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DEDALUS - Acervo - FFLCH A 20900008817 Georg Lukécs, flésofo e critico literdrio hiingaro de origem judaica, nasceu em 13 de abril de 1885 em Budapeste, onde morreu em 1970. Apés 0 doutorado em letras em 1909, vai para Heidelberg, onde prossegue suas pesquisas. Em 1917, volta & Hungria, Adere 20 partido comunista em 1918, tornando-se comissério do povo pa- ra Educacéo Nacional na Comuna de 1918. Depois de emigrar para Viena e Moscou, volta & Hungria em 1945, onde € nomeado pro- fessor da Universidade de Budapeste e membro da Academia de Ciéncias. Violentamente criticado em 1949 em razdo de suas posi- Ges ideol6gicas, abandona toda atividade publica até outubro de 1956, quando assume o Ministério da Educagao Nacional no go: verno revolucionério de Imre Nagy. Deportado para a Roménia, autorizado, alguns meses mais tarde, a voltar para a Hungria, onde se dedica até sua morte a atividade cientifica. Lukacs é geralmente considerado o fundador da estética marxista. Ele aplicou suas teo- rias ao estudo da obra de escritores como Balzac, Stendhal, Zola, Goethe, Thomas Mann, Tolsti, Dickens etc. Suas obras mais impor- tantes so: A alma e suas formas (1910), A teoria do romance (1920), Historia e consciéncia de classe (1923), O romance istérico (1947), Ba 226, Stendhal, Zola (1949), A destituigo da razio (1954), Especifici dade da estética (1965). Georg Lukacs Hist6ria e Consciéncia de Classe Estudos sobre a dialética marxista Tradugéo RODNEINASCIMENTO Revisio da tradugio KARINA JANNINI ‘SBD-FFLCH-USP Manin 273080 Martins Fontes SGo Paulo 2003 My agesn an obs fo pica oan om sei com tle Coppin © 2003, Lara Mari Fontes Era Lala ‘So Pal, pr presen eae, sae de 008 Acompantamento eter Leia Aare dos Sater Revises eafices Produ grea ak Goa. se Georg Laks! eo Redes Nine vi Bisigraia ISHN 336192541 1. Clues wis 2. Coneiéec de cle 3 Metin Indies para cate Stemi 1. Const dec Socal Secioog 308.5 Todos os dveits desta edicdo paraalngua portuguesa reservados Livraria Martins Fontes Bdiora Lida. ‘ua Consethero Ramalho, £30340 01325.000 Sao Paulo SP Brast Tel. (11) 32413677 Fax (1) 31086867 mail: infoemartinsfontescom.br hipww-martnsfontes com br SUMARIO Nota a esta edigfo vil Prefitcio (1967) 1 Preficio (1922). 51 O que & marxismo ortodoxo?. 63 Rosa Luxemburgo como marxista ... 105 Consciéncia de classe . 133 A reificacao e a consciéncia do proletariado....... 193 1. O fendmeno da reificagao 194 I. As antinomias do pensamento burgués....... 240 IML. C ponto de vista do proletariado.. 308 A mudanca de fungio do materialismo histérico. 413 465 Legalidade e ilegalidade Notas criticas sobre a Critica da Revolugio Russa, de Rosa Luxemburgo Observagdes metodolégicas sobre a questéo da organizacai eens?) Indice onoméstico .... 595 A Gertrud Borstieber NOTA A ESTA EDICAO A edicao original em que se baseia esta traducéo segue o texto da edicdo Georg Lukacs, Obras Completas, vol. 2, Hist6ria e consciéncia de classe, Primeiros escritos II, Newwied: Hermann Luchterhand Verlag, 1968. Ambas as edicdes permanecem inalteradas em relacao a primei- 1a, publicada pela Malik Verlag, Berlim, 1923 Para esta edicéo (da colecéo Luchterhand), as re- feréncias de Lukacs, em notas de rodapé, aos textos de Marx e Engels foram organizadas pela primeira vez de acordo com a edigao Kar! Marx und Friedrich Engels, Werke [Karl Marx e Friedrich Engels, Obras], organi- zada pelo Instituto de marxismo-leninismo junto ao Co- mité Central (ZK) do Partido Socialista Unificado da Alemanha (SED), Berlim, 1957 ss. PREFACIO (1967) Num antigo esboco autobiogréfico de 1933! cha- mei o meu primeiro percurso intelectual de “Meu cami- nho para Marx”. Os escritos reunidos neste volume? 1m: Georg Luis 2um siebzigsten Geburtstag, Aufbau, Berlim, 1958, pp. 225-31; reimpresso emG. Lukscs, Schriften zu Ideologie und Politik, P. Lid (org.), Luchterhand, Neuwied, 1967, pp. 323-9. 2. Frdhschrifien II, Werkausgabe, Neuwied, 1968, vol. 2. Esse volume, para o qual o prefécio foi redigido, contém ainda, além de “Historia e con ciéncia ce classe”, 08 seguintes ensaios: “Tatik und Ethik” ["Ttica e ét ca] “Rede auf dem Kongress der Jungarbeiter” {"Discurso por ocasio do congresso de jovens operdrios"I, “Rechtsordnung und Gewalt” [“Or- dem juridica e poder’|, “Die Rolle der Moral in der kommunistische Pro- duktion’ ("O papel da moral na produgéo comunista”], “Zur Frage des Parlamentarismus” ("Sobre a questo do parlamentarismo”|, “Die mora- lische Sendung der kommunistischen Partei” (“A missio moral do Parti- ‘do Comunista”], "Opportunismas und Putschismus” [“Oportunismo € golpismo”], “Die Krise des Syndikalismus in Italien” [“A crise do sindica~ lismo ne Itélia” “Zur Frage der Bildungsarbeit” ["Sobre a questdo do tra~ balho de formagio"|, “Spontaneitat der Massen - Aktivitit der Partei” ['Esportaneidade das massas ~ Atividade do partido"l, “Onganisatoris- che Fragen der revolutionaren Initiative” ["Questdes organizacionais da iniciativa revolucionéria”, “Noch einmal Ilusionspolitik” ("Mais uma 2 GEORG LUKACS abrangem meus anos de aprendizado do marxismo. Ao publicar os documentos mais importantes dessa época (1918-1930), minha intencdo é justamente enfatizar seu carater experimental, e de modo algum conferir-lhes um significado atual na disputa presente em torno do autén- tico marxismo. Pois, diante da grande incerteza que rei- na hoje quanto compreensao do seu contetido essencial e duradouro e do seu método permanente, essa clara delimitagao é um mandamento da integridade intelec- tual. Por outro lado, as tentativas de compreender corre- tamente a esséncia do marxismo podem, ainda hoje, ter uma certa importancia documental, se se adotar um com- portamento suficientemente critico tanto em relagao a essas tentativas como em relacdo a situagao presente. Por isso, os escritos aqui reunidos iluminam nao ape- nas os estagios intelectuais do meu desenvolvimento pessoal, mas mostram, ao mesmo tempo, as etapas do iti- nerério geral, que nao devem ser de todo sem impor- tancia, tomando-se a devida distancia critica, inclusive em relacao ao entendimento da situagao presente e 20 avanco a partir da base fornecida por elas. vez a politica da ilusdo” ,“Lenin~Studie iber den Zusammenhang seiner Gedanker" [“Lénin ~ estudo sobre a coeréncia dos seus pensamentos'” I, “Der Triumph Bersteins” ["O triunfo de Bernstein’), "N. Bucharin Theorie des historischen Materialismus” YN, Bukharin: teoria do materia- lismo hist6rico’l, “Die neue Ausgabe von Lassalles Briefen” “A nova edi- co dascartas de Lassale’I,"K. A. Witfogel: Die Wissenschaft der birger- lichen Gesellschaft” 'K. A. Wittfogel: a céncia da sociedade burguesa’1, “Moses Hess und die Probleme der idealistischen Dialektik” [Moses Hess € 0 problema da dialética idealista”|, “O. Spann: kategorienlehre” [“O. Spann: doutrina das categorias’|, “C. Schmitt: Politische Romantik” (°C. Schmitt: romantismo politico”, “Blum-Thesen” ("Teses de Blum’), HISTORIA F CONSCIENCIA DE CLASSE 3 Naturalmente é impossivel, para mim, caracteri- zar corretamente minha posicao a respeito do marxismo por volta de 1918, sem remeter brevemente a sua pré- historia, Conforme destaquei no esboco autobiografico citado acima, ja no colégio havia lido alguma coisa de Marx. Mais tarde, por volta de 1908, ocupei-me inclu- sive de O capital, a fim de encontrar um fundamento sociol6gico para minha monografia sobre o drama mo- derno®, Nessa época, meu interesse estava voltado para 0 Marx “sociélogo”, visto em grande medida pelas len- tes metodolégicas de Simmel e Max Weber. No periodo da Primeira Guerra Mundial, iniciei novamente os es- tudos sobre Marx, desta vez, porém, guiado por inte- esses filos6ficos gerais e influenciado predominante- mente por Hegel, e nao mais pelos pensadores contem- poraneos. Por certo, esse efeito de Hegel também era con- flitante. Por um lado, Kierkegaard havia desempenhado em minha juventude um papel consideravel; nos anos que antecederam imediatamente a guerra, em Heidel- berg, quis até mesmo tratar em ensaio monografico sua critica a Hegel. Por outro, as contradides das minhas concepcées politicas e sociais levavam-me a uma rela- cao intelectual com 0 sindicalismo, sobretudo com a fi- losofia de G. Sorel. Eu aspirava a ultrapassar o radica- lismo burgués, mas repugnava-me a teoria socialde- mocraia (sobretudo a de Kautsky). Ervin Szabé, lider intelectual da oposicdo hiingara de esquerda no inte- rior da socialdemocracia, despertou meu interesse por Sorel. Durante a guerra, entrei em contato com as obras 3. Entureklungsgeschichte des moderuen Dramas, Budapeste, 1911 (em. ‘ndingare), 2 volumes. 4 GEORG LUKAcs de Rosa Luxemburgo. Disso tudo surgiu um amalga- ma de teorias internamente contraditério que foi deci- sivo para o meu pensamento no perfodo de guerra e nos primeiros anos do pés-guerra. Creio que nos afastarfamos da verdade dos fatos se reduzissemos, “A maneira das ciéncias do espfrito”, as contradigées flagrantes desse periodo a um tinico denominador e construissemos um desenvolvimento in- telectual imanente e organico. Se a Fausto é permitido abrigar duas almas em seu peito, por que uma pessoa normal nao pode apresentar o funcionamento simulta- neo e contraditério de tendéncias intelectuais opostas quando muda de uma classe para outraem meio a uma crise mundial? Pelo menos no que me concerne e até onde posso me recordar desses anos, em meu universo intelectual relativo a esse periodo, encontro, de um lado, tendéncias simultaneas de apropriacao do marxismo e ativismo politico e, de outro, uma intensificagao cons- tante de problematicas éticas puramente idealistas. Aoler os artigos que escrevi nessa época, vejo con- firmada essa simultaneidade de oposigées abruptas. Quando penso, por exemplo, nos ensaios de carter li- terdrio desse perfodo, pouco numerosos e pouco signi- ficativos, considero que muitas vezes excedem em idea- lismo agressivo e paradoxal meus trabalhos anteriores. Mas, ao mesmo tempo, seguem também o processo irre- sistivel de assisnilacdo do marxisio. Se agora veju nesse dualismo desarmonioso a linha fundamental que ca- racteriza minhas idéias nesses anos, nao se deve, a par- tir disso, concluir o extremo oposto, um quadro em pre- to-e-branco, como se um bem revolucionério em luta contra 0s resfduos do mal burgués esgotasse a dinamica HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 5 dessa oposicdo. A passagem de uma classe para uma outra, especificamente para a sua inimiga, é um pro- cesso muito mais complicado. Nele, posso constatar em mim mesmo, retrospectivamente, que a atitude em re- lagio a Hegel, 0 idealismo ético com todos os seus ele- mentos romanticos anticapitalistas também traziam consigo algo de positivo para minha concepgio de mun- do, tal como nasceu dessa crise. Mas isso, naturalmente, apenas depois que esses elementos foram superados como tendéncias dominantes ou simplesmente co-do- minantes e se tornaram — modificados varias vezes em seu fundamento — elementos de uma nova concepgéo do mundo doravante unitdria. Talvez seja este 0 mo- mento de constatar que até mesmo meu conhecimento intimo do mundo capitalista entrou na nova sintese como elemento parcialmente positivo. Nunca incorri no erro de me deixar impressionar pelo mundo capi- talista, o que diversas vezes pude observar em muitos operatios ¢ intelectuais pequeno-burgueses. O édio cheio de desprezo que sentia desde os tempos de in- fancia pela vida no capitalismo preservou-me disso. A confusdo, porém, nem sempre é caos. Ela con- tém tendéncias que, embora algumas vezes possam reforcar temporariamente as contradigées internas, mo- vem-na, em tiltima andlise, para a sua resolugao. A ética, por exemplo, impele a pratica, ao ato e, assim, a politi- ca, Esla, por sua vez, impele & economia, o que leva a um aprofundamento te6rico e, por fim, a filosofia do marxismo. Trata-se, naturalmente, de tendéncias que se desdobram apenas de maneira lenta e irregular. Tal orientagao comecou a se manifestar jé no decorrer da guerre, apés a eclos4o da Revolugdo Russa. A teoria do 6 GEORG LUKACS romance nasceu ainda num estado de desespero geral, tal como descrevi no prefacio a nova edicdot. Nao é de admirar, portanto, que o presente se manifeste nele como 0 estado fichteano do pecado consumado, e a perspectiva de uma safda assuma um caréter pura- mente utdpico e vazio. Somente com a Revolucao Rus- sa inaugurou-se, inclusive para mim, uma perspectiva de futuro na propria realidade; jé com a derrocada do czarismo e ainda mais com a do capitalismo. Nosso co- nhecimento dos fatos e principios era entéo muito re- duzido e pouco confidvel, mas, apesar disso, vislum- bravamos que — finalmente! finalmente! — um caminho para a humanidade sair da guerra e do capitalismo ha- via sido aberto. Obviamente, embora nos lembremos desse entusiasmo, nao devemos embelezar o passado. Eu também vivenciei ~ ¢ refiro-me exclusivamente a mim mesmo —uma curta transic4o: minha tiltima hesi- taco diante da decisdo definitiva e irrevogével levou- me, temporariamente, a uma apologia intelectual fra- cassada, adornada de argumentos abstratos e de mau gosto. A decisao, no entanto, ndo podia ser adiada. O pequeno ensaio Tética e ética revela suas motivacdes humanas internas. Sobre os poucos ensaios do periodo da Republica Soviética htingara e dos seus preparativos nao ha mui- to. que dizer. Estavamos todos muito pouco prepara- dos intelectualmente — inchisive en, talvez. menos ainda do que todos - para dar conta das grandes tarefas que se impunham; procurévamos substituir com entusias- 4.2%ed., Luchterhand, Neuwied, 1963, p.5;como também a3* ed, 1965, HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 7 mo 0 conhecimento e a experiéncia. Menciono apenas um fato muito importante a titulo de ilustracéo: mal conhecfamos a teoria da revolugio de Lénin e os desen- volvimentos essenciais que fizera nessa 4rea do mar- xismo. Nessa época, apenas poucos artigos e panfletos eram traduzidos e acessiveis para nés, e, daqueles que haviam participado da Revolugao Russa, alguns se mos- travam pouco dotados teoricamente (como Szamuely), outros se encontravam fortemente influenciados pela oposicio russa de esquerda (como Béla Kun). Somente quando emigrei para Viena pude tomar conhecimento mais profundo das teorias de Lénin. Desse modo, nes- sa época meu pensamento era permeado por um dua- lismo antitético. Por um lado, nao fui capaz de tomar uma posicdo a principio correta contra os erros opor- tunistas graves e funestos da politica de entdo, por exemplo, contra a solugdo puramente socialdemocrata da questao agraria. Por outro, minhas préprias ten- déncias intelectuais empurravam-me numa direcéo utépica e abstrata no campo da politica cultural. Hoje, quase meio século depois, fico surpreso ao constatar que conseguimos criar nesse dominio coisas relativa- mente duradouras. (Para ficar no campo da teoria, gos- taria de ressaltar que os dois ensaios “O que é marxis- mo ortodoxo?” e “A mudanga de fungao do materialis- mo histérico” ganharam sua primeira versio jé nesse periodo. Embora tenham sido reelaborados para His- toria e consciéncia de classe, mantive sua orientagao fun- damental.) Minha emigracdo para Viena marcou sobretudo inicio de um periodo de estudo, principalmente no que se refere ao contato com as obras de Lénin. Um apren- 8 GEORG LuKAcs dizado que, por certo, nao se desligava em nenhum instante da atividade revolucionéria. Tratava-se, aci- ma de tudo, de revigorar a continuidade do movimen- to operdrio revolucionario na Hungria: era preciso en- contrar palavras de ordem e medidas que parecessem apropriadas para conservar e reforgar sua fisionomia mesmo durante o Terror Branco; refutar as caltinias da ditadura (fossem elas puramente reacionérias ou so- cialdemocratas) e, simultaneamente, encetar uma au- tocritica marxista da ditadura proletéria. Paralelamen- te, fomos levados em Viena pela corrente do movi- mento revolucionrio internacional. Naquele periodo, a imigracdo hingara era talvez a mais numerosa e a mais dividida, mas nao a tinica. Muitos emigrantes dos Balcas e da Poldnia viviam provisoriamente, ou defi- nitivamente, em Viena, que, além disso, era um lugar de passagem internacional, onde tinhamos contatos constantes com comunistas alemdes, franceses, italia- nos etc. Nessas circunstancias, nao é de estranhar que tenha nascido a revista Kommunismus, que durante al- gum tempo se tornou o principal érgéo das correntes de extrema-esquerda na III Internacional. Ao lado de comunistas austriacos, imigrantes htingaros e polacos que constitufam o micleo interno de colaboradores per- manentes, simpatizavam com os seus esforcos a extre- ma-esquerda italiana, como Bordiga e Terracini, e ho- landeses, como Pannekoek e Roland Holst etc. Odualismo das minhas atitudes nao somente atin- giul o seu apogeu nessas circunstancias como também. se cristalizou numa estranha diade de teoria e pratica. Enquanto membro do coletivo interno de Kommunis- mus, participei ativamente da elaboracao de uma linha HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 9 te6rica e politica de “esquerda”. Esta se baseava na conviccdo, ainda muito viva na época, de que a grande onda revoluciondria que em breve deveria conduzir 0 mundo inteiro, ou pelo menos a Europa inteira, ao so- cialismo de maneira alguma passaria por um refluxo apés as derrotas da Finlandia, da Hungria e de Muni que. Acontecimentos como o golpe de estado de Kapp, as ocupagdes de fabricas na Itélia, a guerra entre Unido Soviética e Polénia e até a Agdo de Marco na Alema- nha reforgavam-nos a convicgio de que a revolugéo mundial se aproximava rapidamente, de que em bre- ve todo 0 mundo civilizado se remodelaria totalmen- te. Nacuralmente, quando se fala do sectarismo nos anos 20, nao se deve pensar naquela espécie desenvol- vida pela prética estalinista. Esta pretende, acima de tudo, proteger as relagdes de forca estabelecidas con- tra qualquer reforma. E conservadora nas suas finali- dades e burocratica nos seus métodos. O sectarismo dos anos 20 tinha, pelo contrério, objetivos messiani- cos e utdpicos, e os seus métodos baseavam-se em ten- déncias fortemente antiburocraticas. As duas orienta- Ges s6 tem em comum o nome pelo qual sao designa- das e internamente representam oposigées hostis. (Por certo é verdade que jé na III Internacional Zinoviev e seus discfpulos tinham introduzido habitos burocrati cos, como também é verdade que, durante os seus tl- timos anos de duenga, Lenin estava muito preocupado em encontrar um modo para combater a burocratiza- do crescente e espontinea da Repiiblica Soviética com base na democracia proletéria. Mas nisso também se vé a oposicio entre o sectarismo de hoje e o de entao. Meu ensaio sobre as questdes de organizacio no Parti. 10 GEORG LuKAcs do Hiingaro dirigia-se contra a teoria e a pratica do discipulo de Zinoviev, Béla Kun.) Nossa revista queria servir ao sectarismo messia- nico, elaborando os métodos mais radicais sobre to- das as questdes, proclamando uma ruptura total, em todos os dominios, com todas as instituigées, formas de vida, entre outras coisas, do mundo burgués. Isso con- tribuiria para fomentar na vanguarda, nos partidos co- munistas e nas organizagdes comunistas juvenis uma consciéncia de classe auténtica. Meu ensaio polémico contra a participacao nos parlamentos burgueses é um exemplo tfpico dessa tendéncia. Seu destino — a critica de Lénin — fez com que eu pudesse dar o primeiro pas- 50 na superacio do sectarismo. Lénin apontava para a distingao decisiva, ou melhor, para 0 paradoxo de que uma instituicao pode ser considerada obsoleta do pon- to de vista da hist6ria universal - como 0 Parlamento, que se tornou obsoleto nas maos dos sovietes -, mas nada a impede de participar taticamente da historia; pelo contrario. Essa critica, cujo acerto reconheci ime- diatamente, obrigou-me a vincular minhas perspecti- vas hist6ricas de maneira mais sutil e menos direta & tatica momenténea. Nessa medida, ela significa o int- cio da mudanga nas minhas concepcées, todavia no interior de uma visio de mundo que ainda permanece essencialmente sectéria. Isso se revela um ano depois, quando, embora entrevendo algumas falhas taticas na Acao de Marco, continuei a aprové-la de maneira acri- tica e sectéria como um todo £ precisamente nesse instante que 0 dualismo con- flitante irrompe, tanto objetiva como internamente, em minhas antigas concepgdes politicas e filos6ficas. En- HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE u quanto na vida internacional eu podia experimentar livremente toda a paixio intelectual do meu messia- nismo revolucionario, o movimento comunista que se organizava progressivamente na Hungria me coloca- va diante de decisdes cujas conseqiiéncias gerais e pes- soais, futuras ¢ imediatas, eu tinha de conhecer em pouco tempo e transformar em fundamento de deci- sdes subseqiientes. Obviamente, essa era a minha si- tuagao na Republica Sovistica htingara. E a necessidade de direcionar 0 pensamento nao somente para pers- pectivas messiénicas impunha também algumas deci- ses realistas, tanto no Conselho Popular para Educa- do como na divisdo, por cuja direcdo politica eu era responsdvel. A confrontagdo com os fatos, a obrigacao de examinar aquilo que Lénin chamava de “o proximo elo da corrente”, passaram a ser incomparavelmente mais imediatas e intensas do que antes em minha vida. A aparéncia puramente empirica do contetido de tais decisdes foi 0 que acabou por provocar vastas conse- giiéncias para minha posicdo tedrica. Esta tinha de se apoiar em situacées ¢ tendéncias objetivas. Se a inten- Gio era chegar a uma decisdo essencialmente bem fun- damen‘ada, nunca se poderia permanecer na reflexao dos fatos imediatos; antes, seria preciso esforgar-se sem- pre para descobrir aquelas mediagdes, muitas vezes ocultas, que conduziram a tal situacao e, sobretudo, tentar orever aquelas que provavelmente nasceriam dela e determinariam a praxis posterior. A vida me im- pingia, portanto, uma conduta intelectual que muitas vezes se opunha ao meu messianismo revolucionério, idealista e ut6pico. Odilema se intensifica ainda mais pelo fato de que, na lideranca de oposicao dentro do Partido Hungaro, 12 GEORG LuKAcs encontrava-se um sectarismo de tipo moderno e bu- rocratico, dirigido pelo grupo de Béla Kun, discfpulo de Zinoviev. No plano puramente te6rico, eu poderia ter refutado suas concepgdes como as de uma pseudo- esquerda. Na pratica, porém, suas propostas sé podiam ser combatidas por um apelo a realidade cotidiana, mui- tas vezes extremamente prosaica e vinculada apenas por mediacées muito distantes as grandes perspec- tivas da revolugéo mundial. Como em tantas ocasides da minha vida, tive dessa vez mais uma felicidade pessoal: & frente da oposicéo contra Kun estava Eugen Landler, um homem nao apenas de elevada inteligén- cia, sobretudo pratica, mas também com muita incli- nacdo para problemas teéricos que estivessem real- mente ligados a praxis revoluciondria, mesmo que por mediacées muito distantes; um homem cuja atitude interna mais profunda era determinada por sua liga- Ao intima com a vida das massas. Seu protesto contra 08 projetos burocraticos e aventureiros de Kun conven- ceram-me logo no primeiro momento, e quando eclo- diu a luta entre as faccdes estive sempre ao seu lado. Sem poder entrar aqui nos detalhes dessas lutas inter- nas do partido, nem mesmo nas mais importantes e, muitas vezes, também teoricamente interessantes, que- ro apenas chamar a atenco para o fato de que a ciséo metodolégica no meu pensamento se agravou numa cisio pratica e tedrica: nas grandes questdes interna- cionais da revolusao, eu permanecia adepto das ten- déncias de extrema-esquerda, ao passo que, como mem- bro da diredo do Partido Hingaro, tornei-me um ad- versario obstinado do sectarismo de Kun. Isso ficou particularmente flagrante na primavera de 1921. Inter- HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 13 namente, como seguidor de Landler, eu defendia uma politica energicamente anti-sectaria e, ao mesmo tem- po, no plano internacional, era um adepto tedrico da Acao de Marco. Dessa maneira, a simultaneidade de tendéncias opostas atingia seu ponto culminante.Com © aprofundamento das diferencas dentro do Partido Hiingaro e com o inicio de uma mobilizagéo propria do operariado radical na Htingria, naturalmente cres- ceu também em meu pensamento a influéncia das ten- déncias teéricas resultantes desses acontecimentos, sem, contudo, alcangar uma superioridade que fosse deter- minante em relagdo as demais, embora a critica de Lé- nin tivesse abalado fortemente minhas convicgdes so- bre a Ago de Margo. Historia e consciéncia de classe surgiu nesse perfodo de transigéo profundamente critico. A redacao é do ano de 1922 e consiste, em parte, na reelaboracao de textos mais antigos; além daqueles ja mencionados, faz parte do volume o texto sobre “Consciéncia de classe” (es- crito em 1920). Os dois ensaios sobre Rosa Luxembur- go, assim como “Legalidade e ilegalidade”, foram i cluidos na selecdo sem nenhuma modificagéo essen- cial. To:almente inéditos so, portanto, os dois impor- tantes estudos e sem diivida decisivos: “A reificacao e a consciéncia do proletariado” e “Observacées metodo- logicas sobre a questao da organizacao”. (A este tiltimo serviu como estudo prévio 0 ensaio “Questoes organi- zacionais da iniciativa revolucionéria”, publicado em 1921, imediatamente apés a Acdo de Marco, na revista Die Internationale.) De maneira que Historia e consci cia de classe, em relagao ao conjunto da obra, é 0 desfe- cho que resume meu desenvolvimento desde os tilti- 14 GEORG LUKACS mos anos da guerra. Um desfecho, no entanto, que pelo menos em parte j continha tendéncias de um estagio de transicao para uma clareza maior, embora esas ten- déncias nao pudessem se manifestar efetivamente. Essa luta nao resolvida de orientagGes intelectuais opostas, das quais nem sempre se pode falar em vito- riosos ou derrotados, ainda hoje torna dificil uma ca~ racterizacao e avaliagao unitarias desse livro. Nao obs- tante, 6 preciso destacar brevemente pelo menos os seus motivos dominantes. O que se nota, sobretudo, 6 que Histéria e consciéncia de classe representa objetiva~ mente — contra as intengGes subjetivas do seu autor — uma tendéncia no interior da hist6ria do marxismo que, embora revele fortes diferencas tanto no que diz respeito a fundamentacio filos6fica quanto nas conse- qiiéncias politicas, volta-se, voluntéria ou involuntaria- mente, contra os fundamentos da ontologia do marxis- mo. Tenho em vista aquelas tendéncias que compreen- dem o marxismo exclusivamente como teoria social ou como filosofia social e rejeitam ou ignoram a tomada de posigao nele contida sobre a natureza. Jé antes da Primeira Guerra, marxistas de orientacdes bastante dis- tintas, como Max Adler e Lunatscharski, defendiam essa tendéncia. Em nossos dias, deparamos com ela ~ provavelmente nao sem a influéncia de Histéria e cons- ciéncia de classe - sobretudo no existencialismo francés em seu ambiente intelectual. Meu livro assume uma posicao muito firme nessa questdo; em diversas passa- gens, a natureza 6 considerada como uma categoria social, e a concepsio geral consiste no fato de que so- mente 0 conhecimento da sociedade e dos homens que vivem nela é filosoficamente relevante. Os nomes dos HISTORIA E ‘CIENCIA DE CLASSE 15 representantes dessa tendéncia ja indicam que nao se trata propriamente de uma orientacdo; eu mesmo, nes- sa 6poca, s6 conhecia Lunatscharski de nome e rejeita- va Max Adler sempre como kantiano e socialdemocrata. Contudo, uma observacao mais atenta revela certos tracos em comum. Isso demonstra, por um lado, que é precisamente a concepcao materialista da natureza a separar de maneira radical a visao socialista do mun- do da visdo burguesa; que se esquivar desse complexo mitiga a discussao filos6fica e impede, por exemplo, a elaboracao precisa do conceito marxista de praxis. Por outro lado, essa aparente elevacdo metodolégica das categorias sociais atua desfavoravelmente as suas au- ténticas fungdes cognitivas; sua caracteristica especifi- camente marxista é enfraquecida, e, muitas vezes, seu real avanco para além do pensamento é inconsciente- ‘mente anulado. Ao fazer tal critica, limito-me, naturalmente, & His- t6ria e consciéncia de classe, mas ndo quero de modo al- gum afirmar com isso que esse desvio do marxismo fosse menos decisivo em outros autores com uma ati- tude semelhante. Em meu livro, esse desvio exerce uma reagdoimediata sobre o conceito de economia jé elabo- rado e que, sob o aspecto metodol6gico, devia natu- ralmente constituir o ponto central. Como conseqiién- cia, aquilo que havia sido dado por definitivo assume uma conotag&o confusa. Procura-se, é verdade, tornar compreensiveis todos os fendmenos ideolégicos a par- , tir de sua base econémica, mas a economia torna-se es- treita cuando se elimina dela a categoria marxista fun- | damental |: o trabalho como mediador do metabolismo | da sociedade com a natureza. Mas isso € 0 resultado na- 16 GEORG LUKACS tural dessa posicéo metodolégica fundamental. Como conseqiiéncia, os pilares reais e mais importantes da vi- sao marxista do mundo desaparecem, ea tentativa de tirar, com extrema radicalidade, as tiltimas conclusées revolucionérias do marxismo permanece sem sua au- téntica justificaciio econdmica. E evidente que a objeti- vidade ontolégica da natureza, que constitui o funda- mento éntico desse metabolismo, tem de desaparecer. Mas com isso desaparece também, ao mesmo tempo, aquela aco reciproca existente entre o trabalho consi- derado de maneira autenticamente materialista e 0 de- senvolvimento dos homens que trabalham. A grande idéia de Marx, segundo a qual até mesmo a “producao pela produgio significa tao-somente o desenvolvimen- fo das forcas produtions do homem, isto é, 0 desenvolvimento da riqueza da natureza humana como fim em si”, coloca-se fora daquele dominio que Historia e consciéncia de clas- se esté em condigGes de examinar. A exploragio capi- | talista perde esse lado objetivamente revolucionario, e nao se compreende o fato de que, “embora esse desen- | volvimento das capacidades do género homem se efe- ' tue, de infcio, & custa da maioria dos individuos e de certas classes, ele acaba por romper esse antagonismo e coincidir com o desenvolvimento de cada individuo”. Nao se compreende, portanto, que “o desenvolvimen- to superior da individualidade ¢ conquistado apenas por um processo histérico em que os individuos sao sacrificados”5. Desse modo, tanto a exposigao das con- tradigées do capitalismo como a da revolucio do pro- 5. Theorien ber den Mehrwert, Il, MEW 26, 2, p. 1. HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 17 letariado adquirem uma énfase involuntéria de subje- tivismo dominante. - Isso também influencia 0 conceito de praxis, ceri- tral nesse livro, deformando-0 e estreitando-o. Também a respeito desse problema, minha intencdo era partir de Marx, purificar seus conceitos de todas as deforma- Ges burguesas posteriores e torné-los apropriados no presente para as necessidades da grande guinada re- volucionria. Acima de tudo, nessa época eu tinha ab- soluta certeza de que o caréter meramente contempla- tivo do pensamento burgués tinha de ser superado de modo radical. Com isso, a concepgio da praxis revolu- cionéria adquire, neste livro, um carater excessivo, 0 que correspondia A utopia messianica propria do co- munismo de esquerda da época, mas nao a auténtica doutrina de Marx. f compreensivel, entéo, que, no con- texto daquele perfodo, eu atacasse as concepgdes bur- guesas e oportunistas do movimento operario, que exaltavam um conhecimento isolado da praxis, supos- tamente objetivo, mas na realidade destacado de toda praxis. Minha polémica era dirigida com acerto relati- vamenie grande contra 0 exagero e a sobrevalorizagéo | da contemplacao. A critica de Marx A Feuerbach refor- cava ainda mais minha atitude. $6 que eu nao perce- bia que, sem uma base na praxis efetiva, no trabalho {como sua protoforma e seu modelo, 0 cardter exagera~ do do conceito de praxis acabaria se convertendo num conceito de contemplacdo idealista. Eu queria, portanto, separar a verdadeira e auténtica consciéncia de classe de toda “pesquisa de opiniao” empirica (nessa época, evidentemente, a expressdo ainda nao estava em cir- culagio), conferir-Ihe uma objetividade pratica incon- 18 GEORG LUKACS test4vel. Porém, consegui chegar apenas a formulagio de uma consciéncia de classe “atribuida”. ‘Tinha em mente com isso aquilo que Lénin, em O que fazer?, de- signava da seguinte maneira: em oposicdo a consciéncia trade-unionista que surge espontaneamente, a conscién- cia de classe socialista é trazida “de fora” ao operdrio, “sto 6, de fora da luta econémica, de fora da esfera das relagbes entre operdrios e patroes”*. Portanto, aquilo que para mim correspondia a uma intengdo subjetiva e que para Lénin era o resultado da auténtica andlise marxista de um movimento pratico dentro da totali- dade da sociedade tornou-se em minha exposiggo um resultado puramente tedrico e, portanto, algo essencial- mente contemplativo. A conversio da consciéncia “atri- bufda” em praxis revoluciondria aparecia entao ~ con- siderada objetivamente - como simples milagre. A inversao de uma intencao em si correta é conse- qiiéncia da prépria concep¢ao abstrata idealista ja mencionada. Isso se mostra claramente na polémica — mais uma vez nao inteiramente equivocada — contra Engels, que via no experimento e na industria os casos tipicos de demonstragao da praxis como critério da teo- ria. Desde entao, ficou claro para mim, como funda- mento tedrico da insuficiéncia da tese de Engels, que o terreno da praxis (sem modificagao de sua estrutura ba- sica) se tornou, no curso do seu desenvolvimento, mais extenso, complexo e mediado do que no simples tra- balho, motivo pelo qual o simples ato de produzir 0 ob- jeto pode tornar-se o fundamento da efetivagio imedia- ta everdadeira de uma hipétese te6rica e, nessa medida, 6. Lenin, Werke, Viena-Berlim, IV, Il, pp.216 s HISTORIA & CONSCIENCIA DE CLASSE 19 servir como critério de sua correcao ou incorregao. No entanto, a tarefa que Engels atribui aqui A praxis ime- diata, isto é, de p6r fim 4 doutrina kantiana da “coisa inapreensivel em si”, permanece por muito tempo sem solugao, Afinal, o proprio trabalho pode muito facil- mente dermanecer no ambito da mera manipulacao e passar ao largo—_de modo espontaneo ou consciente—da solugio da questo a respeito do em-si, ignoré-la total ou parcialmente. A hist6ria mostra-nos casos de aces corretas na pratica, mas baseadas em teorias totalmente erradas que implicam 0 desconhecimento do em-si no ' sentidc de Engels. E claro que a propria teoria de Kant \ndo nega, de modo algum, o valor cognitivo, a objeti- vidade de experimentos desse tipo, s6 que os remete ao reino dos simples fendmenos ao manter o caréter in- cognoscivel do em-si. E 0 atual neopositivismo quer eli- minar da ciéncia toda questao acerca da realidade (do em-si); ele rejeita toda questo acerca do em-si como “nao cientifica” e, ao mesmo tempo, reconhece todos os resultados da tecnologia e da ciéncia natural. Portanto, para que a praxis possa exercer a fungdo corretamen- te exigida por Engels, ela tem de elevar-se acima desse imediatismo, permanecendo praxis e tornando-se cada vez mais abrangente. Sendo assim, minhas reservas em relacao a solu- cdo de Engels nao eram injustificadas, por mais erré- nea, nc entanto, que fosse minha argumentagio. Era to- talmente incorreto afirmar que “o experimento é 0 mais puro modo de comportamento contemplativo”. Mi- nha propria descricéo refuta essa demonstragao. Pois produzir uma situagdo em que as forcas naturais a se- rem investigadas possam atuar “de maneira pura”, li- 20 GEORG LUKACS vres das interferéncias do mundo objetivo ou das ob- servagées parciais do sujeito, é - tanto quanto o pré- prio trabalho - uma posicao teleolégica, de tipo eviden- temente particular, mas por esséncia uma préxis pura. Era igualmente incorreto negar a praxis na industria e enxergar nela, “no sentido dialético-histérico, apenas um objeto, e ndo o sujeito das leis naturais da socieda- de”, Essa frase esta em parte correta - mas apenas em parte —no que se refere somente a totalidade econdmi- ca da producao capitalista. No entanto, isso nao con- tradiz, de modo algum, o fato de cada ato da produgéo industrial ser ndo apenas a sintese de atos teleolégicos de trabalho, mas, ao mesmo tempo e especialmente nessa sintese, um ato teleol6gico e, portanto, pratico. Tais imprecisdes filos6ficas servem de punicdo para a Hist6ria e consciéncia de classe que, ao analisar os fend- menos econdmicos, busca seu ponto de partida nao no trabalho, mas simplesmente em estruturas complexas da economia mercantil desenvolvida. Com isso, perde- se de antem4o a perspectiva de um salto filos6fico em dirego a questées decisivas, como a da relacdo entre teoria e pratica, ou sujeito e objeto. Nesses pontos de partida e em outros igualmente problematicos, manifesta-se a influéncia da heranca he- geliana, que nao foi elaborada de modo coerente pelo materialismo e, por isso, também nao foi suprimida nem prescrvada. Hé ainda outro problema central a ser mencionado e que se refere aos principios. Sem dtivi- da, um dos grandes méritos da Histéria e consciéncia de classe foi ter restituido a categoria da totalidade, que a “cientificidade” do oportunismo socialdemocrata em- purrara totalmente para o esquecimento, a posicdo me- HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 2 todologica central que sempre ocupou na obra de Marx. Nessa época, eu ignorava que tendéncias semelhantes também estavam presentes em Lénin. (Os seus frag- mentos filos6ficos foram publicados nove anos apés Histéria e consciéncia de classe.) Mas, ao passo que Lé- nin, também nessa questdo, renovava efetivamente 0 método marxista, surgia em mim um exagero hegelia- no, porquanto opunha a posicéo metodolégica central da totalidade a prioridade da economia: “Nao € 0 pre- dominio de motivos econémicos na explicagao da his- téria que distingue decisivamente o marxismo da cién- cia burguesa, mas o ponto de vista da totalidade.” Esse paradoxo metodolégico acentua-se ainda mais porque a totalidade era vista como a portadora categorial do principio revoluciondrio da ciéncia: “A primazia da ca- tegoria da totalidade é portadora do principio revolu- ciondrio da ciéncia.”? ' Sem duivida, esses paradoxos metodolégicos de- semperharam um papel relevante e muitas vezes até progressista na influéncia exercida pela Histéria ¢ cons- ciéncia de classe. Afinal, o recurso a dialética de Hegel significa, por um lado, um duro golpe contra a tradicao revisionista; jé Bernstein queria eliminar do marxismo, em nome da “cientificidade”, tudo aquilo que lembras- se principalmente a dialética hegeliana. E mesmo seus adversirios tebricos, sobretudo Kautsky, nao estavam muito longe de defender essa tradicdo. Para o retorno revolucionario ao marxismo, era um dever dbvio, por- tanto, renovar a tradicao hegeliana do marxismo. His- 7. Georg Lukas, Geschichte und Klassenbeurisstsein, Malik, Berlim, 1923, p. 3. 2 GEORG LUKAcS t6ria e consciéncia de classe significou talvez a tentativa mais radical daquela época de tornar novamente atual © aspecto revolucionério do marxismo por meio da re- novagao e do desenvolvimento da dialética hegeliana e de seu método. Essa empresa tornou-se ainda mais atual, pois, na mesma época, penetraram na filosofia burguesa certas correntes que procuravam renovar Hegel. E claro que, por um lado, estas nunca tomaram como fundamento a ruptura filos6fica de Hegel e Kant €, por outro, sob a influéncia de Dilthey, visavam a construgao de uma ponte tedrica entre a dialética de Hegel e 0 irracionalismo moderno. Logo depois do apa- recimento de Historia e consciéncia de classe, Kroner ca~ racterizou Hegel como 0 maior irracionalista de todos os tempos e, na exposicao posterior de Lowith, a partir de Marx e Kierkegaard originam-se fendmenos parale- los, surgidos da dissolucao do hegelianismo. O contras- te com todas essas correntes mostra o quanto era atual a problematica da Historia e consciéncia de classe. Do ponto de vista da ideologia do movimento operdrio radical, também era atual porque o papel de mediador desem- penhado por Feuerbach entre Hegel e Marx, muito va- lorizado por Plekhanov e outros, aparecia aqui apenas em segundo plano. Expressei abertamente apenas um pouco mais tarde, no ensaio sobre Moses Hess ~ ante- cipando em alguns anos a publicagao dos estudos filo- séficos de Lénin -, que Marx se ligara dirctamente a Hegel, mas essa posicio jé est4 objetivamente na base de muitas discussdes da Histéria e consciéncia de classe. Nesse esquema, necessariamente sumério, 6 impos- sivel efetuar uma critica concreta aos pormenores con- tidos no livro, isto é, mostrar qual interpretacao de He- HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 23 gel apontava para frente e qual levava a confusdo. O leitor de hoje, se for capaz de critica, certamente en- contraré alguns exemplos de ambos os tipos de inter- pretagao. Mas, para compreender tanto 0 efeito que 0 livro causou na época quanto sua eventual atualidade, é preciso considerar um problema de importancia de- cisiva, que ultrapassa todas as observagées de detalhe: trata-se do problema da alienacao, que, pela primeira vez, desde Marx, foi tratado como questao central da cri- tica revolucionéria do capitalismo, e cujas raizes hist6- rico-teéricas e metodolégicas remontam a dialética de Hegel. Naturalmente, o problema pairava no ar. Alguns anos mais tarde, deslocava-se para o centro das discus sdes filos6ficas com 0 Ser e tempo (1927), de Heidegger, mantendo essa posicao ainda hoje, sobretudo em con- seqiiéncia da influéncia exercida por Sartre, assim como por seus discipulos e oponentes. Podemos renunciar, portanto, & questao filolégica levantada principalmen- te por Lucien Goldman ao identificar em algumas pas- sagens da obra de Heidegger uma réplica ao meu livro, ainda que este nao seja mencionado. Hoje, a constata- so de que o problema pairava no ar é perfeitamente suficiente, sobretudo quando os fundamentos ontolé- gicos dessa situacao sao analisados com atengio (o que nao é possivel fazer aqui), a fim de esclarecer a influén- cia posterior, a mescla de motivacdes marxistas e exis- tencialistas especialmente na Franca, logo apés a Segun- da Guerra Mundial. Prioridades, “influéncias”, dentre || Outras coisas, néo vém ao caso. O que continua sendo importante, afinal, 6 que a alienagdo do homem foi co- | nhecida e reconhecida como problema central da épo- | caem que vivems, tanto pelos pensadores burgueses 24 GEORG LUKACS , como pelos proletérios, por aqueles social e politica~ mente de direita como pelos de esquerda. Histéria e cons- ciéncia de classe exerceu, assim, uma profunda influén- | cia nos cfrculos dos jovens intelectuais; conheco toda uma série de bons comunistas que foram conquistados para o movimento exatamente por esse motivo. Sem di- vida, a nova acolhida desse problema hegeliano-mar- xista por parte de um comunista também foi decisiva para que este livro exercesse uma influéncia muito além das fronteiras do partido. No que concerne ao tratamento do problema, hoje nao 6 dificil perceber que ele se dé inteiramente no espi- rito hegeliano. Sobretudo porque o fundamento filos6- fico Ultimo desse tratamento € constitufdo pelo sujeito- objeto idéntico, que se realiza no processo histérico. E claro que, para o proprio Hegel, o surgimento desse su- jeito-objeto ¢ de tipo l6gico-filoséfico: ao atingir-se a etapa superior do espirito absoluto na filosofia com a retomada da exteriorizacao e com o retorno da cons- ciéncia de si a si mesma, realiza-se o sujeito-objeto idén- tico. Na Histdria e consciéncia de classe, ao contrario, esse 6 um processo histérico-social que culmina no fato de que o proletariado realiza essa etapa na sua conscién- cia de classe, tornando-se 0 sujeito-objeto idéntico da hist6ria. Isso deu a impressio de que Hegel estava, de fato, “caminhando com as proprias pernas”, como se a construgao logico-metafisica da Fenomenologia do espi- rito tivesse encontrado uma auténtica efetivagéo onto- logica no ser e na consciéncia do proletariado, o que, por sua vez, parecia oferecer uma justificativa filosdfica A transformagao hist6rica do proletariado, que visava a fundar a sociedade sem classes por meio da revolucao e HISTORIA F CONSCIENCIA DE CLASSE 25 concluir a “pré-histéria” da humanidade. Mas ser que © sujeito-objeto idéntico é mais do que uma construgao puramente metafisica? Serd que um sujeito-objeto idén- tico é efetivamente produzido por um autoconhecimen- to, por mais adequado que seja, mesmo que tenha como base um conhecimento adequado do mundo social, ou seja, serd que ele é produzido numa consciéncia de si, por mais completa que seja? Basta formular a questao com preciso para respondé-la negativamente. Pois, mesmc que 0 contetido do conhecimento possa ser re- ferido ao sujeito do conhecimento, o ato do conheci- mento nao perde com isso seu cardter alienado. Foi jus- tamente na Fenomenologia do espirito que Hegel rejeitou, com razo, a realizacao mistico-irracional do sujeito- objeto idéntico, a “intuigao intelectual” de Schelling, e exigiu uma solugio filosoficamente racional do proble- ma. Seu forte sentido de realidade manteve essa exigén- cia; sua construcéo universal mais geral culmina, é ver- dade, na perspectiva de sua realizacao efetiva, mas ele nunca mostra concretamente como essa exigéncia pode cumprir-se no interior do seu sistema. Portanto, 0 pro- letariado como sujeito-objeto idéntico da verdadeira hist6ria da humanidade nao é uma realizacao materia- lista que supera as construcdes de pensamento idealis- tas, mas muito mais um hegelianismo exacerbado, uma construgao que tem a intencéo de ultrapassar objetiva- mente o proprio mestre, elevando-se acima de toda rea- lidade de maneira audaciosa. Essa precaugao de Hegel tem como base teérica 0 caréter temerério de sua concepcao fundamental. Afi- nal, em Hegel, o problema da alienacdo aparece pela primeira vez como a questao fundamental da posicéo 26 GEORG LuKAcs do homem no mundo, para com o mundo. Sob o ter- mo exteriorizagdo [Entiusserung], o conceito de aliena- do inclui para ele todo tipo de objetivagio. Sendo as- sim, como conclusio, a alienaao mostra-se idéntica 4 objetivacdo. Por isso, o sujeito-objeto idéntico, ao supe- rar a alienacdo, também supera simultaneamente a ob- jetivacao. No entanto, como para Hegel o objeto, a coi- sa, s6 existem como exteriorizacao da consciéncia de si, a retomada da exteriorizacao no sujeito seria o fim da realidade objetiva, ou seja, da realidade em geral. Historia e consciéncia de classe segue Hegel na medida em que nele também a alienacao é equiparada a objeti- ficacdo (para utilizar a terminologia dos Manuscritos eco- némico-filosdfices, de Marx). Esse equivoco fundamen- tal e grosseiro certamente contribuiu em muito para o éxito de Histéria e consciéncia de classe. O desmascara- mento te6rico da alienacao, como jé foi mencionado, pairava no ar e em pouco tempo se tornaria a questo central da critica da civilizacao, que investigava a situa- ao do homem no capitalismo atual. Para a critica filo- s6fico-burguesa da civilizacao - basta pensar em Hei- degger -, era muito dbvio sublimar a critica social nu- ma critica puramente filoséfica, fazer da alienagao, so- cial em sua esséncia, uma condition humaine eterna, para utilizar um termo que surgiré s6 mais tarde. £ claro que esse modo de exposicao da Histéria e consciéncia de classe ia na direcao de tais posicionamentos, muito em- bora o livro tivesse outra intenc&o, exatamente oposta aessa. A alienacdo, identificada com a objetificagio, po- dia muito bem ser vista como uma categoria social ~ 0 socialismo devia, com efeito, superar a alienagio -, nao HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 7 obstante, sua existéncia insuperdvel nas sociedades de classes e principalmente sua fundamentacio filoséfica aproximava-se da condition humaine, Isso resulta diretamente da falsa identificacdo, tan- tas vezes ressaltada, de conceitos basicos que s4o opos- tos. A objetificagao é, de fato, um modo de exterioriza- do insuperdvel na vida social dos homens. Quando se considera que na praxis tudo é objetificacao, principal- mente o trabalho, que toda forma humana de expres- sao, inclusive a linguagem, objetiva os pensamentos e sentimentos humanos, entao torna-se evidente que i: damos aqui com uma forma humana universal de in- tercambio dos homens entre si. Enquanto tal, a objeti- ficacdo nao é, por certo, nem boa nem ma: 0 correto 6 uma objetificacdo tanto quanto o incorreto; a liberda- de, tanto quanto a escravidao. Somente quando as for- mas objetificadas assumem tais fungdes na sociedade, que colocam a esséncia do homem em oposigao ao seu ser, sudjugam, deturpam e desfiguram a esséncia hu- mana pelo ser social, surgem a relacao objetivamente social da alienacao e, como conseqiiéncia necessaria, to- dos ossinais subjetivos de alienacao interna. Essa dua- lidade foi ignorada na Histdria e consciéncia de classe. Iss0 explica o erro e 0 equivoco de sua concepgio histérico- filos6fica fundamental. (Deve-se notar, de passagem, que o fendmeno da reificacdo, estreitamente relaciona- do com a alienacao, porém sem ser idéntico a ela no Ambito social ou conceitual, também foi empregado co- mo seu sindnimo.) Essa critica dos conceitos fundamentais nao preten- de ser completa. Mas é preciso mencionar rapidamente, 28 GEORG LuKAcs mesmo limitando-se as questdes centrais, a rejeigao ao cardter de reflexo do conhecimento. Essa critica tem duas | fontes: a primeira era a profunda aversao ao fatalis- mo mecdnico que costumava acompanhar o materia- lismo mecanico e contra o qual protestavam apaixona- | damente meu utopismo messianico da época e o pre- '| dominio da praxis em meu pensamento - mais uma ' vez, ndo inteiramente sem razdo. O segundo motivo de- corria, por sua vez, do reconhecimento da origem e do ancoramento da praxis no trabalho. O mais primitivo dos trabalhos, como o que o homem pré-hist6rico fa- zia, recolhendo pedras, pressupde que a realidade em questdo é refletida corretamente. Pois nenhuma posi- do teleolégica se efetua com éxito sem uma represen- tagdo, mesmo que primitiva, da realidade, visada pela \pratica. A praxis 6 pode ser a realizacao e o critério da teoria porque tem como fundamento ontolégico, como pressuposto real de toda posico teleolégica real, uma reflexo da realidade considerada correta. Nao vale a pena aqui entrar nos detalhes da polémica decorrente dessa questdo, nem na justificagao de uma recusa do ca- rater fotografico das teorias correntes do espelhamento. Nao creio que seja uma contradigao falar exclusi- vamente do aspecto negativo da Histéria e consciéncia de classe e, apesar disso, julgar que a sua época e ao seu modo tenha sido uma obra importante. O simples fato de que todas as deficiéncias aqui enumeradas tenham suas fontes nao tanto na particularidade do autor, mas em grandes tendéncias do perfodo, ainda que muitas vezes objetivamente erréneas, confere ao livro um cer- to carter representativo. Um poderoso momento his- HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 29 torico de transicaio debatia-se entdo por sua expresso tedrica, Mesmo quando uma teoria nao expressava a esséncia objetiva da grande crise, mas apenas uma to- mada de posicao tipica diante dos seus problemas fundareniais, ela ainda podia adquirir um certo signi- ficado histérico. Esse era 0 caso, creio hoje, da Histéria e consciéncia de classe. A presente exposicéo nao significa que todas as idéias expressas neste livro sejam, sem excesio, defi- cientes. Sem divida, nao se trata disso. As observacies introdutérias ao primeiro ensaio jé oferecem uma defi- nicéo da ortodoxia no marxismo que, segundo minhas convicgdes atuais, esta ndo apenas objetivamente corre- ta, como poderia ter mesmo hoje, as vésperas de um re- nascimento do marxismo, uma importancia conside- ravel. enso nas seguintes observacées: “Embora néo 0 admitamos, suponhamos que pesquisas recentes ti vessem demonstrado incontestavelmente a falsidade objetiva de cada uma das afirmacées particulares de Marx, Todo marxista ‘ortodoxo’ sério poderia reconhe- cer incondicionalmente todos esses novos resultados, rejeitar cada uma das teses de Marx, sem ter de renun- ciar por um minuto sequer a sua ortodoxia marxista. Marxismo ortodoxo nao significa, portanto, um reco- nhecimento acritico dos resultados da investigagio de Marx, nao significa uma ‘crenga’ nesta ou naquela tese nem a exegese de um livro ‘sagrado’. A ortodoxia, em questdo de marxismo, refere-se, antes, exclusivamente ao método. Ea convicgao cientifica de que o método cor- reto de investigacao foi encontrado no marxismo dia- Iético, de que esse método s6 pode ser complementa- 30 GEORG LUKACS do, desenvolvido e aprofundado no sentido dos seus fundadores. No entanto, é também a convicgo de que todas as tentativas de suplanté-lo ou de ‘melhoré-lo’ conduziram a superficialidade, a trivialidade e ao ecle- \ tismo, e tinham necessariamente de conduzir a isso.” Sem querer parecer pretensioso, creio que se pode encontrar ainda varias idéias igualmente corretas. Men- ciono apenas a incluso das obras de juventude de Marx no quadro geral de sua concepgdo de mundo, numa poca em que a maioria dos marxistas a viam somente como documento histérico do desenvolvimento inte- lectual de Marx. Hist6ria e consciéncia de classe nao pode ser responsabilizada se, décadas mais tarde, essa relagéo acabou por se inverter, apresentando o jovem Marx muitas vezes como 0 verdadeiro fildsofo e desprezando, em grande medida, sua obra madura. Com razio ou ndo, em meu livro sempre tratei a concepgéo marxista do mundo como essencialmente unitaria. ‘Também nao se pode negar que muitas passagens procuram mostrar as categorias dialéticas em sua ob- jetividade e seu movimento ontoldgicos efetivos e que, por isso, apontam na diregéo de uma ontologia auten- ticamente marxista do ser social. A categoria de media ao, por exemplo, é apresentada da seguinte maneira: “A categoria de mediagéo como alavanca metédica para a superacio do simples imediatismo da experién- cia nao 6, portanto, introduzir algo de fora (subjetiva- mente) nos objetos, nao é um juizo de valor ou um de- ver que se contrapée ao seu ser, mas a abertura de sua 8. Ibid, p. 13, HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 31 propria estrutura, objetion e verdadeira.”® Numa relagao ainda mais estreita com essa idéia est a conexao entre | genese e histéria: “Génese e historia s6 podem coinci- dir ou, mais exatamente, s6 podem constituir momen- tos do mesmo processo quando, por um lado, todas as categorias sobre as quais se edifica a existéncia huma- na aparecerem como determinagSes dessa mesma exis- téncia (e nao apenas da descricéo dessa existéncia), e, por outro, quando sua sucesso, sua conexao e sua li- gacao se mostrarem como aspectos do proprio proces- so hist6rico, como caracteristicas estruturais do presen- te. A sucessdo e a conexdo interna das categorias néo constituem, portanto, uma série puramente légica, nem se ordenam conforme a facticidade puramente hist6ri- ca.’ Esse raciocinio conduz, de maneira coerente, a uma ditacdo da célebre observagao metodolégica de Marx nos anos 1850. Nao sao raras as passagens que, de modo semelhante, antecipam uma interpretagao e uma renovacao dialético-materialista de Marx. Porém, se concentrei-me aqui na critica das defi- ciéncies, foi por motivos essencialmente praticos. £ um fato que Histdria e consciéncia de classe causou uma for- te impressio em muitos leitores, e 0 faz ainda hoje. Se sio as linhas corretas do raciocinio a produzir esse efei- to, entio esté tudo resolvido, e minha atitude como au- tor é inteiramente irrelevante e desprovida de interes- se. Mas infelizmente sei que, por razbes ligadas ao de- senvolvimento social e pelos posicionamentos teéricos por ele produzidos, aquilo que hoje reputo como teori- 9. (bid. pp. 178s. 10 Ibid, p. 175. 32 GEORG LUKACS camente errado pertence aos momentos mais atuantes e influentes da recepcio deste livro. Por isso, conside- ro-me obrigado, ao reedité-lo depois de mais de quaren- ta anos, a expor sobretudo suas tendéncias negativas ¢ a alertar os leitores para as decisdes equivocadas que, na época, talvez fossem muito dificeis de ser evitadas, mas que hoje e ha muito tempo nao sio mais. JAmencionei que, em certo sentido, Histdria econs- ciéncia de classe representou a sintese e o termo do meu periodo de desenvolvimento, que comecou em 1918-19. Os anos seguintes mostraram isso de maneira cada vez mais evidente. Sobretudo 0 utopismo messianico desse periodo perdia progressivamente sua real influéncia (in- clusive a que parecia ser real). Em 1924 morre Lénin e, apés sua morte, as disputas partidarias concentram-se de modo cada vez mais intenso na possibilidade de construir o socialismo num sé pais. Naturalmente, 0 proprio Lénin jé havia se manifestado ha muito tempo sobre essa possibilidade te6rica e abstrata. Todavia, a perspectiva da revolugio mundial, que parecia proxi- ma, destacava naquela época o seu cardter meramente te6rico e abstrato. O fato de que doravante a discussio passasse a girar em torno dessa possibilidade real e concreta mostrava que nesses anos quase nao se podia contar seriamente com a perspectiva de uma revolu- do mundial. (Esta ressurgiu, por algum tempo, com a crise econémica de 1929.) Além disso, apés 1924, a IIT Internacional estava certa em conceber a situagéo do mundo capitalista como uma “estabilizacao relativa”. Para mim, esses acontecimentos também significavam a necessidade de uma nova orientacao te6rica. Minha po- sigdo a favor de Stélin nas discussdes do Partido Russo HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 33 pelo socialismo num tinico pais mostrava muito clara mente 0 inicio de uma mudanca decisiva. Essa mudanga foi determinada de modo imedia- to mas essencial pelas experiéncias no Partido Hunga- ro. A politica correta da faccéo liderada por Landler comegava a render frutos. O partido, que trabalhava de maneira estritamente ilegal, conquistava uma influén- cia cada vez maior sobre a ala esquerda da socialde- mocracia, de modo que, por volta de 1924-25, uma di- visdo no partido tornou posstvel a fundagéo de um par- tido operério radical, mas voltado para a legalidade. Esse partido, dirigido na ilegalidade pelos comunis- tas, colocava-se como tarefa estratégica a consolidacao da democracia na Hungria, que culminaria com a exi- géncia da repuiblica, ao passo que o proprio Partido Co- munisia, na ilegalidade, permanecia preso a antiga pa- lavra de ordem, estratégica da ditadura do proletariado. Embora nessa época eu estivesse de acordo com a tati- ca dessa decisao, cada vez mais me preocupava com uma série de problemas nao resolvidos, relacionados justificagao tebrica daquela situagao. Essas reflexdes j& comecavam a minar os funda- ‘mentos intelectuais do periodo entre 1917 e 1924. Acres- cente-se a isso 0 fato de que a desaceleragio do ritmo de desenvolvimento da revolucao mundial impelia ne- cessariamente na direcéo de uma cooperacao entre ele- mentos sociais, em certa medida orientados a esquerda, contra a reagao crescente e mais forte. Para um parti- do operdrio legal de extrema-esquerda, na Hungria de Horthy, tratava-se de uma evidéncia cristalina. Mas 0 ‘movimento internacional também mostrava tendéncias que apontavam nessa direcdo. Jé em 1922 ocorria a mar- 34 GEORG LUKAS cha sobre Roma, e os anos seguintes trariam um re- forgo ao nacional-socialismo na Alemanha, uma reu- nido crescente de todas as forcas reacionérias. Assim, os problemas da frente nica e da frente popular fo- ram colocados na ordem do dia e submetidos a um exame profundo, tanto do ponto de vista teérico quanto estratégico. Nesse momento, dificilmente se podia es- perar alguma orientagao da III Internacional, que se encontrava fortemente influenciada pela tatica stalinis- ta, Ela oscilava taticamente entre a esquerda e a direita. O préprio Stalin interveio nessa situacdo de incerteza de maneira extremamente funesta quando declarou, em 1928, que os socialdemocratas eram “irmaos gémeos” dos fascistas. Com isso, fechavam-se de vez as por- tas para qualquer frente tinica de esquerda. Embora me posicionasse a favor de Stalin na questao central da Riissia, repugnou-me profundamente essa tomada de posigao. Ela nao interferiu na minha decisdo de aban- donar gradualmente as tendéncias de extrema-esquer- da dos primeiros anos da revolucao, tanto mais que a maioria dos agrupamentos de esquerda nos parti- dos europeus se convertia ao trotskismo, posicéo que sempre recusei. Por certo, no que concerne a Alemanha, cuja politica me interessava acima de tudo, se fui con- tra Ruth Fischer e Massloy, isso nao significa que sen- tisse alguma simpatia por Brandler ou Thalheimer. Na- quela época, para esclarecer minhas préprias diividas e compreender as idéias te6ricas e politicas, eu buscava um programa de esquerda “auténtico”, que opusesse ‘uma terceira alternativa a essas correntes de oposicao na Alemanha. Porém, a idéia de uma solugio tedrico-po- litica para as contradigées num periodo de transicéo HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 35 como aquele nao passou de um sonho. Nunca logrei encontrar uma solucdo satisfatéria, mesmo que ape- nas pata mim, e, por isso, nunca me manifestei publi- camente no plano da pratica ou da teoria durante esse perfodo. No movimento hiingaro, a situacao era diferente. Landler morreu em 1928, e em 1929 0 partido prepara- va seu segundo congresso. Coube a mim a tarefa de es- crever 9 projeto para as teses politicas. Vi-me confron- tado com meu antigo problema na questéo héngara: pode um partido estabelecer dois objetivos estraté; cos diferentes ao mesmo tempo (no plano legal, a re- ptiblica; no ilegal, a repuiblica soviética)? Ou, de outro Angulo: a posigao do partido em relacdo a forma de Estado pode ser objeto de conveniéncia puramente t4- tica (ou seja: a perspectiva do movimento comunista ilegal considerada como meta auténtica, ea do partido legal, como medida meramente tatica)? Uma andlise detalhada da situagao econémica e social da Hungria convencia-me cada vez mais de que, a sua época, Lan- dler tocava instintivamente na questo central de uma perspectiva revolucionaria correta para a Hungria com a palavra de ordem estratégica da repuiblica: ainda que uma crise to profunda do regime de Horthy provocas- se as condigGes objetivas de uma transformagao fun- damental, uma transicao direta @ republica soviética nao era possivel para a Hungria. Eis por que a palavra de ordem legal da reptiblica precisava ser concretiza- da no sentido que Lénin atribuia em 1905 a ditadura | democratica dos operdrios e camponeses. Hoje é dif’ Gil para a maioria das pessoas compreender 0 quanto essa palavra de ordem tinha um efeito paradoxal na- Se) GEORG LUKACS ‘quela época. Embora o VI Congreso da III Internacio- | nal mencionasse isso como possibilidade, julgava-se, em geral, que tal retrocesso seria historicamente im- poss{vel, visto que a Hungria jé havia sido uma repti- blica soviética em 1919. Nao cabe aqui considerar essa diversidade de opi- nides. Tanto mais que o texto dessas teses, por mais que tenha abalado todo o meu desenvolvimento posterior, hoje pode apenas ser considerado como um documento teoricamente importante. Minha exposigao era insuti- ciente, tanto do ponto de vista dos princfpios como con- cretamente, o que, em parte, também era causado pelo fato de que, para tornar plausivel 0 contevido princi- pal, eu atenuava muitos detalhes, tratando-os de ma- neira demasiadamente genérica. Mesmo assim, origi- nou-se um grande escandalo no Partido Htingaro. O grupo que apoiava Kun via nas teses o mais puro opor- tunismo; além disso, o apoio da minha prépria faccdo era bastante morno. Quando soube de fontes confidveis que Béla Kun preparava minha exclusao do partido na condigao de “liquidador”, decidi renunciar a prosse- guir a luta, pois sabia da influéncia de Kun na Interna- cional, e publiquei uma “autocritica”. Embora naquela 6poca eu estivesse profundamente convencido de es- tar defendendo um ponto de vista correto, sabia tam- \ bém — pelo destino de Karl Korsch, por exemplo - que | a exclusao do partido significava a impossibilidade de participar ativamente da luta contra o fascismo iminen- | te. Como “bilhete de entrada” para tal atividade, redi- gi essa autocritica, j4 que, sob tais circunstancias, eu nao podia e nao queria mais trabalhar no movimento hiuingaro. HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 37 Era evidente que essa autocritica nao podia ser le- vada a sério: a mudanca da opiniao fundamental que sustentava as teses ~ mas que nem de longe conseguia expressé-las adequadamente— passou a ser doravante 0 fio condutor para minha atividade teérica e pratica. Obviamente ndo convém fazer aqui um esboco, mes- mo que resumido, dessas observacées. Apenas como prova de que ndo se trata da imaginagio subjetiva de um autor, mas de fatos objetivos, menciono aqui algu- mas notas de J6szef Révai (de 1950), referindo-se jus- tamente as teses de Blum, nas quais, como principal ideGlogo do partido, apresenta minhas concepcées li- terérias da época como conseqiiéncia direta das teses de Blum: “Quem conhece a histéria do movimento co- munista htingaro sabe que as concepcées literdrias de- fendicas pelo camarada Lukacs de 1945 até 1949 esto ligadas as concepcdes politicas, muito mais antigas, que ele defendia no final dos anos 20 com respeito ao de- senvolvimento politico na Hungria e a estratégia do partido comunista.”" Essa questo tem também um outro aspecto, para mim mais importante, e no qual a mudanca efetuada adquire uma fisionomia muito evidente. O leitor des- ses escritos deve ter percebido que minha decisao de aderir ativamente ao movimento comunista foi pro- fundamente influenciada por motivos éticos. Quando assim o fiz, nao tinha idéia de que me tornaria politico pelo periodo de uma década. Foram as circunstancias que o determinaram. Quando, em fevereiro de 1919, 0 1. Jose Reva, Literarische Studien, Dietz, Berlim, 1956, p. 235. 38 GEORG LUKACS ‘Comité Central do partido foi preso, considerei como dever aceitar 0 posto que me ofereciam no semi-ilegal comité substitutivo. Numa seqiiéncia dramitica, vie- ram: 0 comissariado popular para o ensino na reptibli- ca soviética e 0 comissariado popular de politica no Exército Vermelho, trabalho ilegal em Budapeste, con- flito entre faccées em Viena etc. Somente entdo fui co- !ocado novamente diante de uma alternativa real. Mi- nha autocritica interna e privada chegou a seguinte conclusio: se era t4o evidente que eu tinha raz4o, como tinha de fato, e, no entanto, nao podia evitar uma der- } Tota téo estrondosa, era porque, de algum modo, mi- nhas habilidades praticas e politicas demonstravam uma séria deficiéncia. Por isso, a partir dese momen- to, pude retirar-me com a consciéncia tranqiiila da car- reira politica e concentrar-me novamente na atividade 1 tedrica. Nunca me arrependi dessa decisdo. (A aceita- ‘cao de um posto de ministro em 1956 nao significa ne- nhuma contradicao. Antes de aceité-lo, esclareci que se- ria somente por um periodo de transicéo, relativo a cri- se mais aguda; tao logo ocorresse uma consolidacao, renunciaria imediatamente.) ‘No que se refere a anélise da minha atividade te6- rica em sentido estrito apés Histéria e consciéncia de classe, saltei meia década e somente agora posso ocu- par-me mais de perto desses escritos. O afastamento da cronologia justifica-se pelo fato de que o contetdo te6rico das teses de Blum, naturalmente sem que eu pudesse sequer imaginar, constituiu o terminus secreto ad quem do meu desenvolvimento. Meu anos de aprendi- zado do marxismo sé podem ser considerados como con- clufdos quando comecei a superar, numa questo concre- HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE a 39 tae importante, na qual esto concentrados os mais di- versos problemas e definigdes, aquele conjunto compos- to por um dualismo contraditério, que caracterizava meu pensamento desde os tiltimos anos da guerra. E esse desenvolvimento, do qual as teses de Blum cons- tituem uma conclusdo, que deve ser retracado neste momento com 0 auxilio da minha produgéo teérica daquele periodo. Creio que, uma vez determinado 0 objetivo preciso dessa evolugao, seré mais facil apre- senté-la, especialmente se considerarmos que nessa época minha energia estava concentrada sobretudo nas, tarefas praticas do movimento hiingaro, e que minha producio teérica consistia predominantemente em tra- balhos de circunstancia. Seado assim, o primeiro e mais extenso desses es- critos, uma tentativa de desenhar um retrato intelectual de Lenin, é literalmente uma obra de circunstancia. Lo- go apés a morte de Lénin, meu editor pediu-me uma monografia em versao resumida sobre ele; segui seu es- timulo e completei o pequeno texto em poucas sema- nas. Ele significou uma avanco em relagao a Histéria e consciéncia de classe, visto que o grande modelo em que eu estava concentrado ajudava-me a compreender mais, claramente o conceito de praxis em sua relacao mais au- téntica, ontolégica e dialética com a teoria. Naturalmen- te, a perspectiva da revolugio mundial nesse caso é a mesma dos anos 20. No entanto, em parte como conse- qiiéncia das experiéncias do curto periodo transcorri- do, e em parte por concentrar-se na personalidade in- telectual de Lénin, os tragos sectarios mais pronunciados de Histéria e consciéncia de classe comegavamn a esmae- cer ea dar lugar a outros mais préximos da realidade.

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