no principio da dialética do senhor e do escravo é a ocasidio desse reconhecimento. Uma consciéncia que quer se afirmar como tal deve mostrar que nao €um objeto, portanto que ndo est presa ao seu estar-ai e despreza avida. Aquela que enfrentar até a vitéria 0 risco da morte no comba- te serd reconhecida como consciéncia, aquela que tiver preferido a vida & morte tornar-se-4 consciéncia dependente. E essa a assimetria do senhor e do escravo. Nao continuaremos a andlise desta dialética para ver como senhor e escravo entram numa relagdo de goz0, 0 ou- tro numa relaedo de conformagao do mundo exterior, e como pros- segue o processo de duplo reconhecimento. O importante aqui é que -avioléncia esteja no Amago da luta de duas consciéncias-pelo reco: _nhecimento ¢ que ela também séja a condigao de possibilidade desse —reconhecimento, Para Hegel, toda consciéncia, em seu desejo, tende a reificar outrem e a violéncia é inevitavel. Ndo pode haver comuni dade, nao ha nds se no houve previamente essa luta pelo reconheci- mento. Em outras palavras, 0 reconhecimento de outrem nao é uma’ questo de amor ou de bons sentimentos, mas sim de confronto. | 2. Sartre — Sartre nao esté muito distante da concepeao hege- liana. A seus olhos, a realidade humana é para-si, capacidade de na- dificagdo, de consciéncia, de projeto livre. Sartre enaltece Hegel por este ter mostrado que o meu ser sé pode ser para si através de um outro: nao hé sujeito isolado e solitdrio (solipsismo); uma conscién- tor_A wouereis cia precisa de uma outra consciéncia que a reconhega, O que dizer entéo do reconhecimento de outrem? Outrem é caracterizado como aquele que transcende minha transcendéncia®, aquele que me da uma natureza apreendendo-me como objeto no mundo, aquele que me pe- trifica, aquele perspectiva: © mundo segundo sua propria -m_suma, 1 “Youtrem: £1 aquele que. me rouba ° mundo” tro si-mesmo, do qual nada me separa, “sendo sua pura ¢ total liber- dade". Como Sartre dird na Critica da razdo dialética, esse duplo ¢ um duplo demoniaco. Diante dessa transcendéncia que me transcen- de, posso ou procurar captar, fazer minha a liberdade de outrem no amor, na linguagem, na atitude masoquista, ow tentar transcender essa propria transcendéncia, isto é, transformar outrem em objeto-atra- vés da indiferenga, do desejo, do ddio, do sadismo. De todo modo, a situacdo sera sempre conflituosa porque outrem esta em relagdo a , mim em situacao de reciprocidade. Em outras palavras, ‘0 conifito ¢ 0 sentido original de ser-para-outrem’’"*, As experiéncias da comuni- dade so secundarias em relagao as do conflito, A violéncia se encon: tra no dmago da intersubjetividade porque a relagao com outrem ¢ relacdo com © mesmo e com o duplo, com o alter ego. A Critica da razdo dialética desenvolve e enriquece a andlise dessa situagao fazendo intervir a escassez: “‘a mera existéncia de cada um ¢é definida pela escassez como risco constante de ndo-existéncia para um outro e para todos’”’, Cada um de nés, porque precisa de bens que nao sao inesgotaveis, pode provocar a morte do outro por penti- ria. A pura reciprocidade ja presentificava dois sujeitos terriveis, por- que duplos demoniacos um do outro. A reciprocidade modificada pela escassez presentifica 0 Outro portador de uma ameaga de morte, que se torna assim o mal radical. Sartre pode entao definir a violencia como ‘‘estrutura da agao humana sob o reinado do maniqueismo e ‘ao Ambito da escassez’"®, Ele acrescenta que nao € necessério que haja efetivamente atos de violéncia? a Violériciaewinumanidade das. condutas“humanas assim que os homens interiorizam_a escassez;. mais ainda, essa violéncia constitui a primeira negagao em agio na_ historia. . AS FILOSOFIAS 93 VIOLENCIA _W# De O sere 0 nada & Critica da razdo dialética, Sartre mantem assim sua concepgao inicial de um confronto entre duplos, mas confortando-a com uma referéncia as condigdes materiais: sua posi- sao — que reflete sua prépria evolucdo politica — torna-se menos idealista, 3. Girard — E, ao contrario, uma volta ao idealismo que pro- pée ateoria de R. Girard, apesar de uma perspectiva que nao é nada distante daquela do primeiro Sartre. Com efeito R. Girard recusa a tam a relagao entrejum objeto e um sujeito; sao na verdade situacdes de rivalidade em torno do mesmo objeto, uma rivalidade que nao é “9 fruto de uma convergncia acidental dos dos desejos sobre o mes io rival 0 dese poe a UD ee por sua vez o.dseia.Odsiio por aatursza mi tico, sempre em bu ae sca m “A partir dai Girard desenvolve sua teoria do sacrificio e dos ri- tos. A violéncia do desejo mimético nao tem freio, por principio: ela abre uma série louca de vingangas sem fim. A func&o do sacrificio desviar essa violéncia sobre uma vitima, um bode & fo_que —acanaliza. E nesse sentido. aie dit8é:4-que-a violéncia é fundadora: ela se encontra no principio do rite constitutive do social. As condu- tas rituais e sacrificiais enganam a violéncia, lhe dao 0 troco voltando-a para outros objetos, para vitimas substitutas. Assim a violéncia ine- vitavel da rivalidade dos desejos é impedida de eclodir. Nas socieda- des desenvolvidas, é 0 sistema judicidrio que assume o lugar do rito ¢ do sacrificio; ele organiza, limita e ao mesmo tempo dissimula a vinganga por baixo de seus funcionamentos racionais e imparciais'® Essas concepgdes da violéncia como estrutura da intersubjetivi- dade sao indissociaveis de sociedades concorrenciais como as socie. dades modernas, onde os individuos se medem, competem e tentam ser reconhecidos pelos outros na impossibilidade de saberem quem so ¢ de terem uma natureza determinada. No século XVII, Hobbes rela- cionava a guerra de todos contra todos, que segundo ele caracteriza © estado de natureza, a escassez dos bens e sobretudo a imprevisibili-

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