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—— Jean Hyppolite Jean Hyppolite nasceu em Jonzac em 1907 e faleceu em 1968, contando com a idade de sessenta e um anos. Realizou um longo percurso intelectual no campo da filosofia francesa, desde a posigdo de professor Para 0 curso secundario na provincia, até os postos mais avancados do magistério. Assim, ensinou na Universidade de Strasbourg (1945-1948) e na Sorbonne (1949-1954) Em seguida, foi diretor da Ecole Normal Supérieure, onde ficou até 1963, quando ent&o assumiu a posi¢4o de professor do Collége de France, onde permaneceu até a sua morte. Ao lado de A. Kojéve e J. Wahl, foi um. dos responséveis pela releitura de Hegel na Franga, a partir dos anos trinta. Entretanto, No que tange a tradi¢4o filoséfica francesa, a introdugao do discurso hegeliano assumiria uma feigao particular e um efeito decisivo. Com efeito, para Hyppolite os pressupostos da filosofia hegeliana permitiriam introduzir a dimenséo hist6rica na leitura dos problemas filosdficos, perspectiva essa de abordagem que estaria ausente na histéria da filosofia na Franga, de Descartes a Bergson. Foi também, Hyppolite, a mediagao fundamental para 0,estabelecimento de um didlogo fecundo entre a filosofia e a psicandlise. Esta articulagao foi possibilitada, por um lado, pelo discurso de Hegel e, pelo outro, pelo “retorno a Freud”, promovido pela investigag&o de Lacan desde os anos cinqiienta. O didlogo estabelecido por Hyppolite com a psicanélise teve um alcance fundamental, pois ndo apenas constituiu o campo tedrico deste didlogo como também mapeou probleméticas importantes que ainda permanecem atuais. Por isso mesmo, o diélogo de Hyppolite com o discurso freudiano continua sendo de muita atualidade, apesar do contexto histérico em que se constituiu e de suas referéncias precisas ao campo intelectual da filosofia francesa. ENSAIOS DE PSICANALISE E FILOSOFIA COLECAO ANANKE Dirigida por JoEL BiIRMAN Jean Hyppolite Ensaios de psicandlise e filosofia Introdugdo e Organizagao: Joel Birman Tradugao: André Telles Livrarias Taurus-Timbre Editores, Rio de Janeiro, RJ, 1989 Selecdo ¢ tradugdo do original francés Figures de la pensée philosophique, PUF, 1971 © Presses Universitaires de France, 1971 Direitos adquiridos por Livrarias Taurus-Timbre Editores Ltda. Livraria Taurus Av. Ataulfo de Paiva, 1.321, Ij. B Rio de Janeiro, RJ, 22440 Tel.: 239-5994 Livraria Timbre R. Marqués de Sao Vicente, 52, 1j. 221 Rio de Janeiro, RJ, 22451 Tel.: 274-1149 Sumario A filosofia e o discurso freudiano Hyppolite, leitor de Freud por Joel Birman pag. 7 Ensaios de psicandlise e filosofia Psicanélise ¢ filosofia pag. 33 Comentério falado sobre a Verneinung de Freud pag. 47 “Fenomenologia” de Hegel e psicandlise bdg. 59 A existéncia humana e a psicandlise pag. 77 Filosofia e psicandlise pdg. 87 A filosofia e o discurso freudiano Hyppolite, leitor de Freud Joel Birman I — Renovagao na leitura de Hegel Jean Hyppolite nasceu em Jonzac em 1907 e faleceu em 1968, contando com a idade de sessenta e um anos. Realizou um longo percurso intelectual no campo da filosofia francesa, des- de a posigéo de professor para o curso secunddrio na provin- cia, até os postos mais avangados do magistério. Assim, en- sinou na Universidade de Strasbourg (1945-1948) e na Sor- bonne (1949-1954). Em seguida, foi diretor da Ecole Normal Supérieure, onde ficou até 1963, quando entéo assumiu a po- sigdo de professor do Collége de France, onde permaneceu até a sua morte.! A obra que nos legou é admirdvel em diferentes dimen- sdes, Ela se caracteriza nao apenas por sua multiplicidade, onde Hyppolite demonstra um dominio gigantesco do idealismo ale- mio e da filosofia moderna,? como também pela originalidade que define a sua leitura de Hegel. Como especialista em He- gel, traduziu para o francés A Fenomenologia do Espirito,? e nos ofereceu como tese um comentério magistral desta obra,* que ocupa desde ent&o o lugar de ser uma das fontes funda- mentais para a formagao de intelectuais interessados na filoso- fia de Hegel. Nesta retomada de pensamento de Hegel o que caracteri- za a interpretagéo de Hyppolite é o lugar fundamental atribut- do ao discurso hegeliano na filosofia moderna. Vale dizer, He- gel nao é considerado como sendo apenas um filésofo impor- 9 tante do século XIX entre varios outros, que dada a sua rele- vancia exige dos comentadores da histéria da filosofia a reali- zagio da exegese do seu discurso. Pelo contrério, a filosofia hegeliana seria nesta leitura a matriz da filosofia moderna. Com efeito, para Hyppolite o campo de incidéncia da filo- sofia de Hegel é mais abrangente, pois as problemiticas te6- ricas que foram delineadas pelo pensamento de Hegel se en- contram no fundamento da filosofia moderna. Assim, na lei- tura de Hyppolite, as grandes tendéncias do pensamento moder- no encontraram as suas origens nas probleméticas constituidas por Hegel e, por isso mesmo, estabeleceriam um didlogo per- manente com o discurso hegeliano, seja este realizado da me- neira direta ou indireta. Entretanto, no que tange 4 tradigdo filoséfica francesa, a introdugao do discurso hegeliano assumiria uma feig&o parti- cular e deveria ter um efeito decisivo, além da caracteristica a que nos referimos acima. Com efeito, para Hyppolite, os pres- supostos da filosofia hegeliana permitiriam introduzir a dimen- sdo historica na \eitura dos problemas filoséficos, perspectiva essa de abordagem que estaria ausente na histéria da filosofia na Franga de Descartes a Bergson.5 Assim, autor fundamental na retomada histérica dos estu- dos hegelianos na Franga, ao lado de J. Wahl ® e A. Kojéve,* Hyppolite foi também a mediagao fundamental para o estabe- Iecimento de um didlogo fecundo entre a filosofia e a psica- nalise. Esta articulagao entre filosofia e psicandlise foi possibi- litada, por um lado, pelo discurso de Hegel e, pelo outro, pelo “tetorno a Freud” promovido pela investigagéo de Lacan desde os anos cingiienta. Evidentemente, este encontro tedrico entre Hyppolite Lacan nfo foi fortuito, pois apesar de enunciarem discursos diferentes e se inserirem em campos diversos do saber, ambos se fundamentaram na filosofia de Hegel. Por isso mesmo, este encontro se increve na histéria da filosofia francesa, que desde 10 Os anos trinta retomou o pensamento de Hegel e construiu.as bases te6ricas para uma nova interpretagéo do seu discurso.® Neste contexto, se empreendeu a releitura da filosofia de Hegel por J. Wahl, A. Kojéve e J. Hyppolite, na qual foi atri- buido destaque especial aos textos iniciais de Hegel ¢ princi- palmente a A Fenomenologia do Espirito.2 Nesta obra, a dia- lética do Senhor e do Escravo}© ocupou uma posigaéo funda- mental para a elucidagéo do pensamento hegeliano e para a exegese da totalidade do seu discurso filoséfico. Assim, me- diante o destaque atribuido a dialética do Senhor e do Es- cravo nesta interpretagdo de Hegel, se sublinha no discurso fi- los6fico deste a dimensGo dramdtica que matcaria a constitui- gao do sujeito e nfo, como na leitura de outros comentadores do seu pensamento, se enfatiza em Hegel a construgéio de um sistema filoséfico, que teria realizado na sua légica o 4pice de sua reflexdo teérica. I — A dialética hegeliana no “retorno a Freud” Foi neste caminho metodolégico ¢ no campo desta proble- miatica filoséfica que se introduziu Lacan na pesquisa psi- canalftica. Com efeito, foi a leitura de Hegel, mediada pela interpretagéo de Kojéve,!! que foi uma das condigées de pos- sibilidade para que Lacan empreendesse a releitura renovadota de Freud. Assim, desde os anos quarenta, os escritos teéricos de La- can revelam as marcas das formulagdes de Hegel, principal- mente nos ensaios sobre o estddio de espelho,}? a causalidade psiquica 1° ¢ a agressividade.4 Desde entio foi se desenvolven- do progressivamente a presenca do discurso hegeliano na teori- zagao promovida por Lacan, de forma a se transformar numa 11 referéncia paradigmética que norteia a sua leitura da psicané- lise. Com efeito, mesmo com a introdug&o do referencial te6- tico da lingiifstica, possibilitado pela antropologia estrutural pela mediag&o de Lévi-Strauss,2°,1® a referéncia hegeliana ainda norteou o horizonte teérico de Lacan por muito tempo e orien- tou a sua releitura do discurso freudiano. Evidentemente, algu- mas probleméticas delineadas pela filosofia de Heidegger tam- bém nortearam a pesquisa de Lacan deste periodo, mas a inci- déncia de Hegel produziu marcas indeléveis no seu discurso. Entretanto, desde o semindrio sobre a angistia 17, a pers- pectiva lacaniana delineada a partir de Hegel comegou a reve- Jar alguns impasses tedricos importantes, que exigiram que Lacan repensasse a totalidade do seu processo. A problemdtica do real no discurso tedrico de Lacan comegou progressiva- mente a se constituir e a indicar um novo espago teérico para a investigagao psicanalitica. Assim, foi a delimitagéo do cam- po de simbolizagao possivel no sujeito ¢ na psicandlise que impés um limite & abordagem de Lacan, até entdo norteada por Hegel. Entretanto, esses impasses tedricos néo implicaram na recusa dos instrumentos conceituais entreabertos pela filo- sofia de Hegel, mas significaram a sua retomada num outro pla- no de maior complexidade, onde se impuseram alguns limites que a psicandlise coloca para a dialética hegeliana. Neste contexto, o “retorno a Freud” realizado por Lacan foi empreendido também pela mediagéo de A Fenomenologia do Espirito, na qual Lacan destacou nesta também a relevan- cia da dialética do Senhor e do Escravo, que foi 0 fio condu- tor na exegese de Hegel que orientou a filosofia francesa neste momento histérico. Fundando-se, entao, nesta leitura do discurso de Hegel, é que Lacan construiu um conjunto de conceitos originais no campo teérico da psicanélise. Assim, Lacan formulou o con- ceito de estédio do espelho, estabelecendo as suas diferengas fundamentais com o que Wallon descrevera com muita argucia na psicologia da crianca.1* Da mesma forma, retirou radical- 12

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