You are on page 1of 3

A Alma do Osso

Ano de produção: 2004


Duração: 74’00”
Direção de Produção: Beto Magalhães
Produção Executiva: Beto Magalhães e Cao Guimarães
Direção e Edição: Cao Guimarães
Formato de Captação: Super-8/ mini DV
Fotografia em vídeo: Cao Guimarães, Beto Magalhães e Marcos M. Marcos
Fotografia em Super-8: Cao Guimarães

Prêmios
MELHOR FILME BRASILEIRO DA MOSTRA COMPETITIVA NACIONAL
- IX É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários. São Paulo. 2004.
MELHOR FILME DA MOSTRA COMPETITIVA INTERNACIONAL
- IX É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários. São Paulo. 2004.

As faces de um documentário

O diretor Cao Guimarães brinca com as imagens invadindo o mundo de um ermitão,


Domingos Albino Ferreira, conhecido como Dominguinhos da Pedra, que vive há 41 anos
em uma caverna em Minas Gerais, lembrando os homens da caverna, usufruindo do
mínimo das artimanhas da sociedade contemporânea.

O filme mostra essa relação entre Cao e Dominguinhos onde a princípio percebemos o
diretor invadindo o espaço do personagem, e em certas ocasiões tão próximas que
destacam a dureza e a rusticidade do ambiente que transmite e traduz a vida do
personagem. A princípio somente observamos Dominguinhos com os olhos do diretor e os
ouvidos de um som diegético, onde mostra o micro de forma estridente e áspero. Além do
som diegético, o som extradiegético onde desde o início do filme é inserido por Cao, e é de
difícil percepção, só percebemos com o passar do tempo que apesar de naturais são
inseridos e praticamente imperceptíveis, como por exemplo o som dos pássaros. Talvez
para justapor a imagem solitária do protagonista com a liberdade dos pássaros?

Somente após 6 minutos de filme escutamos a voz de Dominguinhos, quando cantarola


uma música que apresenta um pouco do passado do protagonista. Aos 14 minutos de filme
o diretor avisa ao espectador, de forma não muito sútil, que não é o que você está
imaginando, e revela que apesar de um documentário você não está vendo a realidade do
personagem e sim uma atuação para a câmera que cada vez se torna mais perceptível
através da imagem e som extradiegético escancarado na tela logo quando é apresentado
rabiscos e palavras em fundo preto que formam o nome do filme.
Todos os quatro elementos é sempre bem frisados pelo diretor através de planos e sons
detalhes. A terra desde o início um dos principais elementos que está incrustado em sua
pele; a água representando a escassez de um lugar árido e o cuidado e respeito que o
personagem tem sobre ela apesar de alucinar e dar vida a sua existência; o fogo que
alimenta, banha e ilumina suas noites; e o vento, indomável, que leva e trás tudo que o
personagem viveu.

O personagem se entrega e dialoga com o espectador somente aos 43 minutos. E somente


nesse instante que percebemos sua forma peculiar de dialogar. Ele divaga sobre o sonho, e
novamente porém de forma mais sútil o diretor informa ao espectador que não é um
documentário informando a realidade de um ermitão e sim uma atuação dele com a câmera.

Em um único momento ele é apresentado com demais personagens, o que aparentemente


é uma turma de estudantes que interage com o “desconhecido”. Aparentemente só,
Dominguinhos é considerado um “ponto turístico”, uma raridade, uma exceção a
“normalidade” porém ciente do que a sociedade necessita e precisa para viver. A câmera
aproxima o olhar atento do ”público”, curiosos e atentos, que o veio visitar. E da mesma
forma que o outro invade seu território, ele vai embora, assim como o diretor e a chuva, que
chega de uma hora pra outra, sem muito alarde, em grande ou pequena escala ao som
metálico extradiegético. E quando a saudade aperta, Dominguinhos tem uma forma peculiar
de relembrar o passado e o contato com a civilização e a tecnologia, nos surpreendendo
com um rádio.

No final do filme os principais personagens, Dominguinhos e o diretor/câmera interagem, de


uma forma forçada por Dominguinhos, mudando a ordem do jogo, do poder, e assim vemos
claramente quem está por trás, não é necessário nenhum conhecimento cinematográfico,
mas neste ponto a quarta parede é quebrada e o diretor relutante, se obriga a se expor e
interagir de forma tímida e provavelmente contra sua própria vontade. E na última cena
Dominguinhos é apresentado como um personagem a ele mesmo, o que o emociona e o
cala diante de sua própria performance.

Essa relação entre diretor e personagem transpassa por diversos tipos de documentário,
existem grandes trechos poético, observativo e performático onde evidencia a subjetividade
através do olhar do diretor e apresenta o personagem através das suas ações e não deixa
claro seu objetivo em demonstrar essa “realidade”. Existem vários trechos onde o diretor
não faz questão de esconder ao espectador sua participação e interação com o
personagem, seria uma forma de escada, onde em cada degrau o diretor encontra uma
maneira diferente de expressar seus objetivos. Quando por exemplo o personagem a beira
do abismo observa o horizonte e começa a girar. Claramente percebemos que o ator está
atuando para a câmera e sendo induzido pelo diretor a realizar a ação, porém o diretor e a
câmera só interagem de forma participativa no final do filme, onde o personagem fala com o
diretor/câmera e pede para que toque um objeto. Nesse ponto, percebemos o desconforto
do diretor provavelmente por ele não ter planejado essa interação diante da câmera. Esse
desconforto do diretor ao interagir com o personagem diante da câmera revela a intenção
do diretor de se omitir o máximo possível querendo deixar toda a atenção ao personagem e
não o realizador.

A opinião do diretor é exposta de forma subjetiva através do diálogo nunca exposto ao


público diretamente, mas perceptível em diversos momentos do filme. Isso nos leva a
pensar, onde o diretor quer chegar com esse padrão de se esconder em praticamente todo
o filme atrás do personagem e de sua “realidade”.

Mas porque um ermitão e não um ator representando um ser que decidiu largar tudo e viver
só, “isolado” da sociedade. Será uma forma de criticar um sistema consumista que não
funciona para todos, e somente para uma pequena minoria ou foi a melhor maneira de
“brincar” com a realidade tanto do personagem quanto do espectador? Uma “realidade”
exótica, como Nanook, O Esquimó (1922) de Flaherty, um dos primeiros documentários já
feitos, que mostra a vida de uma família de esquimós que vive em busca de comida para
sobreviver. Nanook é muito mais dramático, pois mostra em uma local remoto, coberto por
gelo e em situação de risco onde o protagonista salta entre blocos de gelo flutuando sobre a
água para conseguir seu objetivo, caçar e alimentar a família. Por outro lado Cao não se
preocupa em nenhum momento apresentar como Dominguinhos faz para conseguir comida,
ele não expõe o personagem através da fala e sim pela representação do dia-a-dia de um
ermitão realizando tarefas cotidianas como lavando a louça e fazendo comida.

São filmes que dialogam em relação a tratar do exótico, porém de formas bem distantes de
uma lado Nanook que dramatiza a vida de uma família de esquimó em busca de comida
para sobreviver, e de outro A Alma do Osso, que apresenta um ermitão de uma forma toda
peculiar sem dramatizar e/ou se preocupar em como ele irá sobreviver nas montanhas
vivendo numa caverna sem luxo.

You might also like