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O anti-feminismo na história

por Augusto Buonicore*

“A mulher é nossa propriedade e nós não somos propriedade dela (...) Ela é, pois,
propriedade, tal qual a árvore frutífera é propriedade do jardineiro”.
Napoleão Bonaparte

Mulher sendo torturada durante a inquisição


Foi entre os povos gregos, particularmente entre os atenienses, que a
opressão da mulher adquiriu sua forma mais acabada. Nestas sociedades, mesmo a
situação das mulheres das classes dominantes pouco se diferenciavam das dos seus
escravos domésticos, pois ambos eram desprovidos de qualquer tipo de direito. Os
próprios filósofos gregos tinham clareza desta situação. Platão afirmou: “Se a natureza
não tivesse criado as mulheres e os escravos, teria dado ao tear a propriedade de fiar
sozinho”.
Os espaços sociais dos homens e mulheres eram bem delimitados. Sócrates
assim os definiu: “Aos homens a política, às mulheres a casa”, sendo a política a função
mais nobre de uma sociedade civilizada como a grega. Xenofonte recomendava que a
mulher “vivesse sob uma estreita vigilância, visse o menos número de coisas possível,
ouvisse o menor número de coisas possível e fizesse o menor número de perguntas
possível”. Estas idéias anti-femininas persistiriam por séculos.
Sobre a mulher ateniense escreveu Engels: “as moças aprendiam apenas a
fiar, a tecer, costurar (...). Viviam como que enclausurada, não possuindo relação com
outras mulheres. O gineceu era uma parte distinta da casa, no pavimento superior, ou
atrás (...) para onde elas se retiravam quando havia visitas masculinas (...). Em casa
eram formalmente vigiadas (...) fora da tarefa de procriar, elas não eram mais do que a
serva principal”.
Outro socialista, Augusto Bebel, completaria o quadro da tenebrosa situação
que vivia aquelas mulheres de Atenas: “A mulher comparte o leito com o homem, mas
não a mesa; não se dirige a ele pelo seu nome, senão chamando-o de senhor, é sua
criada. Nunca podia aparecer em público; pelas ruas ia sempre coberta com um véu (...).
Se cometia adultério tinha que pagar, segundo a lei de Solon, com sua vida ou com sua
liberdade. O homem podia vendê-la como escrava”.
Diante disso as mulheres preferiam se prostitur a viver na “escravidão do
matrimônio”. Escreveu Engels: “Foi precisamente sobre a base da prostituição que se
desenvolveram as únicas personalidades femininas gregas que, pelo estilo e gosto
artístico, são tão superiores ao nível geral do mundo feminino antigo”. Eram as
chamadas hetairas.
Demóstenes, orador grego, afirmou: “Nos casamos com a mulher para ter
filhos legítimos e uma guardiã fiel de nossas casas” e temos “as hetairas para gozar do
amor”. Por isso concluiu Bebel: “A esposa não era mais que um aparelho de parir filhos
e um cão fiel que vigiava a casa”. Para os gregos da antiguidade matrimônio e amor não
eram uma boa combinação.
Um outro orador assim se manifestou em relação à compra de novas
prostitutas pela cidade-estado de Atenas: “Louvado sejas Sólon! Pois comprastes
mulheres públicas para o bem da cidade, para o bem dos costumes de uma cidade
cheia de homens jovens e fortes que, sem tua sabia instituição, se entregariam a
condenáveis perseguições das mulheres honradas”. A mesma argumentação seria
utilizada por políticos e ideólogos das classes dominantes ao longo dos séculos. A
prostituição e a família se completavam na sagrada missão de garantir a perpetuação da
boa sociedade.
O cristianismo e as mulheres
Os judeus dos tempos bíblicos já viviam em sociedades patriarcais, nas quais
a monogamia exclusivamente feminina imperava soberana. Entre eles a poligamia era
aceita apenas para os homens, especialmente os poderosos. Prova disso é o caso de
Sara que teve que “oferecer” sua escrava Agar para Abraão. Raquel, por sua vez, deu a
Jacó sua escrava Bilha. O objetivo era manter a descendência ameaçada pela suposta
esterilidade das esposas. Mas, a poligamia não se aplicaria apenas neste caso, pois se
conta que o rei Salomão tinha 700 mulheres e 300 concubinas.
A mulher judia carecia de quaisquer direitos e era comprada e vendida pela
própria família. O casamento era um comércio como outro qualquer. Escreveu Bebel:
“Se na noite de núpcias o homem acreditasse que a mulher havia perdido sua
virgindade, tinha o direito não só de repudiá-la, mas também deveria ser apedrejada.
Este castigo também caberia a adultera”. Os adúlteros, é claro, estavam imunes deste
tipo de humilhação.
O cristianismo, conforme se expandiu e se tornou religião de Estado, foi
aprofundando o anti-feminismo das culturas judaica e greco-romana. São Paulo
predicou: “Que a mulher aprenda em silêncio com toda sujeição. Porque não permito a
mulher ensinar, nem exercer domínio sobre o homem, senão estar em silêncio”. Em
outra passagem diria aos homens “Que vossas mulheres calem nas congregações; por
que não lhe é permitido falar (...) E se quiserem aprender algo, perguntem em casa aos
seus maridos”.
Na lógica desse cristianismo misógino, que ganhou corpo na Idade Média, a
mulher era impura e sedutora. Foi ela que, segundo a Bíblia, havia trazido o pecado ao
mundo e arruinado a felicidade humana. A lenda de Adão e Eva sintetizava bem esta
visão anti-feminina. Tertuliano exclamava: “Mulher! (...) foi tu que arruinaste o gênero
humano. Mulher! Tu és a porta do inferno!”.
São Thomas de Aquino não ficou para trás ao afirmar que “a mulher era uma
erva má” e que “nasceram para estar sujeitas, eternamente, ao julgo de seu dono e
senhor, a quem a natureza destinou o senhorio pela superioridade que há dado ao
homem em todos os aspectos”. Santo Agostinho escreveu: “Faz parte da ordem natural,
entre os humanos, que as mulheres sejam submissas aos homens (...). Porque, por uma
questão de justiça, a razão mais fraca deve submeter-se a mais forte”.
Segundo Roger Garaudy “a Igreja moldou-se, depois de Constantino, no
século IV, na forma das estruturas imperiais romanas, que haviam martirizado seu
fundador e que se opunham diretamente ao seu espírito, a exclusão da mulher tornou-se
cada vez mais acentuada: progressiva obrigação do celibato dos padres e desconfiança
sistemática diante da mulher, assimilada, num dualismo platônico, à matéria por
oposição ao espírito, em suma, identificada com o pecado”.
O ódio contra as mulheres chegou ao auge nos grandes movimentos de
perseguições às bruxas, que ocorreram no final Idade Média e tiveram uma roupagem
religiosa – católica ou protestante. Centenas de milhares de mulheres foram presas,
torturadas e assassinadas brutalmente na Europa e, depois, no Novo Mundo. O simples
fato de serem mulheres que se destacavam nas suas comunidades pesou muito sobre o
seu trágico destino.
Relacionando a bruxaria e a fisiologia da mulher, escreveu, em 1583, o
inquisidor Leonard de Vair: “Mensalmente elas se enchem de elementos supérfluos e o
sangue faz exalar vapores que se elevam e passam pela boca, pelas narinas e outros
condutos do corpo, lançando feitiços sobre tudo que elas encontram”. A figura feminina
era associada ao diabo e à bruxaria.
Em 1515 a cidade de Genebra queimou mais de 500 mulheres acusadas de
bruxaria. No bispado de Bamberg foram queimadas 500 de uma única vez e no de
Wurtzburgo, 900. Os dois últimos localizados na atual Alemanha. Muitas morreram,
simplesmente, por defenderem os seus direitos seculares de exercer atividades de
parteiras e curandeiras. A “caça as bruxas” foi na verdade uma “guerra santa” contra as
próprias mulheres.
O avanço burguês, entre os séculos XIV e XVIII, refletiu negativamente na
situação das mulheres. Elas foram oficialmente excluídas de várias profissões, como a
medicina e advocacia, e também das universidades. No século XIV foi proibida a
sucessão feminina nos tronos. Em 1593 o Parlamento de Paris proibiu as mulheres de
exercer funções públicas. O discurso religioso foi sendo completado pelo discurso
pseudocientífico dos médicos e filósofos.
Os liberais e a igualdade da mulher
Os direitos políticos das mulheres constituem, atualmente, uma condição de
qualquer democracia moderna – burguesa ou socialista. Hoje nenhum país que
recusasse o direito de voto às mulheres poderia ser considerado democrático. Mas, esta
é uma situação relativamente nova – nascida no século XX – e conquistada depois de
muitas lutas.
Entre os pensadores iluministas foi Condorcet um dos poucos a abraçar a
causa da emancipação política das mulheres. Em 1791 escreveu o solitário “Ensaio
sobre a admissão das mulheres na cidade”. Era uma exceção à regra, pois o nascente
mundo intelectual liberal-burguês não via com bons olhos a proposta de participação
política do sexo feminino.
Os revolucionários norte-americanos que elaboraram a famosa “Declaração
da Independência” tinham claro sua posição de superioridade sobre as mulheres e
pretendiam conservá-la a qualquer preço. Diante da reivindicação de direitos para
mulheres feita por sua própria esposa, o líder independentista John Quincy Adams
afirmou: “Estejam certas, nós somos suficientemente lúcidos para não abrir mão do
nosso sistema masculino”. A jovem república norte-americana havia sido criada para o
gozo exclusivo dos homens proprietários e de pele branca.
Na revolução francesa, iniciada em 1789, se repetiria o mesmo fenômeno. A
“Declaração dos Direitos dos Homens e dos Cidadãos” pretendia realizar o que
efetivamente prometia: “garantir os direitos dos homens” e não os direitos “de homens e
mulheres”. Os homens ali não eram entendidos, como viria a ser interpretado mais
tarde, como “gênero humano” e sim como membros do sexo masculino.
O principal filósofo democrático do século XVIII, e que inspirou a ala radical
da Revolução Francesa, foi Jean-Jacques Rousseau. Mesmo para ele ao homem
deveria caber o mundo da política (e do trabalho produtivo) e à mulher o restrito espaço
do lar. O seu livro Emílio ou Da educação, especialmente o capítulo “A idade da
sabedoria e do casamento”, é paradigmático neste sentido.
Segundo ele, a mulher teria sido criada pela natureza para agradar ao
homem e para ser subjugada por ele, pois um era “ativo e forte” e o outro “passivo e
fraco”. O seu destino era o casamento e a maternidade. Por isso: “a rigidez dos deveres
relativos a ambos os sexo não pode se a mesma. Quando a mulher se queixa a esse
respeito da injusta desigualdade que o homem institui, ela está errada; tal desigualdade
não é uma instituição humana, ou pelo menos não é obra do preconceito, mas da
razão”.
Já em 1789, após a queda da Bastilha, uma comissão de mulheres levou um
manifesto à Assembléia Nacional no qual afirmavam: “Destruístes os preconceitos do
passado, mas permitistes que se mantivesse o mais antigo, que exclui dos cargos, das
dignidades das honrarias e, sobretudo, de sentar-se entre vós, a metade dos habitantes
do reino (...) Destruístes o cetro do despotismo (...) e todos os dias permitis que treze
milhões de escravas suportem as cadeias de treze milhões de déspotas”. As mulheres
começavam lentamente a se rebelar contra a opressão milenar que pesava sobre elas.
A situação em que foram colocadas as mulheres depois da revolução fez
com que Olympe de Gouges publicasse, em 1791, a sua “Declaração dos direitos da
mulher e da cidadã” - uma resposta feminina aos limites da revolução francesa que,
como a inglesa e norte-americana, não garantiu às mulheres o direito ao voto, ao acesso
às funções públicas e nem mesmo o direito pleno à propriedade. As revoluções em
curso mais do que burguesas, eram masculinas.
“As mães, as filhas, as irmãs, representantes da nação, reivindicam
constituir-se em Assembléia Nacional”, assim se iniciava a “Declaração dos direitos da
mulher”, que no seu 10º artigo afirmava se “a mulher tem o direito de subir ao cadafalso,
também lhe deve ser dado o direito de subir à tribuna”. Gouges subiu ao cadafalso e foi
guilhotinada em novembro de 1793. Escreveu o jornal Le Moniteur: “Ela desejou ser um
homem de Estado, e parece que a lei puniu esta conspiradora por ter esquecido as
virtudes que convêm ao seu sexo.” A sua morte, no entanto, se deve mais a razões de
ordem política imediata. Ela havia defendido teses que iam contra o poder
revolucionário, dirigido pelos jacobinos. Por exemplo, advogou a necessidade de um
plebiscito para que os franceses decidissem se desejavam a República ou a Monarquia.
Posicionou-se contra a pena de morte, mesmo para a família real, e ficou ao lado dos
girondinos que começavam a serem proscritos. Mulher de língua ferina chamou
Robespierre de “animal anfíbio” e Marat de “aborto da humanidade”.
O terror revolucionário recrudesceu após o assassinato de Marat, um dos
mais populares propagandistas revolucionários. A sua assassina foi justamente uma
mulher, a jovem girondina Charlotte Corday. O ódio contra as mulheres girondinas
tomou conta das massas populares. A feminista Théroigne de Méricourt foi atacada na
rua – despida e apedrejada – e acabou enlouquecendo e, anos depois, morreu
esquecida num asilo de alienados.
Logo após a execução de Olympe de Gouges todos os clubes políticos
femininos foram fechados. O revolucionário Chaumette ao propor a lei que proibia os
clubes afirmou: “A Natureza disse à mulher: seja mulher! Os ternos cuidados para com a
infância, as doces inquietudes da maternidade, eis ai teu trabalho”. Assim, a revolução
popular minava as suas próprias bases sociais.
Robespierre e os jacobinos foram derrubados em 1794. Ao terror vermelho
seguiu-se o terror branco. O líder jacobino e cerca de cem de seus seguidores foram
imediatamente degolados sem julgamento. As mulheres francesas, rapidamente,
sentiriam este revés da revolução.
Em 1795 um decreto determinou que: “todas as mulheres se retirarão, até
ordem contrária, a seus respectivos domicílios. Aquelas que, uma hora após a
publicação do presente decreto, estiver nas ruas agrupadas em número maior que
cinco, serão dispersas por força das armas e presas até que a tranqüilidade pública
retorne à Paris.” A nova Convenção anti-jacobina proibiu as mulheres de assistir suas
reuniões, a menos que estivessem acompanhadas de um homem.
A consolidação da derrota das mulheres se deu com a aprovação dos
Códigos Civil e Penal, aprovados respectivamente em 1804 e 1808, já sob o governo de
Napoleão Bonaparte. Neles se restabelecia o princípio de que “a mulher deve
obediência ao homem”. O marido passava a ter legalmente, entre outras coisas, o direito
de exigir que os Correios entregassem a ele todas as cartas endereçadas a esposa, de
dispor livremente do seu salário – muitos receberiam os salários pelas esposas. Para
tudo a mulher necessitava da autorização do pai ou do marido.
Segundo o “código napoleônico” a mulher adultera poderia ser condenada de
três meses até dois anos de prisão. O adultero, pelo contrário, deveria pagar apenas
uma pequena multa. Um dos seus redatores justificou tal disparidade: “A infidelidade da
mulher supõe mais corrupção e tem o efeito mais perigoso que aquela do marido” e
Engels, por sua vez, ridicularizou o artigo do código que decretava solenemente que “a
criança concebida durante o casamento terá por pai sempre o marido” e concluiu irônico:
“Eis aí o último resultado de três mil anos de monogamia.”
Seriam precisos ainda mais de 100 anos de lutas encarniçadas para que as
mulheres pudessem, finalmente, usufruir de direitos políticos e civis iguais aos homens.
É isso que começaremos tratar no próximo artigo.
Bibliografia
Alambert, Zuleika, Feminismo: o ponto de vista marxista, Ed. Nobel, S.P., 1986.
Albistur, Maité e Armogathe – Histoire du féminisme français, Éditions dês femmes, Paris, 1977
Álvares, José Gutiérrez – Mulheres Socialistas, Editorial Hacer, Barcelona, 1986
Alves, Branca Moreira e Pitanguy, Jacqueline – O que é feminismo, Ed. Brasiliense, 1981
Bebel, August – La mujer y el socialismo, Akal editor, Espanha, 1977
Engels, F – A Origem da família, da propriedade privada e do Estado, Ed. Civilização Brasileira,
RJ, 1974.
Garaudy, Roger – Liberação da mulher. Liberação humana, Ed. Zahar, RJ., 1982
Rabaut, Jean – Histoire des féminismes français – Éditions Stock, Paris, 1978.
Saffioti, Heleieth I. B. – A mulher na sociedade de classe: Mito e realidade, Ed. Vozes, Petrópolis,
1976.
Sullerot, Evelyne – Historia y sociología del trabajo femenino, Ediciones Península, Barcelona,
1970.
Engels e as origens da opressão da mulher

por AUGUSTO C. BUONICORE1


Marx e Engels foram, no século XIX, os pensadores que mais contribuíram
para o desvendamento das verdadeiras origens da opressão da mulher e, com isso,
criaram as condições para que fossem construídos os caminhos que conduziriam à sua
libertação. Um dos marcos deste processo foi a publicação, em 1884, do livro A Origem
da Família da Propriedade Privada e do Estado.
Esta obra, escrita por Engels, teve por base uma série de anotações
deixadas pelo próprio Marx, que havia falecido no ano anterior à sua publicação. Por
isso, segundo seu autor, o livro foi “a execução de um testamento” e concluiu: “o meu
trabalho só debilmente pode substituir aquele que o meu falecido amigo não chegou a
escrever” (ENGELS, 1974:1-2). Modéstia à parte, o livro se tornou um êxito de venda –
atingindo quatro edições em menos de sete anos – e foi traduzido em várias línguas. Até
hoje continua sendo uma referência obrigatória para todos aqueles que querem
entender melhor a formação da família e do Estado modernos.
Trataremos neste pequeno artigo apenas dos aspectos referentes à história
da família e, conseqüentemente, da história da derrota da mulher no seu interior e os
caminhos apontados por Engels (e Marx) para superação desta opressão milenar.
A “ciência da família” estava dando os seus primeiros passos quando os dois
pensadores socialistas alemães se interessaram por ela. A obra pioneira neste campo
havia sido O direito Materno de Bachofen, publicada em 1861. Nela o autor expõe, pela
primeira vez e para escândalo geral, a tese de que nas sociedades primitivas, em certo
período, teria predominado o matriarcado – ou seja, havia predominado a ascendência
social e política das mulheres sobre os homens.
Engels, no prefácio de 1891, referindo-se a descoberta de Bachofen,
escreveu: “primitivamente não se podia contar a descendência senão por uma linha
feminina (...) essa situação primitiva das mães, como os únicos genitores certos de seus
filhos, lhes assegurou (...) a posição social mais elevada que tiveram (...), Bachofen não
enunciou esses princípios com tanta clareza (...) mas, o simples fato de tê-los
demonstrado, em 1861, tinha o significado de uma revolução” (ENGELS, 1974:10).
Até a década de sessenta (do século XIX), continuou, “não se poderia sequer
pensar em uma história da família. As ciências históricas ainda se achavam, nesse
domínio, sob a influência dos Cinco Livros de Moisés. A forma patriarcal da família,
pintada nesses cinco livros como maior riqueza de minúcias do que em qualquer outro

1
Historiador, doutorando em Ciências Sociais/Unicamp, membro do Comitê Central do PC do Brasil,
do conselho de redação das revistas Debate Sindical e Princípios, do conselho editorial da revista
Crítica Marxista e diretor do Instituto Maurício Grabóis (IMG)
lugar, não somente era admitida, sem reservas, como a mais antiga, como também se
identificava – descontando a poligamia – com a família burguesa de hoje, de modo que
era como se a família não tivesse tido evolução alguma através da história” (ENGELS,
1974:6). Era como se Deus e/ou a Natureza tivessem, desde sempre, reservado à
mulher um papel subalterno no interior da família e da sociedade.
Na seqüência do livro de Bachofen foram publicadas obras como O
casamento primitivo (1865) de autoria de Mac Lennan, Origem da Civilização (1870) de
Lubbock e, por fim, A sociedade antiga (1877) de Lewis Morgan. Esta última teve um
forte impacto sobre Marx e Engels. No prefácio de A Origem da Família, da Propriedade
Privada e do Estado afirmou-se: “Na América, Morgan descobriu de novo, e à sua
maneira, a concepção materialista da história – formulada por Marx, quarenta anos
antes” (ENGELS, 1974:1).
Isso não significa que Engels e Marx abonassem tudo o que dissera Morgan.
O próprio Engels, numa carta à Kautsky de 1884, escreveu: “A coisa, aliás, não teria
sentido se eu quisesse escrever „objetivamente‟ não criticando Morgan, não utilizando os
resultados recentemente conseguidos, não os colocando em relação como nossas
concepções e os dados já estabelecidos. Isto não serviria em nada aos nossos
operários” (ALAMBERT, 1986:26). Na última versão da obra (1891), Engels já sentiu a
necessidade de fazer algumas alterações baseadas no desenvolvimento da ciência nos
sete anos decorrido desde a primeira edição.
O grande mérito destas obras, publicadas nas décadas de 1870 e 1880, foi a
constatação de que a família tinha história e que, ao longo dos séculos, tinha conhecido
várias formas. A família monogâmico-patriarcal era apenas uma delas. Conclusão: o
poder masculino e a submissão da mulher não eram eternos, como diziam as religiões e
as pseudociências racistas e sexistas da época.
Entre 1880 e 1881, Marx estudou profundamente a obra de Morgan e
produziu cerca de cem páginas de anotações. Depois passou a devorar o que havia de
mais atualizado sobre o assunto. O seu objetivo era escrever um tratado sobre a
evolução da família e a relação entre os sexos, mas morreu antes que pudesse concluir
o seu ousado projeto. Infelizmente Marx morreu, também, sem concluir os capítulos
sobre as classes sociais e o Estado, que comporiam a sua obra magna O Capital.
Talvez, se tivesse concluído estes importantes trabalhos, teríamos uma outra visão
sobre o fundador do materialismo-histórico.
A empolgação de Engels pelas descobertas de homens como Bachofen e,
especialmente Morgan, pode ser aquilatada ainda no prefácio de 1891. Ali concluiu que
o “descobrimento da primitiva gens de direito materno, como etapa anterior à gens e
direito paterno dos povos civilizados, tem, para a história primitiva, a mesma importância
que a teoria da evolução de Darwin para a biologia e a teoria da mais-valia, enunciada
por Marx, para a economia política” (ENGELS, 1974:17).
Morgan havia ido mais longe que Bachofen, que era idealista, ao afirmar que
a evolução da família estava relacionada, em última instância, às transformações
ocorridas no mundo da produção. Foi do livro de Morgan, por exemplo, que Engels e
Marx extraíram a famosa divisão da sociedade antiga em “três épocas principais”:
estado selvagem, barbárie e civilização – divididos segundo os “progressos obtidos na
produção dos meios de subsistência”. Morgan, também, tratou de maneira mais
fundamentada – e de maneira materialista – a transição do matriarcado ao patriarcado
monogâmico.
Seguindo a trilha aberta Morgan, Engels afirmou: “há três formas principais
de casamento que correspondem aproximadamente aos três estágios fundamentais da
evolução humana. Ao estado selvagem corresponde o matrimônio por grupos; à
barbárie, o matrimônio sindiástico; e à civilização corresponde a monogamia com seus
complementos: o adultério e a prostituição” (ENGELS, 1974:81).
Na sociedade primitiva a descendência “contava apenas pela linha feminina”.
Os filhos não pertenciam a gens paterna e sim a gens materna. “Com a morte do
proprietário de rebanhos estes teriam de passar primeiramente para seus irmãos e irmãs
e aos filhos destes últimos, ou aos descendentes das irmãs de sua mãe. Quanto aos
seus próprios filhos, eram deserdados”. Continuou Engels: “À medida, portanto, que as
riquezas aumentavam estas davam ao homem, por um lado, uma situação mais
importante na família que a da mulher, e, por outro lado, faziam nascer nele a idéia de
utilização dessa situação a fim de que revertesse em benefício dos filhos a ordem de
sucessão tradicional. Mas isso não podia ser feito enquanto permanecia em vigor a
filiação segundo o direito materno. Este deveria, assim, ser abolido e foi o que se
verificou”. Assim “foi estabelecida a filiação masculina e o direito hereditário paterno”
(MARX, ENGELS, LENIN, 1980:15).
Engels, como teórico socialista, tinha plena consciência da significação social
e política das descobertas daqueles cientistas, particularmente no que dizia respeito à
libertação da mulher. Para ele ficava claro que a “reversão do direito materno foi a
grande derrota histórica do sexo feminino. O homem passou a governar também na
casa, a mulher foi degradada, escravizada, tornou-se escrava do prazer do homem e um
simples instrumento de reprodução”. A monogamia, assim, “não apareceria de modo
algum, na história, como a reconciliação entre o homem e a mulher e menos ainda como
a sua forma mais elevada. Ao contrário, ela manifesta-se como a submissão de um sexo
ao outro, como a proclamação de um conflito entre os sexos, desconhecido até então
em toda a pré-história”.
Por isso, concluiu que “o primeiro antagonismo de classe que apareceu na
história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher na
monogamia e a primeira opressão de classe coincide com a opressão do sexo feminino
pelo sexo masculino. A monogamia foi um grande progresso histórico, mas, ao mesmo
tempo, ela abre, ao lado da escravatura e da propriedade privada, a época que dura
ainda hoje, onde cada passo para frente é ao mesmo tempo um relativo passo atrás, o
bem-estar e o progresso de uns se realizam através da infelicidade e do recalcamento
de outros” (MARX, ENGELS, LENIN, 1980:22-23).
A monogamia teria sido “fundada sob a dominação do homem com o fim
expresso de procriar filhos duma paternidade incontestável, e essa paternidade é
exigida porque essas crianças devem, na qualidade de herdeiros diretos, entrar um dia
na posse da fortuna paterna”. Agora “somente o homem pode romper esse laço
(matrimonial)”, “o direito da infidelidade conjugal fica-lhe (...) garantido pelo menos pelos
costumes”, no entanto, a mulher que deseje conquistar sua liberdade sexual será
“punida mais severamente do que em qualquer outra época precedente”. Nesta forma
de casamento e de família, “aquilo que para a mulher é um crime de graves
conseqüências legais e sociais, para o homem é algo considerado honroso, ou, quando
muito, uma leve mancha moral que se carrega com satisfação” (ENGELS, 1974:81).
A monogamia gerava uma sociedade essencialmente hipócrita e Engels
ironizou esta situação: “Os homens haviam obtido vitória sobre as mulheres, mas
derrotadas se encarregaram generosamente de coroar a fronte dos vencedores. Ao lado
da monogamia e do heterismo, o adultério torna-se uma instituição social fatal –
proscrita, rigorosamente punida, mas impossível de ser suprimida. A certidão da
paternidade repousa, antes e depois (...) na convicção moral, e, para resolver a insolúvel
contradição, o código de Napoleão decreta, art. 312: „A criança concebida durante o
casamento tem por pai o marido‟. Eis aí o último resultado de três mil anos de
monogamia” (MARX, ENGELS, LENIN, 1980:24-25). Lembramos que Engels escreveu
estas palavras em 1884, quando a monogamia-patriarcal reinava quase absoluta no
mundo.
O primeiro passo para emancipação – e não o último - seria a incorporação
da mulher no trabalho social produtivo. Para Engels (e para Marx) “a emancipação da
mulher e sua equiparação ao homem são e continuarão sendo impossíveis, enquanto
ela permanecer excluída do trabalho produtivo social e confinada ao trabalho doméstico,
que é um trabalho privado. A emancipação da mulher só se torna possível quando ela
pode participar em grande escala, em escala social, da produção, e quando o trabalho
doméstico lhe toma apenas um tempo insignificante” (ENGELS, 1974:182).
O capitalismo iniciou esta revolução democrática, mas foi incapaz de concluí-
la, pois a forma monogâmico-patriarcal – que está na gênese da dominação da mulher,
nasceu justamente da “concentração das grandes riquezas nas mesmas mãos – as dos
homens – e do desejo de transmitir essas riquezas por heranças aos filhos desses
mesmos homens”. Assim, “a preponderância do homem no casamento é uma simples
conseqüência da sua preponderância econômica e desaparecerá com esta” (MARX,
ENGELS, LENIN, 1980:24-25).
A superação deste estado de coisa milenar deve passar, necessariamente,
por uma revolução social que transforme os meios de produção, e a riqueza produzida
por eles, em propriedade social. Assim, a conclusão do processo emancipatório passa
pela eliminação da propriedade privada dos meios de produção e pelo fim da exploração
do homem pelo homem. Somente uma profunda revolução social, de caráter socialista,
poderia limpar o terreno para que a libertação da mulher pudesse, finalmente, ser
completada. Engels, em minha opinião, subestima a capacidade do capitalismo de
quebrar “a preponderância econômica” do homem no interior da família. Afinal, o século
XIX dava pouquíssimos sinais de que isso poderia acontecer.
Por outro lado, a conquista do socialismo é uma das condições para
emancipação da mulher, mas ela não é ainda suficiente. A emancipação das mulheres
exige uma dura e prolongada luta de idéias no interior do Partido e da sociedade,
inclusive após a revolução socialista. A emancipação, portanto, não será o resultado
automático – mais ou menos natural – do processo de expropriação dos principais meios
de produção das mãos da burguesia.
Engels acreditava que, na sociedade de comunista futura, a monogamia
deveria adquirir uma nova qualidade, pois se tornaria “enfim, uma realidade – mesmo
para o homem”. Seria, assim, uma monogamia de novo tipo, assentada na plena
igualdade e liberdade entre os sexos. Marx e Engels, ao contrário que pensam alguns,
estavam longe de serem defensores da “promiscuidade sexual”.
Conclusão
A antropologia e a etnologia modernas negam que a humanidade tenha,
necessariamente, passado por uma fase caracterizada pela ascendência da mulher
sobre o homem. Alguns pesquisadores chegam mesmo a negar a existência de tais
sociedades matriarcais.
Uma renomada marxista (e feminista) brasileira, Zuleika Alambert, também,
aderiu às críticas feitas às conclusões de Morgan e Engels. Para ela o controle nas
sociedades primitivas “sempre (grifo é nosso) foram exercido pelos homens”, pois a
“relação entre os sexos nas sociedades primitivas era, fundamentalmente, assimétrica e
não recíproca. No sistema matrilinear a autoridade pertencia ao irmão da mulher e ao tio
materno, enquanto no patrilinear pertencia ao pai e ao marido” (ALAMBERT, 1983:32).
Mas, logo em seguida, relativiza tal afirmação ao dizer: “Assim, por exemplo, nem a tese
do matriarcado total (grifo nosso), nem a equivalência da descendência matriarcal com
uma posição de predomínio social da mulher foram confirmadas pela pesquisa moderna”
(ALAMBERT, 1983:35).
Por outro lado, até a segunda metade do século XX, autores soviéticos, como
Diakov e Kovalev, continuavam afirmando que o “clã materno” era “uma fase inevitável
da evolução da sociedade humana” e que no matriarcado “a mulher era igual ao homem
na vida econômica e social”. Para eles, os que buscavam “desmentir as idéias
sustentadas por Engels” visavam, exclusivamente, “provar a eternidade do papel
subalterno da mulher” (DIAKOV E KOVALEV, 1982:37-38). Mas, contraditoriamente,
seriam as teóricas do movimento feminista que mais se bateriam contra a tese do
matriarcado.
Acho que nesta discussão seria bom não irmos nem tanto ao céu nem tanto
a terra. Hoje já se sabe que a classificação da história das sociedades primitivas feita
por Morgan é bastante imprecisa. O próprio Engels, logo na abertura de seu livro,
afirmou que a classificação de Morgan “permanecerá em vigor até que uma riqueza de
dados muito mais considerável nos obrigue a modificá-la” (ENGELS, 1974:21). Como
previu, os novos aportes oferecidos pela etnologia, antropologia e pela história nos
obrigaram a reformular os modelos de Morgan.
O principal erro desses estudiosos do século XIX foi o de ter conjeturado a
existência do matriarcado em todas as sociedades primitivas na fase denominada
barbárie. Algo que se mostrou incorreto. Os próprios cientistas soviéticos citados acima
chegaram à conclusão de que “enquanto Morgan (...) tinha indicado só uma linha de
evolução da sociedade humana, os sábios do século XX puderam traçar as vias
complexas e múltiplas do progresso do homem” (DIAKOV E KOVALEV, 1982:17).
É claro que isto não nega, como afirmam alguns autores anti-engelsianos,
que em determinadas sociedades possam ter existido – e os indícios são fortes neste
sentido – organizações sociais de tipo matriarcal na qual as mulheres pudessem
desfrutar de um maior prestigio social e econômico do que viriam a ter nos períodos
posteriores e o simples reconhecimento desta possibilidade continua ter para nós um
significado revolucionário.

Bibliografia
Alambert, Zuleika. Feminismo: o ponto de vista marxista, Ed. Nobel, São Paulo, 1986.
Bebel, August. La mujer y el socialismo, Akal editor, Espanha, 1977.
Diakov, V e Kovalev, S. A Sociedade Primitiva, Global editora, São Paulo, 1982.
Engels, F. A Origem da família, da propriedade privada e do Estado, Ed. Civilização Brasileira, RJ, 1974.
Garaudy, Roger. Liberação da mulher. Liberação humana, Ed. Zahar, RJ., 1982
Lênin, V.I. Sobre a emancipação da mulher, Ed. Alfa-Omega, São Paulo, 1980.
Marx, Engels e Lênin. Sobre a Mulher, Global editora, São Paulo, 1980.
Saffioti, Heleieth I. B. A mulher na sociedade de classe: Mito e realidade, Ed. Vozes, Petrópolis, 1976.
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