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“A mulher é nossa propriedade e nós não somos propriedade dela (...) Ela é, pois,
propriedade, tal qual a árvore frutífera é propriedade do jardineiro”.
Napoleão Bonaparte
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Historiador, doutorando em Ciências Sociais/Unicamp, membro do Comitê Central do PC do Brasil,
do conselho de redação das revistas Debate Sindical e Princípios, do conselho editorial da revista
Crítica Marxista e diretor do Instituto Maurício Grabóis (IMG)
lugar, não somente era admitida, sem reservas, como a mais antiga, como também se
identificava – descontando a poligamia – com a família burguesa de hoje, de modo que
era como se a família não tivesse tido evolução alguma através da história” (ENGELS,
1974:6). Era como se Deus e/ou a Natureza tivessem, desde sempre, reservado à
mulher um papel subalterno no interior da família e da sociedade.
Na seqüência do livro de Bachofen foram publicadas obras como O
casamento primitivo (1865) de autoria de Mac Lennan, Origem da Civilização (1870) de
Lubbock e, por fim, A sociedade antiga (1877) de Lewis Morgan. Esta última teve um
forte impacto sobre Marx e Engels. No prefácio de A Origem da Família, da Propriedade
Privada e do Estado afirmou-se: “Na América, Morgan descobriu de novo, e à sua
maneira, a concepção materialista da história – formulada por Marx, quarenta anos
antes” (ENGELS, 1974:1).
Isso não significa que Engels e Marx abonassem tudo o que dissera Morgan.
O próprio Engels, numa carta à Kautsky de 1884, escreveu: “A coisa, aliás, não teria
sentido se eu quisesse escrever „objetivamente‟ não criticando Morgan, não utilizando os
resultados recentemente conseguidos, não os colocando em relação como nossas
concepções e os dados já estabelecidos. Isto não serviria em nada aos nossos
operários” (ALAMBERT, 1986:26). Na última versão da obra (1891), Engels já sentiu a
necessidade de fazer algumas alterações baseadas no desenvolvimento da ciência nos
sete anos decorrido desde a primeira edição.
O grande mérito destas obras, publicadas nas décadas de 1870 e 1880, foi a
constatação de que a família tinha história e que, ao longo dos séculos, tinha conhecido
várias formas. A família monogâmico-patriarcal era apenas uma delas. Conclusão: o
poder masculino e a submissão da mulher não eram eternos, como diziam as religiões e
as pseudociências racistas e sexistas da época.
Entre 1880 e 1881, Marx estudou profundamente a obra de Morgan e
produziu cerca de cem páginas de anotações. Depois passou a devorar o que havia de
mais atualizado sobre o assunto. O seu objetivo era escrever um tratado sobre a
evolução da família e a relação entre os sexos, mas morreu antes que pudesse concluir
o seu ousado projeto. Infelizmente Marx morreu, também, sem concluir os capítulos
sobre as classes sociais e o Estado, que comporiam a sua obra magna O Capital.
Talvez, se tivesse concluído estes importantes trabalhos, teríamos uma outra visão
sobre o fundador do materialismo-histórico.
A empolgação de Engels pelas descobertas de homens como Bachofen e,
especialmente Morgan, pode ser aquilatada ainda no prefácio de 1891. Ali concluiu que
o “descobrimento da primitiva gens de direito materno, como etapa anterior à gens e
direito paterno dos povos civilizados, tem, para a história primitiva, a mesma importância
que a teoria da evolução de Darwin para a biologia e a teoria da mais-valia, enunciada
por Marx, para a economia política” (ENGELS, 1974:17).
Morgan havia ido mais longe que Bachofen, que era idealista, ao afirmar que
a evolução da família estava relacionada, em última instância, às transformações
ocorridas no mundo da produção. Foi do livro de Morgan, por exemplo, que Engels e
Marx extraíram a famosa divisão da sociedade antiga em “três épocas principais”:
estado selvagem, barbárie e civilização – divididos segundo os “progressos obtidos na
produção dos meios de subsistência”. Morgan, também, tratou de maneira mais
fundamentada – e de maneira materialista – a transição do matriarcado ao patriarcado
monogâmico.
Seguindo a trilha aberta Morgan, Engels afirmou: “há três formas principais
de casamento que correspondem aproximadamente aos três estágios fundamentais da
evolução humana. Ao estado selvagem corresponde o matrimônio por grupos; à
barbárie, o matrimônio sindiástico; e à civilização corresponde a monogamia com seus
complementos: o adultério e a prostituição” (ENGELS, 1974:81).
Na sociedade primitiva a descendência “contava apenas pela linha feminina”.
Os filhos não pertenciam a gens paterna e sim a gens materna. “Com a morte do
proprietário de rebanhos estes teriam de passar primeiramente para seus irmãos e irmãs
e aos filhos destes últimos, ou aos descendentes das irmãs de sua mãe. Quanto aos
seus próprios filhos, eram deserdados”. Continuou Engels: “À medida, portanto, que as
riquezas aumentavam estas davam ao homem, por um lado, uma situação mais
importante na família que a da mulher, e, por outro lado, faziam nascer nele a idéia de
utilização dessa situação a fim de que revertesse em benefício dos filhos a ordem de
sucessão tradicional. Mas isso não podia ser feito enquanto permanecia em vigor a
filiação segundo o direito materno. Este deveria, assim, ser abolido e foi o que se
verificou”. Assim “foi estabelecida a filiação masculina e o direito hereditário paterno”
(MARX, ENGELS, LENIN, 1980:15).
Engels, como teórico socialista, tinha plena consciência da significação social
e política das descobertas daqueles cientistas, particularmente no que dizia respeito à
libertação da mulher. Para ele ficava claro que a “reversão do direito materno foi a
grande derrota histórica do sexo feminino. O homem passou a governar também na
casa, a mulher foi degradada, escravizada, tornou-se escrava do prazer do homem e um
simples instrumento de reprodução”. A monogamia, assim, “não apareceria de modo
algum, na história, como a reconciliação entre o homem e a mulher e menos ainda como
a sua forma mais elevada. Ao contrário, ela manifesta-se como a submissão de um sexo
ao outro, como a proclamação de um conflito entre os sexos, desconhecido até então
em toda a pré-história”.
Por isso, concluiu que “o primeiro antagonismo de classe que apareceu na
história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher na
monogamia e a primeira opressão de classe coincide com a opressão do sexo feminino
pelo sexo masculino. A monogamia foi um grande progresso histórico, mas, ao mesmo
tempo, ela abre, ao lado da escravatura e da propriedade privada, a época que dura
ainda hoje, onde cada passo para frente é ao mesmo tempo um relativo passo atrás, o
bem-estar e o progresso de uns se realizam através da infelicidade e do recalcamento
de outros” (MARX, ENGELS, LENIN, 1980:22-23).
A monogamia teria sido “fundada sob a dominação do homem com o fim
expresso de procriar filhos duma paternidade incontestável, e essa paternidade é
exigida porque essas crianças devem, na qualidade de herdeiros diretos, entrar um dia
na posse da fortuna paterna”. Agora “somente o homem pode romper esse laço
(matrimonial)”, “o direito da infidelidade conjugal fica-lhe (...) garantido pelo menos pelos
costumes”, no entanto, a mulher que deseje conquistar sua liberdade sexual será
“punida mais severamente do que em qualquer outra época precedente”. Nesta forma
de casamento e de família, “aquilo que para a mulher é um crime de graves
conseqüências legais e sociais, para o homem é algo considerado honroso, ou, quando
muito, uma leve mancha moral que se carrega com satisfação” (ENGELS, 1974:81).
A monogamia gerava uma sociedade essencialmente hipócrita e Engels
ironizou esta situação: “Os homens haviam obtido vitória sobre as mulheres, mas
derrotadas se encarregaram generosamente de coroar a fronte dos vencedores. Ao lado
da monogamia e do heterismo, o adultério torna-se uma instituição social fatal –
proscrita, rigorosamente punida, mas impossível de ser suprimida. A certidão da
paternidade repousa, antes e depois (...) na convicção moral, e, para resolver a insolúvel
contradição, o código de Napoleão decreta, art. 312: „A criança concebida durante o
casamento tem por pai o marido‟. Eis aí o último resultado de três mil anos de
monogamia” (MARX, ENGELS, LENIN, 1980:24-25). Lembramos que Engels escreveu
estas palavras em 1884, quando a monogamia-patriarcal reinava quase absoluta no
mundo.
O primeiro passo para emancipação – e não o último - seria a incorporação
da mulher no trabalho social produtivo. Para Engels (e para Marx) “a emancipação da
mulher e sua equiparação ao homem são e continuarão sendo impossíveis, enquanto
ela permanecer excluída do trabalho produtivo social e confinada ao trabalho doméstico,
que é um trabalho privado. A emancipação da mulher só se torna possível quando ela
pode participar em grande escala, em escala social, da produção, e quando o trabalho
doméstico lhe toma apenas um tempo insignificante” (ENGELS, 1974:182).
O capitalismo iniciou esta revolução democrática, mas foi incapaz de concluí-
la, pois a forma monogâmico-patriarcal – que está na gênese da dominação da mulher,
nasceu justamente da “concentração das grandes riquezas nas mesmas mãos – as dos
homens – e do desejo de transmitir essas riquezas por heranças aos filhos desses
mesmos homens”. Assim, “a preponderância do homem no casamento é uma simples
conseqüência da sua preponderância econômica e desaparecerá com esta” (MARX,
ENGELS, LENIN, 1980:24-25).
A superação deste estado de coisa milenar deve passar, necessariamente,
por uma revolução social que transforme os meios de produção, e a riqueza produzida
por eles, em propriedade social. Assim, a conclusão do processo emancipatório passa
pela eliminação da propriedade privada dos meios de produção e pelo fim da exploração
do homem pelo homem. Somente uma profunda revolução social, de caráter socialista,
poderia limpar o terreno para que a libertação da mulher pudesse, finalmente, ser
completada. Engels, em minha opinião, subestima a capacidade do capitalismo de
quebrar “a preponderância econômica” do homem no interior da família. Afinal, o século
XIX dava pouquíssimos sinais de que isso poderia acontecer.
Por outro lado, a conquista do socialismo é uma das condições para
emancipação da mulher, mas ela não é ainda suficiente. A emancipação das mulheres
exige uma dura e prolongada luta de idéias no interior do Partido e da sociedade,
inclusive após a revolução socialista. A emancipação, portanto, não será o resultado
automático – mais ou menos natural – do processo de expropriação dos principais meios
de produção das mãos da burguesia.
Engels acreditava que, na sociedade de comunista futura, a monogamia
deveria adquirir uma nova qualidade, pois se tornaria “enfim, uma realidade – mesmo
para o homem”. Seria, assim, uma monogamia de novo tipo, assentada na plena
igualdade e liberdade entre os sexos. Marx e Engels, ao contrário que pensam alguns,
estavam longe de serem defensores da “promiscuidade sexual”.
Conclusão
A antropologia e a etnologia modernas negam que a humanidade tenha,
necessariamente, passado por uma fase caracterizada pela ascendência da mulher
sobre o homem. Alguns pesquisadores chegam mesmo a negar a existência de tais
sociedades matriarcais.
Uma renomada marxista (e feminista) brasileira, Zuleika Alambert, também,
aderiu às críticas feitas às conclusões de Morgan e Engels. Para ela o controle nas
sociedades primitivas “sempre (grifo é nosso) foram exercido pelos homens”, pois a
“relação entre os sexos nas sociedades primitivas era, fundamentalmente, assimétrica e
não recíproca. No sistema matrilinear a autoridade pertencia ao irmão da mulher e ao tio
materno, enquanto no patrilinear pertencia ao pai e ao marido” (ALAMBERT, 1983:32).
Mas, logo em seguida, relativiza tal afirmação ao dizer: “Assim, por exemplo, nem a tese
do matriarcado total (grifo nosso), nem a equivalência da descendência matriarcal com
uma posição de predomínio social da mulher foram confirmadas pela pesquisa moderna”
(ALAMBERT, 1983:35).
Por outro lado, até a segunda metade do século XX, autores soviéticos, como
Diakov e Kovalev, continuavam afirmando que o “clã materno” era “uma fase inevitável
da evolução da sociedade humana” e que no matriarcado “a mulher era igual ao homem
na vida econômica e social”. Para eles, os que buscavam “desmentir as idéias
sustentadas por Engels” visavam, exclusivamente, “provar a eternidade do papel
subalterno da mulher” (DIAKOV E KOVALEV, 1982:37-38). Mas, contraditoriamente,
seriam as teóricas do movimento feminista que mais se bateriam contra a tese do
matriarcado.
Acho que nesta discussão seria bom não irmos nem tanto ao céu nem tanto
a terra. Hoje já se sabe que a classificação da história das sociedades primitivas feita
por Morgan é bastante imprecisa. O próprio Engels, logo na abertura de seu livro,
afirmou que a classificação de Morgan “permanecerá em vigor até que uma riqueza de
dados muito mais considerável nos obrigue a modificá-la” (ENGELS, 1974:21). Como
previu, os novos aportes oferecidos pela etnologia, antropologia e pela história nos
obrigaram a reformular os modelos de Morgan.
O principal erro desses estudiosos do século XIX foi o de ter conjeturado a
existência do matriarcado em todas as sociedades primitivas na fase denominada
barbárie. Algo que se mostrou incorreto. Os próprios cientistas soviéticos citados acima
chegaram à conclusão de que “enquanto Morgan (...) tinha indicado só uma linha de
evolução da sociedade humana, os sábios do século XX puderam traçar as vias
complexas e múltiplas do progresso do homem” (DIAKOV E KOVALEV, 1982:17).
É claro que isto não nega, como afirmam alguns autores anti-engelsianos,
que em determinadas sociedades possam ter existido – e os indícios são fortes neste
sentido – organizações sociais de tipo matriarcal na qual as mulheres pudessem
desfrutar de um maior prestigio social e econômico do que viriam a ter nos períodos
posteriores e o simples reconhecimento desta possibilidade continua ter para nós um
significado revolucionário.
Bibliografia
Alambert, Zuleika. Feminismo: o ponto de vista marxista, Ed. Nobel, São Paulo, 1986.
Bebel, August. La mujer y el socialismo, Akal editor, Espanha, 1977.
Diakov, V e Kovalev, S. A Sociedade Primitiva, Global editora, São Paulo, 1982.
Engels, F. A Origem da família, da propriedade privada e do Estado, Ed. Civilização Brasileira, RJ, 1974.
Garaudy, Roger. Liberação da mulher. Liberação humana, Ed. Zahar, RJ., 1982
Lênin, V.I. Sobre a emancipação da mulher, Ed. Alfa-Omega, São Paulo, 1980.
Marx, Engels e Lênin. Sobre a Mulher, Global editora, São Paulo, 1980.
Saffioti, Heleieth I. B. A mulher na sociedade de classe: Mito e realidade, Ed. Vozes, Petrópolis, 1976.
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