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Exposição do Decálogo

1. A Dívida Atual para com o Decálogo

1. Introdução.

Decálogo é um vocábulo grego (“dekalogos”) que significa “dez


palavras”, e foi o termo usado pelos pais da igreja quando referiam-se aos dez
mandamentos dados por Deus a Moisés.

Em sua forma original e completa, o decálogo ocorre em Ex 20:1-17


e em Dt 5:6-21. Em Êxodo, o povo de Israel, recém saído do Egito, está à
margem do Monte Sinai. Em Deuteronômio, Israel encontra-se, quarenta anos
depois da libertação da escravidão do Egito, no final de sua jornada, ocasião
em que recebe a lei pela segunda vez.

Os dez mandamentos são o núcleo essencial da “aliança da lei”.


Com efeito, a nação de Israel já estava em relação pactual com Deus através
de Abraão (cf. Ex 2:24). Mas, somente após Deus haver redimido o Seu povo
do Egito, a aliança da lei foi administrada, no Sinai.

O decálogo é identificado como “as dez palavras”, “as palavras da


aliança” e “as tábuas da aliança” (Ex 34:28; Dt 4:13; 9:9-11; 10:4), fato a
destacar que o caráter distintivo dessa aliança está em que ela revela um
“sumário externalizado da lei de Deus”, nas palavras de O. Palmer Robertson.
Segundo ele1,
Os patriarcas certamente estavam conscientes da vontade de Deus
em termos gerais. De vez em quando, eles recebiam uma revelação
direta a respeito de aspectos específicos da vontade de Deus.
Entretanto, com Moisés tornou-se explícito um resumo completo da
vontade de Deus por meio da inscrição da lei. Esse sumário da
vontade de Deus, externo ao homem e formalmente ordenado,
constitui o caráter distintivo da aliança mosaica.

Embora a Bíblia deixe claro que o núcleo essencial “externalizado da


vontade de Deus” componha-se de “dez palavras”, nem os textos clássicos de
Êxodo e Deuteronômio referidos acima enumeram especificamente cada um
dos mandamentos. Isso explica o fato dos cristãos os dividirem de modo
diverso, como se pode observar na tabela abaixo.

Divisão adotada pelas Igrejas Divisão adotada pela Igrejas


Ortodoxas, Reformadas e Católica Romana e Luterana
Anabatistas
1. Não terás outros deuses 1. Não terás outros deuses e não
farás imagens de escultura
2. Não farás imagens de escultura 2. Não tomarás o nome de Deus em
vão

1
ROBERTSON, O. Palmer. O Cristo dos Patos. São Paulo: Ed. Cultura Cristã, 2011. p. 143
3. Não tomarás o nome de Deus em 3. Lembra-te do dia do sábado
vão
4. Lembra-te do dia do sábado 4. Honra teus pais
5. Honra teus pais 5. Não matarás
6. Não matarás 6. Não adulterarás
7. Não adulterarás 7. Não furtarás
8. Não furtarás 8 Não dirás falso testemunho
9. Não dirás falso testemunho 9. Não cobiçarás a casa de teu
próximo
10. Não cobiçarás a casa de teu 10. Nem sua mulher, nem seu servo,
próximo, nem sua mulher, sem seu nem seu animal
servo, nem seu animal

2. A dívida moderna para com o decálogo.

Em dias de franco hedonismo, secularização, relativismo e


pluralismo filosófico, é de se esperar que a ideia de uma lei que se pretende de
origem divina e, por isso mesmo, de caráter absoluto e alcance universal e
perene seja ridicularizada pela cultura em geral. Entretanto, e esse é
certamente o fato mais dramático, o decálogo também entrou no arquivo morto
da igreja. E isso se deve a várias razões. Se não, vejamos:

Primeiro, os nossos dias são caracterizados pelo analfabetismo


bíblico. D. A. Carson observa que em 1950, quando a Gallup perguntou aos
americanos se eles tinham instrução religiosa na juventude, somente 6%
responderam negativamente. À mesma pergunta feita em 1898, o número dos
que responderam negativamente subiu para 38%2. Ainda na pesquisa Gallup
de 1989, descobriu-se que quatro entre cinco norte-americanos creem que a
Bíblia é a Palavra inspirada de Deus, mas a maioria não se lembra dos dez
mandamentos3.

Segundo, não há consenso entre os evangélicos sobre a vigência


dos dez mandamentos à igreja neotestamentária. Para os dispensacionalistas,
uma vez que sua teologia mais distintiva advoga que Deus tem programas
diferentes para Israel e para a Igreja, visto tratarem-se de dois povos distintos,
a lei inteira do Antigo Testamento foi abolida em Cristo e os mandamentos
destinados aos cristãos são os estabelecidos em algumas partes do Novo
Testamento. Somente após o arrebatamento da igreja, o Israel físico estará
outra vez debaixo da lei4.

2
CARSON, D. A. O Deus Amordaçado. São Paulo: Shedd Publicações, 2013. p. 42
3
HORTON, Michael. A Lei da Perfeita Liberdade: A Ética Bíblica a Partir dos Dez Mandamentos. São
Paulo: Cultura Cristã, 2000. p.12
4
Para o dispensacionalismo clássico, todo o Antigo Testamento a partir de Gn 12 pertence ao Israel
natural, assim como, no Novo Testamento, os evangelhos, as epístolas de Tiago, Pedro, João e Judas e a
maior parte de Apocalipse. Textos como Rm 15:4, I Co 10:6, 11 e II Tm 3:16 17 são completamente
ignorados ou mal interpretados.
Para os que defendem a Teologia da Nova Aliança, a lei do Antigo
Testamento serve como um tutor que nos convence de nossa pecaminosidade
e da necessidade que temos do Redentor. Entretanto, a lei em vigor aos
cristãos é somente a ensinada no Novo Testamento, uma vez que Cristo é
visto como o novo doador da lei, em contraposição a Moisés, o antigo doador
da lei. A nova aliança é vista como abolidora da aliança mosaica, a antiga.
Assim, o “não matarás” vigente aos crentes neotestamentários, embora de
mesmíssimo conteúdo, não é o “não matarás” da antiga aliança, do decálogo.

Para exemplicar a teologia da Nova Aliança, pensemos em duas leis


de mesmíssimo conteúdo e finalidade, mas de países diferentes que
chamaremos “A” e “B”. O país “A” prevê em sua lei penal o crime de homicídio;
o país “B”, idem. Embora, repito, as leis sejam de idêntico conteúdo, a lei do
país “A” não é a vigente no “B”. Semelhantemente, o mandamento “não
matarás” deve ser observado por todos os cristãos, mas porque está previsto
no Novo Testamento (cf. Rm 13:9), e não pela previsão nos textos clássicos do
decálogo, no Antigo Testamento.

Bem, mas será que os cristãos estão sob o dever de observar o


decálogo, as “dez palavras” reveladas através de Moisés? Acreditamos
indubitavelmente que sim, pelas razões que passaremos a expor.

1. A nova aliança prometida através do profeta Jeremias (Jr 31:31-


34) prevê a continuidade da Torá: “... Na mente, lhes imprimirei as minhas leis,
também no coração lhas inscreverei...” (Jr. 31:33).

Jeremias prevê claramente que a nova aliança será caracterizada


pela obediência à Torá. Mas, há aqui uma grande diferença! Enquanto na
antiga, a lei foi dada ao povo em tábuas frias e externas de pedra, que nada
mais faz além de exigir perfeita conformidade, na nova aliança, a mesma lei (e
não outra!) seria gravada, segundo o profeta, nas tábuas de carne do coração.

2. Os dez mandamentos valem para todo o povo de Deus e,


segundo o claro ensino do Novo Testamento, a igreja é o “Israel de Deus” (Gl
6:16), o povo em quem Deus cumpriu Sua promessa aos patriarcas (Rm 9:6-8;
Gl 3:6-9). No dizer de Hans Ulrich Reifler5,
Como crentes em Cristo, fazemos parte do povo unificado de Deus,
do qual fala o apóstolo Paulo em Efésios 2:11, 12. Somos
descendentes de Abraão (Gl 3:29),, somos verdadeiramente os
santos, o povo de Deus (Rm 9:9; 9:25, 26), a raça eleita (I Pe 2:9), o
“novo Israel” (Rm 11:17). Os renascidos são os santos, a raça
escolhida o povo de Deus (I Pe 2:9,10). Assim, os dez mandamentos
valem para todo o povo de Deus e, também, para a Igreja do Novo
Testamento.

5
REIFLER, Hans Ulrich. A Ética dos dez Mandamentos. São Paulo: Edições Vida Nova, 1992. p. 40
3. O Novo Testamento revela o alto respeito do Senhor Jesus e dos
apóstolos pelo decálogo, deixando claro que os mandamentos citados não são
outros novos, ainda que de mesmo teor, mas os ensinados por Deus ao Seu
povo através de Moisés.

No Sermão do Monte, Jesus afirma claramente que não veio revogar


qualquer ponto da lei (Mt 5:17). Antes, declara a sua permanente validade (v.
18), ratifica a necessidade da observância do decálogo (v. 19) e ainda os
interpreta de modo mais profundo, em relação ao entendimento mediano de
sua época (vs. 21, 22, 27, 28). No diálogo com o jovem rico, Jesus cita alguns
dos dez mandamentos como expressão da vontade de Deus (Mt 19:18).

Para o apóstolo Paulo, “a lei é santa; e o mandamento santo, e justo,


e bom” (Rm 7:12; cf. 7:16), o homem regenerado tem prazer na lei de Deus
(Rm 7:22) e o amor, o “novo mandamento” do Novo Testamento, nada mais é
do que o cumprimento da lei (Rm 13:8-10). A mesmíssima lição pode ser
aprendida com o apóstolo João: “E o amor é este: que andemos segundo os
seus mandamentos” (II Jo 6a).

4. A perpetuidade da lei, e sua observância ou não, está na base


das recompensas temporais, da disciplina e do julgamento dos cristãos.

Paulo relembra a promessa de vida longa que acompanha o quinto


mandamento (Ef 6:1-3). Escrevendo aos coríntios, o apóstolo denuncia seu
comportamento leviano na Ceia e a punição dos culpados em termos de
enfermidade e morte (I Co 11:30-32), e o escritor aos Hebreus menciona
correção e açoite aos crentes que carecem de disciplina (Hb 12:6). Para
Robertson6, essas “referências à atividade disciplinadora do Senhor não seriam
concebíveis em separado da importância permanente da lei para o povo de
Deus”.

Deve ser pontuado que não pode haver dúvida quanto à salvação
pela graça mediante a fé somente. Entretanto, as boas e as más obras dos
cristãos certamente afetarão o julgamento, o que assegura “a relevância
permanente na vida do cristão” 7 do decálogo.

Terceiro, não está claro para os evangélicos a relação entre “lei” e


“graça” ou “evangelho”. O equívoco mais comum é a equiparação da lei com o
Antigo Testamento e da “graça” ou “evangelho” ao Novo Testamento. Dessa
forma, acredita-se que a graça (ou evangelho) pôs fim ao dever de observância
da lei. Para tanto, passagens como Rm 6:14, 7:6, 10:4 e Gl 2:16; 3:23-25 são
apresentadas como textos de prova.

6
Op. Cit. p. 153
7
Ibdem
Para solvermos a suposta dicotomia entre lei e graça ou evangelho,
destacaremos os pontos a seguir.

1. “Lei” e “evangelho” ou “graça” não são princípios antagônicos.

A lei refere-se a qualquer comando ou expressão revelada da


vontade de Deus, em qualquer parte da Bíblia. No Édem, antes da Queda,
lemos sobre a ordem de não comer do fruto da árvore proibida (Gn 2:17). A
vontade de Deus quanto ao respeito à vida foi revelada como parte da aliança
noética (Gn 9:6). A Abraão, foi exigido compromisso integral com o Senhor (Gn
12:1; 17:1). A lei nos diz o que devemos fazer para nos conformarmos à
vontade revelada de Deus, princípio que pode ser observado antes da outorga
do decálogo por meio de Moisés, e até mesmo antes da Queda, como
pontuamos.

“Graça” (ou “evangelho”), lado outro, nos comunica, em qualquer


parte da Bíblia, a verdade de que o pecador é salvo através da fé somente.
Evangelho nos comunica acerca das provisões de Deus para salvar pecadores
que nada merecem além de condenação. A graça pode ser contemplada
mesmo antes da queda, naquela provisão abundante de Gn 2:16. Mas, sua
plena revelação começa a ocorrer após a Queda, quando Deus revela o proto-
evangelho (Gn 3:15) e faz vestimentas ao homem com a pele de animal que
Ele mesmo sacrificou (Gn 3:21).

Ouçamos A. W. Pink8 sobre a maravilhosa harmonia que há entre lei


e graça:

Como pode a lei de Deus e o evangelho da graça de Deus serem


contraditórios? Um O exibe como „luz‟, o outro O manifesta como
„amor‟ (I João 1:5; 4:8), e ambos são necessários a fim de revelar
plenamente Suas perfeições: se um deles que seja for omitido,
apenas um conceito parcial de Seu caráter será formado. Um torna
conhecida Sua justiça, o outro mostra Sua misericórdia, e Sua
sabedoria demonstra a perfeita coerência que há entre eles.

Ao invés de lei e graça serem contraditórios, elas são


complementares. Ambas aparecem no Édem antes da Queda...
Ambas operaram lado a lado no Sinai, pois enquanto a majestade e a
justiça de Jeová eram expressas no Decálogo, Sua misericórdia e
graça eram claramente evidenciadas nas provisões que Ele fez em
todo sistema levítico (com seus sacerdotes e sacrifícios) para
expiação dos pecados deles. Ambas brilharam em sua glória
meridiana no Calvário, pois, ao passo que, por um lado, a abundante
graça de Des aparecia ao dar Seu próprio Filho amado para ser o
Salvador dos pecadores, Sua justiça exigia que a maldição da Lei
fosse infligida sobre Ele enquanto levasse a culpa deles.

Como se pode concluir, a “lei” e “graça” seriam princípios


antagônicos somente se ambas apontassem ao modo como os homens podem
ser salvos. Para os fariseus e os judaizantes do primeiro século, e os legalistas
8
PINK, A. W. Dispensacionalismo: Uma Análise. São Paulo: PES, 2007. pp. 35, 36
de todas as eras, a observância à “lei” é o modo pelo qual os homens são
aceitos por Deus em Seu favor. Se assim pensássemos, deploraríamos a ideia
da subsistência da lei.

2. Há “graça” ou “evangelho” no Antigo Testamento, assim como no


Novo Testamento.

Com efeito, é certo que o evangelho é mais claramente revelado no


Novo Testamento. Entretanto, ele se encontra, como afirmamos acima, desde
a promessa do descendente da mulher que esmagaria a cabeça da serpente
(Gn 3:15), desde a vestimenta feita pelo próprio Deus e em todas as provisões
para o pecado através do sacerdócio levítico. Ademais, vez em quando brilham
luzes evangélicas ainda mais poderosas no Antigo Testamento, em passagens
tais como Salmos 32:1, 2; 51:16, 17; Isaías 55; Miquéias 7:18 etc.

3. Há lei no Novo Testamento, assim como no Antigo Testamento.

Para sedimentar esse ponto, basta lembrarmo-nos do Sermão do


Monte (Mt 5-7), ou do diálogo de Jesus com o jovem rico (Mt 19:16-22), ou das
Suas discussões acerca da interpretação da guarda do sábado (Jo 5:18) ou
com um escriba sobre o maior dos mandamentos (Mt 22:34-40). Também
testificam o postulado em análise todas as seções éticas das epístolas do Novo
Testamento.

Entretanto, está claro para o leitor mais incipiente do Novo


Testamento que nem todos os aspectos da lei véterotestamentária estão em
vigor aos crentes neotestamentários. Assim, devemos entender qual aspecto
da lei mosaica foi cumprido em Cristo e qual possui valor permanente e, por
isso, está em pleno vigor aos cristãos. Para tanto, vale compreender a
importante distinção entre os aspectos da revelação mosaica que os teólogos
classificam como leis cerimoniais, civis e morais.

As leis cerimoniais são o conjunto de regras que regulamentavam o


exercício do sacerdócio levítico, com todo o seu complexo e detalhado sistema
sacrificial. Todo esse sistema foi cabalmente cumprido em Cristo, visto que,
nas palavras do escritor aos Hebreus, constituíam figuras e sombras de um
sacrifício superior que, realizado de uma vez por todas, realizaria a redenção
eterna (cf. Hb 9:11-14, 23-28; 10:1-4, 11-18). “Assim, as leis cerimoniais
desapareceram com a vinda daquele para o qual foram designadas como
prenúncio”9. Os cristãos foram libertados da tutela da lei cerimonial para a sua
plena liberdade, sob o evangelho (cf. Gl 44, 5). A partir da obra redentora de
Jesus Cristo, têm acesso imediato ao trono pelo Espírito Santo, sem
necessidade de intermediação sacerdotal.

9
HORTON, Michael. A Lei da Perfeita Liberdade: A Ética Bíblica a Partir dos Dez Mandamentos. São
Paulo: Cultura Cristã, 2000. p. 16
As lei civis dizem respeito às regras que disciplinavam o
comportamento dos israelenses enquanto sociedade politicamente organizada,
uma vez que a Igreja do Antigo Testamento organizava-se como um povo-
nação. Tais leis, por exemplo, definiam condutas danosas à propriedade e suas
sanções. Se as leis cerimoniais prefiguravam Cristo como o grande Sumo
Sacerdote, as civis O apontavam como o grande Rei, que detém, Ele só, a
prerrogativa de legislar e regular os mais variados aspectos da vida social do
Seu povo. Entretanto, como a Igreja neotestamentária é um povo internacional,
ligado somente pelos laços da fé, não há que se desejar uma nova teocracia
para os nossos dias, uma vez que o Cristo já reina em Seu povo e já expande
a manifestação do Seu reinado através do evangelho.

Por fim, temos a lei moral, cujo núcleo essencial é o decálogo. Esse
aspecto da lei é perene, de validade permanente. Os cristãos foram redimidos
da maldição da lei (Gl 3:13) e da necessidade de manter a lei como condição
da justificação (Rm 5:19), mas não do dever de observar a lei moral, pautando
a sua conduta conforme os ditames dos dez mandamentos.

Nas palavras de Mauro Fernando Meister 10, nós estamos sob a lei
moral de Deus em dois sentidos. Primeiro, porque ela “continua representando
a soma de nossos deveres e obrigações para com Deus e para com o nosso
semelhante”; segundo, porque ela, “resumida nos Dez Mandamentos,
representa o caminho traçado por Deus no processo de santificação efetivado
pelo Espírito Santo em nossa pessoa (Jo14:15)”.

4. Finalmente, devemos observar cuidadosamente alguns textos que


nos poderiam fazer concluir, em face de uma leitura apressada, que a graça é
um elemento neotestamentário que eliminou a necessidade da lei.

Comecemos com Rm 6:14:

Porque o pecado não terá domínio sobre vós; pois não estais debaixo da lei, e
sim da graça.

Antes de tudo, supomos que a palavra “lei”, usada no texto em


comento, significa “mandamento” de uma maneira geral, e não especificamente
lei mosaica no sentido de economia11. Assim, qualquer mandamento da parte
de Deus, embora ordene, exija, pronuncie bênção sobre os que lhe obedecem
e comine penalidades aos seus infratores, nada mais faz além de despertar o
pecado (Rm 7:5, 8-11, 13). A lei, numa sentença, não pode salvar, porque nada
pode fazer para justificar o seu violador e para libertar a natureza caída da
10
MEISTER, Mauro Fernando. Lei e Graça: Uma Visão reformada. Fides Reformata.
11
Sobre isso, Murray escreveu: “isto é demonstrado claramente pelo fato de que muitos daqueles que
estavam sob a economia mosaica foram os recebedores da graça e, nesse sentido, estavam debaixo da
graça; também é demonstrado pelo fato de que a isenção da lei mosaica como uma economia não
coloca, por si mesma, estas pessoas na categoria de quem está debaixo da graça”. MURRAY, John.
Romanos: Comentário Bíblico. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2012. p. 255
escravidão ao pecado e suas consequências. Isso explica a razão pela qual
está “debaixo da lei” corresponde a ser escravo do pecado, visto que “por
obras da lei nenhuma carne será justificada” (Gl 2:16).

Por ouro lado, a palavra “graça”, aqui, ensina Murray, “sumaria tudo
quanto está envolvido nas provisões da redenção, em contraste com a lei” 12.
“Graça” corresponde a tudo quanto Deus fez em Cristo para nos resgatar da
escravidão do pecado, servidão essa que a lei tinha somente acentuado. Por
isso, o apóstolo diz que o pecado não mais domina sobre quem está “debaixo
da graça”.

Portanto, o que o apóstolo afirma em nosso texto não é que não


mais estamos sob o dever de observar qualquer mandamento. Mas, que não é
pela observância da lei que somos resgatados da servidão do pecado. Ele está
somente estabelecendo que aquilo que nós não podemos fazer por nós
mesmos (ser salvos pela obediência à lei), Deus fez em Cristo por nós
(salvando-nos por Suas próprias provisões, por “graça”). Nas palavras de O.
Palmer Robertson, a expressão “não estais debaixo da lei”:

...Não significa: „Não estais debaixo dos Dez Mandamentos‟. Muito


provavelmente, no contexto de Romanos 6, significa: „Vós não estais
debaixo da aliança mosaica como um princípio que faz a justiça
depender dos recursos pessoais da pessoa como observador da lei‟.

Com isso em mente, não será deveras complexo compreender a


intenção do apóstolo em Rm 7:1-6:

1. Porventura, ignorais, irmãos (pois falo aos que conhecem a lei), que a lei tem
domínio sobre o homem toda a sua vida? 2. Ora, a mulher casada está ligada
pela lei ao marido, enquanto ele vive; mas, se o mesmo morrer, desobrigada
ficará da lei conjugal. 3. De sorte que será considerada adúltera se, vivendo
ainda o marido, unir-se com outro homem; porém, se morrer o marido, estará
livre da lei e não será adúltera se contrair novas núpcias. 4. Assim, meus
irmãos, também vós morrestes relativamente à lei, por meio do corpo de Cristo,
para pertencerdes a outro, a saber, aquele que ressuscitou dentre os mortos, a
fim de que frutifiquemos para Deus. 5. Porque, quando vivíamos segundo a
carne, as paixões pecaminosas postas em realce pela lei operavam em nossos
membros, a fim de frutificarem para a morte. 6. Agora, porém, libertados da lei,
estamos mortos para aquilo a que estávamos sujeitos, de modo que servimos
em novidade de espírito e não na caducidade da letra.

A assertiva do apóstolo é que a lei compromete os homens


enquanto vivem (v. 1) e, já que é assim, só existe uma forma deles
desvincularem-se dela: através da morte. Isso é ilustrado pela analogia com a

12
Ibdem. p. 256
lei do casamento (vs. 2, 3). Uma mulher casada só está livre para contrair
novas núpcias com a morte do marido.

De modo semelhante, nós também precisamos morrer


“relativamente à lei” para nos desobrigarmos de sua condenação e da
escravidão ao pecado a que ela nos submetia (ver Rm 6:14). Isso ocorreu em
nossa união com Cristo em Sua morte (v. 4), “pois toda a virtude da morte de
Cristo, ao satisfazer as reivindicações da lei, torna-se nossa, e somos livres da
escravidão e do poder do pecado, ao que estávamos consignados pela lei” 13.

Paulo continua afirmando que quando vivíamos “segundo a carne”,


conforme a natureza humana não regenerada, as “paixões pecaminosas” eram
“postas em realce pela lei” (v. 5), ideia que se repete nos versículos 8, 11 e 13
do mesmo capítulo. Mas, uma vez que fomos “libertados da lei”, ou seja,
desobrigados para com a lei, em face de havermos morrido na morte de Cristo
“relativamente à lei”, “agora servimos em novidade de espírito e não na
caducidade da letra” (v. 6). A lei é caracterizada por Paulo como “caducidade”,
porque em toda esta seção o que está em relevo é a sua incapacidade para
redimir-nos da servidão ao pecado (ver II Co 3:6).

Mais uma vez, é bom salientar que o que está em jogo aqui não é o
abandono do decálogo como guia ético de uma vida que agrada a Deus. O que
Paulo está fazendo, em verdade, é sepultar a noção de que podemos ser
salvos mediante a observância de um código escrito externo, como pretendeu
o Israel natural (ver Rm 10:3), e não tornar obsoleto o decálogo como
revelação da vontade de Deus. “O que o apóstolo está dizendo, então, é que a
profecia gloriosa de Jeremias 31:31-34 está se concretizando na vida dele
mesmo e de todos os seus destinatários” 14. As leis de Deus agora estão no
coração! Elas não foram descartadas.

Por fim, vale empreendermos, nesse ponto de nosso estudo, a


leitura de Gl 3:23-25:

Mas, antes que viesse a fé, estávamos sob a tutela da lei e nela encerrados,
para essa fé que, de futuro, haveria de revelar-se. De maneira que a lei nos
serviu de aio para nos conduzir a Cristo, a fim de que fôssemos justificados por
fé. Mas, tendo vindo a fé, já não permanecemos subordinados ao aio.

Escrevendo aos Gálatas, Paulo precisou lidar com a questão


judaizante, introduzida nas igrejas da Galácia pelos cristãos judaístas.
Provavelmente, esses judaizantes estavam bastante intrigados, para dizer
pouco, com a atitude libertária de Paulo frente a certos costumes da legislação

13
Ibdem. p. 270
14
HENDRIKSEN, William. Comentário do Novo Testamento: Romanos. São Paulo: Editora Cultura Cristã,
2011. p. 275
mosaica. Eles desejavam “melhorar” o evangelho pregado pelo apóstolo dos
gentios, tornando-o mais rigoroso.

Para tanto, começaram a exigir a circuncisão (Gl 5:2, 3; 6:12, 13) e a


observância de festas judaicas (Gl 4:10) e a impor restrições alimentares,
próprias dos judeus (Gl 2:11, 12). A princípio, parece que os judaizantes nem
entenderam os efeitos que essas inovações causariam (Gl 2:3-5, 21), nem, o
que é pior; a razão de haver Deus dado todos esses preceitos, razão pela qual
o propósito da lei, significando aqui o conjunto de prescrições dadas através de
Moisés, é aqui tratado por Paulo.

Para o apóstolo, a lei foi dada para nos ser um mestre a nos guiar na
infância e nos ministrar lições preliminares. Seu propósito primordial foi nos
convencer da absoluta impossibilidade de agradarmos a Deus pelos nossos
próprios recursos. Calvino15 afirma, a propósito do texto em comento, que a
justiça de Deus, revelada na lei, nos mostrava nossa própria injustiça, suas
promessas de vida pela obediência nos levavam a necessitar de outro caminho
e suas ameaças nos impulsionavam a achar refúgio da ira de Deus. O
reformador franco-suíço concluiu: “Toda a lei, em suma, outra coisa não era
senão uma multiforme variedade de exercícios nos quais os adoradores eram,
pela mão, guiados a Cristo”.

Entretanto, um efeito contrário foi produzido nos judaizantes que se


infiltraram nas igrejas da Galácia. Eles foram enredados pela noção de que
poderiam ser justificados mediante seus esforços pessoais em obedecer a lei.
Para eles, a forma codificada da vontade de Deus se lhes apresentou como um
caminho possível para a obtenção da vida. Por isso, Paulo se dirige a eles
como estando “sob a lei” (Gl 4:21).

Pelo exposto, não será tarefa impossível definir em que sentido “já
não permanecemos subordinados ao aio”. Isso significa que, tendo sido
justificados pela fé, o decálogo nada mais tem a ver conosco? Definitivamente,
não. Calvino16 compreendeu o ponto. Para ele, a lei está abolida se
abstrairmos dela os aspectos do pacto da graça. Sem esses aspectos, “o ofício
de Moisés se encerrou”. Ou seja, vendo a lei apenas como um conjunto de
prescrições que exigem obediência perfeita sem jamais prover perdão,
podemos dizer certamente: ela foi abolida para nós!

Por outro lado, o reformador acentua o valor permanente da lei para


a vida cristã. Ouçamo-lo:
Mas aqui, uma vez mais, pode-se perguntar se a lei está tão abolida
que nada tenha a ver conosco. Respondo que a lei, no tocante a ser
norma de vida, é um freio que nos mantém no temor do Senhor, uma
espora para corrigir a indolência da nossa carne; em suma, até onde

15
CALVINO, João. Gálatas. São Paulo: Edições Paracletos, 1998. pp. 111,112
16
Ibdem. p. 113
ela é proveitosa para ensinar, corrigir, reprovar, para que os crentes
sejam instruídos em toda boa obra, está em vigor como nunca, e
permanece intacta17.

3. Conclusão.

Buscamos, de passagem, estabelecer as razões da nossa dívida


atual para com o decálogo. Primeiro, ela está relacionada ao analfabetismo
bíblica da atualidade; segundo, com a incerteza entre os evangélicos quanto à
vigência dos dez mandamentos aos cristãos do Novo Testamento; e, terceiro, à
compreensão insuficiente da relação entre lei e graça ou evangelho.

Tentamos, em cada passo, apontar elementos que esclarecem a


questão levantada. Uma visão adequada da existência perene da lei e da graça
e da harmonia entre elas podem superar a terceira questão; a afirmação
categórica da permanente validade do decálogo, vencer a segunda; e, por fim,
um estudo sério da Escritura sobre tema tão caro para cristãos de todos os
séculos poderá por fim ao assombroso descaso pela Palavra de Deus.

Sigamos, pois.

17
Ibdem
2. A Natureza dos Dez Mandamentos e o Tríplice Uso da Lei

1. A lei moral no Pacto das Obras.

Deus relacionou-se com Adão através de um pacto. A distância que


existe entre o Criador e a criatura é de tal ordem que, se há de haver
comunhão entre ambos, isso ocorrerá mediante pacto.

Embora a palavra “pacto” (ou “aliança”) não ocorra nos dois


primeiros capítulos da Bíblia, Oséias 6:7 menciona Adão como transgressor de
um pacto. Ademais, Paulo, em Rm 5:12-21, estabelece que tanto Adão como
Cristo são chefes de uma aliança, de modo a deixar claro que como o povo de
Cristo recebeu vida pelo ato de obediência dEle, o povo em solidariedade com
Adão recebeu morte por sua desobediência. “Em Adão, todos morrem”.

Que houve realmente um pacto estabelecido antes da Queda, fica


evidente também pela presença de todos os elementos que lhe são próprios. O
“pacto das obras”, como costuma ser denominado, possuía partes contratantes
- Deus e Adão, embora Deus reserve a Si somente o direito de estabelecer os
termos do concerto; condições ou cláusulas; recompensas pela obediência; e,
penalidades pela desobediência.

Fato é que Adão não possuía o mais elevado nível de existência. Ele
tinha a possibilidade de não pecar, mas ainda podia pecar e, por isso, morrer.
Herman Bavinck explica com clareza a ideia:
Ele [Adão] ainda não tinha o amor perfeito invariável que expulsa todo
o medo. Os teólogos reformados corretamente salientaram, assim,
que essa possibilidade, esse bem mutável, esse ainda ser capaz de
pecar e morrer, não era parte ou componente da imagem de Deus,
mas era seu limite, sua limitação, sua circunferência. A imagem de
Deus, por isso, tinha que ser desenvolvida – dessa maneira,
superando e anulando a possibilidade de pecar e morrer – e
resplandecer em glória imperecível18.

Por essa razão, Deus sujeitou nosso primeiro pai, no pacto das
obras, a um teste probatório, através do qual, mediante o uso do livre-arbítrio,
poderia ter adquirido para si e sua progênie a bem-aventurança eterna. O teste
consistia em um ato de obediência radical a uma lei moral totalmente exterior,
de natureza arbitrária, incidental e aparentemente sem sentido. Nesse teste, a
questão é realmente esta: “ou Deus ou o ser humano, ou a autoridade de Deus
ou a compreensão humana, obediência incondicional ou pesquisa

18
BAVINCK, Herman. Dogmática Reformada: Deus e a Criação. Vol. 2. São Paulo: Cultura Cristã, 2012. p.
584
independente, fé ou ceticismo. Esse era um teste assustador que abriria o
caminho ou para a bem-aventurança eterna ou para a ruína eterna”19.

Entretanto, por óbvio que Adão não estava sujeito somente à lei
exterior do teste probatório. É dizer, não comer do fruto da árvore proibida não
era tudo que Adão deveria fazer em obediência ao Criador. Além dos
mandados criacionais, relacionados, sobretudo, ao trabalho, ao culto e à
proliferação da espécie, ele deveria também observar os demais mandamentos
morais. Ele estava, sim, sujeito a toda lei moral de Deus, que estava gravada
em seu coração, fato que o tornava capaz de cumpri-la por discernimento
natural, sem a necessidade de uma revelação especial.

Bavinck argumenta ainda que a lei discernida naturalmente por Adão


era “em essência, igual aos dez mandamentos”. A diferença era apenas em
termos de forma, uma vez que “a lei dada no Sinai pressupõe um catálogo de
pecados e, portanto, quase sempre fala de modo negativo („Não...‟), e a lei
moral antes da queda era muita mais positiva”20.

Portanto, a Lei moral sumariada no decálogo não é nova, no sentido


de haver sido concebida na aliança mosaica, tampouco na era pós-Queda.
Adão a conhecia por discernimento natural e era capaz de observá-la
cabalmente!

2. A lei moral no pacto da graça.

Quando Adão caiu, a aliança das obras não foi anulada, em pelo
menos três sentidos: primeiro, o homem continua devendo obediência a Deus;
segundo, a vida é conquistada somente mediante obediência perfeita (ver Lv
18:15; Gl 312); terceiro, a morte é a justa retribuição pela desobediência.

Por outro lado, a mudança radical efetuada pela Queda é que com o
seu advento não é mais possível ao homem obedecer à lei e, pela sua
obediência, obter a vida. Após a Queda, não há mais que se falar em conquista
por méritos humanos, razão pela qual embora o pacto das obras esteja em
vigor, não pode mais ser canal de bênção pelas obras dos próprios homens.

O pecado atingiu todas as faculdades (Jr 17:9; Mc 7:21-23) de todos


os homens (I Rs 8:46; Pv 20:9; Ec 7:20; Rm 3:23; Ef 2:3), desde a concepção
(Sl 51:5; Jo 3:6), em face da posição pactual estabelecida por Deus para Adão
(I Co 15:21, 22; Rm 5:12ss). O livre-arbítrio, através do qual Adão poderia ter
conquistado a bem-aventurança eterna, não mais existe. Adão, e sua prole

19
Ibden. p. 585
20
Ibdem
com ele, passou de um estado de “posse non peccare” (capacidade para não
pecar) para “non posse non peccare” (incapacidade para não pecar).

É nesse estado de corrupção e condenação que devemos inquirir


sobre as funções da lei na era pós-Queda. Se a lei não pode, de si mesma,
prover salvação, qual a sua finalidade à humanidade caída? Qual a sua relação
com o pacto da graça? Os reformadores debateram o assunto extensamente e
se contrapuseram, de um lado, contra os antinomianos e, de outro, contra os
abusos do romanismo medieval. Para tanto, resumiram as funções da lei nos
famosos “três usos”, quais sejam: uso teológico ou pedagógico, uso político ou
civil e uso moral ou didático. Discorreremos brevemente sobre cada um deles,
na ordem em que são tratados nas Institutas, por Calvino.

1. Uso teológico ou pedagógico.

O uso teológico ou pedagógico diz respeito à função da lei de revelar


a gravidade da nossa pecaminosidade, abater o nosso orgulho e nos levar,
desesperados, a Jesus Cristo. “De maneira que a lei nos serviu de aio para nos
conduzir a Cristo, a fim de que fôssemos justificados por fé” (Gl 3:24).

O apóstolo Paulo, observou Calvino21, afirma que pela lei vem o


conhecimento do pecado (Rm 3:20) e que pela lei o pecado avulta (Rm 5:20).
Nesse sentido, a lei opera o ministério de morte (II Co 3:7) e a ira de Deus (Rm
4:15). Por essa razão, diz o apóstolo, ele teria ignorado “a cobiça, se a lei não
dissera: Não cobiçarás” (Rm 7:7). Nesse sentido, a lei revela a justiça de Deus
e convence o pecador de sua própria injustiça, conduzindo-o a abandonar o
orgulho. “Assim”, escreveu Calvino, “a Lei é como um espelho no qual
contemplamos nossa impotência, (...) de modo que o espelho representa para
nós as máculas de nossa fronte”22.

Como se pode perceber, a lei jamais foi concebida, após a Queda,


como um meio de obtenção da vida, mas para nos mostrar que somos
pecadores perdidos e nos conduzir a Cristo. Como Agostinho escreveu: “A Lei
nos obriga a, empenhados em fazer as obrigações e fatigados em nossa
fraqueza sob a Lei, aprender a reclamar o socorro da graça”. E mais: “A Lei foi
dada para que, do grande, se fizesse o pequeno; para demonstrar que não
tiveste por ti forças para a justiça, e, assim, indigente, indigno e carente, te
refugiaste na graça”. E dirigiu a Deus as seguintes palavras: “Faz assim, ó
Senhor, faz assim, ó Senhor misericordioso: ordena o que não possa ser
cumprido, ou melhor, ordena o que não possa ser cumprido senão pela Tua
graça, para que, quando os homens não forem capazes de cumpri-lo por suas

21
CALVINO, João. A Instituição da Religião Cristã. Tomo 1. Livros I e II. São Paulo: Editora UNESP, 2008.
p. 337, 338
22
Ibden
forças, toda a boca seja calada e ninguém veja a si como grande. Que todos
sejam pequenos, e que o mundo inteiro seja feito réu diante de Deus” 23.

Finalmente, deve ser esclarecido que o ministério da lei em “matar”


(II Co 3:7) em nada diminui as suas perfeições (Rm 7:12, 16). Como Calvino
escreveu,
se nossa vontade estivesse completamente formada e composta na
sua obediência, o mero conhecimento dela já bastaria para a
salvação, mas, dado que nossa natureza, carnal e corrupta, lute de
modo hostil contra a lei espiritual de Deus, para que sua disciplina em
nada a emende, resta à lei, concebida para a salvação (caso
encontrasse ouvintes idôneos), ceder à ocasião do pecado e da
morte.

2. Uso político ou civil.

Se o uso teológico ou pedagógico da lei se destina à salvação de


pecadores que, de outro modo, morreriam em sua vaidade e presunção, o uso
político ou civil pretende refrear os irregenerados, que só não se lançam sem
limites na satisfação de sua própria lascívia por medo das sanções da lei.
Calvino entendeu que Paulo se referiu a essa função da lei quando escreveu a
Timóteo: “tendo em vista que não se promulga lei para quem é justo, mas para
transgressores e rebeldes, irreverentes e pecadores, ímpios e profanos,
parricidas e matricidas, homicidas, impuros, sodomitas, raptores de homens,
mentirosos, perjuros e para tudo quanto se opõe à sã doutrina” (I Tm 1:9, 10).

O uso da lei que ora analisamos, esclareça-se, não se destina à


regeneração de pecadores para o temor de Deus, mas para a imposição de
limites ao pecador, com vistas à possibilidade da convivência do homem em
sociedade. Sua utilidade está circunscrita àquilo que a teologia reformada
denomina “graça comum”. Interiormente, os homens podem odiar a Deus e
Sua Lei e, se não ousam desafiar todos os limites do razoável, isso não se
deve a uma submissão espontânea à vontade de Deus, mas ao medo da justa
retribuição.

Para entendermos a importância desse uso da lei à vida em


sociedade, imaginemos um país onde não se criminalizasse condutas como
furto, roubo, latrocínio, homicídio, estupro, além daqueles relacionados à
pedofilia. De fato, quando os homens destituídos de temor querem ultrapassar
os limites da lei, somente a ameaça que ela impõe lhes refreia.

Finalmente, Calvino24 também observou que o uso civil da lei é útil


aos eleitos, durante o tempo em que estão sem a santificação do Espírito,
quando também são marcados pela lascívia.

23
Ibden
3. Uso moral ou didático.

Já mencionamos dois usos da lei: o primeiro, aplicado à salvação de


pecadores; o segundo, à imposição de limites aos irregenerados, mesmo dos
eleitos enquanto nesse estado se encontrem. Nesse ponto, voltamo-nos à
compreensão do uso moral ou didático da lei, pelo qual ela se destina a ser
uma norma de vida para os já regenerados.

Calvino25 visualiza duas importantes finalidades para as quais a lei


moral continua vigente aos cristãos e é por eles aproveitada: primeiro, a lei é
um instrumento pelo qual aprendem a vontade do Senhor que desejam
obedecer; segundo, a lei prover exortação através da qual a indolência da
nossa carne é combatida. Nesse sentido, ele escreveu:
A Lei é um açoite para esta carne, pelo qual, como um asno inerte e
tardo, é impelida para a obra; ou melhor, para o homem espiritual,
uma vez que ainda não se livrou do peso da carne, será um aguilhão
contínuo que não se permita o que ele deseja.

Foi nesse quadrante, observou Calvino26, que Davi escreveu: “Os


preceitos do SENHOR são retos e alegram o coração; o mandamento do
SENHOR é puro e ilumina os olhos” (Sl 19:8). E: “Lâmpada para os meus é a
tua palavra e, luz para os meus caminhos” (Sl 119:105).

Com efeito, para o reformador, esse é o principal uso e o próprio fim


da lei. Quando o apóstolo Paulo contrapõe de maneira exclusiva “lei” e “graça”,
“lei” nessas passagens implica o que a lei pode ofertar ao homem natural à
parte da graça salvadora de Deus, o que a lei “pode conferir por si ao
homem”27. No uso didático ou moral, como descrito por Davi, a lei não é vista
sem o necessário acompanhamento da graça, que salva por fé somente e
permanece inspirando o coração regenerado à submissão ao Senhor.

Portanto, foi somente pela incapacidade de discernir essa distinção


fundamental, disparou o reformador de Genebra, que “alguns ignorantes
rejeitam ardorosamente a tudo em Moisés”. Fiquemos com a exortação do
reformador franco-suíço: “Que muito diste nossa alma dessa opinião profana;
de fato, Moisés ensinou belamente [Dt 32:46] que a Lei, que não pode gerar
entre os pecadores senão a morte, nos santos deva ter um uso melhor e mais
prestativo”.

Pelo exposto, conclui-se que devemos nos opor veementemente a


três alterativas éticas, quais sejam:

24
Ibden
25
Ibden. p. 342
26
Ibden. p. 342, 343
27
Ibden
Primeiro, não somos legalistas, se pela expressão entendemos
tratar-se da posição segundo a qual a lei foi-nos dada para sermos salvos pela
obediência aos seus comandos. O homem, antes da Queda, foi capaz de
obedecê-la. Após Queda, tornou-se incapaz. “...pelas obras da lei, ninguém
será justificado” (Gl 2:16).

Segundo, não somos antinomianos. Essa palavra é formada por


duas outras que significam “contra a lei”, e usada para a posição que postula
pela completa ausência de normas éticas objetivas e de padrões morais que
transcendam a subjetividade de cada indivíduo. Certamente, o advento do
Cristo não encerrou a lei moral no baú obsoleto do passado. “Anulamos, pois, a
lei, pela fé? Não, de maneira nenhuma, antes confirmamos a lei” (Rm 3:31).

Terceiro, não somos perfeccionistas. Sabemos não poder obedecer


a lei perfeitamente. Entendemos que jamais alcançaremos as suas demandas
por excelência moral. Estamos cientes, por um lado, da absoluta
imprescindibilidade da graça salvadora e, por outro, de que sempre
precisaremos da lei de Deus, a nos conduzir no caminho da vontade do
Senhor, tema sobre o qual nos debruçaremos no tópico seguine.

3. O decálogo e a vontade do Senhor.

Dentre os temas mais controversos na atualidade, no meio


evangélico, certamente inclui-se a questão da vontade de Deus. Em geral, os
cristãos têm sido encorajados a tentar “descobrir” a vontade de Deus, senão
para todos os detalhes da vida, para aquelas decisões mais cruciais da
existência, tais como casamento, vida profissional, momento de ter filhos,
mudança de cidade etc. Na verdade, como bem observou Héber Carlos de
Campos Júnior28,
Alguns evangélicos têm a impressão de que Deus tem um plano
melhor para eles; o problema é que esses não estão descobrindo
como desvendar tal plano, não encontraram a chave espiritual para
destravar tais bênçãos. Essa é a razão de estarem tão frustrados na
vida. Não culpam Deus por não abençoá-los, mas culpam a si
mesmos por não acharem o caminho, o plano “A” para as suas vidas.

A causa essencial da confusão reinante sobre o assunto está


relacionada ao abandono da teologia reformada quanto às necessárias
diferenciações da vontade de Deus. De fato, a vontade de Deus é una. Deus
deseja “a si mesmo e suas criaturas com um e o mesmo ato simples”29.
Entretanto, a variedade de vocábulos na Escritura para expressar a “vontade”

28
CAMPOS JÚNIOR, Héber Carlos de. Tomando Decisões Segundo a Vontade de Deus. São José dos
Campos-SP: Editora Fiel, 2013. p. 13
29
BAVINCK, Herman. Dogmática Reformada: Deus e a Criação. Vol. 2. São Paulo: Editora Cultura Cristã
2012. p. 239
de Deus e o modo como são utilizados30 nos apresentam dados que nos fazem
concluir que a vontade una de Deus pode ser sistematizada em diversos
aspectos, dois dos quais são especialmente úteis ao nosso propósito, quais
sejam: a vontade decretiva e a vontade preceptiva de Deus e a vontade secreta
e vontade revelada de Deus.

1. Vontade decretiva e vontade preceptiva.

Vontade decretiva é aquela por meio da qual Deus decreta tudo que
realmente aconteceu, acontece e acontecerá, quer Ele realize de maneira
imediata quer permita que ocorra por meio da livre agência de suas criaturas
morais, irracionais e das leis da natureza. Segundo esse aspecto da vontade
de Deus, Ele está inflexivelmente conduzindo a história segundo o Seu plano
previamente determinado (cf. Is 46:9-11; Rm 1:9,10; I Pe 3:17). Essa faceta da
vontade divina é sempre cumprida, até por meio de atos maus (At 4:27, 28), e
aponta para Deus como o Soberano e o Guia do Seu povo.

Por um lado, crer no Deus que controla todas as coisas (Dn 4:35) -
que faz tudo o que Lhe agrada (Sl 115:3), que tem os seres humanos nas
mãos (Jó 10:9), perante quem as nações como são como um pingo d‟água (Is
(Is 40:15) e diante de quem nenhum ser humano tem direitos (Is 45:9) -, é
fundamental para honrarmos a Deus como Aquele que reina de maneira
absoluta. Por outro, tal certeza nos faz concluir que o caminho da santificação
não é incerto, duvidoso ou inseguro. O nosso Salvador é também o nosso Rei!

A vontade preceptiva, a seu turno, alude às normas que Deus


estabeleceu para as suas criaturas morais (Sl 40:8; 143:10; I Ts 4:3; 5:18; I Pe
4:1,2). Enquanto a vontade decretiva é sempre realizada, a preceptiva é
frequente e deliberadamente desobedecida e jamais perfeitamente cumprida. É
à luz dessa importante distinção que Deus, de um lado, pode dizer: “farei toda
a minha vontade” (Is 46:10); e, de outro, Cristo pode dizer: “Nem todo o que me
diz: Senhor, Senhor! Entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade
de meu Pai, que está os céus” (Mt 7:21). De fato, há um sentido em que a
vontade de Deus está sendo feita na terra como no céu, e há outro em que
ainda devemos orar “faça-se a tua vontade, assim na terra como no céu” (Mt
6:10).

2. Vontade secreta e vontade revelada.

A distinção que ora analisamos emana de Dt 29:29: “As coisas


encobertas pertencem ao SENHOR, nosso Deus, porém as reveladas nos
30
No hebraico, as palavras mais comuns são “ratson” (Sl 40:8; 51:18; Pv 11:1) e “hepets” (I Sm 15:22; Is
46:10). Ambas referem-se àquilo que é objeto do prazer ou interesse de Deus. Por outro lado, a palavra
aramaica “tseba” (Dn 4:35) e o hebraico “etsa” (Sl 33:11; Is 46:10,11) guardam relação com a ideia de
decreto ou propósito. No Novo Testamento, as palavras frequentes são “thelema”, em geral traduzida
por vontade (Mt 6:10; 7:21; Ef 1:5, 9, 11), e “boule”, que denota a noção de desígnio ou propósito (Lc
7:30; At 2:23; 4:28; 20:27; Ef 1:11).
pertencem, a nós e a nossos filhos, para sempre, para que cumpramos todas
as palavras desta lei”.

Essa distinção, embora se assemelhe a anterior, não é idêntica a


ela, como podemos facilmente verificar. É que toda a vontade preceptiva é
revelada. O decálogo é tanto exemplo de vontade preceptiva quanto de
vontade revelada. Seria razoável, por óbvio, esperar que a norma de vida que
Deus nos impõe tenha sido por Ele revelada. Nesse sentido, Héber Campos
Júnior:
O cristianismo não é como as religiões de mistério que escondiam
certas verdades dos principiantes, reservando tal conhecimento aos
„iniciados‟. Deus não esconde a sua vontade de nós. Tudo que
precisamos para uma vida agradável a ele foi revelado. Essa vontade
não se adivinha, mas se conhece por meio da palavra e se pratica.

Mas, por outro lado, nem toda vontade decretiva é secreta. É


verdade que a vontade decretiva, em geral, também é secreta (p. ex., aquilo
que nos ocorrerá amanhã, como e quando iremos morrer, como nos sairemos
profissionalmente etc). Entretanto, há vontade decretiva revelada (a exemplo
do decreto da segunda vinda de Cristo e de novos e céus e nova terra e das
marcas da presente era).

Pelo exposto, fica claro que os cristãos não devem nutrir uma atitude
uniforme em relação a todos os matizes da vontade de Deus, embora devem
desejar agradá-lO em tudo. Assim, e isso é o que nos importa nesse momento,
qual deve ser a postura dos cristãos frente a esses variados aspectos da
vontade de Deus? Nós devemos tentar “descobrir” a vontade decretiva e
secreta de Deus como descobrimos a revelada? Pensemos a respeito.

Em primeiro lugar, quanto à vontade decretiva e revelada de Deus,


devemos conhecer, crer e esperar ansiosamente o seu cumprimento, a
exemplo do que sabemos sobre a segunda vinda do Senhor Jesus. Segundo o
apóstolo Paulo, a “coroa da justiça” aguarda “a todos quantos amam a sua
vinda” (II Tm 4:9). Pedro exorta a igreja a esperar ansiosamente “a vinda do
Dia de Deus” (II Pe 3:12). A vontade decretiva de Deus que foi revelada, o foi
para influenciar a nossa piedade na presente era e para, nutridos pela
esperança cristã, esforçarmo-nos pela nossa santificação (II Pe 3:14; I Jo
3:2,3).

Em segundo lugar, há ainda a vontade decretiva e secreta de Deus:


as coisas encobertas que pertencem ao Senhor. Certamente, a maior parte dos
decretos de Deus está escondida de nós. Nós só os conhecemos quando eles
ocorrem, porque são insondáveis (Rm 11:33,34).

Nesse quadrante, diversas são as possibilidades de decisões entre


opções moralmente neutras, nas quais Deus não nos revelará como agir do
modo como revelou em Sua vontade preceptiva. É o caso do João, que não
sabe se se casará com Maria ou Joana, duas cristãs de sua igreja; do Joaquim,
que deseja saber se será médico ou advogado; do Francisco, que está em
dúvida se aceita a proposta da empresa onde trabalha para servi-la em outro
Estado da federação, para onde deverá, caso aceite, mudar-se com a família
etc.

Bem, diante de todas essas necessárias tomadas de decisão, a


Bíblia não nos estimula a tentar “descobrir” qual é a vontade do Senhor para
cada caso (Tg 4:14). Na verdade, ela nos proíbe! Nesse sentido, ouçamos
outra vez Héber Campos Júnior:
A Bíblia proíbe procurarmos saber o amanhã através de meios
pagãos (cartomantes, adivinhos, astrologia, etc), mas também não
promete dar-nos conhecimento do mesmo através de meios “cristãos”
(sonhos, falar ao nosso coração, etc). Não devemos buscar o que
Deus não intentou revelar. Fazê-lo é agir como os descrentes,
inquietos por conhecer o amanhã (ex: horóscopo)...31

Mas, por outro lado, malgrado a Escritura não nos ensinar a


“descobrir” a vontade de Deus para situações moralmente neutras, ela não nos
estimula a acreditar que tais decisões sejam irrelevantes para Deus ou que
Deus não nos dirija a adotar uma em detrimento das demais. Nesses casos,
somos estimulados pelo Senhor a pedirmos-Lhe a sabedoria que vem do alto
(Tg 1:5, 3:17) e a estudar a Palavra de Deus de tal modo que saibamos aplicar
os seus princípios revelados nas mais variadas necessidades de decisões. “Os
teus mandamentos me fazem mais sábio que os meus inimigos; porque,
aqueles, eu os tenho sempre comigo” (Sl 119:98).

Uma boa maneira de visualizarmos como a Palavra de Deus nos


orienta em decisões nas quais não nos dirige diretamente está em bem
atentarmos às perguntas indicadas por Héber Campos Júnior32, seguindo
sugestão de Sinclair Ferguson, suscitadas a partir de I Co 6:9-20 e 10:23-11:1.
No contexto dessas passagens, Paulo está tratando da imoralidade sexual,
claramente proibida (capítulo 6) e da participação dos cristãos em sacrifícios
pagãos (capítulo 10). Observar essas perguntas nos ajudará a compreender
como a Palavra de Deus nos torna sábios para tomar decisões, sem
necessidade de revelação a respeito:

1. A primeira pergunta a ser feita quanto à tomada de um


determinado curso é esta: “É licito?” (I Co 6:12; 10:23). Tudo quanto é ilícito
deve ser automaticamente descartado pelo cristão. Nesse sentido, Paulo
proibiu aos cristãos a participação em cultos pagãos (I Co 10:14-22).

31
Ibden. p. 54
32
Ibden. p. 70-73
2. Sendo lícito, deve-se arguir: “Edifica? Convém?” (I Co 6:12;
10:23). Existem atitudes que não são ilícitas, mas são inconvenientes e não
promovem edificação.

3. Sendo lícito, pergunta-se ainda: “Escraviza?” (I Co 6:12b). Ações


lícitas, e até necessárias, podem escravizar, a exemplo do excesso de trabalho
e estudo.

4. Sendo lícito, ainda questionamos: “Como esta decisão afeta as


demais pessoas?” (I Co 10:24, 28, 29, 32, 33). Existem atitudes lícitas que
escandalizam os nossos irmãos.

5. Finalmente, sendo lícito, eis a pergunta crucial: “Glorifica a Deus?”


(I Co 10:31). Essa última pergunta nos ensina a testar todas as decisões sob o
crivo do amor a Deus e nos lembra que muitas ações não pecaminosas em si
mesmas têm por base motivos pecaminosos.

Finalmente, ainda com relação á vontade decretiva e secreta de


Deus, somos ordenados pela Escritura a aceitar a providência difícil do Senhor
com alegria e gratidão. Certamente, a vontade decretiva de Deus inclui as
aflições e perseguições do Seu povo (I Ts 3:2, 3; I Pe 3:17; 4:19). Diante delas,
temos o desafio de crer na bondade do Senhor (Rm 8:28-30; Sl 73) e a reagir a
elas com gratidão (I Ts 5:18).

Em terceiro lugar, a nossa mais acurada atenção deve ser dada à


vontade preceptiva e revelada de Deus, uma vez que ela não se constitui de
meras recomendações, mas de ordens que devemos conhecer e obedecer.
Muito tempo tem sido gasto na tentativa de “descobrir” daquilo que Deus não
nos revelará e pouco tempo, com aquilo que Ele quer que conheçamos e
cumpramos, por isso revelou.

Devemos orar como Davi: “Desvenda os meus olhos, para que eu


contemple as maravilhas da tua lei” (Sl 119:18). Como Davi, devemos estimá-la
sobre todas as coisas: “Para mim vale mais a lei que procede de tua boca do
que milhares de ouro ou de prata” (Sl 119:72). Como Esdras, devemos ter
coração disposto para buscar e Lei do Senhor, cumpri-la e ensiná-la (Ed 7:10).
Os preceitos do Senhor devem ser o objetivo mais importante de nosso
conhecimento (Ef 5:17), porque a vontade de Deus é a nossa santificação (I Ts
4:3). “Ao invés de curiosidade ímpia acerca dos decretos de Deus para nossa
vida, devemos nos aplicar à prática da piedade” 33. É em face dessa
necessidade que nos debruçaremos doravante sobre o decálogo, esse
maravilhoso sumário da vontade preceptiva e revelada de Deus.

33
CAMPOS JÚNIOR, Héber Carlos de. Ibden. p. 60
3. O Preâmbulo do Decálogo

“Então, falou Deus todas estas palavras: Eu sou o SENHOR, teu Deus, que te
tirei da terra do Egito, da casa da servidão” (Ex 20:1,2)

O que temos no preâmbulo do decálogo é uma introdução típica dos


tratados da época no Oriente antigo, na qual se identificava o autor do pacto - o
soberano que reivindicava o senhorio sobre o povo -, e seus atos beneficentes
para com os súditos.

É notável que estas foram as únicas “palavras” (ou “mandamentos”)


dadas diretamente por Deus a todo o povo, e, somente em momento posterior,
entregues a Moisés inscritas em pedras (Ex 24:12; 34:1, 27, 28). Todas as
demais estipulações legais foram dadas ao povo indiretamente, através de
Moisés (Ex 20:22; 21:1; 24:3).

Pelo preâmbulo, fica claro que antes de Deus ensinar ao Seu povo o
que requer dele, anuncia-lhe Sua soberania, Seu direito soberano de
reivindicar dele a obediência, e relembra-lhe Seus atos salvadores. Deus é
glorificado tanto como o Legislador quanto como o Libertador do Seu povo, de
modo que este povo possui razão dupla para obedecer em gratidão ao Senhor
que lhe redimiu: a autoridade de Deus e Sua inexplicável bondade. Se não,
vejamos.

1. Quem é o Legislador do Decálogo?

“Eu sou o SENHOR, teu Deus”, é a maneira como o soberano do


pacto se identifica. O hebraico traz: “Yahweh, teu Deus, sou eu”, com ênfase
na expressão “sou eu”. “Yahweh” (traduzido por “SENHOR”) é o nome divino
mais sagrado e pessoal, através do qual o Senhor se revelou como o Deus da
graça. A origem do nome está em Ex 3:13, 14, onde vem relacionado com o
verbo “ser” (hebraico “hayah”) e tem o seu sentido explicado pela expressão
“Eu sou o que sou” (ou “Eu serei o que serei”).

No Novo Testamento, “eu sou” e “Yahweh” são expressões


vinculadas também à pessoa bendita do Senhor Jesus. Quanto à primeira, é
marcante no evangelho de João o uso por Jesus de “ego eimi” (“eu sou”), como
em Jo 8:58: “Respondeu-lhes Jesus: Em verdade, em verdade eu vos digo:
Antes que Abraão existisse, Eu Sou”. O uso do “Eu Sou” por Jesus é não
apenas uma referência à pré-existência do Senhor, mas de Sua pré-existência
eterna e Sua divindade. Como observa F. F. Bruce, “Jesus usa a mesma
linguagem do Deus de Israel”34. O verbo no presente indica o eterno presente
do Verbo.

De modo semelhante, o nome sagrado “Yahweh”, traduzido pelo


grego “Kyrios” (“Senhor”), é indiscutivelmente aplicado a Jesus em inúmeras
passagens, nas quais textos do Antigo Testamento são citados (como ocorre
com a citação de Jl 2:32 em At 2:21 e Rm 10:13). Segundo o mavioso cântico
de Fp 2:6-11, o ápice da história é a revelação da grandeza e da excelência do
Nome de Cristo, fato que imporá a toda a língua que “confesse que Jesus é o
Senhor (grego “Kyrios”), para a glória de Deus Pai”.

O nome sagrado “Yahweh”, portanto, indica a imutabilidade do Deus,


segundo lição de Louis Berkhof, notadamente “a imutabilidade de sua relação
com seu povo”35, tanto quanto a Sua veracidade. Deus não muda (Ml 3:6).
Seus planos não são alterados. Seus propósitos são inflexivelmente cumpridos.
Suas promessas são inquebrantáveis. Podemos estar seguros porque os
reveses da caminhada não interferirão no comprometimento pessoal do Senhor
para com o povo que redimiu.

Por fim, devemos ainda pontuar que pelo uso da expressão “teu
Deus”, o Senhor reivindica o Seu povo para Sua exclusiva propriedade. De
fato, o povo do Senhor Lhe pertence por direito de criação e de redenção (Ex
19:5, 6; I Pe 2:9) e o cerne do pacto é a relação exclusiva e recíproca na qual
Deus toma um povo para Si e dá-se a Si para ser o Deus deste povo (Ex 29:45;
Lv 26:12; Jr 31:33; II Co 6:16-18).

2. O que fez o Legislador do Decálogo pelo Seu povo?

Se o povo de Deus Lhe deve obediência pela autoridade que o


Senhor possui, também, por outro lado, não se furtará de obedecê-lO em face
de Seu inexplicável e incondicional favor: “... te tirei da terra do Egito, da casa
da servidão”.

A libertação da escravidão é um tipo da libertação do poder do


pecado, efetuada na cruz de nosso Senhor, o Cordeiro de Deus que tira o
pecado do mundo (Jo 1:29, 36). A páscoa demarcou o início da vida nacional
(Ex 13). Cristo, o nosso Cordeiro pascal, nos redimiu para festejarmos a festa
cristã sem os asmos da maldade (I Co 5:7, 8). Jesus Cristo “a si mesmo se deu
por nós, a fim de remir-nos de toda iniquidade e purificar, para si mesmo, um
povo exclusivamente seu, zeloso de boas obras” (Tt 2:14).

34
BRUCE, F. F. O Evangelho de João: Introdução e Comentário. São Paulo: Mundo Cristão, 1987. p. 181
35
BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. São Paulo: Cultura Cristã, 2012. p. 49
A libertação da escravidão social e econômica fora deveras um
estímulo à obediência, e, com muito mais razão, o evangelho é um poderoso
incentivo à piedade e seu próprio fundamento. Se para os crentes do Antigo
Testamento, Deus pode dizer: “Vivam piedosamente, porque lhes redimi do
jugo tirano do Egito”, aos do Novo, certamente diz: “Vivam piedosamente,
porque lhes redimi do poder e da maldição do pecado”.

3. Conclusão ao preâmbulo.

Pelo exposto, devemos ponderar sobre as seguintes lições extraídas


do preâmbulo ao decálogo.

Em primeiro lugar, a grande lição estabelecida pelas palavras iniciais


do Senhor ao decálogo é que toda a devoção e piedade do Seu povo é
resultado de quem o Senhor é e do que Ele lhe fez. “Deus é amor” (I Jo 4:16).
Esse amor foi manifesto quando Deus enviou a Jesus Cristo para vivermos por
Ele. E esse amor consiste nisso, não em que nós O tenhamos amado, mas em
que Ele nos amou e enviou a Jesus para fazer-nos propiciação (I Jo 4:9, 10).
“Nós amamos porque Ele nos amou primeiro” (I Jo 4:19).

Em segundo lugar, guardar os mandamentos do Senhor é a


resposta mais adequada frente ao conhecimento que temos do Ser de Deus e
dos Seus atributos. Suas palavras devem ser recebidas como dignas de toda a
confiança, ouvidas com toda a reverência, atendidas com toda a submissão,
obedecidas com todo o empenho e amadas com todo o coração. Quem sabe
quem o Senhor é não pode não tremer diante de Sua voz (Ex 3:5,6; Hb 12:21).

Em terceiro lugar, guardar os mandamentos de Deus é a resposta


mais adequada ao que Deus no fez. O evangelho não deve apenas nos fazer
exultar em cânticos, mas abundar em piedade.

Finalmente, Deus redimiu um povo para refletir a glória de Seus


atributos morais. O decálogo certamente expressa o caráter moral de Deus,
que deve ser refletido através do povo que redimiu (Lv 11:44, 45; I Pe 1:13-21).
Israel como o primogênito de Deus (Ex 4:22), que deveria espelhar a natureza
do Seu Pai, aponta à filiação plena revelada no Novo Testamento, com
propósito não menor que o seu tipo (Mt 5:48).
4. Não Terás Outros Deuses

1. O significado.

“Não terás outros deuses diante de mim” (Ex 20:3)

O primeiro mandamento é uma proclamação de Deus quanto à Sua


absoluta singularidade. Deus, por ser quem é, essencialmente dotado de
perfeições que somente a Ele pertencem e possuidor de uma glória
incomparável, não aceita dividir a honra que Lhe é devida com nenhum só dos
demais seres, visíveis ou invisíveis, reais ou imaginados pela criatividade
humana (Is 48:11).

Como somente Deus pode dizer “Eu Sou o que Sou” (Ex 3:14), Sua
reivindicação de ser único é a música que se ouve em toda a Escritura (ver Ex
15:11; Is 44:6; 46:9; Zc 14:9; I Tm 2:5). O credo judaico mais antigo afirma:
“Ouve, Israel, o SENHOR, nosso Deus, é o único SENHOR” (Dt 6:4). Salomão
suplicou que sua causa fosse atendida “para que todos os povos da terra
saibam que o SENHOR é Deus e que não há outro” (I Rs 8:60). O apóstolo
Paulo declarou em tons igualmente claros que os ídolos nada são e que há um
só Deus (I Co 8:4, 6).

O Ser glorioso de Deus justifica o fato de que todas as obras do


Senhor foram e são feitas exclusivamente para a revelação e louvor da Sua
glória. Ele criou todas as coisas para glorificá-lO. “Os céus proclamam a glória
de Deus e o firmamento anuncia as obras de suas mãos” (Sl 19:1). De modo
semelhança, a obra da redenção foi realizada para o reconhecimento da Sua
excelsa graça (Ef 1:6, 12, 14).

Quando o Catecismo Maior de Westminster pergunta “Qual é o fim


supremo e principal do homem?”, a resposta é: “O fim supremo e principal do
homem é glorificar a Deus e gozá-lO plena e eternamente”. Mesmo a busca da
“felicidade” não pode ser o fim supremo e principal do homem, tampouco a
busca do melhor para a maioria. Quanto ao primeiro caso, Johannes
Geerhardus Vos escreveu que fazer da busca da felicidade o fim supremo do
homem
faz da vida humana algo voltado para o próprio homem... Dizer que o
fim principal do homem é buscar a felicidade é o contrário de crer no
Deus da Bíblia. A verdadeira felicidade do homem, é óbvio, resulta de
conhecer e buscar o verdadeiro propósito, a saber, glorificar e gozar a
Deus, o criador36.

36
GEERHARDUS VOS, Johannes. Catecismo Maior de Westminster Comentado. São Paulo: Editora Os
Puritanos, 2007. p. 32
Para Vos, semelhantemente, afirmar que o fim supremo e principal
do homem é buscar o melhor para a maioria é incorrer no mesmo equívoco da
assertiva anterior. O que mudou é que enquanto ali o foco está na felicidade
individual, aqui se “faz da felicidade ou bem-estar da raça humana em geral o
propósito da vida”37.

Como a criação é a manifestação da glória de Deus e existe em


função dela, afirmou Samuel Falcão38,

é um insensato desvio de seu real objetivo atribuir glória a qualquer


criatura, porque será dar à coisa criada, a glória que pertence ao seu
autor. Que tolice seria dar a música, a glória que pertence ao
musicista; ou dar a uma peça artística, a glória que pertence ao seu
autor! Quando uma criatura se gloria, é o mesmo que um edifício
jactar-se de sua solidez e beleza, ao invés de atribuí-la ao arquiteto
(Jr 9:23, 24).

Portanto, o significado do primeiro mandamento consiste em que


Deus reivindica das Suas criaturas racionais o reconhecimento da Sua
exclusiva divindade e da glória única e incomparável que possui, com todas as
implicações que passaremos a avaliar.

2. O que Deus nos proíbe com o primeiro mandamento?

O primeiro mandamento, como a maioria dos demais, ocorre em


forma negativa, de proibição, e expressa o zelo de Deus por Sua glória (Ex
34:6, 14). Deus é, por assim dizer, despertado em Seu ciúme por toda a forma
de idolatria. “Se Ele é Deus, e só Ele é, o único Criador e Senhor dos homens,
tem direito a nossa adoração exclusiva e fica „ciumento‟ quando a dirigimos
erroneamente para ídolos que não são deuses” 39. Assim, o primeiro
mandamento nos proíbe de toda e qualquer forma de idolatria. Ele nos impede
de darmos a quaisquer criaturas as honras que são devidas somente a Ele.

1. No Antigo Testamento.

Segundo o ensino do Antigo Testamento, não devemos nos lembrar


do nome de outros deuses, nem tê-los em nossa boca (Ex 23:13). Tampouco
podemos sacrificar a outros deuses, sob pena de destruição (Ex 22:20). As
alianças com os povos pagãos ficaram proibidas, para que se preservasse a
pureza monoteísta de Israel, e, pela mesma razão, os casamentos mistos (Ex
34:12-16).

37
Ibdem
38
FALCÃO, Samuel. Escolhidos em Cristo: O que de fato a Bíblia ensina sobre predestinação. São Paulo:
Cultura Cristã, 1997. p. 79, 80
39
STOTT, John. Nosso Silêncio Culpado: A Igreja, o Evangelho e o Mundo. Curitiba: Editora Esperança,
2014. p. 26
A idolatria representa um espiral descendente rumo à corrupção e
destruição. Dt 11:16 menciona essa queda gradativa provocada pela idolatria: o
engano do coração, o desvio, o serviço a outros deuses e prostração perante
eles. As consequências da idolatria eram tanto espirituais e eternas (Ex 32:7-
10; Hc 2:19) quanto físicas (Dt 13:6-11). Também são extensas as listas de
maldições divinas aos violadores do primeiro mandamento (Lv 26:14-46; Dt
28:15-68; 32:15-28).

Em Ex 34:16, menciona-se pela primeira vez a metáfora da


prostituição cultual. A idolatria, nesse diapasão, é comparada ao adultério (Jr
2:20). O Senhor havia “desposado” com Israel e, como Deus zeloso que é (Ex
34:14), não podia suportar vê-la flertando com outros deuses em adultério
espiritual. Eis a razão dos profetas de Israel, inumeráveis vezes, terem
denunciado a idolatria da nação, inclusive através de agudos sarcasmos (Is
44:6-20).

Finalmente, o profeta Ezequiel traz à baila o antigo e perene


problema da idolatria do coração (Ez 14:4-7). Isso significa dizer que mesmo no
Antigo Testamento já se adverte ao fato de que idolatria não está
necessariamente relacionada aos ídolos da religião supersticiosa. A idolatria do
coração pode estar relacionada com coisas moralmente neutras, ou até mesmo
com dádivas do Criador, que são desejadas de modo a extrapolar o seu devido
lugar.

2. No Novo Testamento.

O Novo Testamento mantém o padrão monoteísta do Antigo, quer


no ensino do Senhor Jesus, quer no ensino dos apóstolos. Em Mc 12:29, Jesus
citou a declaração de Dt 6:4. Na conversa com o jovem rico, ensinou que “bom
só existe um” (Mt 19:16-22). Paulo afirma claramente a unicidade de Deus no
debate sobre o sacrifício dos ídolos em Corinto (I Co 8:4-6).

No Novo Testamento, a idolatria é condenada por ser Deus o único


digno de receber toda a honra. É porque os homens deixam de dar a Deus o
devido reconhecimento da Sua glória que lhes sobrevém Sua ira e a
consequente entrega de suas vidas a seu próprio coração depravado (Rm
1:18-32). Assim, a falha mais básica do ser humano é não glorificar a Deus
como Deus nem Lhe dar graças (Rm 1:21; 3:23).

Para o apóstolo, a idolatria (e as demais formas de desvio religioso)


são obras da carne (Gl 5:19, 20), e os idólatras não têm parte no reino de Deus
(Ef 5:5; I Co 6:9). Essa é a razão pela qual os cristãos devem fugir da idolatria
(I Co 10:4), ordem que é repetida por João no último versículo de sua primeira
carta (I Jo 5:21).
Outras formas de idolatria são mencionadas no Novo Testamento.
Com base no ensino do Senhor Jesus no sentido de que não podemos servir a
Deus e a Mamom (Mt 6:24), a avareza é uma forma odiosa de idolatria e o
avarento é um idólatra (Cl 3:5; Ef 5:5), visto que as riquezas requerem de seus
“servos” dedicação exclusiva e esperança (I Tm 6:17).

Em Fp 3:18, 19, Paulo refere-se aos “inimigos da cruz de Cristo” e


afirma que “o deus deles é o ventre”. A palavra “ventre” (grego “koilia”, que
significa estômago) talvez seja um termo genérico para incluir tudo quanto
pertence aos apetites do homem natural. Aqueles cujo deus é o ventre são, no
dizer de Hendriksen, idólatras que não mantém seus apetites sob controle (Rm
8:13; I Co 9:27), à luz da compreensão que seu corpo é templo do Espírito
Santo, e se entregam à glutonaria e à licenciosidade 40.

O primeiro mandamento, ademais, não nos proíbe apenas a


idolatria a deuses criados pela criatividade supersticiosa dos homens, ao
dinheiro, ao ventre, ao próprio homem. Ele nos proíbe, igualmente, de
decidirmos por um caminho ateísta. Quando fomos restaurados à comunhão
com Deus, fomos tirados de uma condição de “sem Deus (o grego “ateoi”
significa literalmente “sem deuses”) no mundo” (Ef 2:11).

Há basicamente três formas de ateísmo: o ateísmo teórico ou


dogmático, o ateísmo virtual e o ateísmo prático. O ateísmo teórico é a
negação aberta e argumentação articulada em nível intelectual de que Deus
não existe (Sl 10:4; 14:1). Ateísmo virtual, a seu turno, é, no dizer do Dr. Vos 41,
“a negação da existência no Deus da Bíblia”. Ele afirma que o ateu virtual “crê
em um deus, mas não em o Deus”.

O ateísmo prático é a forma mais comum de ateísmo e se manifesta


através da indiferença para com Deus. O ateu prático não nega abertamente a
existência de Deus, mas se conduz nos caminhos da vida como se Deus não
existisse (Tt 1:16). Sobre os ateus práticos, o Dr. Héber Carlos de Campos
observou:
Os seus atos falam mais alto do que as suas palavras. Nesse caso, o
homem deve ser medido mais pelo que faz do que pelo que diz.
Todas as impiedades que comete são ramos do ateísmo nascido na
depravação do coração. Todas as pestilências espirituais são
expressões de um sangue contaminado, porque este sangue é
bombardeado do coração e atinge todas as veias do ser humano.
Essa infecção generalizada, ou septicemia espiritual, impossibilita o
homem de reagir positivamente, e de fazer boas obras42.

40
HENDRIKSEN, William. Comentário do Novo Testamento: Efésios e Filipenses. São Paulo: Cultura
Cristã, 2005. p. 566
41
Ibdem. p. 313
42
CAMPOS, Héber Carlos de. O Ser de Deus e Os Seus Atributos. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999.
p. 46
Mais que isso, o primeiro mandamento igualmente condena a
religião meramente formal, conforme salientou Hans Ulrich Refler 43. De fato,
Tiago desafia a confissão ortodoxa, retirada de Dt 6:4, quanto à unicidade de
Deus, mas que não procede de uma fé viva: “Crês, tu, que Deus é um só?
Fazes bem. Até os demônios creem e tremem” (Tg 2:19). O “tremor” dos
demônios é um grande desafio aos cristãos professos, cuja confissão de um só
Deus em nada influencia sua relação com Ele, tampouco os retira do estado de
letargia espiritual (Ap 3:16).

3. O que Deus nos exige com o primeiro mandamento?

Voltamo-nos agora aos aspectos mandamentais positivos do


primeiro mandamento, a fim de descobrirmos o que Deus nos exige através
dele.

Em primeiro lugar, o primeiro mandamento exige que conheçamos a


Deus como o único Deus vivo e verdadeiro e promovamos o conhecimento
dEle, de acordo com a revelação que Ele nos legou. O antigo credo judaico (Dt
6:4) deve ser inculcado nos filhos (Dt 6:7; I Cr 28:9; Is 43:10). Isso envolve
certamente o fato de que devemos nutrir sobre Deus ideias que estejam de
acordo com a Sua Palavra. Assiste razão a Geerhardus Vos, quando ensinou
que
Pensamentos sobre Deus que procedem de opiniões, especulações
ou da filosofia de mentes humanas obscurecidas pelo pecado não
podem ser pensamentos corretos a respeito de Deus. Os únicos
pensamentos corretos sobre Deus, da parte de seres humanos
pecadores, são aqueles derivados da Bíblia44.

Em segundo lugar, o primeiro mandamento exige que amemos a


Deus de todo o nosso coração, alma, forças e entendimento (Lc 10:27; Mt
22:37). Nosso Senhor Jesus Cristo resumiu os primeiros quatro mandamentos
no dever de amar a Deus com todo o ser. Porque só existe um único Deus vivo
e verdadeiro (Dt 6:4), toda a inteireza da nossa vida deve ser dedicada
exclusivamente a Ele (Dt 6:5). Isso significa, na prática, que não pode haver
nenhum tipo de distinção entre aquilo que é próprio da nossa religião e aquilo
que não é por ela afetado. Quem ama o Senhor O honra (Ml 1:6), O teme (Is
8:13), tem zelo por Ele (Nm 25:11; I Rs 19:10, 14; At 17:16). Em verdade, todos
os demais deveres para com Deus devem ser expressões do amor que Ele
requer de nós. Socorremo-nos outra vez do Dr. Vos, quando vaticinou que o
“crente em Cristo que é coerente há de compreender que a sua religião é o

43
REIFLER, Hans Ulrich. A Ética dos Dez Mandamentos. São Paulo: Edições Vida Nova, 1992. p. 60
44
Ibdem. pp. 311, 312
princípio regulador de toda a sua vida e que não há nada na vida que possa
estar à parte da nossa relação com Deus” 45.

Em terceiro lugar, o primeiro mandamento nos impõe que confiemos


somente em Deus e dependamos somente dEle (Is 26:4; Sl 130:7). Segundo
Lutero46, o sentido desse mandamento “é exigir a fé autêntica e a confiança do
coração no autêntico Deus único, atendo-se apenas a ele”. O reformador
alemão ensinou ainda que pelo primeiro mandamento Deus está dizendo:

deixe somente eu ser seu Deus e nunca procure nenhum outro, ou


seja, o que lhe fizer falta, espere-o de mim. E quando você estiver
passando por infortúnio e aperto, arraste-se para junto de mim e fique
comigo, EU é que lhe darei o suficiente e ajudarei em toda
necessidade. De forma alguma entregue seu coração a algum
outro47.

Em quarto lugar, o primeiro mandamento nos exige que adoremos a


Deus e Lhes demos ações de graças (Is 45:23; Dt 6:13; M 4:10). A adoração
diz respeito ao culto que prestamos a Deus, submetidos à Sua majestade.
“Ação de graças é a gratidão”, ensina Calvino48, “pela qual o louvor de todos os
bens é a Ele atribuído”. O reformador de Genebra asseverou que “como o
Senhor não pode consentir que nada disso [ele se referia à adoração,
confiança, invocação e ação de graças] seja desviado para outro, assim ordena
que tudo seja atribuído exclusivamente a Ele”.

Em quinto lugar, o primeiro mandamento exige que nos submetamos


a Deus (Tg 4:7) e Lhe obedeçamos em tudo (Dt 6:17; Jr 7:23). Certamente, o
primeiro mandamento é o mandamento fundamental, do qual os demais
dependem, por ser ele a fonte primária e fundamental da vida. Eis a razão pela
qual ele foi posto como o primeiro. Isso significa que toda e qualquer violação a
qualquer mandamento de Deus constitui uma quebra do primeiro.

4. Qual o sentido da expressão “diante de mim”?

A expressão literal da passagem é “à minha face”. R. Alan Cole


observa que a frase é incomum, e seu uso pode estar relacionado com o ato de
tomar uma segunda esposa quando a primeira anda está viva49. Esse sentido
foi perfeitamente captado por Calvino, como podemos apreciar:

45
Ibdem. P. 310
46
MARTINHO, Lutero. Catecismo Maior. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 2012. p. 26
47
Ibdem.
48
CALVINO, João. A Instituição da Religião Cristã. Tomo 1. Livros I e II. São Paulo: Editora UNESP, 2008.
p. 363
49
COLE, R. Alan. Êxodo: Introdução e Comentário. São Paulo: Mundo Cristão, 1990. p. 148
A meus olhos, a parte que se segue amplifica a indignidade, visto que
Deus é provocado ao ciúme sempre que colocamos nossas ficções
em seu lugar, tal como a mulher impudica que, ao expor
publicamente o adultério cometido perante os olhos do marido,
abrasa ainda mais sua alma. Portanto, já que Deus atesta, por sua
virtude e graça presente, que olhava o povo que elegera para si, para
que antes fosse detido do crime da queda, admoesta não ser possível
assumirem-se novos deuses sem que Ele seja testemunha e
expectador do sacrilégio. E, assim, acrescenta muita impiedade a tal
audácia aquele que julga poder iludir os olhos de Deus em suas
deserções. Pelo contrário, o Senhor proclama que tudo o que
tramamos, tudo o que maquinamos, tudo o que fabricamos acaba
diante de seus olhos. Pois, íntegra e incorrupta, a glória de sua
divindade não requer apenas uma confissão ao exterior, mas a seus
olhos, que enxergam os refúgios mais recônditos dos corações.

Portanto, como Deus vê os graves pecados que violam esse que é o


mandamento fundamental, somos por essa cláusula exortados pelo fato de que
nossos pecados O provocam à ira e O entristecem, e estimulados a fazer todas
as coisas de nossa vida sabendo que estamos diante dos Seus olhos, que
estão em todos os lugares, contemplando os maus e os bons (Pv 15:3).
5. Não Farás Imagem de Escultura

1. O significado.

“Não farás para ti imagem de escultura, nem semelhança alguma do que em


cima nos céus, nem embaixo da terra, nem nas águas debaixo da terra. Não as
adorarás, nem lhes darás culto; porque eu sou o SENHOR, teu Deus, Deus
zeloso, que visito a iniquidade dos pais nos filhos até à terceira e quarta
geração daqueles que me aborrecem e faço misericórdia até mil gerações
daqueles que me amam e guardam os meus mandamentos” (Ex 20:4-6)

O segundo mandamento proclama em tom altissonante os atributos


inerentes, de forma exclusiva, ao ser de Deus, sobretudo a Sua
incomparabilidade, a Sua incompreensibilidade e a Sua espiritualidade.
Ademais, o mandamento sobre o qual nos debruçamos nesse momento
enfatiza a transcendência de Deus em Sua relação com a criação. Sobre esses
aspectos do ser divino voltamos agora as nossas atenções. Se não, vejamos.

1. A incompreensibilidade de Deus.

Segundo a compreensão bíblica da fé reformada, Deus pode ser


conhecido. É dizer, Ele revelou diversas e suficientes facetas do Seu ser, pelas
podemos afirmar com justiça que conhecemos e continuamos a conhecer o
Deus verdadeiro, na medida em que vamo-nos apropriando de Sua auto-
revelação. Por outro lado, é mister também afirmar que o Deus que pode ser
conhecido não pode ser compreendido, ou conhecido exaustivamente.

Deus é, portanto, incompreensível! E Ele assim o é por pelo menos


duas razões: primeiro, porque Ele nos revelou sobre Si tudo quanto é possível
de ser conhecido; segundo, porque a distância que há entre a criatura e o
Criador é de tal ordem instransponível que não somos nem nunca seremos
capazes de apreender tudo que Deus é, porque jamais o infinito caberá no
finito. É nesse sentido que a Bíblia ensina que a profundidade da riqueza de
Deus não pode ser sondada (Is 55:8, 9; Rm 11:33, 34), nem o seu
entendimento esquadrinhado (Is 40:28). Somente o Espírito de Deus perscruta
a profundidade de Deus (I Co 2:10, 11; Rm 8:27).

Destarte, Deus é incompreensível porque Ele é incomparável. Ou


seja, não há um único ser em toda esta magnífica criação, quer na órbita física,
quer na espiritual, com quem possamos comparar a Deus. Deus é
absolutamente singular (Is 40:18, 25; 46:5) e inigualável (Is 44:6-8). Por isso, a
conclusão do Dr. Héber Carlos de Campos se impõe:

É algo totalmente absurdo fazer com que o infinito seja representado


pela aparência de uma criatura. É uma tentativa de transformar a
verdade em mentira. Deus não pode ser representado por nada,
porque não há nada que se compare a ele. Só o igual pode
representar. Aquele que está acima de toda criatura e de toda criação
é inigualável! O finito não pode ser confrontado com o Infinito.
Portanto, ninguém pode ser comparado com Deus, porque ninguém é
semelhante a ele!50

Em suma, porque Deus é singular, é incomparável; porque é


incomparável, é incompreensível; porque incompreensível, Seu ser infinito
permanece envolto no mistério sagrado. A resposta divina ao pedido ingênuo
de Moisés (Ex 32:18) permanece intacta: “... Não me poderás ver a face,
porquanto homem verá a minha face a viverá” (Ex 32:20). Assim, fazer
imagens de escultura da divindade constitui uma afronta sacrílega ao Ser
incompreensível, incomparável e singular de Deus.

2. A espiritualidade de Deus.

Existem diversos modos de existência espiritual. Por exemplo, os


homens têm “espírito” (Ec 12:7), Cristo adquiriu espírito humano na encarnação
(Jo 19:30) e os anjos são espíritos (Sl 104:4; Mc 1:17; Hb 1:13, 14). Entretanto,
a espiritualidade de Deus excede à dos demais seres espirituais. “Deus é
espírito” (Jo 4:24) de uma maneira totalmente exclusiva, por ser o Pai dos
espíritos (Hb 12:9). E, precisamente por Sua essência espiritual, Deus é um ser
incorpóreo e invisível (Lc 24:30; I Tm 1:17), daí que não pode ser contemplado
por olhos humanos.

As denominadas teofanias51 do Antigo Testamento, as aparições de


Deus em figura humana, não eram manifestações da real essência da
divindade. Antes, tratavam-se de manifestações divinas através de formas
humanas temporárias, para efeito de comunicação com os homens em um
estágio ainda incipiente da revelação (Hb 1:1, 2), sendo o “anjo do Senhor” a
teofania mais comum (Gn 18, 23, 32, 33; Jz 6:22).

Outra questão pertinente a ser referida nesse ponto de nosso estudo


é a grande frequência do uso de linguagem antropomórfica na Bíblia.
“Antropomorfismo” é a figura de linguagem que atribui formas humanas a Deus,
em face das limitações da linguagem humana. Para Champlin52, como “não há
entre os homens uma linguagem puramente divina... não há como falar sobre
Deus sem usar termos antropomórficos”.

50
CAMPOS, Héber Carlos de. O Ser de Deus e Os Seus Atributos. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999.
p. 72
51
“Theophania” é a junção das palavras gregas “Theos” (Deus) e “phanein” (aparecer). Segundo
Champlin, “é impossível para um homem ter contato direto com a verdadeira essência divina, pois ele
não conseguiria lidar com tal situação e provavelmente não haveria caminho metafísico para que isso
ocorresse”. CHAMPLIN, Russel Norman. O Antigo Testamento Interpretado: Versículo por Versículo –
Dicionário – M-Z. Vol. 7. 2ª. Ed. São Paulo: Hagnos, 2001. p. 5356
52
CHAMPLIN, Russel Norman. O Antigo Testamento Interpretado: Versículo por Versículo – Dicionário –
A-L. Vol. 6. 2ª. Ed. São Paulo: Hagnos, 2001. p. 3802
Assim, quando a Escritura fala a respeito dos pés (Gn 3:8; Ex
24:10), das mãos (Ex 24:11; Js 4:24), da boca (Nm 12:8; Jr 7:13) ou do
coração de Deus (Os 11:8), não pretende com isso afirmar que Deus possui
formas físicas semelhantes às nossas, a partir das quais Seu ser essencial
pudesse ser representado. Quando se diz que o homem foi criado à imagem e
semelhança de Deus (Gn 1:27), o que se tem em mente é que ao homem Deus
comunicou em certa medida atributos morais e intelectuais que Lhe pertencem
de forma perfeita. No caso em que se afirma que o Senhor falava com Moisés
“face a face” (Ex 33:11), isso deve ser interpretado em termos de uma
comunicação imediata e talvez audível (Nm 12:8), e não que Moisés tenha
contemplado visivelmente o ser essencial da divindade (Jo 1:18; I Tm 6:16).

A consequência da espiritualidade de Deus é a ordem insculpida no


segundo mandamento, pela qual o homem fica proibido de atribuir qualquer
forma a Deus em representações mentais e palpáveis. O Senhor pretendeu
curar e prevenir quanto a tal pecado desde o meio pelo qual revelou-Se ao Seu
povo, podendo lembrar-lhe mais tarde que ele apenas ouviu a voz do meio do
fogo, quando diante do Sinai, mas não viu aparência alguma. O propósito do
modus operandi divino foi claro: “... para que não vos corrompais e vos façais
alguma imagem esculpida na forma de ídolo...” (cf. Dt 4:10-20).

3. A transcendência de Deus.

A transcendência de Deus traduz a noção que Deus é totalmente


independente e separado da criação, e que está para além dela (Is 55:8, 9; Jó
11:7). Segundo lições de Kierkegaard, a distinção entre Deus e a criatura,
sobretudo entre Deus e os homens, não é apenas uma mera diferença de grau.
Na verdade, Deus não é apenas maior do que o homem. Deus não possui
apenas qualidades humanas amplificadas. Deus não é um super-homem. Deus
e os homens são em essência e qualidades totalmente diferentes 53.

Porque Deus é transcendente, Ele não possui qualquer nível de


dependência para com quem quer que seja, nem tampouco necessita de algo.
Assim, qualquer tentativa de atribuição de formas a Deus equivale a uma
maneira odiosa de humanizá-lO, de torná-lO menos divino e, por isso mesmo,
de O vermos como necessitando das Suas criaturas (At 17:24, 25).

Em síntese, sobre as prováveis razões das proibições de


representações do Deus verdadeiro, R. Alan Cole destacou:
... o fato de que nenhuma semelhança seria adequada, e que cada
tipo de imagem provocaria um novo tipo de falsa compreensão de
Deus. (...) A localização e materialização de Deus também era outro
perigo inerente à idolatria. (...) Finalmente, teria havido o perigo das

53
CAMPOS, Héber Carlos de. O Ser de Deus e Os Seus Atributos. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999.
p. 21, 22
tentativas semi-mágicas de aplacar ou controlar Deus através da
posse de uma certa localização de Sua presença, como podemos ver
em relação à arca em I Samuel 4:354.

2. O que o segundo mandamento não proíbe?

Tem-se observado, não sem razão, que a feitura dos querubins do


propiciatório da arca da aliança (Ex 25:18, 19), além da dos lírios e romãs da
cortina do tabernáculo, indica que a proibição inserta no segundo mandamento
está circunscrita às tentativas de representar o Deus verdadeiro – as três
pessoas da Trindade -, e quaisquer outros falsos deuses. Ou seja, a vedação
de imagens refere-se somente à fabricação de objetos de culto, não à
representação de quaisquer coisas ou seres da criação, para finalidades
diversas.

Digno de nota, nesse sentido, é a ordem divina para a confecção de


uma “serpente abrasadora”, para que todo aquele que fosse mordido por
alguma serpente sarasse se olhasse para ela (Nm 21:4-9). Essa passagem foi
citada pelo Senhor Jesus, através da qual Ele descreveu o tipo de morte que
sofreria e seus efeitos para aqueles que nEle cressem (Jo 3:14, 15).

Entretanto, vale dizer que mesmo nessas ocasiões, nas quais Deus
mesmo ordenou que assim se procedesse, Israel chegou a conclusões
equivocadas, vindo a apegar-se supersticiosamente aos objetos fabricados e a
acreditar que a presença de Deus poderia ser localizada ou contida de algum
modo, ainda que sem uma imagem de Deus. Quanto à serpente abrasadora
construída por Moisés, foi feita em pedaços pelo piedoso rei Ezequias, “porque
até àquele dia os filhos de Israel lhe queimavam incenso e lhe chamavam
Neustã” (II Rs 18:4).

À luz do exposto, a conclusão a que se pode chegar é que ficamos


vedados de fazer quaisquer objetos de culto, como ainda verificaremos. É
dizer, não há proibição quanto às diversas possibilidades de expressões
artísticas legítimas, desde que, frisemos, não estejam relacionadas a Deus, o
Pai, o Filho e o Espírito, nem sejam para fins devocionais.

Questão mais controversa dentre as igrejas reformadas diz respeito


às figuras do Salvador Jesus Cristo, usadas como recursos visuais às histórias
bíblicas contadas às crianças na Escola Dominical. Deveríamos ou não utilizá-
las? Seu uso constitui ou não uma violação ao segundo mandamento?

Na resposta à pergunta 109 do Catecismo Maior de Westminster


(“Quais são os pecados proibidos no segundo mandamento?”), inclui-se o
seguinte: “... o fazer qualquer representação de Deus, de todas ou de qualquer
54
COLE, R. Alan. Êxodo: Introdução e Comentário. São Paulo: Mundo Cristão, 1990. p. 149, 150
das três Pessoas quer interiormente em nosso espírito, quer exteriormente em
qualquer forma de imagem ou semelhança de alguma criatura...”.

Segundo o Dr. Johannes Geerhardus Vos55, os reformadores e os


seus sucessores nos trezentos anos seguintes se abstiveram de sancionar e
utilizar quadros de Jesus Cristo. Acrescentou que a representação moderna
típica de Jesus é produto do liberalismo teológico do século XIX e concluiu que
“seria errado fazer representações de Jesus Cristo sob qualquer pretexto” 56,
elencando os seguintes argumentos:

Primeiro, a Bíblia não apresenta a mínima informação sobre o


aspecto físico de Jesus Cristo, e nos estimula a pensar nEle na Sua glória
celestial e em Seu estado de exaltação (II Co 5:16).

Segundo, como não há qualquer relato sobre a aparência física de


Jesus, todas as representações artísticas são totalmente imaginativas.

Terceiro, como as representações de Jesus são produto do


liberalismo teológico, elas só enfatizam um “Jesus dócil” e a paternidade de
Deus, sem que nada tenham a dizer sobre pecado e punição.

Quarto, o resultado invariável das representações de Jesus talvez


seja o de apresentarmos excessiva e exclusivamente a Sua humanidade, com
a consequente negligência da Sua deidade.

Para o Dr. Vos, há, sim, uma diferença entre usar figuras de Jesus
para ilustrar histórias bíblicas que são contadas às crianças e usar figuras de
Jesus para a adoração, como fazem os católicos romanos. Entretanto, vaticina:
“há bons motivos para se afirmar que os nossos ancestrais da Reforma
estavam certos ao se oporem a toda representação pictórica do Salvador”.

3. O que o segundo mandamento nos proíbe?

Estamos prontos a pensar agora sobre o que o segundo


mandamento nos proíbe. Vejamos:

1. No Antigo Testamento.

No Antigo Testamento, somos proibidos de fazer “imagens de


escultura”, cujo hebraico dá a ideia de “algo talhado ou esculpido à semelhança
de alguma outra coisa”57, feito normalmente em madeira ou pedra. Em Ex
34:17, temos a vedação de se fazer imagem de “fundição”, a exemplo do

55
GEERHARDUS VOS, Johannes. Catecismo Maior de Westminster Comentado. São Paulo: Editora Os
Puritanos, 2007. p. 344, 345
56
Ibdem
57
COLE, R. Alan. Êxodo: Introdução e Comentário. São Paulo: Mundo Cristão, 1990. p. 148
bezerro de ouro fundido por Israel (Ex 32:4; cf. Lv 19:4). Lv 26:1 refere-se a
diversas formas de imagens: ídolos, imagem de escultura, coluna e pedra com
figuras. Em Dt 16:21, 22, somos informados que Deus odeia a obra dos idólatra
e, em Dt 27:15, se insere a maldição proferida sobre o violador do segundo
mandamento. O povo de Deus O incitava à ira com suas imagens de escultura
(Sl 78:58).

Em Dt 4:19, 20, lemos sobre a proibição de adorar o exército dos


céus: o sol, a lua e as estrelas. A prática da astrologia, adivinhação por meio de
astros, fica, portanto, proibida ao povo de Deus, não devendo este tampouco
temer aqueles que a exercem (Is 44:25; Jr 10:2).

O segundo mandamento, entretanto, não nos proíbe apena de fazer


imagens de falsos deuses. Somos por ele igualmente proibidos de fazer
qualquer representação do Deus verdadeiro, do Pai, do Filho e do Espírito
Santo (Ex 20:23; Dt 4:15-19). Esse foi o terrível pecado de Israel na feitura do
“bezerro de ouro” (Ex 32:4, 5), pretender representar o Deus verdadeiro através
de um touro.

2. No Novo Testamento.

No Novo Testamento, o padrão anicônico permanece. Para Paulo,


um ídolo nada é (I Co 8:4; cf. Is 41:29; Is 44:9, 10), embora aqueles que lhe
sacrificam participam do culto a demônios (I Co 10:20). A conversão, portanto,
implica no abandono radical dos ídolos e das artes mágicas para o serviço do
Deus vivo e verdadeiro (I Ts 1:9; At 19:18, 19), porque não pode haver
comunhão entre o povo de Deus, que é Seu santuário, e os ídolos (II Co 6:14-
18).

Os apóstolos de Jesus Cristo jamais aceitaram receber qualquer tipo


de veneração, como demonstra o episódio ocorrido em Listra (At 14:8-20).
Nessa ocasião, Barnabé e Paulo, após a cura de um coxo, só não foram
adorados como se fossem os deuses Júpiter e Mercúrio porque anunciaram o
evangelho e sua implicação: “... Nós também somos homens como vós,
sujeitos aos mesmos sentimentos, e vos anunciamos o evangelho para que
destas coisas vãs vos convertais ao Deus vivo, que fez o céu, a terra, o mar e
tudo o que neles há” (v. 15).

Ao indagar sobre por que os homens fazem imagens, Hans Ulrich


58
Reifler ponderou:
Ao confrontarmos o Senhor com os ídolos, percebemos que Deus é
invisível, mas imagens são visíveis. Através do visível, o homem
busca segurança: todos nós sabemos que psicologicamente é muito
mais fácil dominar o visível do que o invisível. Um deus visível pode
ser alterado, modificado, manipulado; e o homem que cria uma

58
REIFLER, Hans Ulrich. A Ética dos Dez Mandamentos. São Paulo: Edições Vida Nova, 1992. p. 77
imagem mais cedo ou mais tarde vai abandoná-la. Nesse aspecto,
podem-se justificar as críticas contra a religião, porque este tipo de
deus nada mais é do que uma projeção dos sentimentos do homem
religioso...

4. O que o segundo mandamento nos ordena?

Voltemo-nos à versão positiva do segundo mandamento.

Em primeiro lugar, o segundo mandamento exige que nos


convertamos a Deus. Conversão bíblica, como deixamos antever acima (I Ts
1:9, 10), é a mudança radical da idolatria para a adoração do Deus vivo e
verdadeiro (At 14:15). Indubitavelmente, cumprimos o segundo mandamento
quando nos convertemos a Deus, abandonando a superstição e a dedicação
pagã ao dinheiro (Mt 6:24), para consagrarmo-nos ao Senhor.

Em segundo lugar, o segundo mandamento exige a destruição dos


objetos de idolatria, tais como altares e imagens (Dt 7:5; Is 30:22). Quando
uma família se converte, é obrigação dos convertidos o realizar a remoção dos
instrumentos utilizados no falso culto que predominava na residência.
Entretanto, vale acrescentar que tais mudanças devem ocorrer sabiamente e
conforme a autoridade que a pessoa convertida exerce na casa. Dentre os 19
reis do reino do norte, Israel, todos seguiram a prática idólatra de Jeroboão.
Dentre os 17 reis de Judá, oito foram bons reis, mas somente dois deles,
Ezequias (II Rs 18:1-4) e Josias (II Rs 21:1, 2), reformaram o culto conforme a
Palavra de Deus e derrubaram os lugares altos.

Em terceiro lugar, o segundo mandamento exige a separação moral


do povo de Deus. A proibição de fazer imagens de Deus tem como
contrapartida o dever de conformarmo-nos à imagem de Deus, conforme se
pode concluir das palavras de Dt 4:20, ditas após a severa advertência contra a
feitura de imagens (Dt 4:15-19). Enquanto os homens que forjam uma imagem
de escultura tornam-se iguais a ela (Is 44:12-20), os que servem a Deus
crescem na semelhança com Ele (Cl 3:10).

Em quarto lugar, o segundo mandamento exige primordialmente que


observemos o culto a Deus conforme Ele estabeleceu em Sua Palavra. Para
Calvino, “o fim desse preceito é que o legítimo culto d‟Ele não seja profanado
por ritos supersticiosos”59. Com efeito, se quando concebemos a Deus
equivocadamente somos levados à feitura de objetos de culto, O
compreendermos conforme Ele se nos apresenta tem que trazer-nos
implicações à forma como O cultuamos (Jo 4:24).

Os dois primeiros mandamentos estão estreitamente relacionados,


mas não se confundem. Enquanto o primeiro pretende reprimir a tendência do
59
CALVINO, João. A Instituição da Religião Cristã. Tomo 1. Livros I e II. São Paulo: Editora UNESP, 2008.
p. 364
coração humano de adorar falsos deuses, o segundo, a tendência humana de
forjar novas formas de adoração, mesmo quando adora o Deus TriÚno que se
revela na Escritura. Já registramos a observação de que a feitura do bezerro de
ouro por Israel foi uma tentativa de adorar o Deus verdadeiro por meios não
ordenados por Ele. Não foi, a princípio, uma violação do primeiro mandamento
(“Não terás outros deuses...”) como o foi do segundo (“Não farás para ti
imagens de escultura...”).

5. As formas mais comuns de desvios na adoração.

À luz do já anotado, deve ser-nos bastante claro que a falsa


adoração e a falsa religião são tão vãs quanto os falsos deuses. Pecamos
contra o Deus verdadeiro não apenas quando adoramos deuses falsos, mas
também quando forjamos tipos de adoração não ordenados em Sua Palavra.
Isto é, não basta adorar a Deus, devemos fazê-lo conforme Sua vontade!

Quanto à forma de adoração, tanto quanto seu nível de


espiritualidade e sua comunhão com Deus, uma igreja pode enganar-se
redondamente enquanto se autoavalia (Am 5:21-24; Ap 3:14-21). A indiferença
do coração e o desprezo pelo culto conforme ordenado por Deus, nos dias do
profeta Malaquias, levou o Senhor protestar pelo fechamento da Casa que Ele
mesmo mandou construir e pela cessação dos sacrifícios por Ele mesmo
prescritos (Ml 1:10). Assim, cumpre-nos perguntar se adoramos a Deus nos
termos por Ele estabelecidos, e se o fazemos com o coração certo.

Nesse passo, nos dedicaremos a compreender os principais desvios


na adoração da igreja contemporânea.

Em primeiro lugar, devemos nos resguardar dos perigos do poder de


nossa própria imaginação. Lembramos, a propósito, que a essência do
paganismo é tanto a pluralidade de deuses quanto as representações da
divindade. Daí que mesmo aqueles que jamais se prostrariam diante de uma
estátua católica romana que pretendesse representar Jesus Cristo podem
violar o segundo mandamento através de representações mentais.

Não faz muito tempo que um amigo me relatou um culto que


presenciou, dos mais esdrúxulos, diga-se de passagem. Nele, o pastor sugeriu
que os fieis imaginassem que estavam correndo para Deus e que Deus estava
correndo na direção deles. Fomentou a ideia de que aqueles crentes
imaginassem, no ponto próximo do “encontro” com Deus, que começavam a
cair, momento em que Deus lhes estendia os braços para evitar-lhes a queda.
Toda a sugestão psicológica era acompanhada de uma música altíssima e
estimulada pela meia-luz do salão. Coisas semelhantes podem ser
encontradas Brasil afora: “imaginem que Deus está sorrindo para você”;
“imaginem que Deus está sussurrando no seu ouvido”; “imaginem que Deus
lhes estendeu a mão”; “imaginem que Deus lhes segurou no colo” etc.

Em segundo lugar, devemos nos resguardar da tentação da


adoração centrada no homem. O culto não é algo que fazemos para nós. No
culto, todos somos participantes ativos e o único expectador que desejamos
(ou deveríamos desejar) agradar é Deus. Todos devemos nos envolver em
cada parte do culto, quer nas orações, cânticos e confissões, quer nos
sacramentos e na exposição da Palavra. Talvez não haja pergunta que mais
indique nossa ignorância quanto a esse fato seja a que costumamos fazer aos
visitantes: “você gostou do culto?”.

Em um primeiro momento, parecerá estratégico que vejamos os


visitantes como clientela e lhes ofereçamos o culto conforme achamos que
será mais atraente para eles. Ledo engano! Quando eles perceberem que tudo
que recebem é entretenimento e que o nosso único objetivo é fazer que se
sintam bem, logo acharão formas mais eficientes de alcançarem esses
mesmos propósitos. E, o que é pior, cultos centrados nas pessoas apenas as
convencem a permanecer fazendo aquilo que elas já sabem: viver para si
mesmas e adorar a si mesmas. Com efeito, a recusa das pessoas em adorar a
Deus funda-se na auto-adoração (Jo 6:44). Assim, em nada contribuiremos à
sua vida espiritual se prepararmos um ambiente de bajulação psicológica, que
não passará de um simulacro de culto.

Finalmente, uma adoração antropocêntrica estimulará uma vida


antropocêntrica. É dizer, se a nossa adoração do domingo não é centrada em
Deus, como esperaríamos que a realidade da comunhão com Deus se
tornasse relevante na segunda-feira pela manhã? Nas palavras precisas de
Michael Horton60,
A falsa adoração começa no domingo quando adoramos a nós
mesmo por meio do entretenimento em vez do louvor, da bajulação
em vez da confrontação, da sabedoria do pregador no lugar da
sabedoria de Deus, e continua por toda semana enquanto „buscamos
os nossos próprios interesses‟.

Em terceiro lugar, devemos nos resguardar da ideia de que temos


a liberdade de inovar quanto às formas de adoração. A formalidade do culto
neotestamentário gira basicamente em torno da oração, do cântico, da leitura e
exposição da Palavra e dos sacramentos. Assim o foi na igreja primitiva e
assim o foi no movimento reformador do século XVI. Só recentemente a igreja
passou a acreditar que poderia inovar. Então, na segunda metade do século
XIX, Charles Finney sugeriu práticas apelativas, das quais surgiu o moderno
sistema de apelo. Mas, isso não foi nada quando comparado ao culto-show,

60
HORTON, Michael. A Lei da Perfeita Liberdade: A Ética Bíblica a Partir dos Dez Mandamentos. São
Paulo: Cultura Cristã, 2000. p. 64
com suas danças litúrgicas, estrelas da música, “unções” variadas e
extravagantes e “manifestações proféticas” das mais bizarras.

É de bom alvitre, entretanto, não confundir adoração fiel à Bíblia com


adoração fiel a um determinado estilo cultural de lugar e época específicos.
Dizer que o culto tem que ser bíblico não é dizer que ele tem que ser a cópia
do culto de Genebra, inclusive do seu estilo musical. Muito ao contrário, o culto
bíblico é o culto em que os princípios bíblicos da adoração se tornam
relevantes para o nosso tempo. Portanto, ele pode e deve ser uma mescla do
antigo com o novo, do tradicional com o contemporâneo. Nele, os antigos
princípios inspiram o homem de hoje na busca pela glória de Deus.

Em quarto lugar, devemos nos resguardar da adoração cuja ênfase


na espiritualidade dispensa a Escritura e a reflexão teológica. A espiritualidade
cristã não é a deserção da sociedade para a vida contemplativa solitária em
busca de elevação espiritual e novas revelações, à revelia da Bíblia. Essa era a
noção de espiritualidade dos místicos medievais, que tem influenciado em larga
escala o pensamento protestante moderno.

Ao revés, a espiritualidade do Novo Testamento - o “misticismo


61
bíblico” , se preferirmos -, é a nossa união com Cristo em Sua morte e
ressurreição, promovida pelo Espírito (Rm 6:1-11; 8:9, 13, 14) e mantida pelo
Espírito através dos meios de graça, e por meio de quem vamo-nos crescendo
na conformação com a humanidade de Jesus (Ef 4:13; II Co 3:18).

A experiência espiritual do Novo Testamento nem dispensa a


Escritura, antes é moldada por ela, nem exige separação da sociedade. Vale
dizer, por um lado, não há espiritualidade verdadeira sem o conhecimento da
Escritura e sem o modelamento realizado por ela. Haverá um dia em que não
precisaremos dos sacramentos (I Co 11:26), nem dos dons espirituais vividos
na convivência da comunidade da fé (I Co 13:8-13), tampouco da Escritura (II
Pe 1:16-21). Mas esse dia ainda não chegou. Hoje, conhecemos em parte,
somos como menino, vemos como em espelho. Contemplamos a Cristo
através do espelho da Escritura. Não O vemos, senão pela fé (I Pe 1:6-9),
porque ainda estamos ausentes do Senhor (II Co 5:6, 7).

Por outro lado, a espiritualidade bíblica é, por assim dizer,


“mundana”. Que não devemos ficar segregados da sociedade, Jesus deixou
muito claro quando disse que Seus discípulos são o sal da terra e a luz do
mundo (Mt 5:13-16). Não se acende uma luz para colocá-la sob uma cama ou
sob um balde emborcado, tampouco operará o sal qualquer poder preservador
se permanecer no saleiro. A pretexto de nenhum dado extraído da Escritura se
pode retirar da sociedade ou permanecer em “nossos pequenos armários

61
NICODEMUS, Augustus. O que Estão fazendo com a Igreja: Ascensão e Queda do Movimento
Evangélico Brasileiro. São Paulo: Mundo Cristão, 2008. p. 84
escuros” e “confortáveis em nossos elegantes saleirinhos eclesiásticos”, bradou
John Stott62.

Isso posto, perguntamos: o que há de comum entre esses desvios


da adoração? O que de comum entre uma adoração imaginativa, centrada no
homem, inovadora e que se pretende independente da Escritura? Nesse ponto,
a resposta é uma só: todo e qualquer desvio na adoração emana da crença na
insuficiência da Palavra de Deus.

O ensino oficial do catolicismo romano não é que os fieis devem


adorar imagens. Tomás de Aquino, muito sabiamente, declarou que “Não se
deve reverência nem a uma estátua de Cristo, visto ser ela apenas um pedaço
de madeira esculpida”. Mas, ele continuou: “os homens são mais facilmente
movidos pelo que veem do que pelo que ouvem” 63. Percebamos: o que está
por detrás dessas palavras senão a crença quanto à suficiência da Palavra de
Deus? Não é exatamente esse o raciocínio que justifica a mística medieval, a
separação da sociedade, as danças litúrgicas e o entretenimento?

Como afirmou Horton,

A idolatria sempre tem boas intenções. Queremos ajudar o povo de


Deus a adorar de forma mais efetiva. Estamos certos de que nossos
meios e métodos engenhosos irão alcançar o sucesso. Mas toda
adoração que Deus não ordenou expressamente é vã e, na verdade,
contraproducente.

6. As verdades adicionais que fazem do segundo mandamento deveras


imperioso.

Assinalamos, a propósito do primeiro mandamento, que as palavras


“diante de mim” trazem implicações assombrosas. O Deus onisciente declara
que a prostituição espiritual ocorre diante dos olhos dEle. Em adição ao
segundo mandamento, a seu turno, somos informados que o Deus zeloso visita
a iniquidade dos pais nos filhos até à terceira e quarta geração e, por outro
lado, que Sua misericórdia acompanha até mil gerações daqueles que O
amam. Atentemos ao significado e às implicações dessa cláusula.

Primeiro, deve ser observado que se diz que YHWH é Deus (El)
zeloso. A palavra “El” (que traduzimos por “Deus” ou por “Deus forte”) deriva de
“fortaleza”, pelo que é adequada a tradução “Deus forte”, nome através do qual
Deus exibe Seu poder soberano, diante do qual devemos temer. Como se não
bastasse, diz-se-nos que Ele é o “Deus zeloso” (ou ciumento). É que, na
relação com o Seu povo, Deus é frequentemente retratado como o esposo, do

62
STOTT, John. A Igreja Autêntica. Viçosa-MG: Editora Ultimato; São Paulo: ABU Editora, 2013. p. 131
63
HORTON, Michael. A Lei da Perfeita Liberdade: A Ética Bíblica a Partir dos Dez Mandamentos. São
Paulo: Cultura Cristã, 2000. p. 69
qual Israel - o natural (no Antigo Testamento) e o espiritual (no Novo
Testamento) - é a esposa. Nesse “matrimônio espiritual” Deus comprometeu-se
em ser o Deus do Seu povo e lhe exigiu fidelidade espiritual, no sentido de que
a Igreja deveria adorar somente a Ele e ao modo dEle. Daí que todo e qualquer
envolvimento com o falso culto era denunciado como adultério espiritual (Os
2:2-4). Portanto, assim como marido nenhum que ame a esposa é indiferente
às suas traições e consente em reparti-la com outros homens, Deus jamais
repartiria a adoração do Seu povo imiscuída em superstição idólatra.

Segundo, atentemos ao fato de que os objetos da vingança e da


misericórdia de Deus são, respectivamente, os que O odeiam (ou aborrecem) e
os que O amam, para, finalmente, concluirmos que amor e ódio no pensamento
hebreu e para a Escritura têm mais relação com atitude e ações do que com
emoções. Os que aborrecem a Deus são aqueles que resistem em viver em
consonância com a Sua vontade, isto é, quanto ao segundo mandamento, que
não têm zelo pelo culto conforme ordenado por Deus. Os que O amam são
aqueles que O obedecem e, in casu, conformam Sua devoção ao modo formal
e substancial fixado soberanamente por Deus. Nas palavras de Jesus, “Aquele
que tem os meus mandamentos e os guarda, esse é o que me ama... Se
alguém me ama, guardará a minha palavra... Quem não me ama não guarda
as minhas palavras...” (Jo 14:21a, 23a, 24a).

Terceiro, compreendamos o significado da vingança divina acrescida


ao segundo mandamento: “visito a iniquidade dos pais nos filhos até à terceira
e quarta geração daqueles que me aborrecem” (cf. Nm 14:18). A objeção
comum que se faz a essa cláusula é que não corresponde a um senso mínimo
de justiça que Deus aplique a penalidade merecida pelos pecados de um a
outro que não o cometeu. Some-se a isso o dito do Senhor através do profeta
Ezequiel: “A alma que pecar, essa morrerá; o filho não levará a iniquidade do
pai, nem o pai, a iniquidade do filho; a justiça do justo ficará sobre ele, e a
perversidade do perverso cairá sobre ele” (Ez 18:20).

Antes de tudo, devemos estabelecer que em momento algum se diz


que a iniquidade do pai iniquo será punida em um filho inocente. Quando o
Senhor afirmou em Ez 18:20 que cada um colherá apenas os resultados de sua
própria torpeza, estava combatendo um provérbio popular que dizia que os pais
comeram uvas verdes e os dentes dos filhos é que embotaram (Ez 18:2). Ou
seja, que filhos inocentes (assim julgavam a si mesmos!) estavam pagando
pelo que não fizeram. Assim, o que o Senhor provou-lhes é que aquela
geração não era inocente e que, por isso, o provérbio iniquo não deveria ser
pronunciado em Israel (Ez 18:3).

Semelhantemente, devemos descartar a ideia de que a cláusula


refere-se a maldições meramente temporárias, embora, elas eventualmente
possam existir, como nos casos das famílias de Ezequias (Is 39:7) e Faraó (Gn
12:17). A casa de Abimeleque foi poupada de destino semelhante (Gn 20:3-7).

Portanto, o que a cláusula prever é que Deus vingará a desonra feita


ao Seu nome privando a casa do pai iníquo do Espírito da graça, de modo que
seu filho venha a andar tão indecorosamente quanto ele, que seu neto
reproduza a perversidade do seu filho e que seu bisneto continue nos
caminhos do seu neto. Nas palavras de Calvino,

Assim deve ser tomado que a justa maldição do Senhor não caia
unicamente sobre a cabeça do ímpio, mas também em toda a família.
Quando cai, o que se pode esperar, se não que o pai, destituído do
Espírito de Deus, viva desonrosamente? Que o filho,
semelhantemente abandonado pelo Senhor pela maldade do pai, siga
a mesma via da ruína? Por fim, que os netos e bisnetos, semente
execrável de homens detestáveis, despenquem em abismos depois
deles?

Quarto, voltemo-nos à promessa de misericórdia: “faço misericórdia


até mil gerações daqueles que me amam e guardam os meus mandamentos”
(cf. Gn 17:7; Pv 20:7). Se a ameaça é no sentido de que será apartada da casa
do ímpio a graça salvadora, a promessa de misericórdia é que o Espírito da
graça habitará na casa do justo por até mil gerações. Por óbvio que essa conta
(da ameaça de vingança tanto quanto da promessa de misericórdia) não é
matemática. E nós não descobriríamos o mudus operandi divino por meio de
cálculos aritméticos. Somente Deus pode, em Sua mais absoluta liberdade
perante seres moralmente caídos, determinar como e quando exercerá juízo e
misericórdia (Rm 9:14-18). Entretanto, sabe-se com certeza que a medida da
Sua misericórdia não tem fim, sobretudo quando comparada à da Sua ira (Sl
30:5).
6. Os Mandamentos Primeiro e Segundo e a Devoção Trinitária

1. Uma longa história de luta contra a idolatria.

Deixamos suficientemente claro a distinção entre os mandamentos


primeiro e segundo. Concluímos que, embora estreitamente relacionados, são
mandamentos distintos, com mensagens e pretensões distintas. Enquanto o
primeiro mandamento, frisemos, reprime a tendência humana ao politeísmo, o
segundo, o pendor à polilatria. É dizer, o decálogo exige do povo de Deus
estritos monoteísmo (ter um só Deus) e monolatria (adorar um só Deus).

Não obstante, a sombra da idolatria pairou tenebrosa sobre o antigo


Israel durante quase toda a sua história vétero-testamentária. É certo que
Abraão foi retirado de um ambiente politeísta (Js 24:2), sendo admitido
inclusive pela tradição judaica ortodoxa que Tera era fabricante de imagens 64.
O que se questiona é quanto do ambiente pagão foi introduzido na vida dos
patriarcas. Mas, posteriormente, vemos que Raquel tomou os “terafins” (deuses
domésticos) quando Jacó e família fugiram de Labão (Gn 31:34), os mesmos
que Jacó enterrou, quando em viagem à Terra Prometida (Gn 35:1-4)65.

Durante a estada no Egito, Israel adorou ídolos (Js 24:14; Ez 20:8-


20) e não quis desistir deles após o Êxodo (Ex 32). Mesmo depois da dádiva da
Lei, imagens poderiam ser vistas em Israel durante suas vagueações no
deserto (Nm 25:1-3; 31:16), antes da entrada na Terra Prometida (Dt 4:15-19) e
no período dos Juízes (Jz 2:11-13; 6:25-32;8:24-27)66.

No tempo de Salomão, a influência das suas mulheres voltou a


perturbar o monoteísmo da nação (I Rs 11:1-8). Com a divisão do reino, um
culto pagão a dois bezerros de ouro foi instalado no reino do norte, Israel, por
Jeroboão (I Rs 12:25-33). No reino do sul, Judá, desvio semelhante ocorreu
sob a égide de Roboão (I Rs 14:21-24). A adoração a Baal foi fortemente
fomentada em Israel através de Jezabel e Acabe (I Rs 16:29-33), o que levou
Elias a desafiar a idolatria reinante (I Rs 18:21-24). Ao longo dos séculos, até o
cativeiro babilônico, os profetas se levantaram constantemente contra a prática
idólatra da nação (Os 2:16, 17; 8:4-6; Is 2:8; 40:18-20; 41:6, 7; 44:9-20; Jr 2:23-
25; 10:2-11; 11:13; 23:13, 14)67.

64
COLE, R. Alan. Êxodo: Introdução e Comentário. São Paulo: Mundo Cristão, 1990. p. 149
65
CHAMPLIN, Russel Norman. O Antigo Testamento Interpretado: Versículo por Versículo – Dicionário –
A-L. Vol. 6. 2ª. Ed. São Paulo: Hagnos, 2001. p. 4452
66
Ibdem
67
Ibdem
É verdade que o povo hebreu se destacou perante os povos por sua
postura anicônica durante os séculos68. Entretanto, somente após o exílio
babilônico a idolatria foi completamente banida e o monoteísmo e a monolatria,
inteiramente exercidos, de modo que essa passou a ser sua marca distintiva no
mundo greco-romano, sendo inclusive destacada pelos historiadores da época,
como Tácito, que escreveu: “Para os judeus, há um Deus apenas” 69. De fato,
para os judeus, não apenas Deus era a única divindade, mas somente Deus
era digno de adoração e a principal exigência do judaísmo para um judeu
devoto era a exclusiva adoração ao Deus de Israel 70.

2. O monoteísmo judaico do primeiro século e a devoção a Cristo.

Assim, no primeiro século da era cristã, o estrito monoteísmo havia


tornado-se tão severo que uma devoção a Jesus Cristo como um ser separado
da divindade seria uma prática absurdamente antijudaica. Isso explica porque
os judeus contemporâneos de Jesus tentaram apedrejá-lO diante de Suas
reivindicações de divindade, acusando-O de blasfêmia (Jo 5:18; 8:58, 59;
10:31-33; 11:8). Com efeito, Jesus morreu porque Se dizia Deus (Jo 19:7; Mt
26:65).

Malgrado o ambiente religioso judaico estritamente monoteísta, a


devoção a Jesus como um ser divino pode ser vista muito cedo nos círculos
dos seus primeiros seguidores, sem que, contudo, estes vissem qualquer
tensão entre a adoração que Lhe prestavam e o monoteísmo judaico que
abraçavam. É dizer, para os primeiros judeus que seguiram Jesus Cristo, a
devoção ao seu Senhor como a uma divindade não representava um
rompimento com o monoteísmo judaico, tampouco acreditavam que estavam
violando os mandamentos primeiro e segundo.

1. A devoção a Jesus e o monoteísmo na Igreja Primitiva.

Que os primeiros discípulos de Jesus O adoravam como Deus, não


pode haver dúvida. A invocação “maranatha” (aramaico “Vem, ó Senhor!”),
aplicada a Jesus (I Co 16:22; Ap 22:20), e a confissão cristã “Jesus é Kyrios
(SENHOR)” (At 2:36; Rm 10:9; I Co 12:3; Fp 2:11) apontam ao reconhecimento
da divindade de Jesus. Ele foi reconhecido como o “Deus conosco” (Mt 1:23).
Já no prólogo do evangelho de João, há duas ocorrências da palavra “Theos”
(Deus) aplicadas a Jesus (Jo 1:1, 18) e, em Jo 20:28, Tomé O declara “Senhor
meu e Deus meu!”.
68
“A arqueologia mostra claramente que a horda que destruiu a maior parte da cultura cananita no
século treze A.C. era basicamente ‘anicônica’, isto é, não usava imagens em seu culto” (R. Alan Cole; Op.
Cit).
69
J. KÖSTENBERGER, Andreas; R. SWAIN, Scott. Pai, Filho e Espírito: A Trindade e o Evangelho de João.
São Paulo: Vida Nova, 2014. p.44
70
Ibdem. p. 43
Em Jo 1:18, João afirma que Jesus está “no seio do Pai”
(literalmente “no colo do Pai”), para realçar a estreita proximidade que há entre
Deus o Pai e Deus o Filho, condição que O qualificou para revelar totalmente o
Pai. Em Jo 1:1, João principia seu evangelho asseverando a subsistência
eterna do Verbo, desde antes da criação (“No princípio era [„en‟ é o imperfeito
de „eimi‟, e expressa uma existência contínua intemporal 71] o Verbo”). Em
seguida, João distingue o Verbo de Deus (“e o Verbo estava com [a preposição
„pros‟ denota relacionamento] Deus”), para afirmar a qualidade divina do Verbo
(“o Verbo era Deus”). É dizer, Deus e o Verbo são distintos entre Si, mas
ambos têm uma qualidade em comum: eles são Deus 72.

Uma questão importante a esclarecer nesse ponto é se a palavra


“Deus” deve ser tomada no sentido de “um deus”, conforme ensinado pelos
arianos do século quarto e por seus representantes modernos, os
Testemunhas de Jeová, em face da ausência de artigo definido. De fato,
Moisés é chamado “deus” em Ex 7:1, assim como juízes humanos e anjos (Sl
8:5, 6; 82:1, 6; 138:1). Contudo, para Andreas J. Köstenberger e Scott R.
Swain, como a linha divisória entre Deus e os seres criados estava bem
delineada (Ez 28:2; Os 11:9), “Em passagens como essas, em vez de se
apagarem as distinções entre o divino e o humano, os seres não divinos
aparecem exercendo prerrogativas divinas”73.

Nessa esteira, o Salmo 82:6 foi citado por Jesus em Jo 10:34. A


afirmação de Jesus de que “Eu e o Pai somos um” (Jo 10:30; cf. 5:18) revoltou
os judeus, que queriam pegar em pedras para executá-lO por blasfêmia, pois,
disseram, “sendo tu homem te fazes Deus a ti mesmo” (Jo 10:31-33). É nesse
ponto que Jesus cita o Sl 82:6, para argumentar que é correto que as
Escrituras chamem “deuses”, em certo sentido, aqueles a quem a Palavra de
Deus foi dirigida (Jo 10:34, 35). Se assim o é, como poderia ser blasfema a
afirmação de filiação eterna por parte daquele que o Pai santificou e enviou ao
mundo (Jo 10:36)? Percebe-se que embora Jesus admita que a Escritura
chama de “deuses” seres inferiores a Deus, Ele coloca a Si mesmo em uma
condição ímpar, como Aquele que foi separado (santificado) pelo Pai para uma
missão especial e por Este enviado.

Portanto, não pode haver dúvida que, em Jo 1:1, João está


reconhecendo a divindade consubstancial e coeterna do Filho em relação ao
Pai. Andreas J. Köstenberger e Scott R. Swain elencam três argumentos nesse
sentido:

71
RIENECKER, Fritz; ROGERS, Cleon. Chave Linguísica do Novo Testamento Grego. São Paulo: Vida Nova,
1995. p. 161
72
J. KÖSTENBERGER, Andreas; R. SWAIN, Scott. Pai, Filho e Espírito: A Trindade e o Evangelho de João.
São Paulo: Vida Nova, 2014. p.62
73
Ibdem. p. 45, 46
Em primeiro lugar, João, um judeu monoteísta, dificilmente teria se
referido a outra pessoa como “um deus”74. Segundo, se João tivesse
posto um artigo definido antes de theos, isso teria igualado de tal
forma o Verbo e Deus que a distinção formulada entre as duas
pessoas na oração precedente (“o Verbo estava com Deus”)
simplesmente desapareceria. Em terceiro lugar, na sintaxe do grego é
comum que substantivo predicativo nominativo definido precedendo
um verbo finito apareça sem o artigo; portanto, é ilegítimo inferir a
existência de indeterminação com base na falta do artigo na
passagem em questão75.

Inobstante a devoção prestada a Jesus por Seus primeiros


seguidores, eles não julgavam que haviam rompido com o estrito monoteísmo
judaico do primeiro século. O Shemá (Dt 6:4) foi citado por Paulo em I Co 8:4-
6. Aqui, de igual forma, tanto o monoteísmo é afirmado (“não há senão um só
Deus”) como Jesus é incluído na identidade única de Deus na fórmula “um só
Deus... um só Senhor”. Assim, pondera Leon Morris, um cristão não está
menos convicto quanto à existência de um só Deus do que um judeu 76, para
asseverar o seguinte:
Os cristãos contrastam-se agudamente com os idólatras. São
essencialmente monoteístas. (...) Juntamente com o Pai, Paulo pensa
no Filho. Este é descrito como um só Senhor, Jesus Cristo. Outra vez
um só chama a atenção para o monoteísmo cristão em oposição à
pluralidade dos deuses dos pagãos, e Senhor aponta para a
divindade de Cristo. Assim também, é claro, indica o fato de que Ele é
mencionado ao mesmo tempo com o Pai. Paulo não se preocupa em
examinar a relação entre eles. Mas é patente que ele está firmando a
proposição de que há somente um Deus, e de modo igualmente
patente está incluindo o Senhor Jesus nessa única divindade77.

A conclusão é que a Igreja Primitiva reconhecia a divindade de


Jesus e Lhe adorava como tal, ao mesmo tempo em que permanecia
radicalmente monoteísta, não acreditando afastar-se da tradição judaica nesse
ponto, tampouco comprometer a observância dos mandamentos primeiro e
segundo. Para os cristãos primitivos, portanto: há um só Deus, como para os
judeus; a idolatria é uma prática condenável como própria do paganismo (I Ts
1:9; Gl 4:8, 9), como para os judeus; mas, Cristo é adorado, porque
identificado com a única divindade.

Destarte, os primeiros cristãos eram (queremos enfatizar essa


verdade até esse ponto de nosso estudo) “binitários” e não “diteístas”. Ou seja,
74
“Aliás”, afirmam esses autores, “se João quisesse simplesmente afirmar que Jesus era divino, a lingua
grega dispunha de uma palavra perfeitamente adequada para isso (theios). Entretanto, a força de theos
sem o artigo (anartro), ao que tudo indica, está menos no seu caráter definido do que no ato de
qualificar: Jesus ‘compartilhava a essência do Pai, embora fossem pessoas diferentes’. Tudo o que se
pode dizer sobre Deus pode ser dito acerca do Verbo”. Ibdem. p. 63
75
Ibdem. p. 62
76
MORRIS, Leon. I Coríntios: Introdução e Comentário. São Paulo: Vida Nova, 1989. p. 101
77
Ibdem. p. 101, 102
Jesus não era tido como um segundo Deus (diteísmo), nem adorado como tal
(dilatrismo), ao lado de Deus o Pai. Segundo os multicitados Andreas J.
Köstenberger e Scott R. Swain, “sua divindade deveria ser acomodada à
estrutura do monoteísmo judaico, de tal modo que o Deus único afirmado no
Shemá pudesse abranger o conceito de Pai, Filho e Espírito – três em um –
como Deus”78. É dizer, o Shemá só não é sacrificado na concepção dos
cristãos primitivos porque eles acreditaram que Jesus era parte da identidade
de Yahweh.

2. O ensino de Jesus sobre a devoção que Lhe é devida e o


monoteísmo.

Questão não menos relevante é entendermos que a fonte da


compreensão da Igreja Primitiva sobre a identidade de Jesus na única
divindade foi o próprio Jesus, seu ensino, suas afirmações categóricas e Sua
maneira de ler o Antigo Testamento.

Como deixamos antever alhures, por um lado, o Shemá de Dt 6:4 foi


ratificado por Jesus em Mc 12:29. Também no diálogo com o jovem rico, nosso
Senhor vaticinou que bom só existe um, que é Deus (Mt 19:17; Mc 10:18; Lc
18:19). Semelhantemente, em um duro debate com os judeus, Jesus os acusa
de não buscarem a glória do “único Deus” (Jo 5:44). O estrito monoteísmo
pode ainda ser verificado na oração sacerdotal, momento em que Jesus ensina
novamente que Deus é o único Deus verdadeiro (Jo 17:3).

De igual modo, a monolatria do Antigo Testamento é reafirmada por


Jesus. Quando, no episódio da tentação no deserto, o Diabo Lhe prometeu os
reinos do mundo e a glória deles se Ele, prostrado, o adorasse, Sua resposta
foi: “Ao Senhor, teu Deus, adorarás, e só a Ele darás culto” (Mt 4:10 cf. Dt
6:13). No diálogo com o jovem rico, nosso Senhor recusou um qualificativo que
só pertence a Deus advindo de alguém que não O percebe em Sua natureza
divina nem como estando identificado com Deus (Mc 10:17, 18). Por outro lado,
Jesus recebe a glória de Deus (Jo 17:5, 24), apesar de Deus não compartilhar
Sua glória com outro (Is 42:8; 48:11).

Nosso Senhor é, nas palavras do apóstolo Paulo, o último Adão, o


segundo homem e o homem celestial (I Co 15:45-49). Porque em solidariedade
com o primeiro homem, todos morreram; semelhantemente, os que estão em
união com o segundo recebem vida (I Co 15:21, 22; Rm 5:12-21). É dizer,
Cristo veio para desfazer a obra de Adão. Adão quebrou o primeiro
mandamento quando, seguindo a sugestão do diabo, escolheu como deus a si

78
J. KÖSTENBERGER, Andreas; R. SWAIN, Scott. Pai, Filho e Espírito: A Trindade e o Evangelho de João.
São Paulo: Vida Nova, 2014. p. 49
mesmo e, o segundo, quando idolatrou o próprio ventre (cf. Fp 3:19)79. Cristo,
por Sua vez, observou perfeitamente o primeiro e o segundo mandamentos.
Quanto à Sua obediência ao primeiro, Mark Jones anotou:
Ele trouxe glória a Deus o Pai enquanto esteve na terra (Jo 17:4).
Temeu, creu, e confiou em Seu Pai (Hb 2:13; 5:7; Lc 4:1-12). Cristo
zelou pela glória de Seu Pai (Jo 2:17) e foi constantemente grato ao
Seu Pai (Jo 11:41). Ele prestou completa obediência ao Pai em todas
as coisas (Jo 10:17; 15:10)80.

Quanto ao segundo mandamento, nosso Senhor o cumpriu


cabalmente. Segundo Jones:

Ninguém jamais cultuou como Cristo (Lc 4:16). Ele leu, pregou, orou
e cantou a Palavra de Deus com um coração puro (Sl 24:3, 4). Ele
condenou o falso culto (Jo 4:22; Mt 15:9). Além disso, aquele que era
a imagem visível de Deus não precisou fazer imagens ilícitas de
Deus81.

Por outro lado, Suas afirmações sobre Seu relacionamento ímpar


com Deus, tanto quanto sobre Sua natureza divina firmaram a alta
compreensão cristológica dos cristãos primitivos. Nesse sentido, as palavras de
Andreas J. Köstenberger e Scott R. Swain,
Vendo a si mesmo como alguém que mantinha uma relação pessoal
única com Deus, como Seu Pai, Jesus era o Messias por ser o Filho
de Deus, e a consciência que tinha de sua filiação divina teve um
papel importante no desenvolvimento da cristologia primitiva.
Portanto, a compreensão que Jesus tinha de si mesmo está na base
da concepção primitiva do cristianismo sobre Jesus como o Filho de
Deus preexistente82.

O Evangelho de João demonstra que em algumas ocasiões Jesus


se apropriou do nome divino EU SOU (o grego “ego eimi”), de forma a indicar
claramente Sua divindade (Jo 4:26; 6:20; 8:24, 28; 13:19; 18:5, 6, 8). Às vezes,
a expressão significa simplesmente “sou eu”, sem maiores pretensões. “Mas”,
afirma F. F. Bruce, “quando Jesus usa estas palavras neste evangelho,
pergunta-se sempre se, por acaso, o pensamento do evangelista está se
movendo em dois planos ao mesmo tempo” 83. Para Bruce, em Jo 8:24, “uma
simples identificação pessoal está fora de cogitação” 84. A propósito de Jo

79
Cristão Reformado: O Mundo e Vida à Luz das Sagradas Escrituras. Adão e a Quebra dos Dez
Mandamentos. http://www.cristaoreformado.com/2012/06/adao-e-quebra-dos-dez-
mandamentos.html. Acesso em 18/06/2015.
80
MARK, Jones. Cristo Cumpriu os Dez Mandamentos. http://www.monergismo.com/markjones/cristo-
cumpriu-os-dez-mandamentos/. Acesso em 18/06/2015.
81
Ibdem.
82
Ibdem. p. 50
83
BRUCE, F. F. João: Introdução e Comentário. São Paulo: Vida e Mundo Cristão, 1987. p. 170
84
Ibdem.
13:19, Bruce votou a ensinar que inobstante possamos encontrar a expressão
“ego eimi” de maneira comum, especialmente no Evangelho de João “elas com
frequência têm o sentido oculto do Nome Inefável, de Êxodo 3:14, ou até da
afirmação „Sou Eu Mesmo‟ (“Eu Sou Ele”), de Isaías 41:4; 43:10, 13, etc (..), de
uma maneira que dá a entender que aquele que fala é um com o Pai” 85.

Uma série interminável de afirmações de Jesus deve-nos fazer


concluir que Ele quis ensinar Sua identificação com o Pai de tal modo a ser
visto como incluso no Ser divino. Isso pode ser visto, por um lado, quando
afirmava Seu relacionamento exclusivo com Deus e, por outro, quando se dizia
igual a Deus.

As palavras de Jesus são as palavras de Deus (Jo 12:47, 48; 14:10),


por exemplo. Jesus afirma que Ele veio do Pai e O viu (Jo 6:46) - apesar de
ninguém jamais havê-lO visto (Jo 1:18) -, tanto quanto voltará para o Pai (Jo
13:3). Em Jo 8:40, Deus foi a fonte da qual Jesus ouviu a verdade e, em Jo
8:55, embora os judeus não conheçam a Deus, Jesus afirma que O conhece. O
Pai ama o Filho e confiou a este todas as coisas (Jo 3:35), inclusive o
julgamento (Jo 5:22), além de haver-Lhe mostrado tudo o que faz (Jo 15:15).

Nosso Senhor Se alinha com Deus ao afirmar que o Pai trabalha até
agora e Ele trabalha também (Jo 5:17), fato que provocou a revolta dos judeus
(Jo 5:18). Afirmou que o Filho, assim como o Pai, tem vida em si mesmo (Jo
5:26), numa clara afirmação da Sua divindade. A Tomé, Jesus disse que
ninguém vem ao Pai senão por Ele (Jo 14:5, 6). A Filipe, que quem O vê, vê o
Pai (Jo 14:7, 9), “uma afirmação surpreendente à luz do fato de que ninguém
pode ver Deus, nem jamais o viu (1:18). Jesus tornou visível o Deus invisível” 86.
Mais que isso, para a perplexidade dos judeus, asseverou “Eu e o Pai somos
um” (Jo 10:30). É dizer: Ele é distinto do Pai, mas plenamente identificado com
o Pai na mesma divindade. Em Jo 14:10, 11, Jesus assevera que está no Pai e
o Pai está nEle.

Temos aqui a defesa do monoteísmo e, ao mesmo tempo, um


desafio ao monoteísmo estreito, conforme concebido pelos judeus. De fato,
Jesus demonstrou que no Antigo Testamento já havia indícios de pluralidade
na divindade, como se pode perceber de Sua exegese de Salmos 110:1, citado
em Mt 22:41-46.

Isso posto, há de se deduzir pela impossibilidade do surgimento de


um tipo de arianismo entre os primeiros ouvintes de Jesus. Quem O ouviu,
testemunhou Seus milagres e Seus discursos, ou protestou, porque julgou
estar diante de uma flagrante blasfêmia, ou se rendeu ao eterno Filho de Deus

85
Ibdem. p. 248
86
J. KÖSTENBERGER, Andreas; R. SWAIN, Scott. Pai, Filho e Espírito: A Trindade e o Evangelho de João.
São Paulo: Vida Nova, 2014. p. 92
e O adorou como integrante da divindade. Suas palavras excluem qualquer
compreensão de meio-termo. Ou Ele é o que disse ser, Deus o Filho, ou foi o
homem mais blasfemo da história, mas é certo que não é um ser intermediário,
nem se acha tal crença dentre Seus primeiros discípulos.

A que conclusão podemos chegar? Primeiro, que existe um só Deus


(monoteísmo) e, por isso, somente Ele deve ser adorado (monolatria);
segundo, que Jesus foi reconhecido e adorado como Deus, sem que os
mandamentos primeiro e segundo tivessem sido violados; terceiro, que essa
adoração só foi legitimada por Jesus e pelos apóstolos em face do
reconhecimento de que Jesus estava identificado com o único Deus, de modo
a afastar-se radicalmente qualquer conceito diteísta; quarto, qualquer adoração
a Jesus que O vê como um segundo Deus ou como um semideus é idólatra,
razão pela qual Ele jamais aceitou reverências de quem não O concebeu como
Ele é, divino e identificado na única divindade.

3. O monoteísmo judaico do primeiro século e a devoção ao/no Espírito.

Não bastasse os cristãos primitivos terem sido “binitários”, uma


terceira Pessoa – o Espírito Santo - entra em cena ainda muito cedo no
ministério de Jesus, a princípio diretamente relacionada a Ele e que, depois,
assume papel fundamental na vida dos discípulos após Sua ressurreição,
sobretudo com o advento do Pentecostes.

O Espírito pode ser visto na vida de Jesus da concepção (Lc 1:35;


Mt 1:18, 20) à ressurreição (Rm 1:4; 8:11). Sobre Jesus, o Espírito permaneceu
(Jo 1:32, 33; Is 11:2; 42:1; 61:1), de modo que nada realizou sem Seu
revestimento (Lc 4:14, 18; At 1:2; 10:38), ocorrido no batismo (Mt 3:16).
Ademais, João Batista foi divinamente informado que Jesus batizaria com o
Espírito Santo (Mt 3:11; Mc 1:8; Lc 3:16; Jo 1:33; At 1:5), fato que ocorreu no
Pentecostes (At 2:4, 33).

Nesse ponto de nossos estudos, veremos que no ensino de Jesus o


Espírito está estreitamente relacionado com Ele e com o Pai, ao mesmo tempo
em que é uma Pessoa distinta dEle e do Pai.

1. A identificação e a distinção do Espírito com o Pai e o Filho.

Quando à identificação do Espírito com Jesus, isso fica


patentemente observável. Em Jo 6:63, lemos Jesus afirmar que o Espírito dá
vida e que as palavras que Ele (Jesus) diz são “espírito e vida”. Uma vez que o
Espírito permanece sobre Jesus (Jo 1:33) de forma plena (Jo 3:34), as palavras
de Jesus produzem vida porque aplicadas pelo Espírito. Não é possível,
portanto, separar o ministério de Jesus das operações do Espírito.
No discurso de despedida, Jesus consola os discípulos com a
promessa de que será substituído de modo que não haverá qualquer prejuízo
aos discípulos; muito ao contrário. Porque Jesus está identificado de tal
maneira com o “outro Consolador” (o outro Parakletos), quando o Espírito vier
isso equivalerá à vinda de Jesus mesmo. Assim, nosso Senhor os garante que
não os deixaria órfãos (Jo 14:16-18), ou seja, desprovidos de um Provedor. É
dizer: “Quando o Espírito habitar nos crentes, será como se o próprio Cristo
fizesse morada dentro deles” 87, tal é a identificação entre Jesus e o Espírito.

“Ainda um pouco” (Jo 14:19) e “naquele dia” (Jo 14:20) são


certamente uma referência primária à vinda do Espírito, no Pentecostes,
porque a experiência descrita nas expressões “vós também vivereis” e “vós em
mim e eu em vós” não esperará para ocorrer somente na segunda vinda. O
notável aqui é que Jesus diz que, com a vinda do Espírito, os discípulos O
veriam (v. 19). Ademais, porque estreitamente relacionado com Jesus, o
Espírito é chamado de “Espírito da verdade” (Jo 15:26; 16:13), no mesmo
contexto em que Jesus Se caracteriza como “a verdade” (Jo 14:6; cf. Jo 1:14,
17). Semelhantemente, assim como o Parakleto é o “Espírito Santo”, Jesus é o
“Santo de Deus” (Jo 6:69), também chamados Parakleto em I Jo 2:1 (traduzido
ali por “Advogado”, na ARA, e “intercessor”, na NVI).

Percebe-se que nosso Senhor está ensinando aos discípulos nesse


momento dramático de “despedida” que, com efeito, não haveria nenhuma
despedida, porque a permanência da presença do único Deus na vida dos
Seus seguidores está garantida com a vinda do Espírito, promessa que inclui a
habitação do Espírito (Jo 14:15-17), de Jesus (Jo 14:18-21) e do Pai (Jo 14:22-
24). Desse modo, a obra do Pai através do Filho não sofrerá nenhuma
descontinuidade em face da morte e da glorificação de Jesus, como observa
George Eldon Ladd, que acrescenta:

“tampouco a comunhão que seus discípulos chegaram a


experimentar será interrompida com sua partida da presença deles.
Ele continuará sua obra e sua comunhão com seus discípulos na
pessoa do Espírito”88.

O estreito relacionamento entre Cristo e o Espírito foi percebido


claramente pelos apóstolos. Em toda a passagem de Romanos 8, Paulo
demonstrou que estar “em Cristo” é estar “no Espírito”, e que “ter Cristo” é “ter
o Espírito”, razão pela qual “se alguém não tem o Espírito de Cristo, esse tal
não é dele” (Rm 8:9, com grifo nosso).

Por outro lado, se já ficou esclarecido que Jesus não é o Pai, não
pode haver dúvida alguma sobre o fato de que o Espírito não é Jesus. Não é o

87
J. KÖSTENBERGER, Andreas; R. SWAIN, Scott. Pai, Filho e Espírito: A Trindade e o Evangelho de João.
São Paulo: Vida Nova, 2014. p. 128
88
LADD, George Eldon. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2003. p. 423, 424
Espírito que morre na cruz e ressuscita, tampouco é Jesus quem será enviado
pelo Pai e pelo Espírito, no Pentecostes. Jesus é enviado pelo Pai; o Espírito é
enviado pelo Pai e por Jesus (Jo 14:16; 15:26).

A referência de Jesus como “o batizador com o Espírito” (Jo 1:33)


exige a distinção de pessoas, sob pena de aceitarmos o absurdo de que Jesus
batizaria com Ele mesmo. Mais que isso. Como previamente pontuamos, o
“outro Consolador” seria o Substituto de Jesus na orientação e auxílio aos
discípulos (Jo 14:16), que só seria enviado após a glorificação de Jesus (Jo
7:39). Finalmente, a palavra grega allos (em outro Consolador) deve
necessariamente remeter à identidade distinta daquele que viria, como
destacou Flanklin Ferreira, que concluiu que “A pessoa que vem não é o Filho
e, sendo enviado pelo Pai, é também diferente dele” 89.

2. A vinda do Espírito e a vida cristã.

A vinda definitiva do outro Consolador ocorreu no Pentecostes (At


2). O mais provável é que a experiência descrita no contexto da comissão em
Jo 20:22 seja uma prefiguração da dádiva do Espírito, que só se consumaria
cinquenta dias depois, isso porque mesmo no Evangelho de João fica claro que
o Espírito só seria dado após a glorificação de Jesus (cf. Jo 7:19; 14:12, 16-18,
25, 26; 16:12-15; 20:17).

Com a vinda do Espírito, não apenas se garantiria a continuidade do


ministério de Jesus como, mais que isso, o progresso das operações de Deus
nos e através dos discípulos (Jo 14:12; 16:7) 90. Segundo Jesus, o Espírito
Santo traria aos apóstolos lembrança de tudo quanto Ele ensinou (Jo 14:26),
daria testemunho juntamente com eles (Jo 15:26), convenceria o mundo do
pecado, da justiça e do juízo (Jo 16:8-11) e guiaria os discípulos em toda a
verdade (Jo 16:13)91.

Embora essas referências digam respeito primariamente aos Onze


(Jo 15:26), o Espírito exerce função semelhante na vida de todos os cristãos.
Com efeito, não há qualquer exagero na afirmação de John Stott no sentido de
que “A vida cristã é a vida no Espírito”. Em suas palavras, “Seria impossível ser
cristão, sem falar em viver e crescer como cristão, sem o ministério do gracioso
Espírito de Deus. Tudo que temos e somos como cristãos devemos a Ele” 92.

A vida cristã começa com o novo nascimento do Espírito (Jo 1:12,


13; 3:3-8; 6:63). O Espírito é o “Espírito de adoção”, pelo qual clamamos “Aba,
Pai” (Rm 8:15; Gl 4:6). Porque o Espírito vem habitar-nos, tornamo-nos Seu
89
FERREIRA, Flanklin. Teologia Sistemática: Uma Análise Histórica, Bíblica e Apologética para o Contexto
Atual. São Paulo: Vida Nova, 2007. p. 682
90
J. KÖSTENBERGER, Andreas; R. SWAIN, Scott. Pai, Filho e Espírito: A Trindade e o Evangelho de João.
São Paulo: Vida Nova, 2014. p. 128
91
Ibdem
92
STOTT, John R. W. Batismo e Plenitude do Espírito Santo. São Paulo: Vida Nova, 1999. p. 15
templo (I Co 6:19, 20) e progredimos em santificação, revelando de maneira
cada vez mais evidente o fruto do Espírito (Gl 5:22). A comunhão cristã
desenvolve-se no Espírito (Fp 2:1), assim como a adoração cristã (Fp 3:3; Jo
4:23, 24). A unidade da Igreja é uma obra do Espírito (Ef 4:3; I Co 12:13).
Finalmente, o Espírito ressuscitará os corpos dos cristãos (Rm 8:11).

3. O monoteísmo e a devoção trinitária.

Em síntese, a fé cristã é a fé trinitária – no único Deus, o Pai, o Filho


e o Espírito. Fomos salvos pela graça trinitária: pelo Pai que nos escolheu e
nos predestinou (Ef 1:4, 5), pelo Filho que nos redimiu e nos perdoou (Ef 1:7) e
pelo Espírito, o selo e o penhor da promessa (Ef 1:13, 14). A Igreja universal de
nosso Senhor, na qual fomos incluídos pela graça, é uma morada de Deus no
Seu Espírito, cujo fundamento é Jesus Cristo (Ef 2:20-22). Ingressamos na
esfera da igreja institucional e visível de Cristo sendo batizados em o nome do
Pai, do Filho e do Espírito Santo (Mt 28:19).

A adoração cristã não é outra senão a adoração do Pai, através do


Filho e no Espírito (Jo 4:23; I Pe 2:5), o que equivale a honrar o Pai, o Filho e o
Espírito. Do mesmo modo, a unidade da Igreja é uma obra trinitária, tanto
quanto se funda na unidade da Trindade (Jo 17:21; cf. Ef 4:4-6). A santificação
é igualmente uma trinitária. É, com efeito, uma obra de Deus (Fp 1:6; 2:13), no
Espírito, pela qual vamos sendo aperfeiçoados conforme a imagem de Cristo (II
Co 3:17, 18). É uma fase da aplicação da redenção realizada por Deus, em
Cristo e no Espírito, pela qual vamos sendo moldados por Deus na imagem de
Cristo, no Espírito. E, finalmente, não menos trinitários são a distribuição e o
exercício dos dons do Espírito, tratados como dons em relação ao Espírito,
serviços em relação à Cristo e realizações em relação a Deus o Pai (I Co 12:4-
6).

Assim, fechamos o nosso estudo parentético, no bojo da exposição


ao Decálogo, concluindo que o primeiro e o segundo mandamentos são
cumpridos, respectivamente, conforme a perspectiva de Jesus e dos apóstolos,
em “termos” (primeiro mandamento) e “adorarmos” (segundo mandamento) a
Deus - o Pai, o Filho e o Espírito Santo -, como o único Deus vivo e verdadeiro.

A confissão cristã em um único Deus não exclui a confissão de


Jesus como o único Senhor (I Co 8:4-6), tampouco o monoteísmo cristão exclui
o “único Espírito” (I Co 12:11, 13) da única divindade. Portanto, o monoteísmo
e a monolatria cristãos correspondem à crença em um único Deus, que
subsiste no único Deus o Pai, no único Deus o Filho e no único Deus o Espírito
Santo (Ef 4:4-6), conforme expresso na tabela93 abaixo:

A unidade de Deus A diversidade de Deus


O Pai é o Deus único O Pai não é o Filho
O Filho é o Deus único O Filho não é o Espírito Santo
O Espírito Santo é o Deus único O Espírito Santo não é o Pai

93
Fonte: FERREIRA, Flanklin. Teologia Sistemática: Uma Análise Histórica, Bíblica e Apologética para o
Contexto Atual. São Paulo: Vida Nova, 2007. p. 184
7. Não Tomarás o Nome do Senhor em Vão

1. O significado.

“Não tomarás o nome do SENHOR, teu Deus, em vão, porque o SENHOR não
terá por inocente o que tomar o seu nome em vão” (Ex 20:7)

O terceiro mandamento só poderá ser adequadamente considerado


se ponderarmos sobre a relação que há entre o “nome” de uma pessoa e o seu
conjunto de características, como sói ocorrer de modo preponderante na
cultura do povo hebreu antigo e no registro escriturístico.

Para o nosso tempo, o nome é um direito da personalidade que,


mormente, individualiza cada pessoa distinguindo-a das demais, meros sons
individualizadores. Nos tempos bíblicos, sobretudo à cultura oriental, os nomes
que eram dados às pessoas detinham uma carga valorativa ou experiencial,
porque descreviam marcas da personalidade ou fatos da vida, e o próprio ato
de nomear era uma espécie de poder. Por exemplo, a insensatez de Nabal é
sugerida pelo significado do seu nome (I Sm 25:25) e o nome de Isaque
remonta ao riso dos seus pais (Gn 17:17; 18:12). O mesmo pode ser verificado
nos casos de Esaú e Jacó (Gn 25:25, 26).

As mudanças de nomes semelhantemente afirmam a importância


que possuíam. Em algumas ocasiões, Deus mesmo mudou nomes de pessoas
com o propósito de pontuar Seus feitos em suas vidas e demarcar uma nova
situação para o futuro. Abrão passaria a ser chamado Abraão (“o pai de muitas
nações” (Gn 17:5) e Jacó, Israel (“príncipe com Deus”), porque lutou com Deus
(Gn 32:28).

De modo semelhante, os nomes que são dados a Deus na Escritura


devem ser tomados como de fato são, auto-revelações do próprio Deus,
através dos quais Ele revela-nos facetas de Sua majestade, como podemos ver
nos termos “Elohim” (“aquele que é forte”; Gn 1:1), “El-Shaddai” (“Deus Todo-
poderoso”; Gn 17:1, 2), “El-Elyon” (“Deus Altíssimo”; Dt 32:8), “El-Olam” (“Deus
Eterno”; Gn 21:33) etc.

Por outro lado, a par dos vários nomes de Deus mencionados na


Bíblia, Sua Palavra também faz referência ao “nome” de Deus no singular,
como ocorre no terceiro mandamento e em diversas passagens (cf. Sl 8:1; Sl
48:10; Pv 18:10 etc.). Nesse caso, o “nome” de Deus é a representação de
Deus, que muitas vezes é empregado como uma forma alternativa para falar do
próprio Deus (Lv 18:21; Sl 7:17; Am 2:7; Mq 5:4). O “nome” de Deus é Deus
comunicando-Se com o homem.
Destarte, quando Moisés antevê que os filhos de Israel lhe
perguntariam qual o “nome” do Deus que o enviou a eles, eles, na verdade,
haviam de querer saber quem o tinha enviado, porque o nome é a pessoa que
o carrega (Ex 3:13, 14). Em Dt 12:11, Moisés predisse um lugar onde Deus
faria habitar o seu “nome”, ou seja, onde Deus mesmo habitaria. Essa
promessa foi relembrada por Salomão, quando da inauguração do templo (I Rs
8:29).

No Novo Testamento, o “nome” de Deus é revelado de uma maneira


muito mais plena, visto que o Deus Unigênito, que está no seio do Pai, O
tornou conhecido (Jo 1:18) e revelou Seu nome (Jo 17:6, 26). Nessa porção da
Escritura, o nome de Jesus aparece de forma evidente como plenamente
identificado com o nome “Yahweh”, razão pela qual Deus o exaltou
maximamente para que ao nome de Jesus se dobre todo o joelho e toda língua
confesse que Jesus Cristo é Senhor (Fp 2:9-11). É, portanto, no Novo
Testamento que se nos torna manifesto que nossa salvação está no nome do
Pai, do Filho e do Espírito Santo e que ser batizado nesse nome é um sinal e
um selo da nossa comunhão com Deus (Mt 28:29).

Portanto, o terceiro mandamento tem como pressuposto o conjunto


das perfeições do ser de Deus, que perfazem a Sua glória indizível, tanto
quanto o modo como se refletem na soma das Suas obras. Noutras palavras,
ele pressupõe a glória excelsa do Deus que Se revela nas Escrituras, aponta
para o conjunto de Suas perfeições comunicáveis e incomunicáveis e pretende
vê-las protegidas da profanação. O majestoso Deus TriUno – as pessoas
santíssimas do Pai, do Filho e do Espírito Santo -, Suas perfeições e Suas
obras, não podem ser banalizados, como o extraordinário não pode ser
ordinarizado.

Ante o exposto, devemos, antes de prosseguirmos na análise do


terceiro mandamento, tecer as seguintes considerações:

1. Deus ama o Seu nome. Como no nome de Deus está


compreendido “sua honra, sua fama, suas excelências, toda a sua revelação,
seu próprio ser”94, Deus ama o Seu nome e velará pela sua santificação. O
salmista Davi compreendia que toda a manifestação da graça de Deus visava a
glória do Seu nome (Sl 23:3). Noutras palavras, Deus ama o Seu nome, isto é,
Deus ama a Si mesmo, e nada faz sem divisar, em última instância, a Sua própria
glória.

2. A Escritura ornou o nome de Deus de “santo”. Com efeito, tem-se


compreendido há muito que “a santidade é a excelência propriamente dita da
natureza divina”, que a santidade é “o atributo dos atributos”, sendo esta a

94
BAVINCK, Herman. Dogmática Reformada: Deus e a Criação. Vol. 2. São Paulo: Cultura Cristã, 2012. p.
101
razão pela qual a Escritura afirma que o Seu nome é santo (Sl 33:21; 103:1;
111:9)95. Vale dizer, quando a Escritura concede o título magnífico de “santo”
ao nome de Deus, quer com isso afirmar que o Seu nome – quem Ele é – deve
ser separado de toda e qualquer profanação.

3. Deus não permitirá que o Seu santo nome seja profanado


impunemente. Isso ficou cabalmente demonstrado na ocasião em que Nadabe
e Abiú morreram à beira do altar, os sacerdotes filhos de Arão recém-
ordenados (Lv 10:1-3). Em Lv 24, lemos sobre um filho de uma israelita que foi
apedrejado por haver blasfemado o nome do Senhor, para que ficasse claro
que aquele que blasfemar o nome do Senhor será morto (Lv 24:10-16).

4. O nome que Deus ama e o quer santificado foi-nos confiado. O


antigo Israel foi referido como “meu povo, que se chama pelo meu nome” (II Cr
7:14). A relação entre nós – o povo de Deus - e o nome de Deus é de tal modo
estreita que quando a Igreja perde sua vitalidade espiritual o nome de Deus é
blasfemado entre os gentios (Rm 2:24). Por outro lado, quando a Igreja recobra
sua saúde Deus é glorificado (Mt 5:16).

Fomos noticiados, estarrecidos, que no último dia 7 de junho de


2015, a “19ª. Edição da Parada Gay Orgulho LGBT” apresentou, dentre outras
aberrações, a crucificação de um transexual seminu. A cena dividiu opiniões.
Do lado evangélico, muitos foram à mídia externar sua consternação. No
entanto, deve-se perguntar o que se tem dito do charlatanismo, dos vendilhões
dos templos religiosos, dos shows gospel, da venda de promessas, milagres e
exorcismos, dos cultos irreverentes, das anedotas e da autoajuda no lugar dos
sermões, do desprezo pela doutrina, dos escândalos das grandes fortunas e
dos desvios morais dos líderes... Parece certeira a afirmação de Michael
Horton, quando alerta: “Não podemos esperar no mundo uma integridade que
está faltando na Igreja” 96.

O que fazer, então? Empreender uma campanha midiática?


Pressionar o parlamento? Mas, como, se ao que tudo indica o problema não é
estatal, é eclesiástico; não é parlamentar, é pastoral; não é legislativo, é
espiritual? Não seria mais íntegro de nossa parte se começássemos a ver juízo
em primeiro lugar na casa de Deus (I Pe 4:17)? Não seria mais piedoso
iniciarmos uma reforma da Igreja pelo retorno à Escritura e pelo sincero
arrependimento?

Pois bem, prossigamos na tarefa de compreendermos as proibições


e os mandamentos positivos do terceiro. Se não, vejamos.

95
PINK, A. W. Os Atributos de Deus. São Paulo: PES, 2001. p. 58, 59
96
HORTON, Michael. A Lei da Perfeita Liberdade: A Ética Bíblica a Partir dos Dez Mandamentos. São
Paulo: Cultura Cristã, 2000. p.83
2. O que o terceiro mandamento nos proíbe?

Primeiro, observemos quais proibições o terceiro mandamento nos


impõe.

Em primeiro lugar, o terceiro mandamento nos proíbe qualquer uso


impensado, irrefletido, casual, do nome de Deus. Hans Ulrich Reifler denuncia
o costume popular no uso de expressões do tipo “meu Deus”, “Deus me livre”,
“se Deus quiser”, “Deus é testemunha”, para alertar que

O problema não está no uso destas palavras, mas na atitude do


coração. Quando bem pensadas, tais expressões constituem uma
oração, manifestam nossa confiança no Senhor e testificam a
sinceridade de nossa fé. Por outro lado, não resta dúvida de que o
uso impensado dessas frases não ajuda em nada; pelo contrário,
revela leviandade para com as coisas sagradas, e é o que está em
pauta no terceiro mandamento97.

Em segundo lugar, o terceiro mandamento nos proíbe, com muito


mais razão, o uso do nome de Deus de forma irreverente, vulgar. Frases como
“o cara lá de cima”, “o homem lá de cima” e “Deus é 10” devem ser
peremptoriamente extirpadas do nosso vocabulário, primeiro porque nos
dessensibiliza quanto à reverência da qual Deus é digno e, segundo, porque
promove uma noção deturpada do Deus três vezes santo. Não se pode
imaginar que Isaías, a concluir pela sua reação ante à visão do Senhor, ousaria
pronunciar expressões indignas para referir-se à Sua majestade (Is 6:5).

Em terceiro lugar, o terceiro mandamento nos proíbe a blasfêmia do


nome de Deus (II Rs 19:22; Lv 24:11). O Dr. Geerhardus Vos ensina que
“Blasfemar é chamar nomes ou usar qualquer linguagem ímpia diretamente
contra Deus. Por exemplo: acusá-lO de impiedade, injustiça ou falsidade de
quaisquer espécies é blasfemar contra Deus”98.

Em quarto lugar, o terceiro mandamento nos proíbe de usar o nome


de Deus em juramentos falsos (Lv 19:12), levianos e a jurar pelos falsos
deuses. Na Escritura, esclareça-se, o que se proíbe não é o juramento em si
mesmo, qualquer que seja ele (cf. Mt 5:34; Tg 5:12), como se pode depreender
dos exemplos de juramentos encontrados com frequência na Bíblia (cf. Gn
24:1-4; Rm 1:9). Mesmo o Senhor, por não encontrar um superior a Si, jurou
por Si mesmo (Sl 89:3, 4, 35; Hb 6:13). O jurar em nome de Deus era inclusive
um sinal de que a pessoa confessava o Senhor (Is 19:18; 65:16; Jr 4:2; 12:16),
a exemplo da fé de Rute evidenciada em seu juramento (Rt 1:17).

97
REIFLER, Hans Ulrich. A Ética dos Dez Mandamentos. São Paulo: Edições Vida Nova, 1992. p. 85
98
GEERHARDUS VOS, Johannes. Catecismo Maior de Westminster Comentado. São Paulo: Editora Os
Puritanos, 2007. p. 359
O que estão proibidos no terceiro mandamento, portanto, são: a
uma, os juramentos pelos falsos deuses, porque isso implica em idolatria (Ex
23:13; Jr 5:7; Sf 1:5); a duas, os juramentos pelos servos de Deus, porque
equivale a conferir-lhes a glória que somente a Deus pertence; a três, os
juramentos frívolos, aqueles que não tenham relação com a glória de Deus,
com a promoção da justiça e com o amor; e, a quatro, os juramentos para
fazerem a mentira prevalecer.

Quanto a isso - o uso do nome de Deus para fazer uma mentira


parecer verdade – trata-se de um uso irreverente, uma afronta ao terceiro
mandamento, tal como se pode perceber no falso juramento de Pedro, quando
este negou a Cristo (Mt 26:74). Sobre esse pecado, Lutero99 escreveu:
Mentir e enganar, em si, já é grande pecado; mas fica muito mais
grave quando tentamos justificá-lo e, para reforçá-lo, recorremos ao
nome de Deus, usando-o como manto. Assim, uma mentira acaba
virando duas, até múltiplas mentiras100.

Finalmente, fica proibido pelo terceiro mandamento de igual modo o


não cumprimento dos juramentos proferidos, a exemplo do rompimento dos
votos de casamento, da quebra da palavra empenhada em negócios, do falso
testemunho dado em juízo e da deserção da fé ou do sagrado ministério da
Palavra. Eis a razão pela qual Pv 20:25 nos ensina que “Laço é para o homem
o dizer precipitadamente: É santo! E só refletir depois de fazer o voto”. R. N.
Champlin explica e ilustra o ensino do sábio:
As palavras “é santo” ignificam “foi dedicado”. Um homem fez uma
promessa a Yahweh de que, “se Ele fizer isso ou aquilo”, ele
corresponderá “desta ou daquela maneira”. Consideramos o exemplo
de Ananias e Safira, no capítulo 5 do livro de Atos, bem como o
horrendo voto de Jefté, que prometeu sacrificar a primeira pessoa
que se encontrasse com ele, quando voltasse para casa de obter
grande vitória militar, que ele muito quisera obter. Foi a própria filha
que correu ao encontro de Jefté, e, estupidamente, ele a sacrificou.
Isso nos mostra quão seriamente os hebreus tomavam os seus
votos... (Jz 11:30, 31)101.

Portanto, melhor é não fazer votos precipitadamente, sem pensar


nas consequências (Dt 23:21-33; Ec 5:4 5), porque, a princípio, todo voto
deverá ser pago (Nm 30:2; Sl 50:14; 76:11) e toda a palavra, mantida, ainda
que para o próprio prejuízo (Sl 15:4).

Em quinto lugar, o terceiro mandamento nos proíbe a participação


em rituais cúlticos em honra a falsos deuses, o que constitui profanação do Seu
nome (Lv 18:21), tanto quanto o uso supersticioso e ignorante do nome de

99
Para Lutero, como alertamos alhures, o terceiro mandamento é tratado como o segundo.
100
MARTINHO, Lutero. Catecismo Maior. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 2012. p. 34
101
CHAMPLIN, Russel Norman. O Antigo Testamento Interpretado: Versículo por Versículo – Salmos,
Provérbios, Eclesiastes, Cantares. Vol. 4. 2ª. Ed. São Paulo: Hagnos, 2001. p. 2641
Deus (Jr 7:4-10, 14, 31; At 17:23). Há algumas décadas, popularizou-se no
Brasil o movimento chamado “batalha espiritual”, alinhado com outra heresia
conhecida como “confissão positiva”, que ensinou ao povo evangélico brasileiro
a repetir a frase “está amarrado em nome de Jesus” diante de circunstâncias
desagradáveis. Eis um exemplo doméstico do uso supersticioso do nome de
Deus.

Em sexto lugar, o terceiro mandamento nos proíbe o uso do nome


de Deus para todos os fins que não sejam a Sua glória, exigindo tanto uma
conformação formal quanto de motivos com esse propósito. Em Mt 7:21-23,
cristãos nominais serão reprovados no juízo, a despeito da confissão que
fizeram, porque usaram o nome de Jesus para profetizar, expulsar demônios e
fazer milagres, mas em vão, hipocritamente, para a sua própria glória, e não
para a glória do Salvador.

3. O que o terceiro mandamento nos exige?

Como Lutero observou, o terceiro mandamento diz mais do que


“Você não vai fazer uso fútil do nome de Deus!”. Mais que isso, “ele dá a
entender que se deve, sim, usá-lo, pois ele nos foi revelado e dado justamente
para ser usado e aproveitado”102. Com isso, o reformador alemão está a
ensinar que o terceiro mandamento também traz consigo mandamentos
positivos, ordens positivas que passaremos a destacar.

Calvino destacou o aspecto positivo do terceiro mandamento


enfatizando a necessidade de mantermos protegida da banalização a
santidade do nome do Senhor, in verbis:

O fim desse preceito é: Deus deseja sacrossanta para nós a


majestade do seu nome. A suma será que não a profanemos por
tomá-la com menosprezo ou de modo irreverente... Assim, ensina-
nos a ser ponderados de alma e de língua, para não falarmos do
próprio Deus e de seus mistérios senão de modo reverente e muito
sóbrio, para que, ao avaliar suas obras, não concebamos senão o
que é digno de honra diante d‟Ele103.

Em suma, o mandamento em comento exige uma atitude reverente,


séria e sóbria na lida com a auto-revelação de Deus, quer por meio de
palavras, pensamentos, gestos e viver diário. Se não, vejamos:

Em primeiro lugar, começamos a observar o terceiro mandamento


quando invocamos o nome do Senhor Jesus para a salvação (Rm 10:10, 13).

102
Ibdem. p. 35
103
CALVINO, João. A Instituição da Religião Cristã. Tomo 1. Livros I e II. São Paulo: Editora UNESP, 2008.
p. 367, 368
Desse modo, confessamos que não há salvação em nenhum outro nome,
abaixo do céu e dado entre os homens, pelo qual importa que sejamos salvos
(At 4:12). Daí a conclusão necessária no sentido de que somente os
verdadeiros cristãos podem honrar o nome de Deus de acordo com a Sua
vontade revelada. O Dr. Vos esclarece que um não crente pode não ter o
hábito de “praguejar” ou de usar uma linguagem obscena, mas “simplesmente
por conta da sua conduta geral e bom gosto, embora, não sendo um crente em
Cristo, não tenha real reverência a Deus em sentido positivo e espiritual” 104.

Em segundo lugar, o terceiro mandamento nos impõe que tudo


façamos com vistas ao reconhecimento da santidade do nome do Senhor. Tal
reconhecimento deve ser objeto de nossas orações (Mt 6:9), tanto quanto a
força motivadora das nossas boas obras (Mt 5:16) e da nossa piedade prática
(Fp 1:27). Um proceder desonesto, antiético, pode ser causa de muito
ceticismo e acusação contra Deus e Sua Palavra (II Sm 12:14). Que o nome do
Senhor seja santificado por nós quando estivermos no trânsito ou no trabalho,
em casa ou no lazer, em conversas com amigos e nas redes tanto quanto no
culto e na comunhão dos santos.

Em terceiro lugar, o terceiro mandamento nos impõe que cultuemos


a Deus com a reverência da qual Ele é digno. Sobre esse ponto, valem os
seguintes destaques:

A uma, a Palavra de Deus deve tratada com reverência (Sl 138:2).


Basta observarmos a atitude de nosso Senhor no culto na sinagoga, em como
“levantou-se para ler” a Palavra (Lc 4:16), para sermos persuadidos a lidar
reverentemente com a Escritura. Em Rm 1:2, Paulo qualifica as “Escrituras” de
“sagradas”, porque elas se distinguem por seu caráter santo de todas as
demais obras escritas. Para ele, toda a Escritura é inspirada por Deus (II Tm
3:16), ou seja, sua santidade é efeito de sua origem divina. Finalmente, Paulo
inclui em seu conceito de Escritura um conjunto de escritos que os considerava
sacrossantos, composto dos pertencentes ao Antigo e ao Novo
Testamentos105, como fez o apóstolo Pedro (II Pe 3:15, 16).

A duas, não menos reverente deve ser a nossa participação nos


sacramentos. Eis a razão da solene advertência apostólica: “Examine-se, pois,
o homem a si mesmo, e, assim, coma do pão, e beba do cálice; pois quem
come e bebe sem discernir o corpo, come e bebe juízo para si” (I Co 11:28-29).
Comer e beber sem “distinguir” ou “discernir” o corpo talvez seja a atitude de
participar da Ceia sem entender seu caráter santo em relação às demais

104
GEERHARDUS VOS, Johannes. Catecismo Maior de Westminster Comentado. São Paulo: Editora Os
Puritanos, 2007. p. 357
105
Lembramos que em I Tm 5:18, Paulo inclui como declaração da “Escritura” uma citação de Dt 25:4 e
de Lc 10:7, paralelo de Mt 10:10.
refeições comuns. Leon Morris explica satisfatoriamente o significado da
passagem em apreço:
Paulo quer dizer que ninguém deve entender a Santa Comunhão
como uma coisa natural, como qualquer outro serviço litúrgico. É um
rito solene, instituído pessoalmente pelo Senhor, carregado de
profunda significação. Antes de tomarmos parte em tal serviço, o
mínimo que podemos fazer é um rigoroso auto-exame106.

A três, a música deve revelar a santidade de Deus (II Cr 20:21),


sobretudo por sua letra ser a Palavra de Deus cantada e, finalmente, todo o
culto deve ser conforme a Sua Palavra, fervoroso e fiel, sob pena de desonrar
o nome do Senhor (Ml 1:6-14).

Em quarto lugar, o terceiro mandamento nos impõe o ensino correto


das Escrituras. A oração “santificado seja o teu nome” deve ser acompanhada
pela proclamação das virtudes daquele que nos chamou das trevas para a Sua
maravilhosa luz (I Pe 2:9). Se somente as pessoas regeneradas honram a
Deus verdadeira e espiritualmente, e se a Palavra é o instrumento do Espírito
para gerar de novo pessoas mortas em delitos e pecados (Tg 1:18),
disponhamo-nos a ensinar a Palavra de Deus. Sejamos encontrados dentre
aqueles que manejam bem a Palavra da verdade (II Tm 2:15), aptos para
instruir (II Tm 2:24), persistentes em pregar (II Tm 4:2) e preparados para dar
as razões da nossa esperança (I Pe 3:15).

4. Uma verdade que persuade a cumprir o terceiro mandamento.

O acréscimo ao terceiro mandamento chama-nos a atenção por sua


gravidade: “... porque o SENHOR não terá por inocente o que tomar o seu
nome em vão”.

É verdade que este acréscimo é cabível a qualquer dos


mandamentos de Deus. Todos os mandamentos de Deus são a Sua única Lei
e o quebrar qualquer deles torna-nos réus de todos (Tg 2:10). Entretanto, como
temos observado, o que está em jogo nesse mandamento é a honra que todos
os homens devem ao grande nome do Senhor, à Sua auto-revelação, a quem
Deus é. Assim, não haverá impunidade ao que tomar o Seu nome em vão.

Por óbvio, não devemos pensar que veremos nesta vida a clara a
pública punição divina de todos os homens pela violação do terceiro
mandamento. O fato é muitos escapam ilesos no curso desta existência, mas
jamais escaparão do certo, definitivo e inescapável Juízo do Justo Juiz de toda
a terra (Ap 6:12-17; 20:11-15). Uma consideração precipitada nesse tocante

106
MORRIS LEON, Canon. I Coríntios: Introdução e Comentário. São Paulo: Mundo Cristão, 1989. p. 131
levou os pés do salmista Asafe a quase resvalarem, até que ele atentou ao fim
dos perversos (Sl 73).
8. Lembra-te do dia de sábado

1. A divergência sobre o quarto mandamento.

“Lembra-te do dia de sábado, para o santificar. Seis dias trabalharás e farás


toda a tua obra. Mas o sétimo dia é o sábado do SENHOR, teu Deus; não farás
nenhum trabalho, nem tu, nem o teu filho, nem a tua filha, nem o teu servo,
nem a tua serva, nem o teu animal, nem os forasteiros das tuas portas para
dentro; porque, em seis dias, fez o SENHOR os céus e a terra, o mar e tudo o
que neles há e, ao sétimo dia, descansou; por isso, o SENHOR abençoou o dia
de sábado e o santificou” (Ex 20:8-11)

Costuma-se lembrar que as três grandes religiões monoteístas do


mundo – o islamismo, o judaísmo e o cristianismo – possuem, cada uma, um
dia especial na semana, respectivamente, a sexta-feira, o sábado e o domingo.
Assim, em termos bastante simplistas, a sexta é islã, o sábado é judaico e o
domingo, cristão.

Mas, as coisas não tão simples assim. Nunca são, não é mesmo?
Isso porque dentre os cristãos de toda a cristandade, até entre aqueles ditos
como protestantes ou evangélicos e mesmo entre os cristãos reformados, há
divergências quanto ao sentido em que o quarto mandamento deve ser
compreendido. Se não, vejamos.

Há os Adventistas do Sétimo Dia e os Batistas do Sétimo Dia107, que


continuam a insistir na observância do sábado como o sétimo dia da semana, à
moda judaica. Para esses grupos, o sábado foi instituído antes da dádiva da lei
(Gn 2:2), foi ratificado por Jesus e deveria ter sido observado em todos os
séculos, não o sendo pela apostasia da Igreja Católica Romana e por força do
decreto do imperador Constantino, que determinou em 321 o feriado do
domingo para as cortes de justiça e o exército.

Aos cristãos reformados, sobretudo àqueles que advogam a


doutrina puritana do shabbath cristão, o quarto mandamento é parte da lei
moral de Deus e, portanto, de observância obrigatória para a Igreja cristã, nos
moldes do Antigo Testamento e como vivido por Jesus, com uma diferença
básica, qual seja: o sábado cristão é o domingo, o Dia do Senhor, celebrado no
primeiro dia da semana em comemoração à ressurreição de Cristo dentre os
mortos.

107
Os Batistas do Sétimo Dia surgiram por volta de 1631. Foram eles que introduziram o sabatismo
literal e rigoroso na Inglaterra, no pós-Reforma, e, posteriormente, a Rhode Island e Nova Yorque.
O Dr. Johannes Geerhardus Vos, proponente dessa tese, destaca os
seguintes argumentos para demonstrar que o sábado cristão é uma lei moral e
não cerimonial:
(a) O quarto mandamento mesmo menciona o fato de que o sábado
se originou não no tempo de Moisés, mas na criação do mundo.
Assim, o sábado existiu milhares de anos antes de Deus haver dado
a lei cerimonial nos dias de Moisés. (b) O mandamento do sábado é
parte dos Dez Mandamentos e, por se encontrar no contexto das leis
morais, tem que ser considerado também como uma lei moral... (c)
Assim como o resto dos Dez Mandamentos o mandamento do
sábado não foi escrito sobre material perecível, mas sobre tábuas de
pedra que indicam a sua validade permanente...108

Finalmente, dentre aqueles de confissão não menos reformada, há


os que ensinam que, não obstante o quarto mandamento esteja elencado no
catálogo da lei moral de Deus (é dizer, seja o quarto dos Dez Mandamentos),
ele, na verdade, é parte da lei cerimonial conferida aos hebreus no pacto
mosaico e, como tal, foi cumprido e extinto em Cristo, a substância para a qual
apontava e diante da qual era apenas uma sombra, uma figura.

Nesse sentido, Michael Honton:


... como já argumentei, o sábado é singular entre os Dez
Mandamentos. Ele não está, eu manteria, selado na consciência
humana por causa da criação; antes, ele é uma ordenança, como a
circuncisão, para a comunidade redimida de Israel, apontando para
Cristo...109

Em face da peculiaridade que circunda o quarto mandamento, pelo


menos no tocante à controvérsia ora apresentada, tentaremos colocar o ensino
vétero-testamentário para, só depois, verificarmos o que nos diz o Novo
Testamento a respeito. Sigamos, pois.

2. O sábado no Antigo Testamento.

1. O sábado e a criação.

A palavra portuguesa “sábado” vem do hebraico Shabbath,


substantivo correlato ao verbo que significa descansar, folgar, cessar, usado,
por exemplo, em II Sm 16:14. Em Ex 20:8 ocorre a forma substantiva, enquanto
em Dt 5:12, Ex 23:12 e 34:21, a forma verbal.

108
GEERHARDUS VOS, Johannes. Catecismo Maior de Westminster Comentado. São Paulo: Editora Os
Puritanos, 2007. p. 375
109
HORTON, Michael. A Lei da Perfeita Liberdade: A Ética Bíblica a Partir dos Dez Mandamentos. São
Paulo: Cultura Cristã, 2000. p.107
A primeira ocorrência ao sétimo dia como um dia de descanso, na
Escritura, está em Gn 2:2. Ali se diz que Deus terminou a obra da criação e, no
dia sétimo, “descansou” “de toda a obra que tinha feito”. O versículo 3
acrescenta que “abençoou Deus o dia sétimo e o santificou; porque nele
descansou de toda a obra que, como Criador, fizera”.

A primeira observação a ser feita é que a fórmula que encerrou a


narrativa de cada dia da criação (“houve tarde e manhã”) não ocorre no sétimo
dia. O que significa dizer que o “descanso de Deus” não foi um dia de vinte e
quatro horas, mas que, cessada a obra da criação, deixando Deus de criar
novos tipos de coisas, mudou de atividade e deu início à obra da providência
(Jo 5:17). Esse fato indica que o “descanso de Deus” é um tempo interminável,
que teve início, mas jamais terá fim. Esse é o sentido teológico que envolve o
“sábado”, cujo significado vai sendo ampliado na Escritura até ser
completamente revelado no Novo Testamento.

Ademais, que Adão observou um dia em sete para cessar o


trabalho, não nos é dito. Fato é que o trabalho exercido por Adão não o
cansava, ou pelo menos não o levava a exaustão que ensejasse a necessidade
de uma parada para a revitalização das forças, carência essa surgida após a
Queda (Gn 3:17-19). Também digno de nota é que Deus não tinha um dia
especial na semana para falar com Adão, uma vez que Moisés relata que o
Senhor andava no jardim pela viração do dia (Gn 3:8).

Assim, o “descanso de Deus” concedido a Adão era o estado em


que se encontrava, livre de pecado e da fadiga dele emanada como
consequência. Portanto, se se quer dizer que Adão quebrou o quarto
mandamento, o fez nos termos esposados por Edawrd Fisher e mencionado
em estudo anteriormente citado110, no sentido de não haver guardado o
descanso e o estado em que Deus o colocou.

2. O sábado e a lei mosaica.

No período patriarcal não temos notícia expressa sobre a guarda do


dia de descanso111, que só vem a ocorrer no Decálogo, como um componente
do pacto estabelecido por Deus para a Sua relação com Israel. Pouco antes,
porém, em Ex 16:22-30, o povo de Deus parece ter sido treinado para guardar
o shabbath, um dia em que não lhe seria necessária a tarefa diária de colher o
maná, um descanso provido por Deus. Eis a primeira ocorrência do termo
110
Cristão Reformado: O Mundo e Vida à Luz das Sagradas Escrituras. Adão e a Quebra dos Dez
Mandamentos. http://www.cristaoreformado.com/2012/06/adao-e-quebra-dos-dez-
mandamentos.html. Acesso em 18/06/2015.
111
R. Alan Cole apontou que “Um acalorado debate vem se desenvolvendo em torno das origens e data
da observância do sábado: comentaristas judaicos mais recentes se esforçaram ao máximo para
encontrar prova dessa observância no período patriarcal, mas a não ser na Lei, as referências mais
antigas são II Reis 4:23 e Amós 8:5”. COLE, R. Alan. Êxodo: Introdução e Comentário. São Paulo: Mundo
Cristão, 1990. p. 152
shabbath, desconhecido do povo de Israel, uma vez que este, no Egito, era
familiarizado com uma “semana” de dez dias112.

O quarto mandamento é o primeiro a ocorrer de forma positiva,


fórmula que só se repetirá mais uma vez, no quinto mandamento (Ex 20:12).
Enquanto a versão de Êxodo enfatiza o memorial (uma lembrança) do
descanso de Deus (Ex 20:11), o texto deuteronômico destaca o dever de
observar (a necessidade de guardar) o dia de descanso em face da libertação
do Egito realizada por Deus (Dt 5:12-15).

Em termos positivos, os judeus deveriam guardar os sábados de


Deus (Lv 19:3), dever correlato com o de reverenciar o santuário (Lv 19:30;
26:11-13). Negativamente considerando, ficam proibidos todos os trabalhos, da
família, dos forasteiros que habitassem com os hebreus e dos animais (Ex
20:10), inclusive o trabalho doméstico da esposa de cozinhar e assar (Ex 35:2,
3). Isaías 58:13 faz referência à versão positiva (honrar o sábado) tanto quanto
à negativa (não cuidar dos próprios interesses, não fazer a própria vontade,
não falar palavras vãs). Posteriormente, quando Israel deixou de ser um povo
nômade e se fixou na terra, a observância do shabbath passou a envolver a
proibição de carregar mercadorias para pô-las à venda (Jr 17:21, 22; Ne 13:15-
22).

A não observância do sábado era tratada em Israel com muito rigor.


A morte era a pena aplicada àquele que profanasse o sábado, fazendo nele
qualquer trabalho (Ex 31:14; 35:2), como ocorreu com um homem apanhando
lenha em dia de sábado (Nm 15:32-36). Por outro lado, promessas foram
proferidas através de Isaías aos que se guardassem de profanar o sábado, aos
eunucos, aos estrangeiros e todo israelita (Is 56:2-14).

Correlatos dos sábados em Israel são as instituições dos anos


sabático e do jubileu. O ano sabático é um sábado para a terra (Ex 23: 10, 11;
Lv 25:3-7), preceito pelo qual os israelitas não podiam em um ano a cada sete
trabalhar o campo para a colheita. Aquilo que a terra produzisse naturalmente
seria, inclusive, dos pobres e dos animais. Nesse ano, os escravos deveriam
ser libertos (Ex 21:2; Dt 15:12-15) e as dívidas, perdoadas (Dt 15:1-4). Esse
último preceito explica a reprimenda contra a má vontade em fazer
empréstimos aos pobres em período aproximado do ano sabático (Dt 15:7-11).
O ano do jubileu era, a seu turno, o ano imediatamente após o sétimo ano
sabático, o ano quinquagésimo, portanto, cujos mesmos preceitos do ano
sabático deveriam ser observado (Lv 25:8-17). Caso esses sábados não
fossem observados, a punição para Israel seria, dentre outras, o exílio, para
que a terra gozasse os seus sábados (Lv 26:34, 35). Esse pecado foi cobrado
rigorosamente por Deus no exílio babilônico (II Cr 36:21; Jr 25:11).

112
Harold H P. Dressler, in CARSON, D. A. Do Shabbath para o Dia do Senhor. São Paulo: Cultura Cristã,
2006. p. 24
Há, na verdade, um paralelo tão estreito entre esses anos sabáticos
e os sábados semanais que, imagino, não seja possível separá-los. A
correlação é mais que matemática e linguística (seis anos e seis dias: Ex
23:10, 12), é, sobretudo, quanto ao fim humanístico (descanso, perdão de
dívida e libertação: Ex 21:2; 23:12; Dt 15:2-4) e por obediência ao Senhor.

3. A intenção teológica do sábado no Antigo Testamento.

Deus fez Adão participar do Seu descanso. Mas, como anotamos


supra, ele não quis permanecer no descanso de Deus, no estado em que Deus
o colocou. Se Adão tivesse sido obediente quando colocado sob teste, teria
entrado no descanso eterno de Deus, sem nenhuma possibilidade de perdê-lo.
Mas, não o fez. E porque não o fez, a promessa de um descanso é interposta
como uma boa nova de salvação, e não como uma dádiva a ser gozada por
toda a criação.

Assim, quando o povo judeu é convocado a entrar no descanso de


Deus, essa é uma oferta da graça ao povo com quem Deus fez um pacto. Por
isso, esclarece Michael Honton: “Quando os judeus celebravam o sábado, eles
antecipavam o fim de seu sofrimento e labor, sacrifícios e cerimônias, o
descanso final. Deus viria ao fim da era (semana) e acertaria tudo”113.

Com efeito, o shabbath foi um sinal para Israel do pacto da graça


(Ex 31:17), conforme administrado no pacto mosaico (ou sinaítico). Assim, os
“crentes” sob a antiga aliança o celebravam com ações de graças, cheios de
regozijo e prontos ao louvor. Nas palavras de Harold H. P. Dressler,

Não era necessário fazer ameaças para aqueles dentre o povo que
possuíam discernimento espiritual. Ninguém precisava obrigá-los a
desfrutar as bênçãos desse dia consagrado. No Sinai, o Shabbath
havia sido instituído em favor do homem (e não o homem para o
Shabbath)... Uma vez treinada pela repetição regular dessa dádiva
bondosa que era o Shabbath, Israel devia ser capaz de se apresentar
diante do Criador com liberdade, responsabilidade, confiança e
gratidão, adorando ao Senhor do Shabbath e aguardando com
grande alegria e expectativa a chegada do Descanso Final 114.

É facilmente perceptível que, mesmo no Antigo Testamento, a ideia


de provisão de descanso é muito mais ampla do que o provido pelos sábados
(semanais ou anuais). Embora propósitos utilitários temporários sejam
apontados (remissão de dívida, libertação da escravidão, provisão aos pobres,
descanso, conhecimento da lei), o sábado antevia o dia em que Deus voltaria a
dar ao Seu povo entrada em Seu descanso permanente.

113
HORTON, Michael. A Lei da Perfeita Liberdade: A Ética Bíblica a Partir dos Dez Mandamentos. São
Paulo: Cultura Cristã, 2000. p.99
114
Harold H P. Dressler, in CARSON, D. A. Do Shabbath para o Dia do Senhor. São Paulo: Cultura Cristã,
2006. p. 36
Essa noção é evocada pelo poeta no Salmo 95. Ele relembrou a
geração incrédula de Israel, a que foi liberta do Egito sob a liderança de
Moisés. Refletiu sobre a dureza de coração daquele povo como evidenciado no
episódio de Meribá e Massá (Ex 17:7; Nm 20:13) e retratou a recusa de Deus
em deixar que entrassem na Terra Prometida (Nm 14:20-38) com as seguintes
palavras: “Por isso, jurei na minha ira: não entrarão no meu descanso” (Sl
95:11).

Por óbvio que as implicações da recusa em crer que Deus iria lhes
dar o descanso que careciam se estendia para além da incredulidade em
realmente herdar uma nesga de terra na Palestina. A Terra Prometida é ainda
uma pálida figura em comparação ao descanso definitivo de Deus em novos
céus e nova terra, mas estão intimamente relacionadas em termos de sombra e
substância, tipo e antítipo.

Assim, quando se recusaram a crer no descanso de Deus em figura,


no sentido de posse da Terra Prometida, estavam descrendo também que
Deus podia lhes dar descanso eterno. Nas palavras de Honton, a incredulidade
dos israelitas está em que “recusaram-se a declarar que sua salvação estava
inteiramente em suas mãos [de Deus] e recusaram-se a crer que existiam pela
misericórdia de Deus e que Deus iria graciosamente prover. Eles tomaram as
questões em suas próprias mãos e decidiram se salvar”115.

O resumo da ópera é que os sábados pretendem muito mais do que


os fins imediatamente utilitários que proclamam. Eles são, em verdade, uma
proclamação de boa nova - Deus anunciando ao povo do pacto que lhe daria
entrada no Seu descanso, estado perdido na Queda. A título de figura, os
sábados anteviam a entrada no descanso na Terra Prometida. Mas, isso é
tudo? Foi em Josué que Deus cumpriu Sua promessa de voltar a dar Seu
descanso ao povo do pacto?

2. O sábado no Novo Testamento.

1. O sábado nos Evangelhos.

Para compreendermos a atitude de Jesus e Seus debates com os


grupos religiosos do primeiro século da era cristã, faz-se imperioso pontuar que
no período intertestamentário, sobretudo em face do declínio da profecia, os
judeus sentiram cada vez mais necessidade de orientação para os mais
variados incidentes da vida cotidiana.

Surgiram, nesse passo, os mestres que tentavam esmiuçar de forma


detalhada como cada mandamento deveria ser observado. Essa tradição oral

115
Ibdem. p. 102
chegou a ser codificada com o nome de Halaká, hoje conhecida como Mishná.
Em especial, dois tratados do Halaká, o Shabbath e o „erub, são dedicados a
explicar em minúcias como o sábado deveria ser observado. Segundo C.
Rowland, a Halaká pretendia atender à necessidade dos judeus de duas
formas fundamentais: primeiro, apresentando normas detalhadas que explicam
como se pode transgredir a lei de Deus; segundo, ensinando as circunstâncias
que desobrigavam as pessoas de cumprir os mandamentos 116.

Noutro giro, não se pode perder de vista a atitude de Jesus para


com a lei. Por um lado, Ele “nasceu sob a lei” (Gl 4:4) e, em decorrência disso,
foi circuncidado (Lc 2:21), resgatado (Lc 2:22-24), honrou o templo (Mt 21:12,
13), reconheceu a legitimidade do sacerdócio levítico e ordenou o cumprimento
dos sacrifícios (Mt 8:4; cf. Lv 14; Mt 5:23, 24). Por outro, apesar de ter vivido
sob a antiga aliança, Ele a cumpre e realiza a nova na Sua morte, ressurreição
e ascensão. Assim, se Ele honrou o templo, também advertiu que o templo
estava prestes a ser destruído e afirmou ser Ele próprio o verdadeiro templo
(Jo 2:19-21) tanto quanto anunciou o fim do templo como lugar de adoração (Jo
4:21).

Essas linhas iniciais nos fornecem dois dados importantes que serão
verificados nos textos dos quatros evangelhos, quanto à atitude de Jesus para
com o shabbath: primeiro, nosso Senhor cumpriu o shabbath, integralmente,
contrapondo-se, entretanto, aos ensinos da Halaká; segundo, Ele se
apresentou, ainda, como o verdadeiro shabbath, o verdadeiro e definitivo
descanso do Seu povo. Se não, vejamos.

1.1) Mt 12:1-8; Mc 2:23-28; Lc 6:1-6

Jesus é responsabilizado pela atitude dos discípulos de haverem


colhido espigas em dia de sábado, quando passavam pelos campos. A suposta
transgressão não era o fato de terem colhido espigas e comido os grãos (Dt
23:25), mas de terem realizado o trabalho de “colher” (um dos trinta e nove
tipos de trabalhos proibidos no shabbath) em dia de sábado.

Jesus responde à acusação com um episódio da vida de Davi,


narrado em I Sm 21:1-7. Na verdade, nosso Senhor não está apresentando
uma exceção permitida à regra. Está, sim, pontuando que Davi não sofreu
nenhum tipo de reprimenda porque não cometeu nenhuma violação. Aplicando-
se o caso de Davi à crítica dos fariseus aos discípulos de Jesus, percebe-se
que o equívoco está na interpretação excessivamente rigorosa daqueles.

No caso dos discípulos, D. A. Carson explica por que não houve


qualquer violação à lei, in verbis:

116
ROWLAND, C., in CARSON, D. A. Do Shabbath para o Dia do Senhor. São Paulo: Cultura Cristã, 2006.
p. 47
O Shabbath implicava um descanso total do trabalho habitual. Porém,
nesse caso, os discípulos não eram agricultores nem donas de casa
tentando fazer algumas horas extras às escondidas. Antes, eram ex-
pescadores e ex-negociantes, pregadores itinerantes que não
estavam fazendo nada de errado... É evidente que a Halaká foi
transgredida, mas é justamente esse legalismo que Jesus combate
em diversas ocasiões117.

Na sequência, Jesus acrescentou que “o sábado foi estabelecido por


causa do homem, e não o homem por causa do sábado”. Perceba-se que
Jesus refere-se à dádiva do sábado como uma graça da parte de Deus, como
algo que jamais poderia ter se tornado uma questão de obediência penosa e
sufocante, como a forjada pelas regras da Halaká. Por outro lado, a afirmação
não significa que o shabbath está ao alvedrio da interpretação de cada um,
podendo cada um fazer como achar mais certo.

Finalmente, lemos a afirmação grandiloquente de que “o Filho do


Homem é Senhor também do sábado”. Certamente, Jesus está afirmando, no
mínimo, que Sua autoridade, que já ficou evidente no ato de perdoar pecados
(Mc 2:10), inclui a possibilidade de estabelecer a forma como o shabbath deve
ser observado e, quiçá, caso o deseje, de inclusive ab-rogá-lo. Se Ele é o
Senhor do sábado, com muito mais razão poderia limpá-lo das regras
extravagantes da Halaká.

A versão de Mateus tem detalhes adicionais dignos de nota.


Segundo o primeiro evangelista, a controvérsia ocorreu “por aquele tempo” (Mt
12:1), o que a relaciona com o parágrafo anterior, quando Jesus convida os
homens a acharem descanso nele (Mt 11:28-30), sendo Ele mesmo, portanto,
o descanso para o Seu povo.

Mas, não apenas isso, Mateus também inclui, além do argumento


colhido da vida de Davi (Mt 12:3, 4), uma referência à lei (Mt 12:5, 6) e uma
citação dos profetas (Mt 12:7; cf. Os 6:6). Quando fez alusão à lei, Jesus
lembrou aos oponentes que a Lei previu que determinadas pessoas (os
sacerdotes do templo) tinham autoridade para não observar o shabbath sem
ser culpáveis e, se assim o é, com muito mais razão poderia Aquele que é
maior que o templo desconsiderar o shabbath para cumprir Sua missão118.

117
Ibdem. p. 61
118
Noutro lugar, Carson escreveu, a propósito da passagem: “Assim, o argumento de Jesus fornece uma
circunstância da própria lei em que as restrições do sábado eram relegadas pelos sacerdotes por causa
de suas responsabilidades cultuais ter prioridade: o templo, por assim dizer, era maior que o sábado... A
lei aponta para ele [Jesus] e encontra seu cumprimento nele... Portanto, não só os fariseus tratam de
forma errônea a lei por meio de sua halaca (vv. 3, 4), mas também fracassam em perceber quem Jesus
é. A autoridade das leis do templo protege os sacerdotes da culpa; a autoridade de Jesus protege seus
discípulos da culpa...”. CARSON, D. A. O Comentário de Mateus. São Paulo: Shedd Publicações, 2010. p.
335
De mais a mais, a inocência dos discípulos, ao fim e ao cabo, não se
baseia na possibilidade de criarem-se exceções situacionistas que permitam o
escape da lei, mas no senhorio de Cristo sobre o shabbath.

1.2) Mt 12:9-14; Mc 3:1-6; Lc 6:6-11

Em outro shabbath, Jesus é maliciosamente observado por escribas


e fariseus, que desejavam averiguar como Ele trataria um homem que tinha
uma das mãos ressequida, se o curaria em dia de sábado. Como Jesus
conhecia os pensamentos dos homens, provoca uma situação para ensinar-
lhes o que é “lícito” ou, in casu, permitido fazer em dia de sábado, uma vez que
a Halaká incluía entre os trabalhos proibidos as curas, excetuando-se os casos
de morte iminente.

Em primeiro momento, Jesus trás o aleijado para o centro e dispara


perguntas dilacerantes: “É lícito nos sábados fazer o bem ou fazer o mal?
Salvar a vida ou tirá-la?” Carson observa, a propósito, que fazer o bem era a
atitude de Jesus para com o aleijado e fazer o mal, a dos escribas e fariseus
com relação a Ele, Cristo, em acusá-lO119. Nesse sentido, as perguntas do
Senhor podem ter tido o seguinte significado: “Eu não posso curar um homem
em dia de sábado, mas vocês podem acusar o Senhor do sábado? Eu não
posso dar vida em dia de sábado, mas vocês podem conspirar em dia de
sábado em como matarão o Senhor do sábado?”.

Após a afirmação de que é “lícito, nos sábados, fazer o bem”, e


diante do silêncio culpado dos acusadores, Jesus fica “indignado e condoído
com a dureza do seu coração” (Mc 2:5) e cura o homem da mão ressequida. É
realmente provável que “à luz da conversa precedente, o milagre também
confirma a afirmação de Jesus ser dono do sábado da mesma maneira que a
cura que realizou em [Mt] 9:1-8 confirmou sua autoridade para perdoar
pecados”120.

1.3) Mt 13:54-58; Mc 6:1-6; Lc 4:16-30

O Senhor estava em “sua terra”, Nazaré, quando aproveitou a


oportunidade para ensinar no culto da sinagoga local. Segundo Marcos e
Lucas, era sábado. Aqui, a oposição não foi levantada em face da realização
de algum milagre, mas, possivelmente, das afirmações de Jesus. Quem pode
nos oferecer mais detalhes sobre o conteúdo do ensino do Senhor nesse

119
CARSON, D. A. Do Shabbath para o Dia do Senhor. São Paulo: Cultura Cristã, 2006. p. 71
120
CARSON, D. A. O Comentário de Mateus. São Paulo: Shedd Publicações, 2010. P. 338
shabbath é Lucas, se é que esse evangelista trata em Lc 4:16-30 do mesmo
episódio dos demais sinópticos, o que é provável.

Segundo a narrativa do terceiro evangelista, no momento da leitura,


o Senhor ficou de pé e leu Is 61:1, 2. Em Isaías, as palavras dizem respeito ao
Servo de Yahweh e a promessa de libertação para os cativos e o seu retorno a
Jerusalém, uma liberdade semelhante ao ano do jubileu. As palavras “ano” e
“libertação” são uma referência ao ano do jubileu, que também era chamado de
“ano de liberdade” (Ez 46:17). Assim, “Da mesma forma que o arauto, ao
soprar o chifre de carneiro, proclamava o ano de liberdade, assim também este
mensageiro anuncia um período de salvação que propicia liberdade para
prisioneiros e cativos”121. Jesus afirmou ser Ele mesmo o cumprimento dessas
palavras, da libertação prometida no ano do jubileu.

Mas, ao invés do povo abraçá-lO como o descanso e a libertação


prometidos por Deus, ficou enfurecido a ponto de quase cometer homicídio no
shabbath, porque tais palavras vinham de um conterrâneo conhecido, e, o que
pior, de um filho bastardo.

1.4) Lc 13:10-17

Em certo sentido, o chefe da sinagoga tinha razão quando ponderou


que o caso não era uma questão de urgência. Sequer a mulher pediu para ser
curada, nem há qualquer indicação de que ela conhecia o Senhor. Ele
simplesmente pronuncia sua cura, impondo-lhe as mãos, e ela imediatamente
se endireitou (vv. 12, 13).

A cura realizada por Jesus no shabbath suscitou a reprimenda do


chefe da sinagoga, dirigida ao povo, mas indiretamente à mulher (v. 14), no
sentido de que o sábado não era o dia para a realização de curas. Na verdade,
sua animosidade era contra Jesus, o autor da suposta desobediência à lei do
shabbath. Pelo menos foi isso que desejou que pensassem.

Mas Jesus denuncia a hipocrisia flagrante, que se evidencia na sua


incoerência no tocante ao sábado. Não eram capazes de, em dia de sábado,
desamarrar animais para que estes pudessem beber? 122 Como poderiam se
indignar porque “esta filha de Abraão” foi desamarrada das garras de Satanás,
que a reteve por prisioneira dezoito anos? Os opositores de Jesus, em

121
RIDDERBOS, J. Isaías: Introdução e Comentário. São Paulo: Vida Nova, 1995. p. 489
122
“Os rabinos estavam muito preocupados com o bom tratamento dos animais. No sábado, os animais
podiam ser levados para fora com uma corrente ou similar, posto que nada era carregado (Shabbath
5:1). A água podia ser tirada para eles e colocada numa gamela, embora o homem não devesse segurar
um balde para o animal beber dele (Erubin 20b, 21ª)”. MORRIS, Leon L. Lucas: Introdução e Comentário.
São Paulo: Mundo Cristão, 1990. pp. 210, 211
verdade, disfarçavam seu ódio contra Ele em suposto zelo pela lei. Eis porque
a denúncia de hipocrisia por parte do Senhor levou-os à vergonha.

De todo modo, a lição que sobressalta aos olhos é que as obras do


reino são apropriadas para todos os dias da semana, inclusive ao sábado. Se
afirmarmos que essas obras não são apropriadas ao sábado, é ruim; mas, se
dissermos que só são apropriadas ao sábado, é pior. Assim, são piores que os
fariseus aqueles que advogam que um só dia da semana é adequado para o
serviço de Deus. “Em outras palavras, não se está argumentando que o
Shabbath é um dia especial nesse sentido, mas, justamente, o contrário. A
manifestação do reino de Deus e a libertação dos cativos de Satanás não têm
dias determinados”123.

Mais uma vez, verifica-se que Jesus não viola o shabbath, mas
somente as regras da Halaká. Por outro lado, deixa antever que o real
significado do shabbath é a libertação da escravidão que somente Ele pode
realizar.

1.5) Lc 14:1-6

Jesus está na casa de um dos principais fariseus. É dia de sábado.


Os opositores de Jesus estavam presentes e Lhe observavam, a ver se O
apanhariam em alguma violação à lei para terem como Lhe acusar
formalmente.

Um homem hidrópico, não convidado, que O procurava, estava


diante dEle. Ou então fora introduzido ali pelos fariseus, para ver se Jesus o
curaria no sábado. Seja como for, a cena é adequada para a pergunta do
versículo 3: “É ou não é lícito curar no sábado?”.

Os críticos de Jesus permaneceram em silêncio, porque a pergunta


não lhes pareceu fácil. Por um lado, curar no sábado era prática proibida pelos
rabinos. Por outro, onde se encontra na Escritura a proibição de realizar curas
no sábado? A recusa em cuidar de doentes não seria muito mais o caso de
franca indiferença para com o sofrimento humano?

Na sequência, Jesus cura o doente e o despede e, em seguida,


retoma a argumentação com a pergunta do versículo 5, recheada de “exemplos
reais relacionados à prática de seus oponentes” 124, como entende Carson. Em
mais uma ocasião, Jesus se insurge contra os tratados rabínicos de modo
frontal.

123
B. TURNER, M. Max, in Do Shabbath para o Dia do Senhor. São Paulo: Cultura Cristã, 2006. p. 109
124
CARSON, D. A. Do Shabbath para o Dia do Senhor. São Paulo: Cultura Cristã, 2006. p. 74
1.6) Mt 24:20

Aportamos no sermão apocalíptico do Senhor Jesus. Ele divisa com


uma única predição duas ocorrências, a destruição de Jerusalém, do ano 70
d.C., e a derradeira e mais avassaladora perseguição contra os cristãos, ainda
por vir. Assim, os elementos são misturados em uma só mensagem com dupla
previsão.

Somente Mateus conservou a referência ao shabbath. Aqui, nosso


Senhor não está proibindo os judeus cristãos de fugirem em dia de sábado. Ao
contrário, está antevendo que fugirão, por isso devem orar para que a fuga
ocorra em outro dia, em face da influência das regras relacionadas ao shabbath
no comércio e mesma na prática de hospitalidade. Nesse sentido, Hendriksen
anotou:
Mas as muitas regras e regulamentações forjadas pelo homem, por
meio das quais os escribas e fariseus haviam criado a impressão de
que o homem fora deveras feito para o sábado, tinham resultado na
recusa por parte de muitos austeros observadores do auxílio
solicitado pelos necessitados. Portanto, o Senhor insta com seus
discípulos a orarem para que não tivessem de fugir no inverno nem
no sábado125.

Em resumo, eis o motivo da orientação do Senhor: fugir no shabbath


seria tão penoso quanto no inverno ou quanto fugir tendo que amamentar (Mt
24:19).

1.7) Jo 5:1-18

Um homem enfermo estava na “fila” do tanque de Betesda há trinta


e oito anos. Jesus toma a iniciativa e o cura em dia de sábado. Agora curado, o
homem vai embora sem sequer saber o nome de quem o curou e, quando
acusado de haver quebrado as regras do sábado (v. 10), culpa aquele
desconhecido que o havia beneficiado (v. 11). É notável que a cura em si e
nem quem a realizou não tenham causado qualquer impressão à mente dos
judeus, que só se detiveram na provável violação à Halaká.

Quando o Senhor reencontrou o homem curado, advertiu-lhe que


não pecasse mais para que coisa pior não lhe sucedesse (v. 14). Ao que
parece, pelo menos nesse caso, a enfermidade estava relacionada a algum
pecado específico, fato que relaciona a cura desse shabbath de forma mais
direta com a missão redentora do Cordeiro que tira o pecado do mundo (Jo
1:29).

125
HENDRIKSEN, William. Comentário do Novo Testamento: Mateus. Volume 2. São Paulo: Cultura
Cristã, 2001. p. 503
Quando questionado pelos judeus, Jesus responde que “Meu Pai
trabalha até agora, e eu trabalho também” (5:17). A resposta é estupenda. Os
judeus perceberam que tratava-se de uma afirmação no sentido de que Ele,
Cristo, era igual a Deus (v. 18), porque Ele havia dito que aquilo que Ele
realizava equivalia à obra de Deus. Em mais um relato, ouvimos tramas
homicídio no shabbath.

1.8) Jo 7:19-24

O texto não diz exatamente a que cura Jesus se refere, mas é


provável que ele tenha retomado “o fio da meada dos debates da sua última
visita a Jerusalém”126, narrados em Jo 5.

Aqui, nosso Senhor parte da premissa de que as regras rabínicas


bem compreendiam que quando o oitavo dia de nascimento de uma criança
caía em dia de sábado, a circuncisão deveria ocorrer assim mesmo. Portanto,
se a circuncisão não torna culpável aquele que a pratica no shabbath, muito
menos é culpado aquele que realiza uma cura e liberta um enfermo que a
aguardou por trinta e oito anos.

1.9) Jo 9:1-41

Eis o texto que narra a cura de um cego de nascença, realizada de


forma inédita. Nesse caso, Jesus faz lodo com saliva, unta os olhos do cego e
o manda lavá-los no tanque de Siloé. Tudo isso ocorre em dia de sábado.

Fácil observar que o shabbath não foi violado em absolutamente


nada. Mas, por outro lado, diversas regras da Halaká foram transgredidas,
como pontuou Carson: “Misturar é um ato proibido (Shab. 24.3), e amassar pão
(ou massagear) é uma das trinta e nove categorias de trabalhos proibidos
(Shab. 7.2). Passar o lodo nos olhos do cego pode muito bem ser encaixado na
categoria de unções proibidas (Shab. 14.4)”127.

Mais uma vez fica claro que os argumentos usados pelos fariseus
contra Jesus nada mais eram do que a expressão de sua inimizade para com o
Messias (vs. 14, 16, 22, 24, 29). Essa obra realizada no shabbath outra vez
está intimamente relacionada com a missão salvadora do Filho de Deus (vs.
35-39).

Finalmente, a que conclusões podemos chegar?

126
BRUCE, F. F. João: Introdução e Comentário. São Paulo: Mundo Cristão, 1987. p. 156
127
CARSON, D. A. Do Shabbath para o Dia do Senhor. São Paulo: Cultura Cristã, 2006. p. 85
Primeiro, que Jesus não transgrediu nenhuma regra da Torá com
relação ao shabbath. O que fica evidente é que as adições rabínicas
cristalizadas nos tratados da Halaká foram constante e incisivamente
confrontadas, mas não o shabbath conforme estabelecido na Escritura.

Segundo, até aqui, não é possível concluir pela permanência da


observância do shabbath como obrigatória aos cristãos, sob pena de que nas
mesmas bases permaneçam as obrigações relacionadas ao sacerdócio
levítico, aos sacrifícios no templo e à circuncisão. Não custa lembrar que Jesus
“nasceu sob a lei” (Gl 4:4). Por outro lado, também não se pode deduzir, pelo
até aqui exposto, qualquer indício de ab-rogação do sábado, mas tão somente
que o dono do sábado pode fazê-lo, caso deseje.

Terceiro, é perceptível que o ensino do Senhor Jesus sobre o


shabbath mantém incólumes os propósitos humanitários temporários e os
teológicos, tais quais encontrados no Antigo Testamento. Por um lado, as curas
e libertações eram altamente adequadas aos fins humanísticos pretendidos nos
sábados semanais e anuais. Por outro, a missão messiânica é claramente
retratada em correlação com o shabbath, em termos de tipo e antítipo. É Cristo,
em Sua obra redentora, o descanso e a libertação prefigurados no shabbath e
no jubileu.

Finalmente, por ora, é possível afirmar com Carson que “Não há


qualquer indício no ministério de Jesus de que o primeiro dia da semana deve
assumir o caráter do Shabbath e tomar o seu lugar”128. É dizer, até aqui nada
se diz ou se prevê sobre uma transferência do sétimo para o primeiro dia da
semana.

2. O sábado em Atos.

2.1) O apego ao judaísmo.

Ao menos nos primórdios, a igreja cristã manteve-se numa posição


ambígua em relação à lei cerimonial judaica. Algo novo e esplêndido havia
ocorrido e, de fato, uma nova era havia raiado. Os cristãos estão cheios do
Espírito e sentem prazer contagiante em viver a fé cristã “diariamente” (At
2:46).

Ao mesmo tempo, não lhes ocorreu, de imediato, as implicações da


morte sacrificial de Jesus e como ela implicava em rompimento com a antiga
ordem, salvo talvez o que seja a exceção honrosa de Estêvão (At 7:48-50). Os
cristãos, em geral, além das reuniões nos lares uns dos outros, onde faziam
refeições comunais e o “partir do pão”, mantinham-se apegados ao templo (At
2:46; 3:1).

128
Ibdem. p. 88
Digno de nota, semelhantemente, é a atitude deveras conservadora
do apóstolo Pedro em relação a aspectos cerimoniais da lei, como
demonstrado no episódio que narrou como ele foi preparado por Deus para o
encontro com Cornélio (At 10:9-16). Pedro subiu ao eirado para o momento de
oração, com fome, momento em que lhe sobreveio um êxtase (vv. 9, 10) e teve
uma visão (cf. 11:5).

A visão do apóstolo consistiu em ter ele visto descer do “céu aberto”


um grande lençol baixado pelas quatro pontas, contendo toda a sorte de
“quadrúpedes, répteis da terra e aves do céu”, três tipos conhecidos no Antigo
Testamento (vv. 11, 12; cf. Gn 6:20). Eram animais impuros e, portanto,
impróprios para comer (Lv 11). Ao mesmo tempo, uma voz vinda de alguém
que Pedro chamou de “Senhor” ordenou: “Levanta-te, Pedro! Mata e come” (v.
13). Apesar da fome, o apóstolo protesta de modo enfático aduzindo que
jamais havia comido coisa comum e imunda. A voz respondeu com uma ordem
a Pedro para que ele não considerasse imundo aquilo que Deus purificou (v.
15).

O propósito imediato da visão era, sem dúvida, convencer Pedro de


que a diferença estabelecida na lei mosaica quanto à distinção entre alimentos
puros e impuros fora eliminada, conforme ensino já sedimentado pelo Senhor
Jesus (Mc 7:19), cujas implicações seriam relevantes às discussões em Corinto
(I Co 8) e em Roma (Rm 14:14). Mas, além disso, a visão preparou Pedro para,
sem qualquer escrúpulo, sentar à mesa com Cornélio e comer o que lhe fosse
oferecido (cf. 11:12), prática contra a qual ele parece haver relutado por mais
tempo, como demonstra o embate com Paulo em Antioquia (Gl 2:11-14).

2.2) “Sábado” em Atos e a assembleia de Jerusalém.

No livro de Atos, há dez referências ao “sábado” (1:12; 13:14, 27, 42,


44; 15:21; 16:13; 17:2; 18:4). A partir de At 1:12, não se pode deduzir nada
sobre a prática da observância do sábado pelos apóstolos. A “jornada de um
sábado” é expressão judaica correspondente a 1,2 km, e nada diz sobre se o
evento ascensão ocorreu em dia de sábado.

Das menções seguintes, At 15:21 é a única ocorrência não


relacionada com o ministério paulino. O versículo é parte do discurso inflamado
de Tiago (At 15:13-21) na assembleia de Jerusalém. A conclusão de Tiago,
sobretudo em face do episódio que envolveu Pedro na casa de Cornélio (v. 14),
parece ter sido bem captada nessas palavras de I. Howard Marshall:
A lição parece ser que Deus está fazendo algo novo em levantar a
igreja; é um evento dos últimos dias, e, portanto, já não se aplicam as
regras antigas da religião judaica: Deus está fazendo das nações um
povo Seu, e nada há no texto para sugerir que devem tornar-se
judeus a fim de tornar-se o povo de Deus. Logo, não há condições de
“entrada” a serem impostas sobre eles...129

Há, entretanto, uma recomendação a ser feita no sentido de que


quatro coisas especialmente aviltantes para os judeus fossem evitadas -
“contaminações dos ídolos”, “relações sexuais ilícitas”, “carne de animais
sufocados” e “sangue”130 (v. 20) -, pela seguinte razão: “Porque Moisés tem,
em cada cidade, desde tempos antigos, os que o pregam nas sinagogas, onde
é lido todos os sábados” (v. 21).

O texto parece sugerir que as recomendações pretendem manter


intactas as relações entre os cristãos gentios e judeus, num momento em que a
igreja ainda está estreitamente relacionada com a sinagoga, onde se lê Moisés
todos os sábados. A presença de cristãos nas sinagogas para o culto nos
sábados, nesse estágio do cristianismo, não parece estar fora de cogitação,
sobretudo quando analisada a lentidão da igreja em apreender a novidade
ensinada no Novo Testamento.

2.3) “Sábado” no ministério paulino, segundo Atos.

As demais referências a “sábado” em Atos estão no contexto do


ministério paulino (13:14, 27, 42, 44; 16:13; 17:2; 18:4). À exceção de At 13:27,
onde Paulo afirma em seu discurso na sinagoga de Antioquia da Pisídia que os
profetas são lidos todos os sábados, as ocorrências referem-se à presença do
apóstolo nas sinagogas dos judeus, aos sábados, onde e quando encontrava
oportunidade de pregar.

Lemos sobre esse ministério nas sinagogas em Antioquia da Pisídia


(At 13:14, 42, 44), em Tessalônica (At 17:2) e em Corinto (At 18:4). Em Filipos
(At 16:13), se nos diz que os missionários acharam na periferia da cidade um
“um lugar de oração” (proseuche é literalmente “oração”, às vezes usado como
sinônimo de “sinagoga”), onde encontraram um grupo de mulheres em um culto
informal.

Com efeito, nada há nesses relatos que justifiquem as afirmações


adventistas do sétimo dia. Mas, por outro lado, o que está em jogo aqui não é
somente uma oportunidade missionária. Talvez a observação de Augustus
Nicodemus nos seja útil nesse ponto, quando escreveu a propósito de Tg 2:2,
onde o local do culto cristão é chamado “sinagoga”. Se não, vejamos:
129
MARSHALL, I. Howard. Atos: Introdução e Comentário. São Paulo: Mundo Cristão, 1982. p. 240
130
“As contaminações dos ídolos” são a carne de animais sacrificados a ídolos, que era posteriormente
comercializada nos açougues; “relações sexuais ilícitas” são os casamentos entre parentes próximos (Lv
16:6-18); “carne de animais sufocados” refere-se ao método de abate pelo qual o sague permanecia na
carne; a quarta abstinência recomendada foi quanto ao próprio sangue. Temos aqui exatamente as
proibições impostas pela lei mosaica aos gentios que viviam em Israel (Lv 17:8-18:26). Portanto, Tiago
não está impondo regras para que os gentios adentrem à igreja cristã, mas estabelecendo-lhes normas
que permitiriam boa convivência com os cristãos judeus.
Lembremos que os primeiros cristãos foram judeus e que, em
Jerusalém e provavelmente em outras localidades da Dispersão,
mantiveram vários costumes judaicos, como circuncidar os filhos (cf.
At 15:1; 16:3; 21:21), ir ao templo (At 2:46; 3:1; 21:26), fazer votos (At
18:18; 21:23), guardar o calendário religioso (A 20:16) e a dieta
judaica (At 10:14)... Assim, não era totalmente estranho que Tiago
chamasse o local de reunião deles de “sinagoga”131.

2.4) O “primeiro dia da semana”.

Lucas não registra casos de conflitos entre a igreja e os judeus em


torno do shabbath, fato coerente com o que já temos observado quanto à
acomodação dos cristãos com as instituições judaicas, nos primórdios do
cristianismo. Por outro lado, At 2:46, como já pontuamos, nos revela a
existência de encontros cristãos diários, o que não significa que todos estavam
juntos todos os dias, mas que havia reuniões todos os dias.

Entretanto, a passagem de Paulo por Trôade (At 20:7-12) faz


referência ao encontro para o culto que ocorreu “no primeiro dia da semana” (v.
7), ao final de uma estada de uma semana (At 20:6). As seguintes observações
são relevantes ao nosso estudo:

Primeiro, a reunião em comento parece ter ocorrido no domingo à


noite. Com efeito, para sabermos se Lucas tem em mente um encontro no
sábado à noite ou no domingo à noite, depende de concluirmos sobre sua
forma de contagem. Se ele usou o método judaico, o culto narrado ocorreu no
sábado à noite, uma vez que para os judeus o novo dia tem início a partir do
por do sol. Mas, Lucas pode ter usado o método romano, em que o novo dia se
inicia na aurora, o que nos faria concluir que o culto em Trôade ocorreu no
domingo à noite. In casu, parece que Lucas está mesclando o calendário
judaico, em que o primeiro dia da semana é o domingo (cf. Jo 20:19), com o
cálculo romano do dia, contando as horas do dia a partir da manhã (At 3:1).
Portanto, a reunião em Trôade teria ocorrido no domingo à noite e Paulo teria
seguido viagem na manhã da segunda-feira.

Segundo, tratava-se a reunião do culto da igreja de Trôade, onde se


celebrava a Santa Ceia e se ouvia a exposição da Escritura. O “partir do pão” é
o termo empregado por Lucas para a Ceia do Senhor, que em geral ocorria em
meio a uma refeição comunal da igreja (cf. At 2:42; I Co 10:16; 11:17-34). Justo
L. González esclarece que “Isso também era habitual na adoração antiga em
que, primeiro, havia uma exposição da Escritura um tanto extensa e, depois, a
própria comunhão: o culto da palavra e o culto da mesa” 132.

131
LOPES, Augustus Nicodemus. Interpretando o Novo Testamento: Tiago. São Paulo: Cultura Cristã,
2006. p. 62
132
GOZÁLEZ, Justo L. Atos: O Evangelho do Espírito Santo. São Paulo: Hagnos, 2011. p. 280
Terceiro, que era uma reunião regular da igreja, e não um encontro
oportuno em face da presença do apóstolo Paulo, o texto deixa evidente:
“estando nós reunidos com o fim de partir o pão”. O infinitivo do verbo “klao”
(“klasia”: quebrar, partir) é usado para expressar o propósito da reunião, o que
aponta ao que pode ter sido o costume dos cristãos na região de Éfeso de se
encontrarem para a Ceia do Senhor no primeiro dia da semana.

Ante o exposto, podemos destacar as seguintes conclusões:

Em primeiro lugar, a presença de Paulo e de cristãos nas sinagogas,


em dia de shabbath, não implica em mais que apontar ao fato de que todos os
judeus e os primeiros cristãos, dentre judeus e prosélitos, se encontravam
nesses lugares aos sábados. E nada mais. É dizer, não é possível concluir daí
que os apóstolos estivessem ratificando para os cristãos a guarda do shabbath
no sétimo dia, senão que - em parte pelo conservadorismo e em parte pelas
oportunidades missionárias - os cristãos mantiveram-se apegados à sinagoga
nos primórdios do cristianismo.

Em segundo lugar, não é possível encontrar em Atos uma teologia


de transferência da observância do quarto mandamento do sétimo para o
primeiro dia da semana, o que teria causado certamente um conflito
simplesmente inexistente em toda a narrativa de Lucas, sobretudo nos debates
com os judaizantes que desembocaram na assembleia de Jerusalém.

Em terceiro lugar, Atos 20:7-12 é especialmente importante para


informar os primórdios do culto cristão congregacional aos domingos. Parecem
razoáveis as palavras de M. Max B. Turner, quando conclui:
O autor do livro de Atos não nos diz, em momento algum, que era Dia
do Senhor e, muito menos, um dia de descanso. Lucas e refere ao
dia em questão apenas como “primeiro dia da semana”. A partir
disso, podemos inferir duas coisas: (1) esse dia ainda não era
chamado de Dia do Senhor (de outro modo, ele teria usado esse
título que, posteriormente, se tornou tão comum). (2) Tendo em vista
que, de um modo geral, se usava na época uma semana planetária, o
fato de um autor gentio falar de uma igreja gentia que observava o
ciclo semanal judaico (independente do shabbath, propriamente dito)
deve ser considerado totalmente intencional. Talvez o melhor seja
entender que se trata de um eco das tradições da ressurreição, que
se referem repetidamente a esse dia (Mt 28:1; Mc 16:2, 9; Lc 24:1; Jo
20:1, 19). Se esse é o caso, o caminho que levou àquilo que
posteriormente passou a ser chamado de “Dia do Senhor” 133 foi
relativamente simples134.

3. Epístolas paulinas: o sábado e o “primeiro dia da semana”.

3.1) Gálatas 4:8-11.

133
Cf. Ap 1:10; I Co 16:2
134
In CARSON, D. A. Do Shabbath para o Dia do Senhor. São Paulo: Cultura Cristã, 2006. p. 137
Os primórdios do evangelho entre os gálatas foram alvissareiros (Gl
3:3, 4). Mas, não tardou até Paulo receber notícias da entrada de alguns em
suas igrejas na Galácia que o perturbaram. O trabalho dos invasores é descrito
de modo assombrosamente negativo (Gl 1:7; 4:16, 17; 5:7-12; 6:12) e o efeito
desse labor, como letal (Gl 1:6; 3:3, 4; 4:9, 11, 21).

Os perturbadores da Galácia eram do tipo cristãos judaizantes e, ao


que tudo indica, sua controvérsia gerou tal discórdia que houve necessidade da
instalação da assembleia de Jerusalém (At 15:1, 2). Seu ensino não destoava
completamente do cristianismo. De fato, consideravam-se cristãos, mas não
podiam admitir a liberdade propagada por Paulo frente aos aspectos
cerimoniais da lei mosaica. Assim, embora não eliminassem inteiramente a
mensagem paulina, a consideravam incompleta e carecente de certas
exigências, sobretudo concernentes à circuncisão (Gl 2:3, 4; 5:2, 3; 6:12, 13), à
dieta judaica (Gl 2:11, 12) e à guarda do sábado (Gl 4:10).

Para Adolf Pohl, essas exigências não foram de modo algum


arbitrárias. Elas ocorreram numa época em que os judeus resolveram por uma
espécie de separação radical como prova de fidelidade e para não serem
absorvidos pelo paganismo. Pohl explica os motivos da seleção desses
aspectos em especial:

Passaram para o primeiro plano aqueles preceitos legais que


reforçavam essa tendência, que, portanto, se prestavam como
marcas de diferenciação por caírem na vista, e que sublinhavam a
separação confessional diante dos gentios. O sábado, celebrado
semana após semana, tornava impossível ignorar uma família judaica
num bairro gentílico. Além disso, as prescrições alimentares precisas
serviam para sufocar qualquer convívio mais estreito com gentios.
Sobretudo destacava-se a circuncisão...135

Paulo, tão logo ouviu acerca da infiltração judaizante em suas igrejas


da Galácia, escreveu àqueles cristãos para exortá-los à firmeza no evangelho,
a fim de que não se deixassem demover da liberdade que Cristo nos deu (Gl
5:1) para a escravidão aos antigos “rudimentos fracos e pobres” (Gl 4:9), o que
significaria a negação da graça de Deus (Gl 2:21). É nesse sentido que o texto
em comento deve ser compreendido, sobre o qual ressaltaremos as seguintes
proposições:

Em primeiro lugar, Paulo se dirige a uma audiência


proeminentemente gentílica. A gentios somente Paulo poderia dizer que seu
passado consistia em não conhecer a Deus e em servir a deuses que, em
verdade, não o são (v. 8; cf. I Ts 1:9; Ef 2:12). Em seu novo estado, passaram
da “religiosidade ateia”136, como quer Pohl, para o conhecer a Deus, que é
135
POHL, Adolf. Carta aos Gálatas: Comentário Esperança. Curitiba-PR: Editora Evangélica Esperança,
1997. p. 23
136
Ibdem. p. 150
resultado de ser conhecido por Ele (v. 9a). Isto é, em decorrência da eleição,
os gálatas passaram da ignorância de Deus para uma verdadeira vida de
comunhão relacional com Deus, experiência que em muito excede a simples
compilação de informações sobre Deus.

Em segundo lugar, Paulo não descreve a apostasia dos gálatas em


termos de retorno ao seu antigo paganismo, mas como adoção de leis
cerimoniais judaicas. “Os rudimentos fracos e pobres” (v. 9) não são, pelo
menos em Gálatas, espíritos, entidades intermediárias ou demiurgos. Os
gálatas estavam sendo assediados a se deixar escravizar à observância
religiosa de “dias, e meses, e tempos, e anos”, que, uma vez que se cumpriram
em Cristo, se permanecerem como imposições à consciência assemelham-se
ao antigo paganismo dos gentios da Galácia.

Em terceiro lugar, podemos concluir que Paulo fez equivaler à


guarda do sábado aos elementos cerimoniais da lei implicados no contexto da
Carta (circuncisão e a dieta), e desobrigou os cristãos gálatas de sua
observância. À primeira vista, Paulo julgou errado impor aos cristãos gentios a
observância do shabbath, considerando tal exigência um retorno à escravidão.
Essa parece ter sido a percepção de Calvino, ao comentar a propósito da
passagem o seguinte:

Que sorte de observância, então, Paulo reprovava? Era aquilo que


obrigaria a consciência em função da religião, como algo que era
indispensável ao culto divino e que, como ele mesmo diz em
Romanos 14.5,6, faria distinção entre um e outro dia.
Quando determinados dias são representados como sendo santos
em si mesmos, quando um dia é distinguido de outro em função da
religião, quando dias santos são considerados uma parte do culto
divino, então os dias são observados de forma incorreta. Os falsos
apóstolos advogam veementemente o sábado, luas novas e outras
festas, visto que eram observâncias da lei...137

Em quarto lugar, como destacaremos em seguida, a atitude de


Paulo com relação a regras judaicas é, como em Colossenses, muito mais
rigorosa do a que veremos em Romanos: “Receio de vós tenha eu trabalhado
em vão para convosco” (v. 11). A razão é que entre os Gálatas a controvérsia
era com os judaizantes, que ensinavam que a observância de “dias”, “meses”,
“tempos” e “anos” era necessária à justificação diante de Deus.

3.2) Romanos 14:5, 6.

A discussão em Rm 14:1 a 15:13 é assemelhada ao que podemos


encontrar em I Co 8 a 10. Em Roma, não havia judaizantes, como na Galácia,
que advogavam imposições a aspectos cerimoniais da lei que, levadas a sério,
eliminariam o próprio evangelho. Talvez assista razão a John Murray, quando

137
JOÃO CALVINO. Gálatas. São Paulo: Edições Paracletos, 1998. p. 128, 129
afirma que na capital do império a debilidade era mais genérica que a
observada em Corinto, mais diretamente relacionada à carne sacrificada a
ídolos. Murray arremata no sentido de que
Não é mister supor que todos os caracterizados como fracos na fé
eram vítimas de um mesmo tipo de fraqueza. Alguns que se
mostravam fracos em um aspecto talvez fossem fortes em um
aspecto diferente, que constituía a debilidade de outros. Esta
diversidade pode explicar a abordagem de Paulo. Esta passagem lida
com o assunto dos fracos e dos fortes, de um modo que aplica a cada
instância em que surgem escrúpulos religiosos vinculados a coisas
tais como exemplificadas neste capítulo138.

Entre os versículos 1 a 4, Paulo introduz o tema do debate entre os


“fortes” e os “fracos”. “Fortes” eram aqueles cuja consciência lhes permitia
comer todos os alimentos sem quaisquer escrúpulos religiosos (“Um crê que de
tudo pode comer” – v. 2a). “Fracos” eram os vegetarianos (“o débil come
legumes” – v. 2b).

Aos fortes, Paulo lhes exorta a “acolher” o débil, mas não com o
propósito de censurá-lo (v. 1). Tampouco devem os fortes desprezar os frágeis
(v. 3a). A atitude que o apóstolo deseja reprimir é a soberba dos fortes para
com os débeis, que leva aqueles a uma atitude de desprezo pela opinião
desses.

Por outro lado, os débeis não devem agir como juízes dos fortes (v.
3b), a ponto de julgá-los portadores de uma espiritualidade menor só porque
não compartilham de seus escrúpulos. Que os frágeis não podem agir como
juízes de seus irmãos, isso se deve a três razões: Primeiro, “porque Deus o
acolheu” (v. 3b). Assim, como podemos condenar quem Deus acolheu? Acaso
seríamos mais santos do que Deus? Ousaríamos reprovar quem Deus
aprovou?

Segundo, porque não se pode julgar o servo alheio. Com que direito
julgaríamos o servo de outro senhor? A expressão “Para o seu próprio senhor
está em pé ou cai” (v. 4a) talvez indique que cada servo deve ser julgado
conforme as regras do seu próprio senhor. É dizer, no tocante ao nosso
relacionamento com Cristo, a opinião dos demais servos pode ser importante,
mas só a dEle é fundamental.

Terceiro, os fortes não devem ser julgados por seus irmãos como
reprovados porque, de fato, eles permanecerão firmes em sua conduta pela
seguinte razão: “o Senhor é poderoso para o suster” (v. 4b). Os fortes, que
costumavam ser julgados pelos débeis pela liberdade que fruíam em Cristo, e
que normalmente eram acusados de haverem sido reprovados pelo Senhor

138
MURRAY, John. Romanos: Comentário Bíblico. São José dos Campos-SP: Fiel, 2012. p. 536
(ideia expressa no verbo “cair”), permaneceriam “de pé”, sim (firmeza de
conduta, frente à aprovação do Senhor), em face do poder de Cristo!

Nos versículos 5 e 6, Paulo interpõe outra fonte de discursão entre


os crentes “fortes” e “fracos”, qual seja, se certos dias possuíam ou não alguma
distinção religiosa especial. Para alguns, os preceitos referentes à guarda de
dias, como o quarto mandamento, eram dotados de validade permanente e
deveriam ser observados (“Um faz diferença entre dia e dia” – v. 5a).

Para outros, os dias santos da economia judaica haviam sido


revogados em Cristo juntamente com o aparato cerimonial levítico, razão pela
qual julgavam todos os dias iguais (“outro julga iguais todos os dias” – v. 5a). F.
F. Bruce esclarece que para esses não é que todos os dias sejam profanos,
antes, “talvez signifique que” quem assim pensa “trata todos os dias como
devendo igualmente ser dedicados ao serviço de Deus – e esta era certamente
a atitude de Paulo”139.

No caso de Roma, como não estava em jogo a mensagem do


evangelho, Paulo não age com o mesmo rigor empregado em Gálatas e
Colossenses e permite que, no tocante à dieta e à distinção de dias, haja
diversidade de convicções vinculadas à devoção de cada um a Cristo (v. 6).
Devemos observar com Murray que, à luz do nosso texto,

O indivíduo que julga iguais todos os dias, isto é, não considerando


que dias particulares se revestem de significação religiosa particular,
no julgamento do apóstolo, é reconhecidamente alguém que tem
pleno direito de entreter esta postura. Isto não poderá ser verdade, se
a distinção entre dias fosse um assunto vinculado à obrigação
divina140.

3.3) Colossenses 2:16, 17.

Por suas características todas particulares, os estudiosos têm


denominado de heresia colossense o conjunto de ensino com a qual a igreja de
Colossos foi posta à prova. Esse complexo ensino que assediou os crentes
colossenses consistia em um amálgama de doutrinas gnósticas e exigências
judaicas. Augustus Nicodemus resume a heresia colossense:
Seus defensores ensinavam que a salvação era alcançada mediante
um conhecimento secreto, que não fora revelado nem mesmo aos
apóstolos originais, do qual eles, os mestres gnósticos, eram
guardiães. Esse conhecimento tinha a ver com entes celestiais que
funcionavam como mediadores e requeriam adoração e culto para
mediar o caminho através do pleroma, a plenitude espacial entre
Deus e os homens. Além disso, alegavam que era preciso praticar a
Lei de Moisés, especialmente a circuncisão, a observância do

139
BRUCE, F. F. Romanos: Introdução e Comentário. São Paulo: Mundo Cristão, 1979. p. 198
140
Ibdem. p. 539
calendário judaico, da dieta levítica e abstinência de prazeres ainda
que lícitos, mediante rigor ascético141.

Para Hendriksen, “O propósito principal de colocar tal ênfase em


todas essas regulamentações era o de convencer os colossenses de que a
observância rígida era absolutamente indispensável à salvação, ou se não à
salvação como tal, pelo menos à plenitude, a perfeição na salvação” 142. Assim,
como o que está em jogo na igreja de Colossos é a supremacia de Cristo e a
suficiência do evangelho, Paulo volta a tratar com o rigor que o caso requer,
daí sua exortação pungente no tocante à dieta e ao calendário judaicos:
“Ninguém, pois, vos julgue por causa de comida e bebida, ou dia de festa, ou
lua nova, ou sábados”.

O apóstolo havia dito que Cristo removeu, encravando-o na cruz, o


escrito de dívida que constava de ordenanças e que era contra nós. A
crucificação é descrita em termos de uma procissão vitoriosa na qual o
conquistador desfila trazendo seus vencidos, os principados e potestades, os
expondo ao escárnio (Cl 2:14, 15). Assim, como pessoas ressuscitadas em
Cristo e perdoadas na Sua obra (Cl 2:11-13) se sujeitariam a juízos
condenatórios por não mais observarem a dieta e o calendário mosaicos?

A expressão “ninguém, pois, vos julgue” indica que Paulo não proibia
a observância do shabbath por aqueles que desejavam guardá-lo à maneira
judaica, mas também não transigia com uma atitude que fazia a sua
observância obrigatória aos cristãos, sob quaisquer pretextos.

O escritor inspirado acentua a incongruência dessa postura ao


assinalar que “tudo isso tem sido sombra das coisas que haviam de vir” (v. 17).
A sombra tinha o seu valor, qual seja, ela anunciava a vinda da substância e
perfilhava um contorno do que estava por vir. Chegada a substância, todavia,
quem permaneceria apegado à sombra?

Pela expressão “porém, o corpo é de Cristo”, Paulo deseja enfatizar


o que e essencial, que não é a sombra, mas o corpo que projetou a sombra. E
o verdadeiro corpo é de Cristo. É dizer, não faz sentido apegar-se ao sábado
quando Aquele que é o descanso do Seu povo já chegou.

3.4) I Co 16:2.

O texto em epígrafe é parte dos esforços paulinos de arrecadar


donativos entre os gentios para a igreja empobrecida da Judéia. Para alguns
estudiosos, a referência ao “primeiro dia da semana” apenas aponta, com base

141
LOPES, Augustus Nicodemus. A Supremacia e a Suficiência de Cristo: A Mensagem de Colossenses
para a Igreja de Hoje. São Paulo: Vida Nova, 2013. p. 7
142
HENDRIKSEN, William. Comentário do Novo Testamento: 1 e 2 Tessalonicenses, Colossenses e
Filemon. São Paulo: Cultura Cristã, 2007. p. 388
na conjectura de Deismann, que fosse o domingo o dia de pagamento. D. R. de
Lacey responde ao argumento aduzindo que
Apesar de nosso conhecimento sobre o sistema econômico da
Antiguidade ser limitado demais para nos permitir fazer afirmações
categóricas, sabemos que, pelo menos na Palestina, havia um
grande número de trabalhadores diaristas. Além disso, os registros
antigos de salários parecem citar sempre valores anuais ou mensais,
e não (tanto quanto eu sei) semanais143.

Muito mais razoável é entender a oferta em questão como parte do


culto regular da igreja, sobretudo quando podemos afirmar com razoável
certeza que o principal culto das igrejas primitivas pode ter ocorrido aos
domingos desde os tempos apostólicos.

Portanto, à luz dos textos analisados, podemos chegar às seguintes


conclusões:

Primeiro, Paulo associa a observância do shabbath aos aspectos


cerimoniais da lei levítica. Isso fica mais saliente em Gálatas e em
Colossenses, uma vez que preceitos da religião judaica são interpostos aos
cristãos como obrigatórios, como se parte do sistema de salvação fossem.

Segundo, nesses casos mencionados, a postura de Paulo é


implacável, no sentido de não permitir que heresias afetem a fé dos crentes no
puro evangelho de Jesus Cristo e na suficiência do Salvador. Nada pode ser
interposto como condição de salvação, além da fé que apega-se à completa e
suficiente obra de Jesus Cristo.

Terceiro, quando o debate não atinge o coração do evangelho,


Paulo aconselha que os cristãos respeitem as opiniões uns dos outros no
tocante à observância ou inobservância de certos dias. Por um lado, não há um
ataque frontal do apóstolo ao shabbath, nem tampouco uma teologia de
transferência para o primeiro dia da semana como o shabbath cristão. Por
outro lado, a postura de considerar iguais todos os dias, sem quaisquer
distinções, é por ele igualmente aceita como possível e defensável.

Quarto, embora não haja uma argumentação em favor do “primeiro


dia da semana”, I Co 16:2 pode, sim, indicar que a prática das igrejas desde os
primórdios tenha sido no sentido de realizar o seu principal culto aos domingos.
Dificilmente a referência no texto citado poderia ser meramente secular, sem
nenhuma relação com a prática litúrgica das igrejas da Ásia, Acaia e Galácia,
sobretudo quando lemos sua extensa exposição sobre esses donativos em II
Co 8 e 9.

143
D. R. de Lacey in CARSON, D. A. Do Shabbath para o Dia do Senhor. São Paulo: Cultura Cristã, 2006. p.
190
4. O sábado em Hebreus.

O propósito do escritor de Hebreus é claro. Ele pretende demonstrar


a superioridade da fé cristã sobre toda a antiga ordem do judaísmo. Jesus
Cristo é a última, a maior e a definitiva revelação de Deus; é superior aos
anjos, a Moisés e a Josué; Seu sacerdócio é superior à ordem levítica, sendo
Ele o mediador superior de uma aliança superior.

É da superioridade da fé cristã que o escritor extrai a gravidade da


apostasia. Retornar ao antigo judaísmo equivale ao absurdo de recrucificar o
Filho de Deus. Portanto, que os cristãos não se envergonhem do seu novo
altar. A epístola é dotada de importância, tanto por sua alta cristologia quanto
por nos apresentar a mais completa compreensão cristã do Antigo Testamento.

Para o fim de nossos estudos, nos concentraremos em Hb 3:7-4:13,


onde encontramos uma ampla discussão sobre o descanso como relacionado
ao sétimo dia da criação e ao termo “sabbatismos”. A passagem é autônoma,
como observa A. T. Lincoln, uma vez que o tema de Cristo como Sumo
Sacerdote, iniciado em 2:17, 18 e mencionado em 3:1, só retomado em 4:14 e
seguintes144.

Nos dois primeiros capítulos, o autor demonstrou que Jesus é


superior aos anjos. Em Hb 3:1-6, concentra-se em provar que Cristo é superior
a Moisés, momento em que os leitores são exortados a fixar seus pensamentos
em Jesus Cristo, e o fazer com diligência, porque Ele é “o Apóstolo e o Sumo
Sacerdote da nossa confissão” (v. 1). Jesus tem em comum com Moisés a
fidelidade (v. 2), mas é digno de maior honra que esse, pelas seguintes razões:
primeiro, por ser Jesus o arquiteto da casa que Moisés representa (vv. 3,4);
segundo, porque enquanto Moisés é servo “em toda a cada de Deus”, Cristo é
o Filho “em sua casa” (vv. 5,6). Portanto, estabelecida está a superioridade de
Cristo sobre Moisés.

Na sequência, aportamos em nosso texto, no qual o escritor


demonstra a superioridade de Cristo sobre Josué e, a partir da experiência dos
judeus no passado, exorta seus leitores à perseverança. A exortação é dada a
partir da citação do Sl 95:7-11, texto que relembra que aos israelenses que
estavam à porta da Terra Prometida foi-lhes negada a entrada por causa de
sua incredulidade.

O salmista adverte quanto ao perigo da incredulidade recordando o


juramento registrado em Nm 14:30: “não entrareis na terra a respeito da qual
jurei que vos faria habitar nela” (grifei). Percebe-se, entretanto, que ele utilizou
a palavra “meu descanso” (v. 11) no lugar de “terra”, o que nos faz concluir que
a “terra”, para o poeta, era uma figura de promessas superiores que ele pode

144
Ibdem. p. 212
referir no seu próprio tempo, embora Israel já estivesse na posse da Terra
Prometida.

O escritor aos Hebreus capta a ideia do salmista com discernimento


ímpar. É somente porque a promessa não se referia somente à entrada na
terra (sombra de promessas maiores), que o salmista pode utilizar a palavra
“Hoje”, que permanece igualmente relevante aos cristãos, tanto quanto a
promessa do “descanso de Deus” (4:1), atual.

Em 4:3, temos a assombrosa afirmação de que “Nós, porém, que


cremos, entramos no descanso”, a partir da qual teceremos as seguintes
considerações:

Em primeiro lugar, diz-se-nos que “entramos no descanso”, no


presente, e não que “entraremos no descanso”, no futuro. Com isso,
desejamos pontuar que embora o descanso de Deus não nos seja no presente
estado experimentado em sua plenitude, ele já é uma realidade na realidade
atual cristã.

Em segundo lugar, o escritor nos diz que a incredulidade é a causa


da não fruição do descanso de Deus, no qual entramos somente pela fé: “Nós,
porém, que cremos...”. Relevantes as palavras de D. D. Turner nesse ponto:
O verdadeiro descanso de Deus é aquele que se experimenta através
da fé. Não se limita à experiência depois da morte. É algo que todos
podem desfrutar nesta vida. A essência da fé é o repouso sobre
aquilo que outra Pessoa já fez e o fará a nosso favor. A fé repousa na
suficiência de Cristo, que fez tudo o que era necessário para
propiciar-nos a salvação145.

Em terceiro lugar, o descanso de Deus é definido a partir de Gn 2:2,


que o escritor cita em 4:4. Deus descansou da obra da criação no final do sexto
dia. Para os seis dias da criação, lemos que “houve tarde e manhã”, expressão
ausente na descrição do sétimo, o que fez o autor de Hebreus compreender
que o descanso de Deus é um estado, uma condição especial de existência,
não um dia de 24 horas.

Ademais, dois equívocos devem ser evitados quanto à compreensão


do “descanso de Deus”: o primeiro, que a expressão signifique inatividade
divina. Conforme nosso Senhor afirmou, “Meu Pai trabalha até agora, e eu
trabalho também” (Jo 5:17). Deus não estava cansado, a ponto de necessitar
de descanso, apenas cessou a obra da criação.

O segundo erro que desejamos dissipar é que o descanso referia-se


à Terra Prometida. É certo que Deus prometeu descanso ao Seu povo (Dt

145
TURNER, D. D. Exposição da Epístola aos Hebreus: A-XIII. São Paulo: Imprensa Batista Regular, 1987.
p. 43
12:10), promessa literalmente, embora não substancialmente, cumprida através
de Josué (Js 1:13, 15; 22:4). Como o salmista, o escritor de Hebreus sabe que
Josué não deu ao povo o descanso de Deus e que permanece aos cristãos do
primeiro século e a nós, hoje, uma promessa de entrada no verdadeiro
descanso (4:8; cf. Gn 2:2), agora descrita em termos de “sabbatismos” (4:9; cf.
Ex 20:1; 31:17), isto é, de “descanso sabático”.

Em quarto lugar, devemos admitir que o descanso de Deus e o


descanso sabático têm natureza espiritual, porquanto excede a segurança
gozada na Terra Prometida e sobrepuja a simples cessação semanal de
trabalho. Nas palavras de Simon Kistemaker, “O descanso que Deus desejou
para seu povo transcende o temporal e alcança o eterno... É um descanso do
pecado e do mal”146.

O descanso que permanece é que agora é descrito pela palavra


“sabbatismos” - que não ocorre em nenhum outro lugar -, enfatiza que o
shabbath era simbólico do verdadeiro descanso que o povo de Deus já goza (v.
9), embora se realize plenamente somente no futuro. Nesse sentido, Donald A.
Hagner ressalta que
“O repouso e, portanto, a cessação do trabalho é um princípio
escatológico; no entanto, é um descanso que devemos adentrar no
presente momento. O paralelismo interessante na Linguagem de
Apocalipse 14:13 (“descansarão dos seus trabalhos”) só é em parte
pertinente aqui”147.

O v. 10 traz a explicação do descanso sabático. Trata-se do


descanso de Deus, que Ele compartilha com o Seu povo, dando-Lhe a
experimentar da Sua realidade, por meio de Cristo. Segundo Héring,
“katapausis não deve invocar meramente a noção de repouso, como também
as de paz, alegria e concórdia” 148. No dizer de Calvino, aqui está “uma
definição do Sábado eterno, em que consiste a mais plena felicidade humana,
onde existe semelhança entre os homens e Deus e no qual se encontram
unidos com Ele”149.

5. O “Dia do Senhor”.

O apóstolo João, exilado na Ilha de Patmos, “por causa da Palavra


de Deus e do testemunho de Jesus” (Ap 1:9), recebeu revelações “no dia do
Senhor” (Ap 1:10). Para alguns, “dia do Senhor” é “O Dia do Senhor”

146
KISTEMAKER, Simon. Hebreus: Comentário do Novo Testamento. São Paulo: Cultura Cristã, 2013. p.
157
147
HAGNER, Donald A. Hebreus: Novo Comentário Bíblico Contemporâneo. São Paulo: Editora Vida,
1997. p. 92
148
GUTHRIE, Donald. Hebreus: Introdução e Comentário. São Paulo: Vida Nova, 2011. p. 109
149
CALVINO, João. Hebreus. São Bernardo dos Campos-SP: Edições Paracletos, 1997. p. 105
escatológico, como se João houvesse sido transportado em êxtase para
presenciar os acontecimentos finais da história humana 150151.

De fato, mais provável é que o primeiro dia da semana já esteja


conhecido em quase toda a cristandade, na última década do primeiro século,
como o “dia do Senhor”, o dia escolhido pela igreja para celebrar a ressurreição
de Jesus dentre os mortos. Fato é que o shabbath judaico, tal como celebrado
no sétimo dia da semana, jamais é chamado de “dia do Senhor”.

3. Conclusões.

Sentimo-nos mais aptos a, nesse passo de nossos estudos,


chegarmos a algumas conclusões, a partir dos textos analisados supra. Se
não, vejamos:

Em primeiro lugar, embora não concordemos que o primeiro dia da


semana fosse o único dia de culto da igreja primitiva, é quase certo afirmarmos
que era o dia regular e o mais importante na sua adoração. Lembramos que na
Ásia, ou pelo menos em Trôade, a igreja costumava “partir o pão” no primeiro
dia da semana (At 20:7). Pontuamos igualmente alhures que na Acaia, Galácia
(e talvez Macedônia, a concluir a partir de II Co 8:1-6), a dádiva cristã das
ofertas deveria ser exercida no primeiro dia da semana (I Co 16:2).

Assim, se a prática foi paulatinamente se estabelecendo nas igrejas


primitivas, não demorou até o “primeiro dia da semana” ser reconhecido como
o “dia do Senhor” (Ap 1:10), o único comum à toda a cristandade quando o
culto congregacional era praticado, em comemoração à ressurreição do
Senhor.

Em segundo lugar, não vislumbramos no Novo Testamento uma


correlação entre o shabbath e o dia do Senhor como um shabbath cristão. De
fato, ausente está qualquer teologia de transferência do sétimo para o primeiro
dia da semana, o que explica a completa ausência de conflito com os judeus a
respeito. Concluímos, em consequência, que as severas exigências

150
Nesse sentido, H. E. Alexander: “Ele ‘se achou em espírito’ significa que ele foi transportado para o
dia que os profetas do Antigo testamento, e o próprio Senhor Jesus, descreveram como sendo “O Dia o
Senhor”, o dia de Sua vingança que precede a Sua volta...”. ALEXANDER, H. E. Apocalipse. Bauru-SP:
Ação Bíblica do Brasil. p. 39
151
Para Hendriksen, ao revés: “O termo “o Dia do Senhor” é a tradução do hebraico “o Dia de Jeová” e
tem um sentido completamente diferente... Identificar esses dois termos para apoiar uma noção de que
João foi transportado no Espírito no dia da segunda vinda de Cristo é quase sem fundamento”.
HENDRIKSEN, William. Mais que Vencedores. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2001. p. 83
relacionadas ao mandamento do sábado não guardam relação com o “dia do
Senhor”, nem foram transferidas para esse os preceitos daquele 152.

Em terceiro lugar, Paulo era capaz de transigir com a observância do


shabbath, mas jamais permitir sua imposição aos cristãos como forma de
aceitação na igreja, o que explica a exatidão das palavras de Hans Ulrich
Heifler: “Com exceção do quarto mandamento, que se refere à observância do
sábado, encontramos todos os dez mandamentos em suas formas inibidora (ou
negativa) e positiva (ou construtiva) no Novo Testamento (grifei)”153.

Em quarto lugar, é certo que as epístolas do Novo Testamento não


trataram o quarto mandamento como parte da lei moral e natural e, por isso,
imutável de Deus. Antes, por todo o exposto supra, a lei do shabbath foi tratada
como parte daquilo que é considerado lei cerimonial, que, como tal, era sombra
de promessas superiores cumpridas em Cristo e, por essa mesma razão, não
obriga os cristãos, conforme anotado no ponto anterior.

A lei moral é eterna. Adão a cumpriu perfeitamente antes da Queda


e ela vincula o povo de Deus em ambos os testamentos. Mais que isso, pode-
se mesmo perceber com Michael Horton que ela está gravada na consciência
humana. Nas lições de Horton:
Essa lei é tão universal que cada tribo e cultura é ciente, de acordo
com Romanos 1 e 2, de que existe um Deus com atributos e
demandas particulares. Paulo deixa claro que não apenas a segunda
tábua da lei (concernente à nossa obrigação para com outras
pessoas), mas a primeira tábua também (concernente à nossa
obrigação para com Deus), está selada em cada pessoa da
criação154.

Entretanto, esse não é o caso do mandamento do sábado. Pode-se


afirmar com certa segurança que, inclusive, sequer uma “semana” de sete dias
é um princípio universalmente verificável.

Em quinto lugar, vale salientar outra vez que o shabbath apontava


para Cristo, em quem encontramos verdadeiramente a entrada no descanso de
Deus, uma vez identificados e unidos a Ele pela fé. Por outro prisma, o sábado
anunciava a salvação pela fé como descanso no trabalho de Outro, e não pelo
próprio trabalho, o que pode explicar o rigor com que Deus protegeu o quarto
mandamento de violação na antiga aliança.

152
“Se deveríamos continuar a observar o aspecto cerimonial do sábado”, pondera Horton, “por que
não deveríamos praticar os outros sábados exigidos: o sábado a cada sete anos para a terra e um Ano
Sabático a cada cinquenta anos, quando os prisioneiros seriam libertados e todos os débitos
cancelados?” HORTON, Michael. A Lei da Perfeita Liberdade: A Ética Bíblica a Partir dos Dez
Mandamentos. São Paulo: Cultura Cristã, 2000. p. 108
153
REIFLER, Hans Ulrich. A Ética dos dez Mandamentos. São Paulo: Edições Vida Nova, 1992. p. 47
154
Ibdem. pp. 106, 107
Finalmente, aos cristãos, não a guarda de um único dia na semana,
está ordenado que andem “como sábios, remindo o tempo, porque os dias são
maus” (Ef 5:15b, 16). Na vida cristã, o que é central é a mordomia do tempo, e
não a distinção religiosa de dias. “Remir” ou “redimir” (grego agorazo) é
comprar de novo. No caso, o que deve ser comprado mediante preço é o
tempo (kairos, o conjunto de oportunidades propiciadas por Deus). A
implicação é que sábios são aqueles que se assenhoreiam de tal modo do
tempo que o aproveitam ao máximo, sem perder uma única oportunidade. Para
Hendriksen,
a oportunidade referida consiste em mostrar por meio de suas vidas e
conduta o poder e a glória do evangelho, desmascarando assim o
mal, enriquecendo-se de boas obras, alcançando a segurança da
salvação para si mesmos, fortalecendo a comunhão, conquistando o
próximo para Cristo e glorificando a Deus através de todas essas
coisas. A oportunidade perdida jamais voltará155.

Eis um exemplo de homem sábio. Pouco antes de seu vigésimo


aniversário, em uma das suas famosas Resoluções, Jonathan Edwards
escreveu o seguinte: “Resolvido: nunca perder um momento de tempo, mas,
sim, tirar proveito dele da maneira mais proveitosa que eu puder” 156.

4. O Quarto Mandamento e os Reformadores.

Antes da Reforma, houve uma tendência ao sabatismo literal no


século VI, na Igreja Oriental e na Igreja Irlandesa, sendo que na Irlanda foi
inusitadamente ressaltado tanto o sábado quanto o domingo 157.

Dentre os reformadores, Lutero se opôs à doutrina sabatista na sua


“Carta contra os Sabatistas”. Em sua obra “Contra os Profetas Celestiais, das
Imagens e do Sacramento”, o reformador alemão asseverou:

... tudo quanto Moisés acrescentou à lei natural [inclusive o


concernente ao sábado] e que vá além dela, está livre, ab-rogado e
anulado, visto não estar na lei natural, havendo sido dado apenas ao
povo judeu em particular. O caso não é diverso do de um imperador
ou rei que estabelecesse leis e ordenações particulares em sua terra,
como o Código Saxônio na Saxônia, e nada obstante se estendem
por todas as terras e nelas vigoram as leis naturais comuns, tais
como honrar os pais, não cometer homicídio, não adulterar, servir a
Deus etc. Fique, pois, Moisés como o Código Saxônio dos judeus, e
não se onere com isso a nós gentios, assim como a França não

155
HENDRIKSEN, William. Efésios e Filipenses: Comentário do Novo Testamento. São Paulo: Cultura
Cristã, 2005. p. 283
156
R. W. STTOT, John. A Mensagem de Efésios. São Paulo: ABU, 1991. p. 151
157
Editor ELWELL, Walter A. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã. São Paulo: Vida Nova,
2009. p. 325
atenta ao Código Saxônio, ainda que concorde perfeitamente com a
Saxônia no que diz respeito à lei natural etc158.

E seu Catecismo Maior, Lutero deixa clara sua convicção no sentido


de que o quarto mandamento é parte da lei cerimonial e dada aos judeus
especificamente, e que aos cristãos não foi imposta a distinção entre dias.
Ouçamos outra vez o reformador:
... este mandamento, em sua acepção grosseira, não tange a nós
cristãos. Trata-se de uma questão meramente exterior, como outros
preceitos do Antigo Testamento ligados a costumes, pessoas, tempos
e lugares específicos. Cristo libertou de todas essas vinculações...159

Por outro lado, Lutero compreendia que a natureza ensina a


necessidade de dias regulares de descanso “para o povo em geral” com o fim
de beneficiar os trabalhadores que labutaram a semana inteira e, por isso,
carecem de um dia de repouso para se recuperar. Ademais, o que é muito mais
importante, o dia de repouso prover tempo para o culto, momento em que “as
pessoas podem se reunir para ouvir e tratar da palavra de Deus, louvar a Deus,
cantar e orar”. Entretanto, para Lutero,

... isto não está vinculado a um tempo determinado, como entre os


judeus, de modo que tenha que ser este ou aquele dia, pois nenhum
dia, por si mesmo, é melhor que outro. Na verdade, [o culto] deveria
acontecer diariamente. Mas como o povo em geral não poderia
praticá-lo, é preciso escolher pelo menos um dia na semana para tal.
Como desde a Antiguidade se determinou o domingo para esse fim,
que assim permaneça, para que as coisas funcionem dentro de uma
ordem aceita por todos e ninguém gere desordem por inovação
desnecessária160.

Calvino não divergiu essencialmente de Lutero. Quanto ao sábado


como sobra de promessas superiores, o reformador de Genebra asseverou:
... Quanto ao mais, não há dúvida de que, com o advento do Cristo
Senhor, tenha-se abolido o que aqui era cerimonial. Ele mesmo é a
verdade, em cuja presença todas as figurações esvaecem; o corpo,
em cuja visão as sombras dispersam; Ele é, digo, o verdadeiro
complemento do sábado... Por isso escreve o apóstolo em outro lugar
que o sábado fosse uma sombra da realidade futura: „que o corpo se
firme no Cristo‟ [Cl 2, 16.17], isto é, sobre a sólida substância da
verdade, sobre a qual bem explicou naquela passagem: „ela não está
contida num único dia, mas em todo o curso de nossa vida, até que,
plenamente mortos para nós mesmos, fartemo-nos da vida de Deus‟.

158
Nota de rodapé “25”, do editor do Catecismo Maior de Lutero. LUTERO, Martim. Catecismo Maior.
São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 2012. p. 38
159
Ibdem. pp. 38, 39
160
Ibdem.
Portanto, deve estar afastada do cristão a observância supersticiosa
dos dias161.

Assim, para Calvino, quando os cristãos celebram seu principal culto


da semana no domingo, isso não se deve a uma adoção do quarto
mandamento nos moldes judaicos, em que se fazem distinções entre dias.
Leiamos o reformador:
Com efeito, não o celebramos [o domingo] como uma cerimônia
estritíssima da religião, na qual consideramos ser figurados os
mistérios espirituais, mas o tomamos como um remédio necessário
para manter a ordem na Igreja...162

5. O shabbath puritano.

O “semi-sabatismo” é doutrina segundo a qual o sabatismo deve ser


mantido pelos cristãos com o mesmo rigor que vigia na antiga aliança, com a
diferença que após a ressurreição de Cristo o dia em questão foi transferido do
sétimo para o primeiro da semana.

F. R. Harm anota que já nos séculos IV e V, teólogos da Igreja


Oriental estavam ensinando a virtual identidade entre o sábado judaico e o
domingo cristão, e acredita que a interpretação que Eusébio (c. 320) deu ao
Salmo 91 influenciou grandemente a transferência dos preceitos positivos e
negativos do sábado para o domingo163.

Albertus Magnus e Tomás de Aquino lançaram as bases teológicas


da transferência das estipulações sabáticas para o domingo, noções
absorvidas por diversos teólogos reformados. Mas, como Harm assevera, “O
semi-sabatismo chegou ao seu auge no puritanismo inglês, e posteriormente
chegou ao Novo Mundo com os primeiros colonizadores”164.

Embora, no século XVI, o domingo como o “dia do Senhor” se


estendesse para além dos arraiais puritanos, foram eles que forneceram a
base doutrinária da sua observância dentre os protestantes de fé reformada.
Em primeiro lugar, procederam com uma divisão do quarto mandamento no
sentido de lei cerimonial, por um lado, e, por outro, como lei moral e natural
permanente. A partir dessa distinção, propuseram que o aspecto cerimonial
fora cumprido em Cristo, mas que o aspecto moral permaneceu como regra
aos cristãos, que deveriam continuar observando um dia entre sete. No Novo

161
CALVINO, João. A Instituição da Religião Cristã. Tomo 1. Livros I e II. São Paulo: Editora UNESP, 2008.
p. 376
162
Ibdem. p. 377
163
Editor ELWELL, Walter A. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã. São Paulo: Vida Nova,
2009. p. 325
164
Ibdem
Testamento, o dia a ser observado é o domingo, um memorial à ressurreição
de Cristo e uma prefigura do descanso eterno dos crentes.

Para os puritanos, todo o trabalho ordinário deveria ser cessado,


tanto como antídoto contra o mundanismo como forma de cuidado beneficente
para com os empregados. Entretanto, o domingo não deveria ser um dia de
ociosidade. As recreações deveriam ser de todo banidas, mas os cristãos
deveriam se dedicar à assistência aos necessitados e, principalmente, ao culto.

Leland Ryken transcreveu o seguinte relato de Thomas Fuller para


demonstrar a popularidade da doutrina puritana do “dia do Senhor”:
É quase incrível o quanto essa doutrina foi cativante, em parte por
causa de sua própria pureza, e em parte pela eminente piedade
daquelas pessoas que a mantinham; de forma que o Dia do Senhor...
começou a ser guardado precisamente165.

A despeito da simpatia que nutrimos para com o puritanismo inglês


e, sobretudo, pelo seu calvinismo rigoroso, ousamos dissentir de sua doutrina
do “dia do Senhor” como o correspondente ao shabbath da antiga aliança,
pelas razões já desfiladas supra.

6. O sabatismo adventista.

Modernamente, o movimento que tem levantado de forma mais


extremada a bandeira do sabatismo rigoroso é a Igreja Adventista do Sétimo
Dia, cujas origens remontam a William Miller (1782–1849), um pregador
itinerante Batista leigo, e Ellen G. White (1827–1915), fundadora do movimento
e considerada por muitos de seus adeptos a profetisa.

William Miller previu que o mundo acabaria em 22 de março de


1843, ano em que Cristo retornaria. Não ocorrendo o propalado retorno de
Cristo, nova data foi marcada, desta vez para 22 de outubro de 1844. Como
Jesus outra vez não voltou, um pequeno grupo insistiu no sentido de que o que
ocorreu em 1844 foi a entrada de Cristo no Santo dos Santos do Santuário
Celestial, onde ele supostamente deu inicio ao “juízo investigativo”, doutrina
segundo o qual revela-se aos seres celestiais quem dentre os mortos será
digno de ter parte na primeira ressurreição, e quem, dentre os vivos, está
preparado para a trasladação ao reino eterno. Miller, ao final da vida, admitiu
seu erro.

Ellen G. White aprovou e ensinou essa doutrina, e sua influência foi


responsável em grande parte pela aceitação da doutrina por parte dos
Adventistas, que, em 1846, adotaram a doutrina dos Batistas do Sétimo Dia,
165
RYKEN, Leland. Santos no Mundo. São José dos Campos, SP: Fiel, 1992. p. 142
que ensinavam que todos os cristãos tinham de observar o sábado, sendo esse
o sétimo dia da semana.

Ellen White disse ter tido revelações em que Jesus lhe disse ter
descoberto a Arca do Concerto, dentro da qual estavam as tábuas da Lei. Na
visão, ela pode perceber que o quarto mandamento estava no centro, rodeado
por um halo luminoso. A visão é deveras notável, uma vez que já sabemos ser
o quarto mandamento o único não repetido no Novo Testamento. A Sra. White
afirmou ter tido revelações jamais concedidas aos apóstolos de Jesus Cristo,
cujas implicações foram um divisor de águas à cristandade.

A partir daí, a Ellen White passou a ensinar que “Santificar o Sábado


ao Senhor importa em salvação eterna” e que a guarda do sábado é o selo de
Deus no seu povo nos dias atuais. Como ela mesma escreveu: “Que é, pois, a
mudança do Sábado, senão o sinal da autoridade da igreja de Roma – „a
marca da besta‟?”. E, noutro lugar: “O selo da lei de Deus se encontra no
quarto mandamento... Os discípulos de Jesus são chamados a restabelecê-lo,
exaltando o sábado...”166.

Uma versão elaborada dessa doutrina, combinada com a doutrina do


“juízo investigativo”, se tornaram a marca característica dos Adventistas do
Sétimo Dia. Em 1850 James White (1821–1881) e Ellen G. White (1827–1915)
começaram a publicar a revista The Review & Herald, disseminando suas
doutrinas. Isso contribuiu para que muitos “Milleritas” (seguidores de William
Miller) se organizassem num corpo distinto que adotou o nome de Igreja
Adventista do Sétimo Dia, em 1860, incorporado formalmente em 1863 com
aproximadamente 3.500 membros em 125 congregações 167.

Com efeito, o único problema dos adeptos convictos do Adventismo


do Sétimo Dia não é o modo como lidam com o sábado168, mas, sobretudo, a
crença indubitável nos escritos de Ellen White, tidos por muitos engajados da
seita como portadores do mesmo nível de inspiração dos livros canônicos. Na
verdade, como Andrade pontuou, na Igreja Adventista um novo adepto só será
batizado se confessar sua crença na “profetisa”, respondendo afirmativamente

166
Citações extraídas de ANDRADE, Joaquim de. Controvérsias: Modismos e Heresias que Ameaçam a
Igreja Brasileira. Campina Grande, Pb: Visão Cristocêntrica Publicações, 2014. pp. 62, 63
167
Maiores informações sobre o Adventismo do Sétimo Dia podem ser colhidas em:
“http://estudosapologeticos.blogspot.com.br/2007/02/igreja-adventista-do-stimo-dia.html”.
168
O Pr. Joaquim de Andrade lista uma série de doutrinas estranhas ensinadas pela Sra. White e
acolhidas pelos fieis da seita, quais sejam: “Juízo investigativo (a redenção incompleta de Cristo); o bode
emissário ou Azazel como tipo da obra de Satanás de remover nossos pecados; o aniquilamento dos
ímpios, o sono da alma; adoração a Deus no domingo como sinal da besta; proibição de vários
alimentos; a Igreja remanescente caracterizada pelo dom da profecia de Ellen G. White; a guarda do
sábado e natureza pecaminosa de Jesus etc”. Ibdem. p. 64
a seguinte pergunta: “Crê na crença bíblica de orientação profética e no
Espírito de Profecia manifestado por intermédio de Ellen G. White?” 169

Em uma revista adventista de fevereiro de 1984, Andrade encontrou


as seguintes confissões:

Cremos que: (...) Ellen White foi inspirada pelo Espírito Santo, e seus
escritos, o produto dessa inspiração, têm aplicação para os
adventistas do sétimo dia.
Negamos que: A qualidade ou grau de inspiração dos escritos de
Ellen White sejam diferentes dos encontrados nas Sagradas
Escrituras170.

Finalmente, ante o exposto, negamos que a Igreja Adventista do


Sétimo Dia seja um movimento genuinamente cristão evangélico e que suas
igrejas locais sejam verdadeiras igrejas de Jesus Cristo. Admitimos, entretanto,
que o movimento não é homogêneo e as diversas divisões que tem sofrido
provam isso. Esse fato nos faz concluir que há cristãos salvos pela graça de
Deus entre os adeptos ferrenhos do adventismo, tanto quanto líderes e
congregações esparsas que, conquanto sejam parte oficial do movimento,
descartam seu ensino pernicioso como ofensivos à fé.

169
Ibdem. p. 58
170
Ibdem. p. 60
9. O Decálogo e os Sistemas Éticos

1. Definição de ética cristã.

A nossa palavra “ética” deriva do substantivo grego “ethos” (com


épsilon), que ocorre doze vezes no Novo Testamento, sendo três em Lucas (Lc
1:9; 2:42; 22:39), uma em João (Jo 19:40), sete em Atos (At 6:14; 15:1; 16:21;
21:21; 25:16; 26:3; 28:17) e uma em Hebreus (Hb 10:25). Em I Coríntios 15:33,
a palavra utilizada é “êthos” (com êta), cujo conteúdo semântico não difere
daquele vocábulo. Em ambos os casos, o significado básico é “costume”, “uso”,
“modo de vida”, que pode referir-se a costumes religiosos ou sociais até
hábitos pessoais, bons, indiferentes ou maus (como em Hb 10:25).

Em I Co 15:33, Paulo aduz que a igreja fracassará em seus bons


costumes se deixar-se contaminar pelos falatórios doutrinariamente
equivocados, citando o ditado da comédia “Thais” de Menandro, escrita no
século IV a.C. Segundo Morris, “O ponto visado pela citação feita por Paulo é
que, manter o tipo errado de companhia (isto é, a de homens que negam a
ressurreição) pode muito bem corromper os bons hábitos cristãos, e afastar os
homens da posição verdadeira”171.

A palavra (ethos ou êthos) passou a designar comumente o estudo


dos deveres morais do homem e do modo como deve cumpri-los. Existem
distinções entre “bem” ou “mau” e “certo” ou “errado”? Como podemos
distingui-los? Há uma resposta objetivamente válida para todos, em todos os
tempos e em todos os lugares? Se já foi possível encontrar uma resposta
aceita quase universalmente a essas perguntas, hoje já não é. Como afirma
George W. Forrel, a nossa geração não está mais segura “de que exista algo
assim como certo e errado, bom e mau. E esta completa incerteza acerca dos
valores morais está na raiz da terrível confusão de nossa época”172.

Quando é filosófica, a ética busca as respectivas respostas a partir


do que a razão natural pode fornecer. Quando teológica, o grupo comunitário
que compartilha os escritos que tem como sagrados tenta extrair daí sua ética.
Se a ética é cristã, pondera sobre a ética teológica cristã, concluindo sobre o
que é moralmente certo ou errado para os cristãos e a partir das Escrituras.
“Ética cristã”, portanto, “é o estudo sistemático e prático da vida moral do
homem determinado por seu valor e sua norma cristã, como revelado nas
sagradas Escrituras”173, concluiu Reifler.

171
MORRIS, Leon. I Coríntios: Introdução e Comentário. São Paulo: Mundo Cristão, 1989. p. 177
172
W. FORELL, George. Ética de Decisão. São Leopoldo, RS: Editora Sinodal, 1999. p. 11
173
REIFLER, Hans Ulrich. A Ética dos dez Mandamentos. São Paulo: Edições Vida Nova, 1992. p. 17
Antes, porém, de identificarmos as características da ética cristã, e,
consequentemente, o modo como devemos conceber o Decálogo, devemos
identificar os sistemas éticos e verificar em qual deles a ética cristã se
enquadra, o que faremos a seguir.

2. A necessidade da adoção de um sistema ético.

Devemos nos achegar a esse campo com o devido cuidado,


sabendo que a complexidade que permeia a vida comunitária da sociedade
pecadora nos introduz em severas perplexidades e contradições, pelo menos
aparentes. Assim, para concluirmos sobre qual sistema ético adotar, devemos
nos perguntar antes de tudo se há leis morais objetivas a serem observadas.
Em as havendo, se são dotadas de caráter absoluto ou simplesmente geral. Se
há regras absolutas, quais e quantas são. E, finalmente, em caso de conflitos
entre normas éticas absolutas, como solucioná-las? São todas dotadas da
mesma importância hierárquica ou há graduação entre elas? O cumprimento
de uma delas dispensa a observância da norma em conflito com a obedecida?
Ou permanecemos culpados pela obediência parcial? Ou na verdade não há
contradições verdadeiras, só aparentes?

A Escritura menciona alguns casos de destaque, no que pertine às


dificuldades indicadas acima. Em pelo menos duas ocasiões Abraão emendou
com uma “meia verdade” sobre a verdadeira natureza do seu relacionamento
com Sara (Gn 12:11-13; 20:2; cf. 20:12), exemplo seguido por Isaque, seu filho
(Gn 26:7). Em ambos os casos, a mentira foi interposta para salvaguardar a
própria vida. Estaria, pelo propósito visado, justificada?

Caso ainda mais polêmico pode ser encontrado no episódio das


parteiras Sifrá e Puá, visto que desobedeceram a ordem de Faraó e lhe
ocultaram o real motivo da desobediência (Ex 1:15-21). De fato, elas foram
recompensadas por Deus, mas por quê? Porque sua desobediência e mentira
não constituíram pecados? Se não, porque optaram por obedecer a
mandamento mais importante? Ou elas estavam desde o princípio obrigadas a
seguirem o caminho da desobediência e da mentira, com vistas à obediência
de mandamentos maiores?

Se se pode falar da mentira de Abraão como “meia verdade”, o


mesmo não pode ser dito acerca da mentira completa da meretriz Raabe (Js
2:1-7). Os enganos de Raabe esconderam os espias e induziram a erro os
informantes do rei. Entretanto, ela recebeu a honra de entrar na genealogia do
Senhor Jesus (Rt 4:21; Mt 1:5) e foi duas vezes recomendada no Novo
Testamento, por sua fé (Hb 11:31) e por suas “obras” (Tg 2:25).
O que dizer em todas essas situações? A mentira é sempre e em
todos os casos errada (cf. Ef 4:25)? Ou é apenas geralmente errada? Se for o
caso da mentira ser sempre e em todos os casos errada, quem mente para
resguardar bens mais importantes, como a vida, estaria, por esse fato,
desobrigado de falar a verdade? Ou teria ainda assim pecado contra Deus?

3. Sistemas éticos não cristãos.

Todas as questões sugeridas supra apresentam respostas diversas,


a depender do sistema ético adotado, conforme passaremos a estudar. Nesse
passo de nossos estudos, analisaremos os sistemas éticos que não se
coadunam com a ética cristã.

3.1) O antinomismo ou antinomianismo.

O antinomismo significa ser “contra a lei”. É a ética “antilei”. Seus


adeptos afirmam que não há leis morais objetivas - nem naturais nem dadas
por Deus, nem universais nem gerais - a serem observadas. Tudo é relativo e
está entregue à responsabilidade pessoal, de cada indivíduo. Não é que, para
os antinomianos, não deva haver regras familiares ou leis civis e penais
disciplinadoras da vida em sociedade, mas que essas leis não emanam nem de
alguma lei divina nem da lei natural. Tudo é relativo a um contexto cultural,
condicionado pelo tempo e espaço e, portanto, mutável.

O antinomismo nega radicalmente a possibilidade de conflitos entre


normas éticas, pelo simples fato de negá-las. Perguntar se Sifrá e Puá se elas
deveriam ter mentido a faraó ou salvado os infantes israelitas não faz qualquer
sentido, porque o antinomismo é subjetivo e individualista. É dizer, todos têm
liberdade e cada um faz o que acha que é certo e cada um está certo em
seguir o curso de ação que escolheu. Isso porque, na essência, não há certo e
errado. O antinomismo é uma forma declarada de relativismo.

A doutrina paulina da justificação pela fé somente foi,


equivocadamente, acusada de antinomiana (cf. Rm 6:1, 15), denúncia contra a
qual o apóstolo se insurgiu incontinenti (Rm 6:2-14, 16-23). De modo
semelhante, quando a justificação pela fé foi defendida no século XVI, teólogos
católicos romanos temeram que gerasse iniquidade em abundância. Em
resposta,

O movimento luterano foi rápido em ressaltar que, embora a


justificação seja somente pela fé, ela acontece por um tipo de fé que
não está sozinha. A menos que a santificação do crente seja
evidenciada pela verdadeira conformidade com os mandamentos de
Cristo, é certo que nenhuma justificação autêntica aconteceu
realmente nele174.

174
SPROUL, R. C. Como Devo Viver Neste Mundo? São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2012. p. 52
Outro tipo de antinomianismo foi denominado por R. C. Sproul de
“espiritualismo gnóstico”. Oriundo dos primeiros séculos da era cristã, o
movimento gnóstico asseverava possuir um tipo de conhecimento que dava
aos seus “iluminados” o direito de rejeitar a Palavra de Deus escrita, inclusive a
ensinada pelos apóstolos. Sproul adverte que embora formalmente
ultrapassado, o ensino gnóstico persiste na igreja de hoje de variadas
maneiras. A partir de sua larga experiência pastoral, ele pode afirmar:
Os cristãos evangélicos caem frequentemente na armadilha de
afirmar que o Espírito de Deus os leva a fazer coisas que são
notoriamente contrárias à palavra de Deus escrita. Já estive com
cristãos que me procuraram e relataram padrões de comportamento
que violam os mandamentos de Cristo, mas depois, eles diziam: „Eu
oro sobre este assunto e me sinto em paz a respeito dele‟. Alguns
têm cometido afronta contra o Espírito da verdade e santidade por,
não somente procurarem justificar suas transgressões por apelarem a
algum sentimento místico de paz, dado supostamente pelo Espírito
Santo, mas também por lançarem sobre o Espírito Santo a culpa pelo
impulso de seu pecado175.

Sproul afirmou que isso se aproxima perigosamente da blasfêmia


contra o Espírito e que certamente está no âmbito do pecado de entristecer o
Espírito, para concluir que “O Espírito de Deus concorda com a Palavra de
Deus. O Espírito de Deus não é antinomiano” 176.

Se se pode afirmar com Sproul que o Espírito Santo não é


antinomiano, pode-se asseverar igualmente que a ética antinomiana não é
cristã. Nela, conforme observou Norman L. Geisler, “Cada um é seu próprio
árbitro, uma vez que não existem leis morais objetivas que sejam válidas para
todas as pessoas. Cada indivíduo é sua própria autoridade porque não existe
nenhuma autoridade moral externa” 177.

De fato, a primeira proposta antinomiana surgiu ainda no Édem (Gn


3:5) e a Queda foi, na prática, uma opção pela independência epistemológica
(Gn 2:16, 17; 3:5), um desejo de dizer o que é certo e errado sem nenhuma
referência à vontade de Deus.

3.2) O generalismo.

A ética classificada como generalista, ao contrário do


antinomianismo, não nega a existência de regras morais, mas insistem que
elas são tão somente gerais e não universais e absolutas. Nesse sentido,
acredita-se na regra geral de que “mentir é errado”, mas entende-se que em

175
Ibdem.
176
Ibdem.
177
L. GEISLER, Norman. Ética Cristã: Opções e Questões Contemporâneas. São Paulo: Vida Nova, 2010.
p. 37
algumas circunstâncias ela pode ser quebrada, sobretudo se considerar-se os
benéficos resultados obtidos com a mentira.

Por isso, Geisler enquadra os denominados utilitaristas na ética


generalista. Para os utilitaristas, como Jeremy Bentham (1748-1832) e John
Stuart Mill (1806-1873), as pessoas devem agir visando o maior bem para a
maior quantidade de pessoas pelo maior tempo possível. Embora haja
diferença entre Bentham e Stuart Mill, mormente no tocante à qualificação do
prazer a ser obtido, para ambos a regra geral aceita poderá ser quebrada a
depender da quantidade de bem promovido pela suposta boa mentira.

Se os generalistas utilitaristas forem arguidos sobre porque mantêm


a necessidade de regras éticas gerais, uma vez que tudo depende do fim da
decisão ética, eles responderão que embora o cálculo utilitarista - segundo o
qual se determina quanto prazer será promovido e quanta dor evitada - deve
decidir o curso de ação a seguido, não é producente que um processo assim
seja seguido antes de cada decisão, o que justifica a sabedoria das regras
gerais.

Vê-se que, por essa perspectiva, “não mentir” e “falar a verdade” não
são normas absolutas, exigidas de todas as pessoas em todo o tempo e
circunstâncias. Na verdade, para a maioria dos generalistas, não existem
regras universais, no sentido de que escapem à excepcionalidade. Geralmente,
mentir é errado, pelo menos é isso que se pode deduzir das experiências
acumuladas pela humanidade. Mas, há situações em que a atitude correta a
seguir é a mentira, se ela for mais útil para ajudar mais a maioria das pessoas.
Assim, Sifrá, Puá e Raabe realizaram a atitude correta em mentir, visando aos
respectivos propósitos nobres.

A toda evidência, a ética generalista não é cristã, porque trata-se


apenas de uma espécie de antinomianismo. A uma, porque nega a existência
de regras universais e absolutas, que emanam de Deus e devam ser
observadas por todos em todos os lugares. A duas, porque como em toda a
forma de utilitarismo, os fins justificam os meios e os atos-meios são vistos
como destituídos de valor em si mesmos, sendo valorados tão só a partir dos
resultados que produzem. A três, como em toda forma de ética secular, o
generalismo é descritivo e não prescritivo, visto que o valor das ações é
determinado pelo que em geral produzem. A quatro, como o generalismo
utilitarista não possui qualquer referência absoluta para julgar as ações à parte
do fim visado por elas, pergunta-se: quem decidirá sobre qual é o maior bem à
maioria e por quanto tempo? A crítica de Geisler ao generalismo, nesse
sentido, é de todo pertinente, quando afirma: “A menos que existam algumas
prescrições morais objetivas de conteúdo substancial, obrigatórias a todas as
pessoas durante todo o tempo, a qualquer tempo torna-se possível que
qualquer tipo de ação possa ser justificada”178.

3.3) A ética situacional ou situacionismo.

Uma série de obras contribuiu para o surgimento do situacionismo,


dentre elas a “Ética”, de Dietrich Bonhoeffer, “O Imperativo Divino”, de Emil
Brunner, e “Honesto para Deus”, de John A. T. Robertson. Entretanto, Joseph
Fletcher, com sua “Ética da Situação”, foi o grande propagador da ética
situacionista.

O situacionismo não é nem antinomiano nem generalista. Os


antinomianos não têm lei ética. Os generalistas não têm lei ética absoluta.
Contra esses sistemas éticos, o situacionismo afirma a existência de uma única
regra absoluta - a do amor. É, portanto, o situacionismo, uma ética de um único
absoluto.

Para Fletcher, “Somente o mandamento de amar é definitivamente


bom”. Ele diz que “Nós, por exemplo, estamos „obrigados‟ a falar a verdade
somente se a situação requerer essa atitude; se um provável assassino nos
pergunta onde está sua vítima, mentir pode ser o nosso dever” 179. As outras
leis morais são boas, mas não são inquebrantáveis nem boas em si mesmas,
porque de fato só o amor é intrinsecamente bom. As outras regras podem ser
boas ou más, tudo dependerá se elas machucarão ou não as pessoas, e isso
só poderá ser estabelecido no caso concreto.

Por isso, para o situacionismo de Fletcher, as decisões de amor não


são tomadas a partir de prescrições preestabelecidas. Em outras palavras, só
saberemos qual será a decisão a ser tomada diante de uma dada
circunstância, como explica Geisler:

O princípio do amor é uma normal universal e formal, em que não se


prescreve de antemão que curso específico de ação será aquele que
irá refletir o amor. Para saber exatamente o que o amor prescreve, a
pessoa terá de esperar o momento em que terá de lidar com uma
determinada situação. O amor é completamente independente de
qualquer predefinição específica. Ninguém pode saber de antemão a
„particularidade existencial‟ que o amor irá assumir em uma dada
situação... O amor não toma suas decisões antes de os fatos terem
sido estabelecidos. Os fatos procedem da situação (com grifos
meus) 180.

Como não há precedentes éticos e o amor é definido somente em


cada situação prática, o conteúdo do amor pode ser amplamente variado e de
forma ilimitada. O amor pode tudo, inclusive sacrificar os outros (se desse

178
Ibdem. p. 75
179
Ibdem. p. 41, 42
180
Ibdem. p. 48, 49
modo preservar segredos de guerra), mentir, adulterar, abortar, prostituir-se,
desde que tudo seja feito amorosamente.

Assim, para o situacionismo desse viés, o adultério pode ser bom ou


mal. Geisler diz que Fletcher menciona “em tom de aprovação” o caso de uma
alemã mãe de dois filhos capturada pelos russos e, presa em um campo de
concentração de Ucrânia, pediu a um guarda da prisão que a engravidasse
para que ela fosse devolvida à Alemanha, o que de fato veio a acontecer.
Fletcher também não parece ver dificuldades no uso da sexualidade por uma
espiã dos Estados Unidos por motivos patrióticos, para a obtenção de
informações úteis à segurança do seu país.

De modo semelhante, o assassinato, o aborto e o suicídio podem


ser bons ou maus, tudo dependerá do que a norma do amor exigir no caso
concreto. Por exemplo, pela exigência do amor, um homem poderia decidir por
uma espécie de suicídio indireto, recusando-se a tomar um remédio que lhe
daria mais três anos de vida e sujeitando-se a morrer em seis meses se esse
ato evitasse a ruína financeira da família. Noutro giro, o aborto pode ser o
melhor a ser feito em caso de estupro. E ainda: uma mãe deveria matar seu
filho sufocado visando não expor o grupo a ser detectado e morto por índios
hostis.

Para os situacionistas, não há algo como conflito de normas éticas,


não porque não existam normas (como para os antinomianos), nem porque
elas não sejam inquebrantáveis (como o são para os generalistas), mas porque
há somente uma única norma universal e inquebrantável: o amor. Em nossos
exemplos, Sifrá, Puá e Raabe não podiam ter agido de outra forma porque
agiram de acordo com a norma do amor e nada diferente do que fizeram
poderia ser-lhes exigido.

Em tese, o situacionismo não é relativista, porque afirma o valor


absoluto do amor. Em termos práticos, as coisas são deveras facilitadas,
porque a existência de um único absoluto elimina as perplexidades causadas
pelos conflitos entre os muitos absolutos. Mas, por outro lado, porque a norma
do amor proposta por Fletcher foi abstraída do seu conteúdo e porque nem é
mesmo possível conhecê-lo antes do caso concreto, o situacionismo deixa
seus adeptos em um vácuo ético não muito diverso do antinomianismo
relativista. Como afirma Geisler, “ter uma lei moral absoluta vazia não é melhor
do que não ter nenhuma lei moral absoluta”181.

Portanto, a ética situacional não é, de forma alguma, cristã. Ela nutre


um profundo desprezo pela revelação histórica e, por isso, exclui qualquer
padrão generalizado de moralidade. O amor situacional não é de modo
nenhum o amor ensinado por Cristo, porque para o Senhor o amor cumpre a lei

181
Ibdem. p. 59
sem revogá-la. O amor de Cristo é um amor ético com conteúdo ético, como o
foi também para Paulo (Mt 22:37, 39; Rm 13:8, 10). O amor situacional
desculpa o pecado; o amor cristão o proíbe.

Mais ainda. Para a vida cristã, é imperioso que o cristão conheça de


antemão, reverta antecipadamente os antigos valores e, desse modo, prepare-
se para fazer a vontade do Senhor em situações concretas. O amor cristão já
sabe como agir na maioria das mais complexas situações da vida, antes que
elas aconteçam. A experiência da vontade de Deus em situações concretas
deve seguir a transformação pela renovação da mente (Rm 12:2).

4. Sistemas éticos cristãos.

Deixamos para trás as abordagens éticas que não devem ser


consideradas seriamente como cristãs, pelas razões já apresentadas. O
antinomismo é “antilei”; o generalismo possui no máximo regras gerais, mas
não absolutas e universais; o situacionismo defende a ideia de que somente o
mandamento do amor é absoluto, mas como esse único mandamento é
desprovido de conteúdo, permanecemos na areia movediça no antinomismo.
Todas essas abordagens são, em verdade, relativistas.

Voltamo-nos, nesse passo, àqueles sistemas éticos que têm sido


defendidos por cristãos e teólogos evangélicos, seguindo as expressões que
Norman Geisler as tem utilizado, quais sejam: o absolutismo não qualificado, o
absolutismo conflitante e o absolutismo graduado. Em seguida, chegaremos às
nossas próprias conclusões.

4.1) O absolutismo não qualificado.

Passamos agora à análise do absolutismo não qualificado. Geisler


identificou Agostinho (354-430), Immanuel Kant (1724-1804) e John Murray
(1898-1975) como absolutistas não qualificados. Nesse sistema, admite-se a
coexistência de muitas regras morais absolutas e universais, acredita-se que,
por isso mesmo, nenhuma delas pode ser quebrada em situação alguma e que
elas nunca conflitam umas com as outras.

Kant estabeleceu seu sistema ético com base em seu “imperativo


categórico”, segundo o qual nós devemos sempre e incondicionalmente agir de
tal maneira que possamos desejar que nossas ações tornem-se a regra para
todos os homens. Para Kant, tanto matar quanto falar a verdade são
imperativos categóricos. Se mentirmos, consentimos que a mentira se torne
universal e se isso vier a ocorrer não haverá mais verdade contra a qual se
possa mentir. Se matarmos, desejamos que todos possam fazê-lo até que não
haja mais ninguém para ser morto. A conclusão kantiana é que tanto a mentira
quanto o assassinato são autodestrutivos.
Tomando os casos das parteiras no Egito e de Raabe, Agostinho
acreditava que essas mulheres pecaram contra Deus quando mentiram e que
elas foram abençoadas não pelas mentiras que disseram, mas porque agiram
misericordiosamente para com o povo de Deus. Para o bispo de Hipona, nem
todas as ações dos santos registradas nas Escrituras foram escritas para
tornarem-se a norma a ser seguida. Sobre a mentira de Raabe, John Murray
escreveu nesse mesmo sentido: “Embora nosso propósito seja auxiliar nossos
irmãos, assegurar sua segurança e aliviá-los, mentir nunca deve ser uma
atitude correta, porque não pode ser correto aquilo que é contrário à vontade
de Deus”182.

Para manter a assertiva de que não há conflitos reais entre regras


igualmente absolutas, o absolutismo não qualificado lança mão de três
expedientes: primeiro, afirma-se que não existe conflito entre mentir e, por
outro lado, falar a verdade e correr o risco de permitir um assassinato, porque a
mentira é o pecado que cometemos e o assassinato é o pecado que pode ser
cometido por outrem. Assim, se Raabe tivesse falado a verdade, ela não teria
mentido nem poderia ser responsabilizada pelos assassinatos que o rei de
Jericó poderia ter cometido. Nesse sentido, Agostinho insistia em que Ló não
pecou por ter oferecido suas filhas aos sodomitas, mas que simplesmente
permitiu que esses pudessem vir a pecar (Gn 19:1-11).

Em segundo lugar, os absolutistas não qualificados acreditam que


haverá um escape concedido pela providência de Deus, uma espécie de
terceira opção. Daniel é citado como exemplo dessa “terceira alternativa”, por
Deus tê-lo feito cair na graça do rei apesar dele haver se negado a participar
das iguarias reais que a sua fé lhe proibia (Dn 1). De qualquer modo, dizem os
absolutistas não qualificados, “preciso falar a verdade em toda e qualquer
situação e deixar as consequências com Deus”.

Em terceiro lugar, o absolutismo não qualificado acaba qualificando


a mentira para fugir da possibilidade de conflitos reais. Para Agostinho, por
exemplo, nem toda falsificação é mentira. “Somente falsificações feitas com a
intenção de enganar podem ser qualificadas como mentiras. Uma pessoa pode
ser julgada como mentirosa ou não, de acordo com sua intenção, e não pela
verdade ou falsidade do que expressou” 183. Para John Murray, nem todo
engano, ainda que intencional, é mentira. Nós podemos falar e agir de modo
que não seremos compreendidos por outros, sem que isso seja uma mentira.
Imaginamos que deixar a luz da casa acesa ao sair para dar a impressão a um
suposto ladrão que há pessoas lá dentro não é mentir, segundo Murray, pelas
razões por ele esposadas.

182
Ibdem. p. 83
183
Ibdem. p. 78
Charles Hodge também sugere limitações quanto ao sentido do que
se pode entender por mentira. Para ele, “um engano intencional se define como
mentira se, e somente se, for praticado em um contexto no qual se espera a
verdade. Como ninguém espera que um espião diga a verdade, entende-se
que a „mentira‟, na espionagem, não é realmente uma mentira” 184.

Há muito no absolutismo não qualificado que o recomenda como


uma ética cristã. Entretanto, julgamos fracassada a sua tentativa de negar a
realidade dos conflitos morais, sobretudo apelando a qualificações casuísticas
da mentira, fato que muito o aproxima da ética farisaica. Com efeito, é provável
que não haja tantos conflitos quanto os oponentes desse sistema acreditam,
mas negá-los em absoluto não pode ser feito sem algum tipo de qualificação,
como verificamos nas propostas acima, o que nos conduz à necessidade do
próximo sistema, o absolutismo conflitante.

4.2) O absolutismo conflitante.

Para o absolutismo conflitante existem, como no sistema anterior,


muitas regras morais absolutas e universais. Mas, conforme crer, elas,
diversamente do absolutismo não qualificado, realmente podem entrar em
conflitos entre si e de fato se colidem. Segundo esse sistema, a Queda e a
depravação resultante introduziram a humanidade em inumeráveis conflitos
morais reais, nos quais quaisquer das alternativas estão moralmente erradas e
constituem violação à lei de Deus, gerando a culpa consequente.

Noutras palavras, para essa escola ética, os conflitos entre regras


morais absolutas de fato existem, e quando surgem não há como escaparmos
sem culpa. No caso de Raabe, ela pecou contra Deus porque mentiu, mas se
não tivesse mentido teria pecado por haver agido sem misericórdia. Assim, o
que o cristão precisa fazer diante de conflitos entre normas morais é optar pelo
mal menor e confessar a Deus por havê-lo praticado, suplicando-Lhe o perdão.
Porque Raabe evitou praticar o mal maior, isso não a isenta perante Deus de
haver praticado o mal menor, razão pela qual deveria ter pedido perdão
imediatamente pelas mentiras que proferiu.

Helmut Thielicke (1908-1986) apresentou, segundo Geisler, “a


exposição contemporânea mais compreensiva do absolutismo conflitante” 185.
Para Thielicke, o conflito moral não “acontece devido ao caráter dado ao
mundo pela criação”, mas resulta “das decisões erradas que vamos deixando
para trás e que possuem sua raiz mais fundamental na decisão original
registrada na história da queda” 186.

184
Ibdem. p. 91
185
Ibdem. p. 98
186
Ibdem. p. 99
Quando surgem conflitos, segundo Thielicke, nós devemos escolher
o menor dos males, “porque existem pecados mais pesados e pecados mais
leves”. Mas, nem por isso, deixamos de ser culpados por havermos cometido o
pecado mais leve. A mentira não deixa de ser mentira e se converte em
verdade por termos mentido para salvar uma vida, nem tampouco é justificada
pela obediência ao mandamento conflitante. O que precisamos fazer é
reconhecer que em situações de conflito o pecado é inevitável, que devemos
escolher praticar o menor dos males e, em seguida, pedir perdão a Deus pelo
mal (menor) que praticamos.

No absolutismo conflitante há muitas virtudes apreciáveis, que o


tornam recomendável aos cristãos. Ele leva a sério todos os mandamentos de
Deus e os vindica como absolutos e universais, além de ser bastante realista
quanto à existência de conflitos entre eles, reconhecendo tais conflitos como
originados no fato histórico da Queda.

Consentimos igualmente com a convicção absolutista conflitante


sobre haver “pecados leves e pesados”, apesar da relutância evangélica
contemporânea. Nesse sentido, o Senhor Jesus afirmou a Pilatos que “quem
me entregou a ti maior pecado tem” (Jo 19:11b), além de haver se referido a
um pecado imperdoável, que é a blasfêmia contra o Espírito Santo (Mt 12:32).
Por outro lado, sentimos que o absolutismo conflitante hesita em reconhecer
que haja gradação entre os mandamentos de Deus, o que nos leva ao próximo
sistema ético, o absolutismo graduado ou hierarquismo.

4.3) O absolutismo graduado.

O absolutismo graduado afirma a existência de muitos valores


normativos absolutos e universais, como nos dois sistemas anteriores. Como
no absolutismo conflitante, afasta-se do não qualificado porque consente sobre
a possibilidade de surgirem inumeráveis conflitos reais entre normas éticas.
Entretanto, distancia-se do conflitante por afirmar que existem leis morais
maiores e menores e que, quando há conflitos, nosso dever é seguir a lei moral
mais elevada, o que nos exime da responsabilidade - ou nos isenta da culpa -
de havermos violado a lei moral menor.

O ponto fundamental que distingue o absolutismo graduado dos


anteriores é a sua assertiva de que quando a pessoa desobedece ao
mandamento inferior para obedecer ao superior, Deus não a considerada
culpada pela desobediência praticada. Na verdade, Deus não considera a
desobediência à lei menor uma desobediência punível, em face da
necessidade de obediência à lei maior. É dizer, porque o indivíduo, no caso
concreto, não poderia obedecer à lei maior sem quebrar a menor, Deus o
exime da responsabilidade de cumprir a menor. Isso, para o sistema em
análise, explica porque a Bíblia parece louvar muitos indivíduos que violaram
leis divinas em situação de conflito, como nos casos das parteiras no Egito e de
Raabe.

O grave problema envolvendo o absolutismo graduado é saber como


existem leis que podem ser violadas sem que haja imputação de culpa, sem
que isso seja uma forma de relativismo. Quer-se saber: o absolutismo
graduado não é uma forma de generalismo, por admitir exceções? Como
normas absolutas e universais podem ser quebradas, em certas circunstâncias,
sem responsabilidade aos infratores e permanecerem absolutas e universais?
Normas morais absolutas e universais não são aquelas que, por natureza,
devem ser observadas por todos, em todos os lugares e circunstâncias?

Para Norman Geisler, seu franco defensor, o absolutismo graduado


é absoluto, sim. Primeiro, é absoluto “em sua origem”, porque uma vez que
Deus não muda, os princípios baseados em Sua natureza são imutáveis;
segundo, é absoluto “em sua esfera de atuação”, porque ficamos desobrigados
em obedecer a uma lei somente diante de um conflito dessa com uma lei
maior; terceiro, é absoluto “em sua ordem de prioridade”, porque a gradação
entre as leis é absolutamente estabelecida por Deus.

Para retirar o absolutismo graduado da categoria incômoda de


generalismo, Geisler ainda consegue ver distinção entre exceção e isenção.
Ele admite que se houver uma única exceção possível à norma, ela já não será
absoluta, mas tal não é o caso. Para ele, a exceção prova que a lei não é
absoluta, porque considera que a mentira pode ser algumas vezes certa. Por
outro lado, na isenção mentir é sempre errado, embora elimine a culpabilidade
do indivíduo.

O que Geisler não consegue conceber é como, em um dado conflito


entre normas éticas, a obediência a uma lei maior ainda deixaria
responsabilizado o indivíduo pela violação de uma lei menor com aquela
conflitante. Ele parece sonhar com uma espécie de perfeccionismo ético.
Entretanto, certamente não há na Escritura algo como violação à lei de Deus
inimputável. Ou os pecadores receberão as justas consequências de todos os
seus pecados, ou Cristo os pagou cabalmente na morte de cruz. Mas, não há
pecados impunes perante o justo juiz de toda a terra.

Que Deus não inocenta o culpado (Ex 34:7; Na 1:3), é fato inerente
à santidade do Seu ser. “Pois tu não és um Deus que se agrade com a
iniquidade, e contigo não subsiste o mal... Tu destróis os que proferem mentira”
(Sl 5:4, 6a). Melhor é compreender com Agostinho que o que há de louvável
nas ações de Puá, Sifrá e Raabe é a fé e a misericórdia, e não as mentiras,
que de modo algum foram ignoradas. Cristo morreu pelas mentiras dessas
mulheres!
5. Ética conglobante: uma proposta.

Certamente, há em todas as formas de absolutismo muito a


recomendar. Com todas elas, comungamos que há valores normativos éticos
absolutos e universais; compartimos que essas normas absolutas encontram-
se reveladas na Escritura Sagrada, tais como as registradas no Decálogo; e
que a Escritura foi produzida não por vontade meramente humana, mas
homens santos e separados por Deus para esse propósito a escreveram,
sendo ela, portanto, resultante de inspiração (II Tm 3:16; II Pe 1:21, 22).

Com todos os sistemas absolutistas, também afirmamos que as


normas éticas exaradas na Escritura são absolutas e universais porque
emanam da natureza imutável de Deus (Sl 119:160; Ml 3:6; Tg 1:17; Hb 6:18) e
que esse conjunto ético revelado é prescritivo, porque emana do Legislador
moral do universo, e deontológico, porque é centrado no dever.

Mas, conquanto devamos apreciar os pontos louváveis de cada um


desses sistemas e adotá-los tanto quanto possível, a fragilidade de cada um
deve-nos induzir a caminhar por uma senda eclética, por assim dizer.
Questionando o que julgamos questionável e abraçando o que julgamos
indiscutível, delineamos uma ética absolutista conflitante-graduada, ou eclética
– uma ética conglobante -, a partir das proposições que seguem:

5.1) Conflitos morais real e indiscutivelmente existem.

Não anda bem o absolutismo não qualificado em negar a existência


de conflitos morais reais. Parece bastante improvável e mesmo impossível
conceber um mundo caído em que a perfeição ética fosse, em todos os
momentos, algo factível. Na verdade, devemos pontuar com o absolutismo que
admite conflitos reais no sentido de que a perfeição ética jamais é atingida pelo
homem no presente estado (cf. Mt 5:48).

5.2) Os conflitos reais deveras se reduzem se os mandamentos


forem interpretados em uma perspectiva conglobante.

Entretanto, parece-nos haver mais conflitos fabricados do que os


que realmente existem, o que nos conduz à necessidade de uma compreensão
abrangente ou conglobante dos mandamentos bíblicos, e que muitos poderiam
interpretar como absolutismo qualificado. É dizer, só podemos apreciar o raio
de incidência de qualquer mandamento bíblico quando verificamos como a
Escritura delineia seus limites.

A princípio, isso pareceria uma técnica de exceções, ou mesmo de


isenções, mas não é. Trata-se de aferir os limites do mandamento, o que ele
impõe e o que jamais tencionou impor. Assim, não há conflito ético-médico
entre não amputar uma perna de um paciente e amputá-la se esta for uma
imperiosa ação para salvá-lo. In casu, só há um mandamento a obedecer: usar
os recursos médicos disponíveis para salvar a vida.

De modo semelhante, não há conflito entre obedecer às autoridades


humanas e obedecer à vontade Deus, quando houver conflito entre essas
lealdades, porque o mandamento abrangente ou conglobante de obediência
àquelas é: devemos obedecer às autoridades enquanto essas não nos
exigirem algo que contrarie a vontade de Deus (Rm 13:1-5; Lc 14:26). Pedro
qualifica a obediência às autoridades quando ordena sujeição a elas “por causa
do Senhor” (I Pe 2:13), e Paulo faz o mesmo ao dizer aos filhos que obedeçam
aos pais “no Senhor” (Ef 6:1).

É dizer, as autoridades devem sempre ser obedecidas, enquanto a


vontade de Deus não estiver em jogo. Por isso, os apóstolos não pecaram
contra mandamento algum ao desobedecerem à ordem de não testemunhar de
Jesus (At 4:19, 20). O mesmo se pode dizer da desobediência dos amigos de
Daniel (Dn 3). Nesses casos, simplesmente não houve conflito, porque não
existe um mandamento que ordene: obedeçam às autoridades humanas em
todas as coisas, sem exceção alguma, inclusive quando a obediência implicar
em violação a uma ordem divina contrária.

Noutro dizer, conflitos morais realmente existem, mas é melhor não


os multiplicarmos desnecessariamente. Se interpretarmos os mandamentos de
forma conglobante (repito: sem excepcioná-los nem transigir com isenção de
culpa), reduziremos os conflitos reais a um número ínfimo, embora, insisto,
sem os eliminarmos.

5.3) Quando diante de conflitos morais reais, o nosso dever é evitar


o mal maior e obedecer o mandamento mais elevado.

Com os absolutistas conflitantes, asseveramos a existência de


pecados “mais leves” e “mais pesados” (cf. Jo 19:11). A propósito do Sermão
do Monte (Mt 5:21, 22, 27, 28), R. C. Sproul anotou, com verdade, que “Jesus
não ensinou que a cobiça era tão má quanto o adultério ou que a raiva era tão
má quanto o assassinato”. Para Sproul, Jesus estava corrigindo uma atitude
simplista e superficial quanto à compreensão da lei, própria dos fariseus. Eles
pensavam que guardavam perfeitamente a lei só porque evitavam “a dimensão
mais óbvia dos mandamentos”. Assim, o que Jesus estava dizendo não era
que em cobiçar há tanto mal quanto em adulterar ou que em irar-se há tanto
mal quanto em assassinar, mas que “„Não matarás‟ significa mais do que
refrear-se de homicídio. Proíbe todo o conjunto de fatores que resulta em
assassinato. Também implica a sua virtude oposta: „Proverás a vida‟” 187.

187
SPROUL, R. C. Como Devo Viver Neste Mundo? São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2012. p. 24
De modo semelhante, devemos enfatizar com os absolutistas
graduados que há uma gradação entre os mandamentos de Deus. Jesus
mencionou “mandamentos menores” (Mt 5:19) e “preceitos mais importantes da
lei” (Mt 23:23). Ao responder a pergunta do intérprete da lei sobre qual é o
maior mandamento, o Senhor não respondeu que todos têm igual peso, mas
que um é “o grande e primeiro mandamento” e o outro é o “segundo” (Mt 22:35-
39). Isso nos leva a concluir que amar a Deus é um mandamento maior que a
ordem de amar o próximo. Ademais, podemos ainda conceber que a
preservação da vida humana e a piedade são valores maiores que o
cumprimento de regras cerimoniais e civis, quando então vigentes (Mt 9:13; Lc
10:30-37; Mq 6:6-8; Mt 23:23).

Portanto a crença evangélica popular de que não existem pecados


maiores e menores está equivocada, tanto quanto a que assevera não haver
gradação em importância entre os mandamentos de Deus. Assim, se há
pecados maiores e menores, o nosso dever é evitar o maior quando não for
possível evitar a ambos em um conflito real. Também, se há mandamentos
mais importantes que outros, nosso dever é obedecer ao de maior peso
quando não for possível obedecer a ambos em um conflito real. Se entregar
alguém à morte é algo pior que a mentira, nosso dever, no caso concreto, é
transgredir o menor dos mandamentos e evitar o mal maior.

5.4) Quando, diante de um conflito real, evitamos o mal maior e


obedecemos o mandamento mais elevado, isso não é „a coisa boa a ser feita‟,
se isso significa isenção da culpa pelo cometimento do mal menor e pela
transgressão do mandamento menos elevado.

O mal não deixa de ser mal, ainda que praticado para evitar-se um
mal ainda maior. A transgressão do menor mandamento tem peso (Mt 5:19),
ainda que realizada para evitar-se a transgressão de um mandamento mais
elevado. Se isso é verdade, é difícil entender como pecados reais podem ser
simplesmente isentos de sanção. E mais. Por mais vantajosa que seja a
distinção entre “exceção” e “isenção”, ela não consegue eliminar a relativização
dos absolutos quando propõe imunidades e suspensões de culpabilidade.

É mais realista e proveitoso admitir conflitos morais „insolúveis‟ e, a


partir deles, aprender acerca da impossibilidade de perfeccionismo ético no
presente estado. Quem sabe seremos mais estimulados a desejar o mundo
que nos aguarda - os novos céus e nova terra -, onde não haverá pecado nem
os conflitos que dele emanam!

E, acima de tudo, é mais condigno com a natureza imutável de Deus


e dos Seus preceitos cumprir o dever para com o mandamento maior, evitando
o mal maior, e confiar que o nosso Representante-Substituto levou sobre si os
nossos pecados grandes e pequenos, e as nossas transgressões aos maiores
e aos menores mandamentos, sem apelar a nenhum tipo daquilo que pode não
passar de escapismo artificial. Se isso é verdade, nós devemos também
confessar a Deus os pecados menores, mesmo aqueles cometidos em
situações de conflitos éticos, na certeza de que obteremos perdão (I Jo 2:1).

Mas há sérias objeções a esses pontos apresentados, sobretudo


quando se tenta admitir que é impossível sair inculpável de um sem número de
conflitos éticos. Há conflitos na natureza divina? Cristo enfrentou conflitos? Em
caso afirmativo, Ele pecou? A cruz representa um conflito ético? Se não, como
pode um inocente morrer no lugar de culpados? Há um conflito entre o amor e
a justiça de Deus? Eis o que veremos em seguida.

5. Cristo, a cruz e os conflitos éticos.

5.1) Cristo e os conflitos éticos.

Geisler acredita firmemente haver aplicado um xeque-mate no


absolutismo conflitante, a partir da humanidade do Salvador.

Explique-se. Se em caso de conflito ético real, a prática do mal


menor e a violação do mandamento de menor peso ainda encerra o
„transgressor‟ em pecado culpável, Cristo inevitavelmente ou pecou ou poderia
ter pecado, uma vez que Ele enfrentou (ou pode ter enfrentado) conflitos éticos.

Noutro giro, para Geisler, a situação deveras se complica se tão


somente afirmarmos que Jesus jamais enfrentou conflitos éticos, porque, nesse
caso, como Ele poderia ser nosso “exemplo moral absoluto”? Como
poderíamos imitá-lO (I Co 11:1, 2), se Ele jamais viveu conflitos éticos? Nesse
caso, “não temos em Cristo um exemplo a seguir em algumas das mais difíceis
decisões morais que temos que encarar durante nossas vidas”188.

Vejamos o problema em que nos envolvemos. Cristo é nosso


modelo ético absoluto. Assim, Ele certamente viveu dilemas éticos. Como Ele
certamente enfrentou conflitos éticos e a Bíblia afirma que Ele não pecou (Hb
4:15), só pode haver uma conclusão: Deus não imputa culpa pela prática do
mal menor, quando feito para a observância do mandamento de maior peso,
como quer o absolutismo graduado. Nas palavras de Geisler, “A prova de que o
indivíduo pode enfrentar dilemas morais reais sem pecar é que Jesus os
enfrentou, mas sem nunca ter pecado”189.

Noutras palavras, eis os postulados de Geisler, sobre os quais


devemos nos deter:

188
L. GEISLER, Norman. Ética Cristã: Opções e Questões Contemporâneas. São Paulo: Vida Nova, 2010.
p. 111
189
Ibdem.
 Cristo é nosso modelo absoluto;
 Cristo viveu dilemas morais (ou, no mínimo, poderia tê-los
vivido);
 Cristo não pecou, como afirma a Escritura;
 Conclusão: a prática do mal menor não é imputada como
culpa.

Analisemo-los, um a um:

Em primeiro lugar, Cristo é indiscutivelmente nosso modelo absoluto.


Apesar de Sua divindade, Ele tornou-se plenamente humano na concepção
virginal e era, em sua humanidade, como qualquer de nós, embora sem
pecado (Hb 4:15).

Entretanto, essa consideração não pode amenizar a diferença que


há entre nós e o Salvador, como pontuou Jonathan Edwards:
Pois, embora ele [Cristo] tenha se tornado homem como nós, sujeito
às nossas circunstâncias, existe uma imensa diferença quanto a
outros aspectos. Jesus é o cabeça da igreja e nós somos apenas
seus membros. Ele é Senhor de tudo, nós os seus súditos e
discípulos... A maior diferença está em que Cristo não tinha pecado, e
nós somos todos criaturas pecadoras, portadores de um corpo de
pecado e de morte. Cristo foi como nós em tudo, mas sem pecado.
Esta é a exceção. Portanto, há muitas coisas requeridas de nós que
Cristo não poderia exemplificar, tais como arrependimento pelo
pecado, quebrantamento do espírito por causa do pecado,
mortificação da carne e guerra contra o pecado (com grifo meu)190.

Em segundo lugar, é duvidoso afirmar que Cristo viveu dilemas


morais (tanto quanto que poderia tê-los vivido) para ser nosso “modelo
absoluto”. Exatamente porque Cristo é nosso “modelo absoluto”, Ele
permanece como um alvo a ser perseguido e permanentemente inalcançável
durante esta existência (Fp 3:13, 14; Ef 4:13). Por essa razão, não deveríamos
estranhar que haja, como quer Edwards, “muitas coisas requeridas de nós que
Cristo não poderia exemplificar”. Tampouco que uma dessas coisas seja a
experiência com conflitos morais reais.

Por outro lado, pelo menos a concluir dos exemplos apontados por
Geisler, pouco ou nada subsiste, após uma séria apreciação, que possa indicar
que Cristo viveu dilemas morais reais. Geisler ver dilemas morais nas
experiências de Cristo entre obedecer Seus pais terrenos e Seu Pai celeste (Lc
2:41-52). Afirma que Cristo “aprovou” o “roubo” cometido por Davi (Mt 12:3, 4).
Citou Lc 14:1-6 como exemplo de que Jesus enfrentou várias vezes o conflito
entre a obediência às autoridades e o dever de agir com misericórdia. Para

190
EDWARDS, Jonathan. A Busca da Santidade: A obra clássica sobre o que Deus requer de nós nesse
processo. São Paulo: Cultura Cristã, 2010. pp. 29, 30
Geisler, Cristo violou a lei do sábado ao permitir que Seus discípulos
colhessem espigas (Lc 6:1-5).

Quanto ao suposto conflito entre a obediência aos pais terrenos e ao


Pai celeste, vê-se um típico caso que enseja interpretação conglobante do
mandamento, tema sobre o qual ainda teremos oportunidade de discorrer. Por
ora, basta dizer que a “desobediência” de Jesus aos Seus pais não fora
desobediência em sentido algum, tanto que Lucas destaca que Ele “era-lhes
submisso” (Lc 2:51). Jesus viveu desde a mais tenra idade o princípio que Ele
ensinou vezes inumeráveis, no sentido de dar-se a Deus a primazia dentre
todas as lealdades (Mt 10:37; Lc 14:26).

Quanto aos demais textos citados por Geisler, já demonstramos


alhures que Jesus não considerou que Davi “roubou” os pães da proposição
(Mt 12:3, 4). Ademais, com muito mais ênfase, negamos que Jesus tenha
quebrado qualquer lei do shabbath, embora tenha se insurgido abertamente
contra as leis da Halaká. O fato é que não é possível vislumbrar um único caso
em que Cristo tenha quebrado uma lei mosaica, tampouco que tenha vivido
conflitos morais reais ou ainda que, caso o tivesse, deveria enfrentar do modo
como nós enfrentamos.

Há deveras um sentido em que Cristo e os demais homens estão em


categorias distintas. Eis um exemplo que pode esclarecer: como pecados por
omissão dizem respeito à recusa de empreender um benefício a outrem nos
sendo possível fazê-lo (Tg 4:17), ao colocarmos Cristo em categoria idêntica à
nossa, concluiremos aberrantemente que Ele teria cometido infindos pecados.
Afinal, podendo fazê-lo, Ele não curou a todos, não ressuscitou a todos, não
salvou a todos, não revelou a verdade a todos, não venceu a resistência de
todos, quando poderia tê-lo feito, em todas essas hipóteses.

Em terceiro lugar, Cristo de fato não pecou. Mas isso apenas prova
que Ele não viveu conflitos éticos reais, e não que seja possível enfrentá-los
sem pecado punível e culpável.

Portanto, chegamos à conclusão que a humanidade do Salvador em


nada nega a existência de situações reais em que o melhor que se pode fazer
é pecar o pecado menor e buscar o perdão de Deus.

5.2) A cruz e os conflitos éticos.

Finalmente, a cruz de Cristo é para Geisler um conflito real entre a


misericórdia (o autossacrifício pelos outros) e a justiça (recusa em morrer
injustamente pelos outros). Ele pondera que, como existe um conflito real, se a
escolha de fazer o bem maior (a misericórdia) implica em pecado, “Jesus pode
ter sido o maior pecador de todos os tempos”191, coisa que nem Geisler nem
qualquer cristão sequer cogita em afirmar. Nessa mesma senda, Geisler
assevera que Deus mesmo enfrentou um conflito moral na cruz, representado
pelo sacrifício do Seu Filho (misericórdia), por um lado, e o abandono da raça
humana (justiça), por outro, para concluir que “Graças a Deus, que a
misericórdia triunfou sobre a justiça” 192.

Notemos que só há falar em conflito na cruz se considerarmos que o


autossacrifício de Cristo foi injusto e que Deus agiu injustamente em sacrificar
Seu Filho. Mas, teria havido na cruz um conflito ético real? A morte do justo
pelos injustos foi um ato injusto? Poderia o ato de Deus em sacrificar Seu Filho
pelos nossos pecados ser considerado uma injustiça? Seria a cruz o triunfo da
misericórdia sobre a justiça? Respondemos essas perguntas com um
retumbante NÃO, pelas razões que passamos a apresentar.

Em primeiro lugar, temos que a “obediência” de Cristo, a base pela


qual “muitos se tornarão justos” (Rm 5:19), é dita no versículo precedente em
termos de “um só ato de justiça”, por meio do qual veio a graça para a
justificação que dá vida (Rm 5:18). Certamente, e para dizer o mínimo, em “um
só ato de justiça” Paulo quer incluir o autossacrifício de Cristo na morte de cruz.
Embora a expressão seja abrangente o suficiente para envolver toda a vida
terrena do Redentor, essa obediência perfeita encontra o clímax na morte (Fp
2:8). Assim, não devemos chamar de injustiça o que o apóstolo denominou
“justiça”.

Em segundo lugar, lemos que ao realizar a justificação de pecadores


na redenção que há em Cristo, Deus demonstrou ser tanto justo como o
justificador daquele que tem fé em Jesus (Rm 3:24-26). Paulo demonstra que o
fato de Deus haver, “na sua tolerância, deixado impunes os pecados
anteriormente cometidos”, isso em nada fere a Sua justiça. Isso porque na cruz
Cristo expiou os pecados de todos os crentes em Jesus (da antiga e da nova
dispensação). Para Paulo, portanto, a cruz de Cristo prova precisamente que
Deus é o justificador justo (v. 26). Sem ela, Sua justiça seria comprometida?
Talvez. Mas com ela a justiça de Deus está cabalmente revelada! Destarte, não
deveríamos denominar injustiça exatamente o ato que demonstra que Deus é
justo.

Em terceiro lugar, se Geisler considera a morte do justo pelos


injustos como injustiça, é provável que também considere como injustiça a
atribuição da justiça do Justo àquele que não tem justiça própria. O apóstolo,
entretanto, não parece ver nenhuma injustiça nem na imputação de nossos

191
L. GEISLER, Norman. Ética Cristã: Opções e Questões Contemporâneas. São Paulo: Vida Nova, 2010.
p. 110
192
Ibdem.
pecados ao Cristo sem pecado nem na imputação da justiça de Cristo a
pecadores (II Co 5:21).

Há, de fato, justas razões pelas quais o Cristo sem pecado morreu
como pecador e os pecadores são considerados justos, como nos pode
explicar Charles Hodge, a propósito de II Co 5:21:
Nossos pecados foram imputados a Cristo, e a sua justiça é imputada
a nós. Ele carregou os nossos pecados; nós estamos revestidos com
a sua justiça. (...) o fato de Cristo carregar os nossos pecados não fez
dele um pecador no sentido moral (...) nem o fato da justiça de Cristo
se tornar nossa de maneira subjetiva faz dela a qualidade moral das
nossas almas. (...) Nossos pecados foram o fundamento judicial dos
sofrimentos de Cristo, a fim de que eles fossem um cumprimento da
justiça; e a justiça dele é o fundamento judicial da nossa aceitação
diante de Deus, a fim de que o nosso perdão seja um ato de justiça.
(...) Não é mero perdão, mas somente a justificação, que nos
concede paz com Deus (com grifos meus)193.

Como se pode concluir, nem a morte do justo nem a justificação de


pecadores foram desprovidas de justiça. Os nossos pecados são o
“fundamento judicial” da morte do justo; a Sua justiça, o “fundamento judicial”
da nossa aceitação por Deus. Ambos os casos devem ser tidos como “ato de
justiça”, e não como injustiça.

Finalmente, a cruz de Cristo é em verdade a mais completa


revelação do amor e da justiça de Deus. Se se pode ver algum tipo de
“dualidade” em Deus, uma espécie de conflito entre as perfeições divinas da
bondade e da severidade (Rm 11:22), da longanimidade e da justiça (Ex 34:6,
7), o fato é que, como afirma John Sttot, “jamais devemos pensar que essa
dualidade do ser divino seja irreconciliável”194. Sttot explica:

Pois Deus não está dividido, por mais que se nos pareça que sim. Ele
é “Deus de paz”, de tranquilidade interior, não de agitação. É verdade
que achamos difícil conter em nossa mente, simultaneamente as
imagens de Deus como Juiz que deve punir os malfeitores e como
Amante que deve encontrar um modo de perdoá-los. Contudo, ele é
ambos, ao mesmo tempo. Nas palavras de G. C. Berkouwer: “na cruz
de Cristo a justiça e o amor de Deus são revelados
simultaneamente”, enquanto Calvino, fazendo eco a Agostinho, foi um
pouco mais audaz. Ele escreveu que Deus “de um modo divino e
maravilhoso nos amou mesmo quando nos odiava”195.

Vê-se, por todo o exposto, que não há conflito ético na cruz! A cruz,
ao contrário, é a revelação mais contundente do modo como as perfeições
divinas são perfeitamente harmônicas entre si. A cruz não é uma injustiça, não
é a vitória da misericórdia sobre a justiça, mas a demonstração “simultânea”
tanto do amor como da justiça de Deus.
193
PIPER, John. Justificados em Cristo: Devemos Abandonar a Imputação da Justiça de Cristo? Niterói,
RJ: Tempo de Colheita, 2011. p. 74
194
STTOT, John. A Cruz de Cristo. São Paulo: Editora Vida, 1992. p. 118
195
Ibdem.
Portanto, repito, chegamos à conclusão que a cruz do Salvador em
nada nega a existência de situações reais em que o melhor que se pode fazer
é pecar o pecado menor e buscar o perdão de Deus. Mas, frise-se, essa é
hipótese aplicável somente diante de conflitos éticos reais. Perante os tantos
conflitos fabricados, o remédio é a verificação do âmbito de incidência do
mandamento, conforme delineado pela Escritura, o que temos denominado
ética conglobante.
10. Introdução à Segunda Tábua

Após a análise dos mandamentos que dizem respeito aos nossos


deveres para com Deus, nos voltamos à segunda tábua, que alberga seis
mandamentos que normatizam nossos deveres para com os semelhantes.

1. A unidade da Lei.

Antes de tudo o mais, entretanto, devemos apresentar as razões


elas quais a Lei de Deus é uma e indivisível. É dizer, não há como nos
considerarmos maduros e experimentados apenas em uma tábua, em
enquanto permanecemos atrofiados quanto aos deveres da outra. Sobre isso
discorrerei através das seguintes proposições.

Em primeiro lugar, a unidade da Lei pode ser observada na


impossibilidade de quebrarmos quaisquer de seus mandamentos (fazendo
aquilo que se proíbe ou deixando de fazer aquilo que se ordena) sem sermos
réus de toda ela. É o teor da assertiva de Tiago: “Pois qualquer que guarda
toda a lei, mas tropeça em um só ponto, se torna culpado de todos” (2:10).

No contexto, Tiago está lidando com igrejas que distinguem as


pessoas pelo que elas possuem e dão tratamento deferente às mais
abastadas. Essa separação perversa (Tg 2:9), tão comum em tantas igrejas de
hoje, que gera o menosprezo de pessoas que têm poucos recursos, é a quebra
de um único mandamento (segundo Tiago, talvez, o sexto, pelo que se pode
concluir de 2:11). Entretanto, afirma Tiago, quem pratica acepção de pessoas
não se torna réu de um mandamento, mas de todos.

A mesma ideia está espraiada em outras partes do Novo


Testamento, como se pode concluir das palavras do Senhor Jesus - “Aquele,
pois, que violar um destes mandamentos, posto que dos menores, e assim
ensinar aos homens, será considerado mínimo no reino dos céus (...)‟ (Mt 5:19)
– e se extrair do ensino do apóstolo Paulo (Gl 3:10; 5:3). Ademais, o que ali se
pode ler, na atitude de Moisés em quebrar as tábuas da lei (quando somente, a
priori, o segundo mandamento foi quebrado), se pode ver (cf. Ex 32:19).

Em segundo lugar, a unidade da Lei pode ser vista a partir da noção


de que toda ela pode ser resumida na lei do amor. A suma da primeira tábua é
o amor a Deus; e da segunda, o amor ao próximo (Mt 22:34-40; Lc 10:27; Tg
2:8; Rm 13:8-10). Por isso, segundo o apóstolo, “o cumprimento da lei é o
amor” (Rm 13:10b).
O “amor” é a síntese dos Dez Mandamentos porque ele – quer
esteja dirigido a Deus, quer ao próximo - é essencialmente um. Quando tratou
da natureza do amor cristão, em seus sermões em I Coríntios 13 196, Jonathan
Edwards defendeu que todo o amor verdadeiramente cristão “é um e o mesmo
em seu princípio”, advertindo que “Ele pode ser variado em suas formas e
objetos, e pode ser exercido ou para com Deus ou para com os homens, mas é
o mesmo princípio no coração que constitui o fundamento de todo o exercício
de um amor realmente cristão, seja qual for seu objeto”.

Isso explica porque o apóstolo João interliga indissociavelmente o


amor a Deus e ao próximo, ensinando que não pode haver um sem o outro.
Por um lado, ele assevera: “Se alguém disser: Amo a Deus, e odiar a seu
irmão, é mentiroso; pois aquele que não ama a seu irmão, a quem vê, não
pode amar a Deus, a quem não vê. Ora, temos, da parte dele, este
mandamento: que aquele que ama a Deus ame também a seu irmão” (I Jo
4:20, 21).

Noutro dizer, João estar a afirmar que não é possível que os


mandamentos da primeira tábua possam ser realmente observados à revelia
da obediência aos seis restantes. João não acredita na possibilidade de que
alguém esteja guardando seus deveres para com Deus enquanto descumpre
os que devem ser devotados aos homens. Seu argumento é no sentido de que
é mais fácil amarmos a quem vemos, tocamos, ouvimos. E se não amamos o
nosso irmão visível, como amaríamos ao Deus invisível (cf. 4:12)? De sorte que
qualquer afirmação de amor a Deus nesses termos é desmascarada como
mentirosa. No versículo 21, acima transcrito, João junge em um único
mandamento o amor a Deus e aos irmãos, de modo a torná-los inseparáveis.

Por outro lado, se podemos afirmar que quem ama ao próximo


(somente esse) ama a Deus, é igualmente verdadeiro que se amamos a Deus
amaremos também o nosso irmão. Ainda conforme a pena de João, “(...) e todo
aquele que ama ao que o gerou também ama ao que dele é nascido. Nisto
conhecemos que amamos os filhos de Deus: quando amamos a Deus e
praticamos seus mandamentos” (I Jo 5:1, 2). Ou seja, aquele que ama a quem
lhe gerou - Deus -, ama também aos irmãos, que também foram nasceram de
Deus.

João já havia dito, como observamos acima, que o amor a Deus se


reconhece pelo amor aos irmãos. Agora ele inverte o argumento para afirmar
que a recíproca é também verdadeira: que o amor aos irmãos se reconhece
pelo amor a Deus, cuja evidência está na santidade de vida (5:2). A construção
toda é a seguinte: a guarda dos mandamentos de Deus é a prova de que O
amamos, e o amor para com Deus demonstra que amamos os irmãos.

196
EDWARDS, Jonathan. Caridade e Seus Frutos: Um Estudo Sobre o Amor em 1 Coríntios 13. São José
dos Campos, SP: FIEL, 2015. pp. 24-26
Por todo o exposto, tanto é verdade que não é possível quebrar um
único mandamento sem quebrar toda a Lei (a primeira e a segunda tábuas),
como não é possível tornar-se um cumpridor da Lei sem a observância de
todos os seus mandamentos (da primeira e da segunda tábuas), cuja síntese é
o amor, a Deus e aos homens. Eis, portanto, as provas cabais da unidade da
Lei de Deus!

2. A Segunda Tábua e o “amor ao próximo”.

Pensando agora mais especificamente na segunda tábua, o mesmo


pode ser afirmado acerca dela: que seus seis mandamentos são dotados de
unidade e sua síntese é o amor ao próximo (Mt 22:39; Lc 10:27b; Tg 2:8).
Outra vez: “O amor não pratica o mal contra o próximo; de sorte que o
cumprimento da lei é o amor” (Rm 13:10).

A primeira questão que se impõe é deixarmos evidente que o


próximo é todo aquele que estiver ao alcance de alguma forma e medida de
nossa beneficência, dentre os quais os nossos “inimigos” (Mt 5:43, 44; Lc 6:27,
28), independentemente de questões de raça, cor, sexo (e “opção sexual”),
tanto quanto de animosidades pessoais (Jo 4:9; Lc 10:29-37). Esse raciocínio,
a princípio, não exclui nenhum único ser humano da face da terra (cf. Gl 6:10)
de ser objeto do nosso amor e, mais especificamente, da nossa observância
dos mandamentos da segunda tábua.

A segunda questão - e essa tem sido uma fonte de intermináveis


debates, sobretudo pela absorção de ideias oriundas da psicologia secular por
inúmeros teólogos cristãos – gira em torno de Mt 22:39 (cf. Lv 19:18),
sobretudo da cláusula “como a ti mesmo”. Para muitos, o que temos aqui é
uma espécie de “terceiro” grande mandamento, segundo o qual somos
ordenados a amar a nós mesmos. Outros vão mais além, quando ensinam que
sem a observância deste terceiro mandamento sequer afigura-se possível amar
ao próximo e a Deus.

Entretanto, longe de tratar o amor-próprio como um mandamento


(fundamental, muito menos), o Senhor Jesus o tem como um real pressuposto,
do mesmo modo como Paulo o expõe em Ef 5:28, 29. O único mandamento é o
de amar ao próximo “como” a si mesmo. Não há dois mandamentos no
versículo 39, o de amar ao próximo “e” o de amar a si mesmo.

Além de não ter o amor-próprio como um terceiro mandamento,


nosso Senhor também não o emprega como o “critério” a ser observado no
amor ao próximo. Noutro dizer, o Senhor não está afirmando algo do tipo “faça
aos outros as mesmas coisas que vocês fazem por vocês mesmos”, como bem
captou Jay E. Adams, após o que aduziu:
Sem dúvida, precisamos amar o nosso próximo de acordo com os
mandamentos bíblicos e não fazendo por eles as mesmas coisas que
fazemos para nós mesmos. Independente da questão do amor-
próprio, não fazemos apenas coisas boas, mas também todos os
tipos de coisas que machucam e são pecaminosas contra nós
mesmos: cometemos adultério, mentimos, roubamos, comemos
demais, cometemos suicídio, etc. As coisas que fazemos para nós
mesmo, então, não são critérios para amar aos outros197.

Portanto, o critério segundo o qual devemos amar o próximo é a


Escritura - o Decálogo e todos os demais mandamentos de Deus. A expressão
“como a si mesmo” diz respeito, antes, à sincera dedicação e ao fervor do
coração que caracterizam o amor (pressuposto na Escritura) que nutrimos por
nós mesmos, sempre excessivos quando nos irregenerados, mas legítimos,
corretos e esperados quando “subordinado ao amar a Deus e em equilíbrio
com o amar o nosso próximo” 198.

Portanto, o segundo grande mandamento determina que amemos o


nosso próximo consoante os critérios estabelecidos nos mandamentos de Deus
e com a sinceridade, fervor e dedicação com que amamos a nós mesmos.

3. A Segunda Tábua e a “Regra de Ouro”.

A “regra de ouro” como dita pelo Senhor Jesus é uma outra fórmula
através da qual Ele sintetizou a segunda tábua da Lei e todos os demais
mandamentos de Deus concernentes aos nossos deveres para com o próximo.
Eis o seu teor: “Tudo quanto, pois, quereis que os homens vos façam, assim
fazei-o vós também a eles; porque esta é a Lei e os Profetas” (Mt 7:12; Lc
6:31).

Que a regra áurea é a suma dos mandamentos de Deus, a


expressão “esta é a Lei e os Profetas” atesta. Semelhantemente ao segundo
grande mandamento, ela pressupõe algum tipo de autoestima, uma vez que
aquilo que devemos fazer ao próximo (ou nos abstermos de fazer) está
pautado naquilo que gostaríamos que ele nos fizesse (ou que se abstivesse de
fazer). É que o nosso amor-próprio espera coerentemente que as pessoas
ajam (comissiva ou omissivamente) de maneira sempre benéfica para conosco.

Entretanto, assim como se dá com o mandamento do amor ao


próximo, a regra de ouro não prescinde do conteúdo da Escritura. Isso porque
é comum e possível que a natureza não regenerada insista em agir
pecaminosamente com o próprio na mesma medida pecaminosa que gostaria

197
ADAMS, Jay E. Autoestima: Uma perspectiva Bíblica. São Paulo: ABCB – Associação Brasileira de
Conselheiros Bíblicos, 2007. p. 79
198
GEERHARDUS VOS, Johannes, Catecismo Maior de Westminster Comentado, p. 395
que o próximo agisse para com ela. Assim, uma cobiça adúltera gostaria de ser
correspondida na mesma exata proporção, por exemplo.

Destarte, quando nosso Senhor resume a Lei, quer através do


mandamento do amor, quer da regra de ouro, Ele pretende, sim, resumi-la,
sintetizá-la naquilo que é o seu princípio motor e naquilo que perpassa toda a
verdadeira obediência e que, em última instância, cumpre seu espírito, mas
jamais esvaziá-la de seu conteúdo ético, estabelecido, maiormente, no
Decálogo.

Em termos práticos, percebeu J. C. Ryle que a regra de ouro é uma


diretriz para as diversas situações nas quais não dispomos de uma norma do
tipo “faça isso” ou “não faça aquilo” que as resolva nitidamente. Ryle ponderou
que nosso Senhor “sabia que haveria ocasiões em que nossa maneira de agir
em relação ao próximo não estaria definida com exatidão (...). Ele nos forneceu
um preceito para nos orientar em todos os casos em que necessitamos de
sabedoria (...)”199, a regra áurea.

199
RYLE, J. C. Meditações no Evangelho de Lucas. São José dos Campos, SP: FIEL, 2013. p. 92, 93
11. Honra Teu Pai e Tua Mãe

1. O significado.

“Honra teu pai e tua mãe, para que se prolonguem os teus dias na terra que o
SENHOR, teu Deus, te dá” (Ex 20:12)

Qualquer abordagem do quinto mandamento minimamente digna de


atenção deve iniciar-se com a paternidade divina, o “Pai arquétipo”. É como
procederemos.

Todos os atributos, comunicáveis e incomunicáveis, pertencem


igualmente e na mesma medida máxima de perfeição às pessoas santíssimas
da Trindade. Deus o Pai é eterno; Deus o Filho é eterno; Deus o Espírito é
eterno. E assim por diante.

Sabemos também que na unidade do ser divino subsistem três


pessoas, ou personalidades, ou centros de autoconsciência - o Pai, o Filho e o
Espírito -, que, embora coexistentes na mesma e única divindade (não como
partes que, somadas, formam o todo), não se confundem entre Si. Cada uma
das pessoas benditas do Deus Trino possui um atributo exclusivamente Seu
que a distingue das demais. Daí que, para o nosso interesse, é de relevo
anotar que o atributo pessoal da primeira pessoa da Trindade é a paternidade.
Ele é, como dizem os teólogos, a pessoa “não gerada” da divindade. “Pai”,
frise-se, é o atributo divino pertencente exclusivamente a “Deus o Pai”.

Quando os escritores da Bíblia atribuem o título de Pai a Deus, não


o fazem em termos de uma figura de linguagem ou metaforicamente. Deus é
de fato “o Pai dos espíritos”200 (Hb 12:9), no sentido de ser não somente o Pai
dos filhos que adotou mas o criador absoluto da vida. Deus também - e aqui
está o motivo do espanto do apóstolo João frente à tamanha demonstração do
amor divino (I Jo 3:1) -, é Pai dos filhos que adotou em Cristo (Ef 1:5), motivo
pelo qual podemos falar-Lhe “Pai nosso, que estás nos céus” (Mt 6:9) e clamar-
Lhe “Aba, Pai” (Rm 8:15; Gl 4:6). E, finalmente, em um sentido absolutamente
exclusivo, Deus é o Pai de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo (Ef 1:3), Seu
Filho Unigênito (Jo 1:18), Seu próprio Filho (Rm 8:32).

Dito de outro modo, os autores inspirados da Palavra de Deus não


atribuem paternidade a Deus a partir da paternidade humana. O contrário disso
é que corresponde à verdade, como se concluir a partir de Ef 3:14, 15: “Por
esta causa, me ponho de joelhos diante do Pai, de quem toma o nome toda

200
É oportuno anotar a observação de Donald A. Hagner, segundo a qual a frase “Pai dos espíritos” se
assemelha à expressão “Deus dos espíritos de todos os viventes”, de Nm 16:22, 27. A. HAGNER, Donald.
Novo Comentário Bíblico Contemporâneo: Hebreus. São Paulo: Editora Vida, 1997. p. 248
família, tanto no céu como sobre a terra”. Para Paulo, toda a noção de
paternidade emana de Deus. É nesse sentido a interpretação de John Stott à
passagem supra. Ouçamo-lo:

É possível, portanto, que Paulo esteja dizendo não somente que a


família cristã recebe o seu nome do Pai, mas, sim, que a própria
noção de paternidade é derivada da paternidade de Deus. Neste
caso, o verdadeiro relacionamento entre a paternidade humana e a
paternidade divina nem é de analogia (“Deus é um pai como os pais
humanos”), nem de projeção (a teoria de Freud de que inventamos
Deus porque precisávamos da figura de um pai celestial), mas, sim, é
de derivação (sendo que a paternidade de Deus é a realidade
arquetípica, “a fonte de toda a paternidade da qual se possa
conceber”) (com grifos nossos)201.

Entretanto, embora pertença somente a Deus o título de “Pai”, tanto


quanto toda a noção de paternidade emane dEle, Ele concedeu aos homens a
paternidade-maternidade como expressão de Sua própria paternidade. O que
estou a afirmar é que Deus comunicou às figuras humanas do pai e da mãe,
enquanto tais, algo do ser divino, cujos status e função assemelham-se às
prerrogativas divinas mais do que quaisquer outras. Por exemplo, Deus nos
gera e somos gerados por nossos pais; Deus cuida de nós e somos cuidados
por nossos pais; Deus nos disciplina e somos disciplinados por nossos pais.

A semelhança, repito, não é casual, nem metafórica, nem analógica


(como afirmou Stott), tampouco de projeção (como queria Freud). Em verdade,
o que ocorre é que Deus - o Pai original, a fonte de toda a paternidade -,
compartilhou com homens e mulheres um título divino, fazendo-o acompanhar
inclusive da exigência de uma respeitabilidade proporcionalmente assemelhada
à que se Lhe deve. Enquanto a primeira tábua é aberta com a exigência de
adoração a Deus; a segunda, o é com a exigência de honra aos pais.

Assim, afirmou Calvino, “naquele que é nosso pai é devido reputar


algo de divino, uma vez que, não sem causa, traz consigo um título divino”202.
Nesse mesmo sentido, Lutero bradou em seu Catecismo Maior que

A paternidade e a maternidade receberam de Deus um destaque


especial em comparação com todas as demais classes de pessoas
que se encontram debaixo de Deus: ele não manda simplesmente
amar os pais, mas respeitá-los. Pois em relação a irmãos, irmãs e ao
próximo de maneira geral ele nada mais ordena do que amá-los.
Portanto ele distingue pai e mãe dentre todas as pessoas sobre a
Terra e os coloca ao lado de si mesmo. (...) Também não exige
apenas que a gente se dirija a eles de forma amável e reverente, mas
que, com sinceridade e com gestos físicos, também se demonstre o
alto conceito que se tem por eles, considerando-os os mais elevados
depois de Deus... (...) Portanto se deve colocar na cabeça das
pessoas jovens que seus pais são representantes de Deus e que

201
R. W. STOTT, John. A Mensagem de Efésios. São Paulo: ABU Editora, 1991. p. 95
202
CALVINO, João. A Instituição da Religião Cristã. Tomo 1. Livros I e II. São Paulo: Editora UNESP, 2008.
p. 380
tenham esse conceito mesmo que os pais sejam gente humilde,
pobre, frágil e esquisita; apesar de tudo, são pai e mãe dados por
Deus. Sua conduta ou deficiência não tira deles a respeitabilidade
(...)203.

Mas isso não é tudo. Devemos acrescentar que contribuem à


formação das crianças e jovens outros “pais”, além dos biológicos e dos pais
de fato. Refiro-me aos pais docentes (que contribuem à nossa formação
intelectual), aos pais políticos (que contribuem à nossa formação cidadã e
convivência social), aos pais eclesiásticos (que auxiliam em nossa formação
cristã) e aos pais em geral (os idosos), pessoas também contempladas (por
extensão, embora necessariamente) no quinto mandamento.

Essa foi uma compreensão praticamente unânime entre os


reformadores. O Catecismo Maior de Westminster, na pergunta 123, esclarece,
a propósito, que “As palavras pai e mãe no quinto mandamento significam não
apenas os pais naturais, mas todos os superiores em idade e dons e
especialmente todos aqueles que, por ordenança de Deus, têm autoridade
sobre nós, seja na família, na igreja ou no Estado” (grifei). A pergunta 104 do
Catecismo de Heidelberg (“O que Deus exige no quinto mandamento?”) é
respondida em tons semelhantes: “Devo prestar toda honra, amor e fidelidade
a meu pai, à minha mãe e a todos os meus superiores (...); porque Deus nos
quer governar pelas mãos deles” (com grifo).

Portanto, sob a luz do exposto, concluímos que o quinto


mandamento destaca a importância da autoridade, pela qual Deus nos quer
fazer-nos a todos submetidos à Sua vontade, razão pela qual devemos
reverenciar aqueles que nos são superiores (em idade, em dons, pelo cargo ou
ofício que exercem), concedendo-lhes a honra devida e lhes obedecendo aos
comandos enquanto estes não conflitarem com a vontade revelada de Deus.

2. O que o quinto mandamento nos proíbe?

Ponderemos nesse ponto de nossos estudos sobre as proibições


ínsitas ao quinto mandamento.

1. No Antigo Testamento.

O Antigo Testamento proíbe a atitude dos filhos - e de todos - no


sentido de nutrir desprezo pelos pais - ou por aqueles que se encontram
investidos de autoridade - (Pv 23:22; Ez 22:7; Mq 7:6). O desprezo que se tem
em mente é a atitude, por ações, omissões, palavras ou gestos, que
menospreza, que desmerece a autoridade, que não lhe concede o devido
respeito nem confere à palavra e aos conselhos a devida importância, como o
que encontramos na postura dos filhos de Eli (I Sm 2:22-25; cf. Dt 21:18-21).

203
LUTERO, Martim. Catecismo Maior. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 2012. p. 43
O desprezo é uma forma mais velada de rebelião, que pode, em
seguida, assumir uma atitude de zombaria ou escarnecimento (Pv 30:17),
quando passa-se a ridicularizar a autoridade daquele que é superior. Parece ter
sido um olhar desdenhosamente jocoso lançado por Cam sobre a nudez de
Noé que o fez digno da maldição, que, ainda não satisfeito, divulgou a conduta
vergonhosa do pai aos irmãos (Gn 9:21, 22). Na ocasião, como as maldições e
bênçãos eram dirigidas aos descendentes de Cam, Sem e Jafé, não
estranhamos em ver que Canaã, filho de Cam, é que recebeu a maldição.

O quinto mandamento pode, por razão ainda mais óbvia, ser


transgredido pela rebeldia aberta daqueles que, muita vez por inveja, não
admitem a autoridade dos que lhe são superiores (Is 3:5; I Sm 10:27). Foram
desse jaez a sedição de Arão e Miriã (Nm 12:1, 2), a rebelião de Corá, Datã e
Abirão (Nm 16:3) e a insurreição de Absalão (II Sm 15:1-18).

Finalmente, a rebeldia pode atingir níveis ainda mais graves, tais


como o ato de amaldiçoar, o abandono na velhice e a agressão física (Ex
21:15, 17; Pv 19:26; 20:20). Johannes Geerhardus Vos esclarece que
amaldiçoar é “tomar o nome de Deus em vão, desejando ou orando para que o
mal atinja a pessoa amaldiçoada; ou qualquer desejo e oração pecaminosa,
mesmo que o nome de Deus não seja mencionado”204.

Os casos de abandono e violência contra pessoas idosas são


bastante conhecidos e crescem alarmantemente no Brasil. A sociedade
brasileira está irreversivelmente mais velha, dado associado ao aumenta da
vida e à redução da natalidade. O aumento da expectativa de vida mais que
dobrou do início (33 anos) ao final do século XX (quase 70 anos). Os
indicadores do IBGE de 2003 afirmam que havia no país, em 2002, 16.022.231
pessoas com mais de sessenta anos (9,3% do total dos habitantes), enquanto
estima-se que em 2020 a população idosa no Brasil atingirá 25 milhões e
representará 11,4% do total dos brasileiros.

As condições sociais dos idosos brasileiros não são das melhores.


Apenas 25% deles ganham três salários mínimos ou mais. Os demais (75%)
são considerados pobres e 43% estão na faixa da miserabilidade (têm renda
per capita abaixo de um salário mínimo).

Não bastassem esses dados, estudos antropológicos indicam que


há na maioria das sociedades um anseio pelo descarte da pessoa idosa, para
não mencionar o autoflagelo imposto a si pelo próprio idoso. “Nas sociedades
ocidentais, o desejo social de morte dos idosos se expressa, sobretudo, nos

204
GEERHARDUS VOS, Johannes. Catecismo Maior de Westminster Comentado. São Paulo: Editora Os
Puritanos, 2007. p. 404
conflitos intergeracionais, nas várias formas de violência física e emocional e
nas negligências de cuidados”205.

Em suas próprias famílias, o idoso é maltratado, extorquido,


negligenciado, exposto a toda sorte de abusos e lançado aos cuidados dos
asilos. Esse menoscabo ao idoso está diretamente relacionado ao culto à
juventude de uma sociedade enlouquecidamente hedonista na qual a pessoa
vale o quanto produz, ganha e pode divertir-se e consumir. Some-se a isso a
perda do valor da vida da pessoa idosa para ela mesma, porque concentrou
todo sentido da existência no exercício de poder, no sexo, no trabalho ou
equivalentes e, na medida em que a idade lhe privou dessas coisas, ela não viu
mais nenhuma razão plausível para viver (cf. Ec 12).

As três maiores causas de morte violenta de idosos são os


acidentes, as quedas e, em terceiro lugar, os homicídios. O parricídio-matricídio
mais conhecido no Brasil talvez seja o assassinato do casal Manfred Albert von
Richthofen e Marísia von Richthofen, ocorrido em 30 de outubro de 2002, pelo
namorado da filha Suzane von Richthofen, Daniel Cravinhos de Paula e Silva, e
o irmão deste, Cristian Cravinhos de Paula e Silva, com a efetiva participação
de Suzane.

O fato de que estes pecados tenham sido punidos com a pena


capital por apedrejamento (Ex 21:15, 17; Lv 20:9; Dt 21:18-21) revela sua
gravidade, aos olhos de Deus.

2. No Novo Testamento.

O Senhor Jesus relembra aos fariseus o quinto mandamento (Mt


15:4), acusando-os de transgredirem-no não servindo aos pais com os bens
que possuem, em favor de uma tradição rabínica pela qual alegavam que só
não sustentavam os pais porque haviam consagrado seu dinheiro a Deus (Mt
15:1-9). A parábola do filho pródigo descreve o resultado imediato da rebeldia
do filho mais moço daquele certo homem, ao querer sua herança antes do
tempo, o que, na cultura oriental da época, equivalia a um desejo pela morte do
pai (Lc 15:11-16); enquanto nada nos diz sobre o destino do filho mais velho,
cujo relacionamento com o pai não era melhor que o do irmão (Lc 15:25-32).

O apóstolo Paulo, de seu turno, assevera que “se alguém não tem
cuidado dos seus e especialmente dos da própria casa, tem negado a fé e é
pior do que o descrente” (I Tm 5:8).

3. O que o quinto mandamento nos ordena?

205
CECÍLIA DE SOUZA MINAYO, Maria. Violência Contra Idosos: O Avesso de Respeito à Experiência e à
Sabedoria. Acesso em 11/02/2016:
http://www.observatorionacionaldoidoso.fiocruz.br/biblioteca/_livros/18.pdf.
É hora de nos certificarmos das ordens positivas que emanam do
quinto mandamento. Se não, vejamos.

O quinto mandamento exige que os pais e, por extensão, todos


quantos nos são superiores, em idade, dons ou pela função, cargo ou ofício
que exercem, sejam honrados (Ml 1:6; Lv 19:3, 32; Pv 31:28; Ef 6:2). O verbo
hebraico “honrar” é correlato do vocábulo “kabod”, que significa peso,
importância, valor. Ou seja, o mandamento nos impõe o dever de nutrir pelos
nossos superiores uma atitude de reverência apropriada, de apreço que
concede valor e prestígio. Tal atitude se projeta, como veremos, nas mais
variadas maneiras como nos relacionamos com eles.

Em primeiro lugar, honramos nossos superiores quando lhes


obedecemos aos comandos e conselhos voluntariamente (Pv 4:3, 4, 20; Cl 20),
como pode se ver, a título de exemplos, nas atitudes de Moisés para com
Jetro, seu sogro (Ex 18:19, 24), de José para com Jacó (Gn 37:14; 47:30) e de
Isaque para com Abraão (Gn 22:6-12). Mais que isso, é dever dos inferiores
consultar os superiores em busca de orientações e conselhos, sempre que
cabível e necessário.

A obediência requerida pelo apóstolo, a propósito do quinto


mandamento, é qualificada pelas frases “no Senhor” (Ef 6:1) e “em tudo” (Cl
3:20). A expressão “em tudo” indica a extensão da obediência e comunica que
os filhos não têm direito de escolher quais comandos devem obedecer ou não.
É dizer, a obediência em foco não é seletiva, vinculada somente àquilo que dá
prazer. Entretanto, “em tudo” não significa “em tudo, inclusive quando o
comando do superior for manifestamente contrário à vontade revelada de
Deus”.

Na verdade, ninguém está obrigado a fazer aquilo que desagrada a


Deus, o Pai celestial. Ao contrário, perante ordens que nos mandam contrariar
a vontade de Deus, o dever que se nos impõe é o da desobediência, sem que
se precise cogitar de qualquer conflito ético ou violação do quinto mandamento
em qualquer medida. Os amigos de Daniel, destarte, não violaram o quinto
mandamento quando desobedeceram a ordem de Nabucodonosor (Dn 3:4-18),
tampouco os apóstolos, ao se insurgirem contra o Sinédrio (At 5:27-32). É o
que denominei ética conglobante alhures.

Nesse tocante, todavia, é bem vinda a advertência de Augustus


Nicodemus Lopes e Minka Schalkwijk Lopes quando tratam da relação entre
pais e filhos, no sentido de que “é preciso muita cautela antes de decidirmos
que a obediência aos pais se justifica em nome da religião”. Esses autores
esclarecem que muitas “seitas” e “igrejas evangélicas” acabam incitando os
jovens a desobedecerem às ordens dos pais para serem membros assíduos e
advertem que “Os filhos devem fazer uma diferença entre orientações e
determinações difíceis de obedecer e aquelas que simplesmente são contra a
Palavra de Deus”206.

A expressão “no Senhor”, de Efésios 6:1, a seu turno, é igualmente


importante. Trata-se de outra forma de qualificar o quinto mandamento que
também guarda relação com os limites da obediência, conforme acima
considerados. Entretanto, vai mais além. Como percebeu John Stott, estas
palavras “trazem a obediência dos filhos para o âmbito do dever
especificamente cristão, e colocam sobre os filhos a responsabilidade de
obedecer aos pais por causa do seu próprio relacionamento com o Senhor
Jesus Cristo”207. É dizer, todos os filhos deste mundo devem obediência aos
pais, pois o quinto mandamento é parte da lei natural de Deus. No entanto,
para os cristãos, ele integra seus deveres para com o Senhor, que opera no
evangelho a restauração dos relacionamentos, inclusive dos naturais.

Esse fato, por si só, já nos indicaria que uma obediência apenas
superficial, “mecânica” e “com má vontade”, nas palavras de Martyn lloyd-
Jones, não se coaduna com a compreensão cristã do mandamento em análise.
Muito ao contrário, concluiu o ministro congregacional, “Os filhos devem
reverenciar e respeitar seus pais, devem dar-se conta da situação que
prevalece entre eles, e devem alegrar-se com isso. Devem considerá-lo um
grande privilégio e, portanto, devem esforçar-se para mostrar essa reverência,
este respeito em todas as suas ações”208.

Em segundo lugar, honramos nossos superiores quando, também


como expressão de obediência - nos submetemos de boa vontade à sua
autoridade e disciplina (Pv 3:11, 12; Hb 12:9; 13:17), acatando suas correções,
repreensões, castigos e sanções. A implicação do quinto mandamento ora
analisada é uma espécie de especialização da anterior, uma obediência
especializada - a obediência que se submete à disciplina. É desse naipe a
submissão ordenada pelos apóstolos (Rm 13:1-5; I Pe 2:13-17), perfeitamente
ilustrada pela atitude requerida de Agar perante Sara pelo Anjo do Senhor (Gn
16:7-9).

Em dias como os nossos, nos quais impera afronta a toda espécie


de autoridade, cumpre asseverar com a energia necessária esse ponto. A
disciplina não é boa se considerada isoladamente, não é o fim em si mesma. O
escritor aos Hebreus consentiu que a disciplina (quer divina, quer humana) “no
momento não parece ser motivo de alegria, mas de tristeza” (Hb 12:11a). Então
deveremos atentar ao fim que ela, como meio, realmente almeja: “ao depois,

206
NICODEMUS LOPES, Augustus; SCHALKWIJK LOPES, Minka. A Bíblia e a Sua Família: Exposições
Bíblicas sobre o Casamento, Família e Filhos. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2001. p. 130
207
R. W. STOTT, John. A Mensagem de Efésios. São Paulo: ABU Editora, 1991. p. 183
208
LLOYD-JONES, D. M. Vida no Espírito: no Casamento, no Lar e no Trabalho. São Paulo: PES, 1991. p.
190
entretanto, produz fruto pacífico aos que têm sido por ela exercitados, fruto de
justiça” (Hb 12:11b). Assim haveremos de nos submeter aos nossos pais e
superiores porque Deus nos tem aperfeiçoado por meio deles.

Perante as autoridades estatais, a submissão ora referida implica em


pagamento de impostos, tanto quanto no reconhecimento da devida honra (Rm
13:6, 7), conforme também salientado pelo Senhor Jesus (Mt 22:17-21).

Aqui também importa destacar a questão em torno dos limites da


submissão. Devem os cristãos submeter-se voluntária e resignadamente a
afrontas injustas de toda espécie, a maus tratos e a torturas de autoridades
estatais, em nome do quinto mandamento? Os filhos deveriam se submeter a
violências sexuais, a espancamentos e a outras crueldades praticados pelos
pais?

Para início de conversa, parece-nos claro que aos cristãos é dado o


direito de envidar fugas perante iminentes ataques agressivos injustificáveis por
parte de autoridades, ainda que estas estejam agindo conforme os padrões de
justiça espraiados nas leis vigentes do Estado com o qual estejam vinculados,
e mesmo cumprindo ordens superiores. Uma coisa é submeter-se à carga
tributária que chega às raias do confisco – como a brasileira, outra, bem
diversa, é deixar-se torturar voluntariamente para cumprir o dever de
submissão. Quanto a isso, é ilustrativo apontar que Paulo empreendeu fuga de
Damasco descendo em um cesto de uma casa edificada sobre os muros da
cidade, em face da deliberação dos judeus em matá-lo (At 9:23-25). Conforme
a narrativa do próprio Paulo, a investida contra sua vida foi forjada pelo rei
Aretas do reino árabe nabateo (II Co 11:32, 33).

É igualmente evidente que o cristão pode e deve utilizar os


instrumentos estatais de proteção das liberdades públicas – liberdades
invocadas em face do Estado. Em mais de uma ocasião, o apóstolo Paulo
aproveitou-se de suas credenciais de cidadão romano. Em Filipos, ele o fez
para denunciar uma punição sem processo e exigir uma retratação formal (At
16:37-39); em Jerusalém, para livrar-se de açoites sem prévia condenação (At
22:22-29); em Cesareia, lançando mão do que chamaríamos hoje de duplo
grau de jurisdição, para evitar eventual decisão injusta (At 25:10).

O que desejo ressaltar é que devemos nos submeter


voluntariamente aos superiores, inclusive diante de ordens desarrazoadas e
em situações desconfortáveis. Entretanto, há limites cujas balizas envolvem,
pelo menos, os valores liberdade, vida e integridade física e psicológica.

Em terceiro lugar, também honramos nossos pais e superiores


sendo-lhes gratos pelos que nos fizeram. A ingratidão anda mais próxima do
desrespeito do que costumamos imaginar. O reverso é também verdadeiro.
Para Calvino, o quinto mandamento exige basicamente reverência, obediência
e gratidão209. Outra não foi a conclusão de Lutero, para quem “perante o
mundo temos o dever de mostrar gratidão por todos os benefícios e favores
que recebemos dos pais”, acrescentando que “A Deus, aos pais e aos mestres
nunca se poderá agradecer e recompensar o suficiente”210.

Em razão da gratidão, honramos nossos superiores os apoiando,


oferecendo-lhes o suporte de que carecem, das mais varadas ordens.
Podemos, como exemplos, lhes dar nossa presença (Mt 26:38), a nossa
capacidade de ouvir com sensibilidade, o sustento financeiro (Gl 6:6; I Tm
5:17), auxílio ao seu serviço (II Tm 4:11) e interseções (I Tm 2:1, 2).

Outra maneira pela qual apoiamos os nossos pais e superiores,


também como expressão da gratidão, é ajudando-os em suas limitações e
pecados. Líderes não são super-homens, nem, por isso mesmo, podem ser
idolatrados e tampouco estão imunes à crítica. Eles precisam de conselhos
sábios e de exortação sincera e construtiva. Todavia, é fato que ninguém
escarnece dos pecados de quem respeita, nem os espalha levianamente,
porque o respeito encobre pecados, como se pode verificar na atitude de Sem
e Jafé no momento vexatório da vida de Noé (Gn 9:23). Por outro lado,
estejamos prontos a reconhecer suas virtudes e, muito mais, a imitá-las (Hb
13:7; Fp 3:17).

4. O dever correspondente dos superiores.

Segundo o Catecismo Maior de Westminster, em sua resposta à


pergunta 126, “O alcance geral do quinto mandamento é o cumprimento dos
deveres que mutuamente temos uns para com os outros em nossas diversas
relações como inferiores, superiores ou iguais”. Seguindo em suas linhas, e
para aquilo que nos propusemos em nossos estudos do Decálogo, convém
acrescentar que o quinto mandamento realmente traz um dever correlato a
quem exerce qualquer tipo de ascendência perante seus “inferiores”.

Destarte, ao pastor cabe apascentar a igreja de Deus sem


constrangimentos e ganância, mas com boa vontade e sendo modelo do
rebanho (I Pe 5:1-5), segundo o padrão apostólico exigido ao que deseja o
episcopado (I Tm 3:1-7). Deve orar por ela e afadigar-se no ensino, a fim de
instruí-la conforme a Palavra de Deus (Cl 4:12; II Tm 2:15; 4:1, 2), mantendo
em mente os interesses da igreja como superiores aos seus (Fp 2:20).

Os anciãos, por sua vez, devem ser destacados com a devida


reverência (Lv 19:32; I Tm 5:1). Com efeito, a beleza dos velhos são as suas

209
CALVINO, João. A Instituição da Religião Cristã. Tomo 1. Livros I e II. São Paulo: Editora UNESP, 2008.
p. 380
210
LUTERO, Martim. Catecismo Maior. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 2012. p. 46
cãs (Pv 20:29). Entretanto, por outro lado, “Coroa de honra são as cãs, quando
se acham no caminho da justiça” (Pv 16:31, com grifo meu). Por isso, espera-
se dos idosos sabedoria, postura respeitável, sobriedade e disposição ao
ensino (Tt 2:2-5).

Na sequência, destacaremos em dois números, respectivamente, os


deveres correlatos dos pais e do governo civil.

1. Sobre os deveres dos pais. É dever pertencente de maneira


preponderante ao pai e à mãe - do modo como não o é do Estado e nem
mesmo da escola e da igreja - a formação cristã dos filhos, o que certamente
inclui ensino persistente (Dt 6:6, 7) e disciplina corretiva apropriada (Pv 29:15).
A tamanha necessidade da disciplina em seu duplo aspecto, positivo e
negativo, se justifica em face da corrupção da natureza com a qual somos
concebidos e nascemos (Sl 51:1; 58:3). O sábio adverte que “A estultícia está
ligada ao coração da criança” (Pv 22:15), razão pela qual em diversas ocasiões
somente palavras não resolvem.

Nos códigos domésticos do Novo Testamento, ouvimos a exortação


para não provocarmos nossos filhos à ira, nem os irritemos para que não
fiquem desanimados, mas que os criemos na disciplina e na admoestação do
Senhor (Ef 6:4; Cl 3:21). Os textos transcritos nos mandam, a todos nós, pais e
mães, um recado no sentido de evitarmos os excessos, de um lado, no rigor
disciplinar que deixam nossos filhos irados e desanimados e, de outro, o
abandono dos filhos a si mesmos. “Paulo deseja que criemos nossos filhos
exercitando a correção necessária, sem abusos e sem omissões” 211, se não,
vejamos.

Considerando negativamente, Paulo impõe aos pais o dever de não


provocar os filhos à ira (Ef 6:4). A proibição é no sentido de, no uso de nossa
autoridade, não incitarmos nossos filhos à rebeldia, porque, obviamente, o que
desejamos é que eles observem o quinto mandamento. Em Cl 3:21, a palavra
usada é outra, que significa provocar ressentimentos. O que está em foco aqui,
como concluiu Calvino, é que o uso de uma severidade imoderada conduz o
filho a “lançar de si o jugo [paterno] de uma vez para sempre”, enquanto, por
outro lado, “O tratamento bondoso e liberal conserva a reverência dos filhos
para com seus pais, e aumenta a prontidão e alegria de sua obediência” 212.

Segundo William Hendrksen, nós podemos levar nossos filhos a um


ânimo irado “por excesso de proteção”, “por favoritismo”, “por desestímulo”,
“por não reconhecer o fato de que o filho está crescendo, e portanto tem o
direito de ter suas próprias ideias, e que não é necessário que seja uma cópia

211
NICODEMUS LOPES, Augustus; SCHALKWIJK LOPES, Minka. A Bíblia e a Sua Família: Exposições
Bíblicas sobre o Casamento, Família e Filhos. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2001. p. 138
212
CALVINO, João. Efésios. São Bernardo do Campo, SP: Edições Paracletos, 1998. p. 180, 181
exata de ser pai para ter êxito na vida”, “por negligência” e “pelo uso de
palavras ásperas e por crueldade”213. John Gill, citado por Augustus Nicodemus
Lopes e Minka Schalkwijk, a propósito de Ef 6:4, listou diversas formas pelas
quais podemos incorrer no erro em análise:

Através de palavras: ordens injustas e irracionais; linguagem


contundente e censurável; críticas frequentes e públicas; expressões
indiscretas e nervosas. E através de atos: preferir um filho mais que
os outros; negar-lhes o necessário para a vida; negar-lhes a
recreação apropriada e necessária; espancá-los de forma severa e
cruel; usá-los de forma desumana; negar-lhes uma educação
adequada; desperdiçar a herança deles; dá-los em casamentos
impróprios e visando seu proveito214.

Uma forma bárbara, cruel e extraordinariamente perversa que tem


destruído a personalidade de uma miríade de crianças é o abuso sexual.
Segundo Ana Maria Brayner Iencarelli, “o abuso sexual tortura e causa
adoecimento e, até, a morte psíquica de uma criança” 215. Ela informa-nos que a
criminalização da conduta só veio a ocorrer no século XIX, em alguns países
da Europa, e a primeira condenação ocorreu na França, em Dijon, no ano de
1861, que puniu a sedução de uma menina de 13 anos 216.

Iencarelli ainda pontua que “Pai e padrasto são responsáveis pela


esmagadora maioria dos casos, seguidos de tios, irmãos mais velhos, avôs, e
amigos dos pais, religiosos, professores, enfim, figuras de autoridade afetiva”.
Ela ainda nos conta acerca do número alarmante de situações denunciadas,
que gira em torno de quase duas dezenas de crianças abusadas por dia,
acrescentando que “um terço das mulheres e um quinto dos homens foram
abusados na infância e permaneceram sob o silêncio total ou parcial, o silêncio
intrafamiliar. E, o pior, cerca de três quartos dos casos de abuso são praticados
contra crianças de 0 a 5 anos, bebês até o final da primeira infância” 217.

Por fim, o pensamento paulino foi sabiamente sumariado por Martyn


Lloyd-Jones, para quem

A disciplina deve ser praticada com amor, e se você não puder


praticá-la com amor, não tente aplica-la de modo nenhum. Nesse
caso, terá necessidade de tratar de si próprio primeiro. (...) O objetivo
da disciplina não é manter o seu padrão ou dizer: “Decidi que tem que
ser assim, e assim será”. Você não deve pensar primordialmente em

213
HENDRIKSEN, William. Comentário do Novo Testamento: Efésios e Filipenses. São Paulo: Cultura
Cristã, 2005. p. 311
214
Ibdem. p. 141
215
MARIA BRAYNER IENCARELLI, Ana. Abuso sexual: Uma Tatuagem na Alma de Meninos e Meninas. São
Paulo: Zagodoni, 2013. p. 21
216
No Brasil, o crime de “Estupro de Vulnerável” (Art. 217-A do Código Penal) – a prática de “Ter
conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos” – é punido com pena
privativa de liberdade de reclusão, de 8 a 15 anos. É considerado um crime hediondo, para efeito de
aplicação dos dispositivos mais gravosos da Lei 8.072/90 (que dispõe sobre os crimes hediondos).
217
Ibdem. p. 23, 24
si próprio, e sim no filho. O bem do filho deve ser o seu motivo
dominante. Você deve ter um conceito correto da paternidade e
considerar o filho como uma vida que Deus lhe deu (...)218.

O aspecto positivo do exercício da paternidade-maternidade é


também acentuado pelo apóstolo Paulo, ao qual nos voltamos: “criai-o na
disciplina e na admoestação do Senhor”. As expressões “criar”, de uma banda,
e “disciplina” e “admoestação”, de outra, concedem ao dever paterno-materno
perfeito equilíbrio. “Criar” é palavra carregada de amabilidade, quando aplicada
à criação de filhos, e significa que devemos dar aos nossos filhos não apenas o
alimento físico, como também o intelectual, o moral, o espiritual e o emocional.
Calvino traduziu a cláusula assim: “que eles sejam amavelmente criados” 219. O
notável é que o apóstolo exortou os efésios com essas palavras em um mundo
romano no qual o pai detinha direitos quase absolutos sobre o corpo,, a
liberdade e a vida filhos.

Por outro lado, amabilidade sem disciplina é uma forma


irresponsável de entregarmos nossos filhos a si mesmos, de os assistirmos
passivamente se corromperem. “A vara e a disciplina dão sabedoria, mas a
criança entregue a si mesma vem a envergonhar a sua mãe” (Pv 29:15). A
palavra “disciplina” (gr. “paideia”), usada por Paulo, indica treinamento com
ênfase na correção dos jovens. É um treinamento por disciplina, e com “vara”,
se necessário. A palavra “admoestação” (gr. “nouthesia”) é sobretudo
treinamento com palavras e, quando necessário, palavras de reprovação,
correção e repreensão. Ademais, a disciplina e a admoestação que Paulo tem
em mente são “do Senhor”, próprias do Senhor, para significar que realmente
quem está disciplinando e admoestando é o Senhor Jesus, por meio dos pais.

2. Sobre os deveres do governo civil. Seria trágica a vida em uma


sociedade anárquica. Como pondera Norman Geisler, até mesmo “Uma
monarquia é melhor do que uma anarquia total” 220. Assiste também razão a
Wayne Grudem, ao afirmar que

quando não há governo, ou quando o governo é tão fraco que não


consegue impor as leis, os resultados são terrivelmente destrutivos.
Os relatos em Juízes 18-25 abrangem alguns dos pecados mais
horríveis registrados em toda a Bíblia. Pode-se ver nessas passagens
os resultados mais assustadores da anarquia, situação em que não
há governo efetivo, pois “naquela época, não havia rei em Israel;
cada um fazia o que lhe parecia certo” (Juízes 16:6; cf. 18:1; 19:1;
21:25) (com grifo do autor)221.

218
LLOYD-JONES, D. M. Vida no Espírito: no Casamento, no Lar e no Trabalho. São Paulo: PES, 1991. p.
225
219
CALVINO, João. Efésios. São Bernardo do Campo, SP: Edições Paracletos, 1998. p. 181
220
L. GEISLER, Norman. Ética Cristã: Opções e Questões Contemporâneas. São Paulo: Vida Nova, 2010.
p. 293
221
GRUDEM, Wayne. Política Segundo a Bíblia: Princípios que Todo Cristão Deve Conhecer. São Paulo:
Vida Nova, 2014. p. 110, 111
De fato, Grudem acentua que “Quando não há governante, pessoas
pecadoras criam sua própria moralidade e, em pouco tempo, começam a fazer
umas às outras coisas terríveis”222. No entanto, embora admitindo que o
pecado avulte a necessita de um governo civil, ele também infere que mesmo
que não houvesse mal no mundo tal necessidade não seria eliminada 223. É
que, pontua, uma de suas responsabilidades é promover o bem comum da
sociedade, por meio de atividades tais como “construção e regulamentação de
estradas, a instituição de pesos e medidas padronizados, a manutenção dos
registros públicos, a instituição de leis para a segurança (...), a padronização da
energia elétrica e a definição de uma moeda a ser usada para transações
dentro de determinado país” 224.

Feitos os primeiros esclarecimentos, o que se deve esperar das


autoridades públicas? Para que Deus as instituiu (Rm 13:1, 2)?

Em primeiro lugar, das autoridades públicas, nos seus respectivos


serviços, exige-se imparcialidade no julgamento (Dt 16:18, 19), governo
pautado no temor a Deus e despido de excentricidades e arbitrariedades (Dt
17:14-20). Os governos devem defender os oprimidos (Sl 82:2-4), praticar a
justiça e ser misericordiosos para com os pobres (Dn 4:27).

Em segundo lugar, o governo civil deve exercer justiça


reconhecendo a prática do bem e punindo a do mal. As autoridades devem
aprovar com “louvor” a prática do bem (Rm 13:3; I Pe 2:14). Por outro lado, os
governantes devem ser temidos por quem pratica o mal (Rm 13:3), porque são
ordenados por Deus para refreá-lo através de ameaças e castigos das más
condutas (I Pe 2:14; Gn 9:5, 6).

Não sem razão, a autoridade pública é chamada por Paulo de “servo


de Deus” e vingador da prática do mal (Rm 13:4). Quando associamos Rm 13:1
com 12:19, então fica claro que Paulo tanto “instrui os cristãos a não buscarem
vingança pessoal”, quanto que devem permitir que “o malfeitor seja castigado
pela ira de Deus”225. Ademais, segundo Salomão, a aplicação da sanção deve
ocorrer sem demora, sob pena da prática do mal ser incentivada (Ec 8:11).

222
Ibdem.
223
Nas palavras de Leonardo Ramos e Lucas G. Freire, para Abraham Kuyper, “se não houvesse pecado,
não seriam necessários nem as autoridades civis nem a ordem do Estado”. Ramos e Freire ainda anotam
em nota de rodapé que “Kuyper chega inclusive a afirmar que, na ausência do pecado, a vida política
teria se desenvolvido nos moldes de um modelo patriarcal de vida familiar, com a humanidade
associada a um império. Certamente seria uma forma de organizar ‘a complexidade da vida cultural
criada’, e não de punir ofensores”. DOOYEWEERD, Herman. Estado e Soberania: Ensaios Sobre
Cristianismo e Política. São Paulo: Vida Nova, 2014. p. 20
Conforme entendo, não há diferença substancial entre Kuyper e Grudem, quanto ao tema. Ambos estão
dispostos a admitir que o pecado tornou necessário apenas o uso do poder da espada.
224
Ibdem. p. 116, 117
225
Ibdem. p. 114, 115
Quando a autoridade teme a Deus, espera-se dela, ademais, que
abençoe seus governados-administrados-jurisdicionados, orando por eles,
como fizeram Samuel (I Sm 12:23) e Salomão (I Rs 8:54-61).

Em terceiro lugar, a autoridade civil deve ser serva de Deus para o


bem comum do povo (Rm 13:4) e jamais usar a coisa pública para o
enriquecimento pessoal e dos membros de sua própria família, prática
repetidamente condenada na Escritura (Dt 16:19; Sl 26:10; Is 33:15; Hc 1:2-4).

Em quarto lugar, e considerando negativamente, o governo civil não


deve interferir, impondo regras e ideologias, no âmbito da vida privada dos
governados-administrados, tal como se dá com os governos totalitários
comunistas e nazifascistas.

Segundo lição de Abraham Kuyper (1837-1920), com base naquilo


que denominou “soberania das esferas”,

De uma perspectiva calvinista, entendemos, então, que a família, as


empresas, a ciência, a arte, etc. são todas esferas sociais que não
devem sua existência ao Estado e que não derivam sua lei de vida da
superioridade do Estado, mas que obedecem a uma autoridade
superior interna à sua área, uma autoridade que governa
[internamente a elas], pela graça de Deus, tal como o estado o faz
[internamente à sua própria esfera]226.

Para Kuyper, essas “esferas” distintas da vida em sociedade nada


têm acima de si mesmas além do próprio Deus e que o Estado nada tem a
ordenar nessas áreas, devendo intervir somente quando essas esferas entram
em conflito ameaçando a separação entre elas e para combater o abuso de
poder dentro das esferas, com vistas à proteção do mais fraco227.

Os governos totalitários caminham no exato oposto das linhas


propostas pela “soberania das esferas”. Eles pretendem eliminar a liberdade
individual e, conforme Norma Braga Venâncio, “estabelecer um padrão de
pensamento único pelo qual o governo, ou seja, o Estado, torna-se
praticamente indestrutível”228.

Mais presente do que nunca, o comunismo permanece influenciando


as nossas sociedades ocidentais e goza de considerável simpatia entre artistas
e intelectuais, embora tenha feito mais vítimas que o nacional-socialismo
alemão (mais de cem milhões de mortos nos países nos quais foi

226
DOOYEWEERD, Herman. Estado e Soberania: Ensaios Sobre Cristianismo e Política. São Paulo: Vida
Nova, 2014. p. 20
227
Ibdem. p. 21
228
SANTANA, Uziel (org.) et al. Apostasia, Nova Ordem Mundial e Governança Global: Uma
Compreensão Cristã dos Fins dos Tempos. Campina Grande, PB: Visão Cristocêntrica Publicações, 2012.
p. 147
implantado)229. Essa persistente simpatia para com o comunismo, para Braga,
se deve à sua aparente nobreza e ao “parasitismo” em relação aos temas
centrais da teologia cristã, embora os deformando: “a criação divina é
substituída pela matéria autônoma; o pecado original, pela propriedade privada;
a salvação em Cristo, pela revolução socialista” 230, tudo em nome do “amor”.

Numa palavra, deixo, de maneira historicamente oportuna, segundo


penso, uma advertência: não é possível ser cristão verdadeiro e comunista-
marxista coerente! O cristianismo e o comunismo são dois mundos, dois
sistemas de crenças e valores, duas cosmovisões, absolutamente diferentes,
contraditórios e mutuamente exclusivos, quer o tema seja teísmo, criacionismo,
filosofia da história, salvação ou ética. Exatamente por essa razão, desde o
nascedouro, o comunismo tem se voltado hostilmente contra a fé cristã, tendo
o seu mais frutífero expoente chegado a dizer que a religião é o ópio do povo.

A aparente nobreza do comunismo está em seus ideais de igualdade


absoluta, coisa que, na origem, segundo aquele vão de ideias e ideais, deveria
ser conquistada pela luta de classes e com a supressão de toda a propriedade
privada, numa clara violação ao preconizado no oitavo mandamento. Mas não
só. A família também mereceu ataque do ódio comunista, porque ela não se
ajusta aos seus propósitos. Segundo Marx e Engels, a família é uma instituição
perversa porque nela a desigualdade é gestada, pela opressão do macho
sobre as mulheres e filhos.

Como a igualdade tem que ocorrer entre pessoas, e não apenas


entre classes, e a família é a fonte das desigualdades, deve ela ser destruída.
E ainda mais. A igualdade só será conquistada se houver educação de forma
igual para meninos e meninas, na qual resulte da completa abolição de
distinção de gêneros. E que de preferência as nossas crianças sejam
apanhadas na rede pedagógica comunista na mais tenra idade, entes que já
tenham absorvido os valores tradicionais da família pelos pais. Isso explica o
“investimento” em cartilhas, pelos governos de diversos entes estatais
brasileiros, tratando indiscriminadamente sobre eliminação de distinção de
gênero e relações homoafetivas.

Essa corrida cultural pela nova moralidade surgiu após as


insatisfações causadas pelas revoluções comunistas, como uma espécie novo
programa, uma alternativa à luta armada. Percebeu-se mais claramente aquilo

229
Na estimativa do historiador russo Roy Medvedev, o ditador comunista Stálin exterminou 17 milhões
de pessoas por fome, expurgos sangrentos e em consequência do brutal programa de coletivização
agrícola, segundo Reifler. REIFLER, Hans Ulrich. A Ética dos dez Mandamentos. São Paulo: Edições Vida
Nova, 1992. p. 111
230
SANTANA, Uziel (org.) et al. Apostasia, Nova Ordem Mundial e Governança Global: Uma
Compreensão Cristã dos Fins dos Tempos. Campina Grande, PB: Visão Cristocêntrica Publicações, 2012.
p. 144, 145
que Marx já havia intuído no sentido de que o ideal socialista só haveria de ser
implantado através da destruição do cristianismo difundido no tecido social. É
aqui que se origina o denominado “comunismo cultural”.

Eis a razão do crescimento do Estado brasileiro - tornando-se cada


vez mais totalitário -, da sua luta contra os valores da moral e do direito
tradicionais e da sua invasão nas esferas privadas.

Nesse quadrante, após debates acirrados no Congresso Federal,


entrou em vigor no dia 26 de junho de 2014 a Lei 13.010/2014, conhecida
como Lei Menino Bernardo, que alterou o Estatuto da Criança e do
Adolescente (Lei 8.069/90), acrescentando, dentre outros, os dispositivos
constantes no Art 18-A, com a seguinte redação:
Art. 18-A. A criança e o adolescente têm o direito de ser educados e
cuidados sem o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou
degradante, como formas de correção, disciplina, educação ou
qualquer outro pretexto, pelos pais, pelos integrantes da família
ampliada, pelos responsáveis, pelos agentes públicos executores de
medidas socioeducativas ou por qualquer pessoa encarregada de
cuidar deles, tratá-los, educá-los ou protegê-los.
Parágrafo único. Para os fins desta Lei, considera-se:
I - castigo físico: ação de natureza disciplinar ou punitiva aplicada
com o uso da força física sobre a criança ou o adolescente que
resulte em:
a) sofrimento físico; ou
b) lesão;
II - tratamento cruel ou degradante: conduta ou forma cruel de
tratamento em relação à criança ou ao adolescente que:
a) humilhe; ou
b) ameace gravemente; ou
c) ridicularize.

Como se pode perceber, a redação final recebeu os devidos


temperamentos, mas como assevera Norma Braga, não deixa de ser uma
intervenção espúria do Estado nas relações familiares, porque a visão
“politicamente correta” não permite que se faça uma distinção entre uma
“palmada corretiva” e um “espancamento”. Neste caso, que o Estado proteja a
criança do pai desequilibrado, que pode inclusive matá-la; no segundo,
qualquer intromissão estatal é indevida231.

231
SANTANA, Uziel (org.) et al. Apostasia, Nova Ordem Mundial e Governança Global: Uma
Compreensão Cristã dos Fins dos Tempos. Campina Grande, PB: Visão Cristocêntrica Publicações, 2012.
p. 167
12. Não Matarás

1. O significado.

“Não matarás” (Ex 20:13)

O sexto mandamento é uma vigorosa proclamação da santidade da


vida, tanto quanto um imperativo quanto à sua proteção integral. Que a
santidade da vida como um dom de Deus justifica o mandamento em questão,
vê-se desde os tempos de Caim, contra quem a voz do sangue de Abel clamou
(Gn 4:10).

O verbo hebraico usado em Ex 20:13 (“rasah”) indica o assassinato


violento de um inimigo pessoal, de modo que a cláusula poderia ser traduzida
perfeitamente por “não assassinarás”232. O verbo nunca é usado para o
homicídio em legítima defesa (Ex 22:2), nem para homicídios sem dolo e culpa
e culposos (Ex 21:13; Dt 19:5; Nm 35:22-25), tampouco para penas capitais
(Gn 9:6; Ex 21:12). Por outro lado, o verbo “rasah” é usado para o suicídio.

Pelo exposto, o significado do sexto mandamento está relacionado


com os esforços pela preservação da vida, exatamente por ser ela o dom de
Deus, de modo que tudo quanto se intente contra ela seja extirpado e tudo
quanto a promova seja realizado, sem prejuízo de aplicação de penas capitais
pela justiça pública e mortes nos casos de legítima defesa e guerras
justificáveis.

O assassino, em geral, em quaisquer das várias perspectivas que o


termo pode ser apontado, é alguém que se sente “dono” ou “deus” da vida,
dele ou de outrem; ou, na melhor das hipóteses, indiferente a ela. Ele nem
consegue apreciar seu valor, porque despreza o fato da vida refletir a imagem
do Criador, nem tampouco acredita na possibilidade da providência divina, quer
agindo direta e extraordinariamente, quer indireta e ordinariamente. Ele olvida
que a ira humana não produz a justiça de Deus (Tg 1:20).

2. O que o sexto mandamento nos proíbe?

Considerando mais detalhada e negativamente, o sexto


mandamento nos proíbe:

Em primeiro lugar, o ato de tirar a nossa própria vida e a de outrem.


Paulo, em At 16:28, interpretou o suicídio como um “mal” que o carcereiro de

232
COLE, R. Alan. Êxodo: Introdução e Comentário. São Paulo: Mundo Cristão, 1990. p. 153
Filipos estava para fazer contra a própria vida. Semelhantemente, como já
ressaltado nas linhas introdutórias, o “não matarás” impede-nos que tiremos a
vida de outrem, a qualquer título (cf. Rm 12:19), exceto em caso de legítima
defesa (Ex 22:2). Isso inclui a proibição dos crimes de aborto, infanticídio,
homicídio e feminicídio.

Sobre a legítima defesa, Geerhardus Vos esclarece que é uma


defesa mais do que legítima, trata-se em verdade de uma “obrigação moral”.
Suas palavras merecem ser transcritas, in verbis:

A nossa vida não é nossa, mas pertence a Deus e por isso como
despenseiros das propriedades de Deus temos a obrigação de
preservar a nossa própria vida, e a dos outros, da destruição pela
violência criminosa. (...). Alegar que a “regra de ouro”, ou que a
obrigação de amar nosso próximo, significa que seja errado matar
como esforço de autodefesa é empurrar o amor ao próximo para um
extremo absurdo e fanático. A Escritura ordena que se ame o próximo
como a si mesmo, isto é, o amor ao próximo deve estar em equilíbrio
com o amor apropriado a si mesmo. Quem se deixa matar por um
criminoso, sem tentar se defender, ama demais o seu próximo e não
ama a si mesmo o suficiente233.

Em segundo lugar, nas palavras da resposta à pergunta 136 do


Catecismo Maior de Westminster, é-nos proibida “a negligência ou a retirada
dos meios lícitos ou necessários para a preservação da vida” (Mt 25:42, 43; Tg
2:15, 16). O apóstolo João, em sua primeira epístola, trata com aquele que
possui “recursos deste mundo” e fecha os olhos para um irmão que padece
necessidades (I Jo 3:17) no contexto daquele que não ama, à semelhança do
assassino Caim (I Jo 3:11-18). O que temos no tópico anterior é a proibição de
crimes comissivos contra a vida; aqui, encaixam-se os omissivos, tais como o
abandono material e a omissão de socorro.

Em terceiro lugar, ficamos proibidos inclusive de quaisquer ações,


atitudes do coração e linguagem com vocação ao assassinato. No caso das
ações, enquadram-se as lesões que podem causar a morte (Nm 35:16). Dentre
as atitudes de coração, podemos citar a ira (Mt 5:22), o ódio (I Jo 3:15), a
amargura, o desejo de vingança (Ef 4:31) e a inveja (Pv 14:30). Palavras
também, que insultam (Mt 5:22) e injuriam (Ef 4:31), suscitam a ira e têm
potencial para desembocar em homicídios (Pv 15:1).

Em quarto lugar, podemos causar a morte ou o seu potencial para


fazê-lo não apenas no aspecto físico. Nós matamos uma pessoa
psicologicamente quando a matamos para nós mesmos, embora ela continue
viva. A atitude de Caim em não considerar-se tutor do seu irmão (Gn 4:9) o
tornou assassino antes do assassinato. Também matamos as pessoas
socialmente, quando manipulamos situações para as alijarmos da convivência
233
GEERHARDUS VOS, Johannes. Catecismo Maior de Westminster Comentado. São Paulo: Editora Os
Puritanos, 2007. p. 426
social, ou quando as difamamos de modo que sua sociabilidade se torne
insustentável. Em Tg 2:1-11, parece-nos que o escritor sagrado conclui que o
tratamento que menospreza com base no status social é uma forma de
assassinato (social, eu diria).

Em resumo, nós podemos matar as pessoas (ou agir com esse


potencial) realmente, por atos de comissão ou de omissão, ou matá-las para
nós mesmos, ou ainda matá-las para a comunidade.

3. O que o sexto mandamento nos ordena?

O sexto mandamento, considerando positivamente, nos ordena que


valorizemos a vida como um dom de Deus, promovendo de todos os meios
possíveis a sua preservação, e mais detalhadamente pelos seguintes:

Em primeiro lugar, o sexto mandamento nos impõe o zelo pela


saúde, quer preventivamente, através de uma alimentação moderada e pela
prática de exercícios físicos, quer repressivamente, pela ingestão de
medicação adequada.

A alimentação moderada é princípio estabelecido pelo sábio (Pv


25:16, 27). O apóstolo muito bem conhecia o valor do exercício físico, embora
o visse de pouco valor quando comparado ao exercício na piedade (I Tm 4:7,
8), tanto quanto o uso de alimentação correta para o restabelecimento da
saúde (I Tm 5:23). O uso de medicamentos e cuidados médicos especiais é
também imposição do sexto mandamento, como se pode ver no cuidado do
samaritano pelo moribundo na parábola do Senhor Jesus, tal como registrada
em Lc 10:25-37 (cf. Is 38:21).

O uso adequado do tempo está muito diretamente relacionado à


saúde física, emocional e espiritual. Por isso, é necessário, como imposição
decorrente do mandamento em análise, que sejamos sábios quanto à
distribuição do tempo (Ec 3:1) e temperantes quanto ao sono (Sl 127:2), ao
trabalho (Ec 5:12) e à recreação.

Em segundo lugar, a ordem da valorização da vida e da sua


proteção é também realizada pelo cultivo de atitudes santas de coração, de
modo que a convivência com o próximo seja harmoniosa, pacífica,
abençoadora. Começamos a valorizar a vida de outrem a partir de nossos
pensamentos. Eis a razão pela qual, segundo Paulo escreveu aos filipenses,
eles devem ser ocupados com “tudo o que é verdadeiro, tudo o que é
respeitável, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o
que é de boa fama”, além da virtude e do louvor (Fp 4:8).
Escrevendo aos efésios, o apóstolo asseverou que a vida digna do
nosso chamado é o esforço diligente pela paz da igreja, o que não se pode
conseguir sem “humildade e mansidão, com longanimidade” (Ef 4:1-3; cf. Hb
12:14). O cristão deve ter um espírito manso, paciente e ser dado ao perdão
(Ef 4:32; Mt 5:5, 24).

Em terceiro lugar, o sexto mandamento nos exige igualmente


expressões ativas de bondade, através de orações, palavras de boa fama e
boas obras (Mt 5:44; Lc 6:27, 28). A religião verdadeira, segundo Tiago,
envolve o refrear da língua, o cuidado com os desvalidos da sociedade e a
santidade pessoal (Tg 2:26, 27). No capítulo 3 da sua carta, o irmão do Senhor
desmascarou a suposta fé que não vai além de boas palavras (Tg 3:14-17).
Nesse sentido, eis a pertinentíssima exortação do apóstolo João: “Filhinhos,
não amemos de palavra, nem de língua mas de fato e de verdade” (I Jo 3:18).

Em quarto lugar, o sexto mandamento nos manda valorizar a vida,


bem como preservá-la. Mas a vida de quem? Bem, em primeiro lugar a nossa
própria, depois a de outrem, compreendida aqui a do próximo que é um ente
querido ou até um desafeto e a do próximo que eu não conheço e com quem
necessariamente não me relaciono.

Pelo exposto nesse ponto, o sexto mandamento exige que eu me


engaje, por exemplo, na luta contra o aedes aegypti – o mosquito transmissor
da dengue, do zika e da chicungunha -, que tanto tem assustado os brasileiros
e, sobretudo, os pernambucanos. Assim, quando eu cubro cuidadosamente a
caixa d‟água ou evito o acúmulo de água parada em calhas, vasilhames, vasos
de plantas, garrafas e pneus, devo fazê-lo também para preservação da vida
de quem necessariamente não conheço e talvez jamais venha a conhecer.
Deixar de fazê-lo, por outro lado, é uma forma de violação do “não matarás”.

Mais do que isso, o sexto mandamento nos impõe a luta pela


preservação da vida das futuras gerações, exigência que obriga o cristão a ser
um cidadão brasileiro consciente quanto às inúmeras dificuldades ecológicas
que assolam o nosso mundo e a estar ativamente engajado em campanhas de
sustentabilidade.

John Stott, em seu livro de despedida, ao escrever com interesse


sobre o tema, expôs os quatro problemas relacionados à ecologia que
caracterizam o momento como estando em uma “crise ecológica”, quais sejam:
“crescimento populacional acelerado do mundo” (estima-se que em meados do
século XXI a população mundial terá alcançado 9,5 bilhões); “depleção dos
recursos (esgotáveis) da terra”, “o descarte do lixo”; e “a mudança climática” 234.

234
W. R. STOTT, John. O Discípulo Radical. Viçosa, MG: Ultimato, 2011. p. 44-50
Juntas, essas dificuldades ecológicas sinalizam que devemos, como
nunca antes, cuidar dos recursos naturais esgotáveis, inclusive com o olhar
sobre as gerações vindouras. Eis o comando do sexto mandamento para uma
geração que sabe muito mais sobre o futuro próximo do seu planeta: cuidem
dos recursos naturais para a preservação da vida das futuras gerações.

Colocadas estas primeiras linhas, nos voltaremos aos temas que


guardam relação com a proteção da vida, tal qual exigida pelo sexto
mandamento, destacando, obviamente, os mais relevantes.

4. O aborto.

Aborto é a eliminação, a morte (provocada ou não) do produto da


concepção, do nascituro, quer em seus estágios iniciais (do zigoto e do
embrião), quer a partir do terceiro mês (do feto). Abortos naturais (não
provocados) ocorrem pelos fatores mais variados e sem culpa da gestante ou
de terceiro. As questões mais complexas, entretanto, estão relacionadas ao
aborto provocado, tencionado ou não pela gestante. A seguir, as abordaremos
a partir da Escritura Sagrada, dos embates sociais e dos caminhos jurídicos
traçados pela legislação e jurisprudência pátrias.

4.1) Aborto na Escritura. Trata-se o aborto de violação ao sexto


mandamento? É uma prática pecaminosa quando realizada em quaisquer
fases da gestação? Ou só a partir da nidação ou do terceiro mês? O que diz a
Escritura?

Para sabermos responder estas e outras questões correlatas,


devemos entender como a Escritura trata o nascituro (o não nato) e a partir de
que momento tem-se aquilo que pode ser chamado de vida humana. Para
tanto, abordaremos os textos mais importantes, analisando-os a partir das
seguintes proposições:

Em primeiro lugar, as palavras hebraicas e gregas usadas para


referir-se ao nascituro são as mesmas que descrevem as crianças, o que nos
induz a concluir que a vida intrauterina não é um objeto e nem mesmo uma
vida de menor valor ou status em relação à vida extrauterina. O hebraico
“geber”, que significa “menino”, ocorre em Jó 3:3: “Pereça o dia em que nasci e
a noite em que disse: Foi concebido um homem [geber]!”. Perceba-se que o
nascituro, na noite em que foi concebido, é chamado “homem”, “menino”. Esse
mesmo vocábulo usado por Jó para o produto imediato da concepção ocorre
alhures (Ex 10:11; Dt 22:5; Jz 5:30) com sentido de homem.

Outra palavra hebraica digna de consideração é “yeled”,


normalmente usada para filho, criança ou menino, mas que em Ex 21:22 é
usada para o feto, o filho no ventre. Em Gn 25:22, observam John Ankerberg e
John Weldon, “a palavra yeladim (filhos) é usada para se referir aos filhos de
Rebeca que se empurravam enquanto ainda no ventre materno” 235.

O mesmo fenômeno ocorre com o vocábulo grego “brephos”, que é


usado para traduzir crianças recém-nascidas, como aquelas vítimas do decreto
de Faraó (At 7:19) e Jesus (Lc 2:12, 16), tanto quanto para referir-se a crianças
maiores (Lc 18:15), mas que em Lc 1:41, 44 é aplicado a João Batista ainda
nascituro. Ademais, lemos em Lc 1:36 o anjo dizer a Maria que “Isabel, tua
parenta, igualmente concebeu um filho (gr. “huios”) [não uma coisa, um objeto]
na sua velhice” (grifei).

Em segundo lugar, a vida intrauterina deve receber, conforme a


Escritura, o mesmo tipo de proteção que recebe a vida extrauterina, fato que
outra vez nos remete ao tratamento equivalente que Deus confere à vida intra e
extrauterina.

É o que se pode auferir de uma exegese adequada de Ex 21:22-24.


O texto trata de duas situações diversas. Na primeira, no v. 22, o que Moisés
tem em vista não é o aborto, como quer a ARA (“Se homens brigarem, e
ferirem mulher grávida, e forem causa de que aborte...”, com grifos), e sim o
parto prematuro, como captou a NVI (“Se homens brigarem e ferirem uma
mulher grávida, e ela der à luz prematuramente...”, com grifos). Isso porque a
palavra hebraica para aborto (“sakol”) não é a utilizada na passagem, mas sim
o termo “yasa”, normalmente usado no contexto do nascimento de crianças
vivas. Destarte, o que a lei em comento diz, nessa primeira hipótese, é que não
havendo aborto, mas apenas parto prematuro, o seu causador reparará o dano
com uma indenização.

Os vs. 23 e 24 trazem, a seu turno, a hipótese da briga entre os


homens terem causado “dano grave” - isto é, a morte da mãe, do bebê ou de
ambos -, caso em que a pena aplicada seria de morte, “vida por vida”, para
qualquer dos casos indicados. Esta é a interpretação do renomado exegeta
judeu Umberto Cassuto, que traduz a passagem da seguinte forma:

Quando homens lutarem e atingirem, sem intenção, uma mulher


grávida, e a criança nascer, mas sem dano – isto é, a mulher e a
criança não morrerem -, aquele que a machucou certamente será
punido com uma multa. Mas se qualquer dano acontecer, isto é, se a
mulher ou a criança morrerem, então pagará vida por vida”236.

235
ANKERBERG, John ;WELDON, John. Os Fatos Sobre o Aborto: Respostas da Ciência e da Bíblia Sobre
Quando Começa a Vida. Porto Alegre, RS: Obra Missionária Chamada da Meia Noite, 1997. p. 53
236
L. GEISLER, Norman. Ética Cristã: Opções e Questões Contemporâneas. São Paulo: Vida Nova, 2010.
p. 171
Estas percepções nos obrigam a concluir que o nascituro é
considerado portador do mesmo status da mãe, posto que merecedor da
mesma proteção que a pessoa adulta (cf. Gn 9:6).

Em terceiro lugar, a Escritura assenta a verdade de que há uma


contínua identidade entre o nascituro e a pessoa fora do ventre. Lemos em Gn
4:1 que “Coabitou o homem com Eva, sua mulher. Esta concebeu e deu à luz a
Caim; então, disse: Adquiri um varão com o auxílio do SENHOR”. Aqui, como
bem pontuou Scott B. Rae, Eva fala da história de Caim com um senso de
continuidade que remonta à concepção237. Concepção, nascimento e vida após
nascimento são fases da mesma pessoa de Caim.

Essa mesma continuidade Rae percebe no paralelismo sinonímico


de Jó 3:3 (“Pereça o dia em que nasci e a noite em que disse: Foi concebido
um homem!”). Ouçamos seus comentários:

Esse tipo de paralelismo sugere que a criança que “nasceu” e a


criança que foi “concebida” são consideradas a mesma pessoa. Na
verdade, os termos nasci e concebido são usados indistintamente
aqui, sugerindo que se tem em vista uma mesma pessoa tanto na
concepção quanto no nascimento. O que estava presente no
nascimento era o que estava presente na concepção.

À mesma conclusão chega-se pela simples leitura do Sl 139:16,


quando o salmista afirma que Deus o viu (o próprio salmista, não outra coisa
que não fosse ele, ou que fosse menor que ele) quando ainda era “substância
informe”. No livro de Deus, ele ainda afirma, “foram escritos todos os meus
dias”, o que certamente inclui toda a sua vida, desde a concepção. Há perfeita
identidade entre o homem Davi e o nascituro Davi.

O mesmo se pode deduzir do Sl 51:5: “Eu nasci na iniquidade, e em


pecado me concebeu minha mãe”. Nesse Salmo de confissão, Davi confessa
não apenas seu adultério com Bate-Seba, mas sua inclinação natural ao
pecado, uma condição que é parte da sua pessoa, de quem ele era, desde a
concepção.

Em quarto lugar, a Escritura ainda revela que Deus conhece íntima e


pessoalmente os nascituros, fato que os revelam como portadores de
humanidade integral, desde a concepção. Jeremias, por exemplo, foi
designado profeta no ventre da mãe (Jr 1:5). O texto messiânico de Is 49:1
afirma: “... O SENHOR me chamou desde o meu nascimento, desde o ventre
de minha mãe fez menção do meu nome”.

O Salmo 139:13-16 é outra passagem em que sobressai o cuidado


de Deus com o nascituro, como antes anotado. O termo hebraico “golem”,
traduzido por substância (“substância informe”, como na ARA, ou “embrião”,
como na NVI), indica a compreensão do salmista quanto ao modo como Deus

237
B. RAE, Scott. Ética Cristã: Curso Vida Nova de Teologia Básica. São Paulo, Vida Nova, 2013. p. 149
cuidava dele quando ele era ainda uma substância informe, isto é, quando ele
estava no ventre da mãe em seu estágio ainda embrionário, nas primeiras
quatro ou cinco semanas de vida.

Em quinto lugar, devemos asseverar que a encarnação do Senhor


Jesus é uma prova irretorquível de que a vida humana exsurge do ato da
fecundação, ou concepção. O argumento pode ser colocado através de três
premissas, quais sejam: a) Cristo esteve presente em verdadeira humanidade
a partir da concepção; b) Cristo é semelhante aos homens em todas as coisas,
exceto quanto ao pecado; c) logo, os homens são plenamente humanos desde
a concepção.

Não parece haver controvérsia quanto ao fato de que Cristo fez-se


homem, assumiu verdadeira humanidade, no momento da concepção. Esta é a
fé dos credos ecumênicos, desde o Credo Apostólico: “concebido pelo poder
do Espírito Santo”. “Concepção”, registre-se, é a formação do zigoto a partir da
fecundação do óvulo pelo espermatozoide. Da concepção surge o zigoto, o
óvulo fecundado. Lucas 1:31 informa-nos que o anjo diz a Maria que ela
conceberá e dará à luz “um filho, a quem chamarás pelo nome de Jesus”.
Resta-nos bastante claro que o Ente que “será chamado Filho do Altíssimo” (v.
32) está presente desde a concepção, embora esta viesse a ser realizada não
pelo mecanismo natural de geração, mas na forma do v. 35 (“Descerá sobre ti
o Espírito Santo...”). O Espírito Santo, portanto, fez surgir o zigoto Jesus no
ventre de Maria. Cristo, na concepção, estava ali, plenamente humano.

O encontro das grávidas Maria e Isabel (Lc 1:39-44) é bastante


esclarecedor. Maria visita Isabel com apenas alguns dias de gravidez, talvez
duas ou três semanas. Logo na chegada, Maria é saudada por Isabel como “a
mãe do meu Senhor” (v. 43). Lembremo-nos que mal havia ocorrido a nidação -
aquele momento em que o zigoto fixa-se no endométrio - e que talvez o zigoto
nem houvesse se tornado um embrião, e Maria já é a “mãe do meu Senhor”, o
que significa que Jesus já é seu filho, não uma coisa com potencial para ser
seu filho. Lucas ainda nos dá as palavras de Isabel, segundo as quais João
Batista, um feto de aproximadamente seis meses, estremece de alegria (v. 44),
talvez como um reconhecimento por estar na presença do Messias. “Fica claro
que todas as partes envolvidas nessa narrativa – Maria, João e Isabel –
reconhecem que algo muito importante está ocorrendo e que está ligado ao
fato de Maria estar grávida, carregando em seu ventre o Messias” 238.

A segunda premissa também está fora de discussões, superados os


debates clássicos em torno de ideias gnósticas e docéticas. Cristo deveria
participar da verdadeira humanidade, à semelhança do povo que veio salvar

238
B. RAE, Scott. Ética Cristã: Curso Vida Nova de Teologia Básica. São Paulo, Vida Nova, 2013. p. 150
(Hb 2:14). “Por isso mesmo, convinha que, em todas as coisas, se tornasse
semelhante aos irmãos...” (Hb 2:17).

Ora, se é possível afirmar que Cristo é plenamente humano a partir


da (que encarnou na) concepção (primeira premissa), e que Ele participou,
desse modo, da verdadeira humanidade, tornando-se em tudo semelhante a
nós, exceto quanto ao pecado (segunda premissa), segue-se necessariamente
que os seres humanos adquirem vida plenamente humana na concepção
(terceira premissa).

Assim, concluímos indubitavelmente que o “não matarás” significa


também “não abortarás”, uma vez que a Escritura equipara a vida intra à
extrauterina.

4.2) Aborto na Legislação e Jurisprudência. Sobre a possibilidade


de manobras abortivas não criminalizadas, o direito posto diverge grandemente
entre uma nação e outra, havendo aquelas que proíbem a prática em toda e
qualquer hipótese até as que a permitem em quase quaisquer circunstâncias.

No Chile, por exemplo, não há um único permissivo ao aborto, nem


com risco de morte à gestante239. O mesmo ocorre em El Salvador, onde
inclusive o aborto culposo é punido240. O Afeganistão adotou posição menos
extrema, permitindo o aborto quando a gestação representa risco de morte à
gestante241. No Canadá, por outro lado, o aborto deixou de ser ilegal desde
1973, sendo um dos países mais permissivos quanto à prática. Nessa mesma
linha, até de forma mais grave, na China o aborto não é apenas legal, é
incentivado, como anotou Edison Tetsuzo Namba:

Alguns seguidores de Hung Liang Chi propuseram medidas drásticas


para deter a explosão demográfica: relaxar as leis contra o infanticídio
das meninas, estimular a prática de seu infanticídio de forma
massiva, incentivar a abertura de mosteiros, proibir o casamento das
viúvas, distribuir drogas esterelizantes, aumentar a idade do
casamento, criar impostos sobre as famílias com mais de duas
crianças, afogar bebês, excetuando-se uma minoria selecionada. Em
algumas regiões, as mulheres são forçadas a interromper a
gravidez242.

O aborto seletivo praticado na China, explicou Reggie Littlejohn,


Presidente de Direitos da Mulher Sem Fronteiras, dá lugar “a aproximadamente
37 milhões de homens chineses que nunca se casarão porque suas futuras
esposas foram eliminadas de forma seletiva, e este desequilíbrio na demografia

239
Arts. 342 a 345 do Código Penal chileno.
240
Arts. 133 a 137 do Código Penal salvadorenho.
241
Art. 404 do Código Penal afegão.
242
NAMBA, Edison Tetsuzo. Manual de Bioética e Biodireito. São Paulo: Editora Atlas, 2015. p. 48
promove de maneira poderosa o tráfico de mulheres e a escravidão sexual” em
todo o sudeste da Ásia243.

Nos Estados Unidos, o aborto foi legalizado com uma decisão da


Suprema Corte no dia 20 de janeiro de 1973, no famoso caso Roe versus
Wade. Nesse processo emblemático, Norma McCorvey (Jane Roe) alegou ter
engravidado por meio de um estupro e que estava sendo obrigada a levar
adiante uma gravidez nessas condições por uma lei do Texas que só permitia
aborto para salvar a vida da gestante.

A Suprema Corte estadunidense decidiu que a lei texana era


inconstitucional por violar o direito à privacidade previsto na Emenda 14ª da
Constituição, e estabeleceu que o interesse do Estado está vinculado à saúde
da mulher, mas quanto ao feto esse interesse é apenas crescente e varia de
acordo com o período da gravidez. Assim, decidiu-se que no primeiro trimestre
de gravidez a mulher estaria completamente livre para decidir se abortaria ou
não. No segundo trimestre, o Estado poderia regulamentar o aborto visando a
proteção da saúde da gestante, exigindo, por exemplo, que os abortos fossem
feitos em instalações adequadas e com acompanhamento médico. Finalmente,
somente após a viabilidade do feto, entendendo-se como tal a certeza relativa
de vida fora do útero materno, é que o Estado poderia demonstrar interesse na
“vida em potencial” e estabelecer proibições ao aborto, salvo nos casos em que
houver à gestante risco de morte.

O juiz Bluckman, relator do caso, partiu do pressuposto que o


Estado tem interesse absoluto somente na proteção da saúde da gestante,
enquanto com relação à “vida em potencial”, essa proteção “pode” ser
estendida, mas com menos rigor. Eis um excerto do acórdão:

Um dos motivos da adoção de legislação penal sobre aborto foi o seu


aspecto de procedimento médico. Na ocasião em que foram
sancionadas as primeiras leis, o procedimento era arriscado para a
mulher. As técnicas médicas mudaram a situação. [Informes indicam]
que o aborto feito no começo da gravidez, ou seja, antes do final do
primeiro trimestre, embora não isento de risco, é agora relativamente
seguro. [Mas] permanecem importantes interesses do Estado no
tocante aos padrões de qualidade médica e de saúde. O Estado tem
legítimo interesse na vigilância de que o aborto, tal como outros
procedimentos médicos, seja realizado sob circunstâncias que
garantam a máxima segurança para a paciente. O Estado guarda
interesse absoluto na proteção da saúde e segurança da própria
mulher quando se pretenda a realização de aborto numa etapa final
da gravidez.
[Há também] interesse do Estado [na] proteção da vida pré-natal. É
evidente que [logicamente] o legítimo interesse do Estado nessa
esfera não necessita firmar-se, ou apoiar-se, na aceitação da ideia de
que a vida tem início na concepção ou em qualquer outra ocasião

243
Aborto: Política do Filho Único na China é “Verdadeira Guerra Contra as Mulheres”. Acesso em 14 de
abril de 2016: http://www.acidigital.com/noticias/aborto-politica-do-filho-unico-na-china-e-verdadeira-
guerra-contra-as-mulheres-73197/.
antes do nascimento com vida. Para avaliar o interesse do Estado, é
bastante reconhecer a reivindicação, menos rigorosa, de que estando
comprometida vida em potencial o Estado pode defender interesses
além da simples proteção à gestante...244

O processo Roe versus Wade, associado a um caso parecido


decidido pela Suprema Corte no mesmo dia, o Doe versus Bolton, finalmente,
acabaria por retirar qualquer óbice ao aborto em todo o período da gravidez.

O notável, entretanto, é que McCorvey (Jane Roe) admitiu mais


tarde que não tinha sido estuprada, mas que a gravidez adveio de uma falha no
método contraceptivo, e em agosto de 1995 “mudou sua visão sobre o aborto,
pediu demissão do emprego na Clínica Dallas para mulheres e juntou-se a uma
igreja pastoreada por um líder da organização Operation Rescue, que se
dedica a acabar com o aborto nos Estados Unidos”245.

Desde então, a única limitação substancial imposta nos Estados


Unidos à liberdade de abortar foi concretizada pela decisão Maternidade
Planejada versus Casey, de 1992, ocasião em que a Suprema Corte confirmou
a lei do Estado da Pensilvânia que exige para a prática autorização dos pais da
gestante menor, podendo ser substituída por autorização judicial.

No Brasil, Estado democrático de direito que erigiu a dignidade da


pessoa humana como fundamento (CF, art. 1, III), assegurou (e não poderia
ser diferente) o direito à vida em seu art. 5º., caput, afirmando que “Todos são
iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à
vida...” (grifei).

Entretanto, como não há, consoante doutrina forense majoritária,


direito fundamental revestido de caráter absoluto no Brasil, a própria
Constituição ressalva o direito à vida quando prevê a aplicação de pena de
morte em caso de guerra declarada (CF, art. 5º., XLVI, a). Igualmente, no
tocante ao aborto, o Brasil o proíbe criminalizando as condutas de “Aborto
provocado pela gestante ou com seu consentimento” (CP, art. 124) e “Aborto
provocado por terceiro”, com ou seu o consentimento da gestante (CP, arts.
125 e 126), ao passo em que não considera crime o aborto quando praticado
para salvar a vida da gestante, chamado aborto “necessário” ou “terapêutico”
(CP, art. 128, I), e quando a gravidez resulta de estupro (CP, art. 128, II),
denominado aborto “sentimental”, “ético” ou “humanitário”.

Além desses permissivos legais ao abortamento, a jurisprudência


pátria caminhou no sentido de admitir uma terceira modalidade de

244
ORR, Robert D.; SCHIEDERMAYER, David L.; BIEBEL, David B. Decisões de Vida e Morte. Rio de Janeiro:
JUERP, 1994. p. 57, 58
245
B. RAE, Scott. Ética Cristã: Curso Vida Nova de Teologia Básica. São Paulo, Vida Nova, 2013. p. 144
descriminalização da conduta, qual seja, quando o feto é anencefálico.
Anencefalia é uma má formação decorrente de fatores genéticos e ambientais
consistente de ausência total ou parcial de partes do cérebro. A Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54 pôs fim à celeuma e
considerou legal o aborto fundado na anencefalia.

Em conclusão, podemos afirmar que no Brasil o aborto é crime que


pode ser praticado tanto pela gestante (quando o provoca em si mesma ou
quando dar consentimento para que outrem o faça) quanto pelo terceiro que o
realiza, com ou sem consentimento da gestante, salvo em três hipóteses: a)
aborto necessário ou terapêutico, b) aborto sentimental, ético ou humanitário, e
c) aborto de feto anencefálico.

Duvidamos que a legislação penal e a jurisprudência brasileiras


tenham firmado-se com acerto em todas as ressalvas permissivas quanto à
prática abortiva, pelas seguintes razões:

Em primeiro lugar, devemos enfatizar que a vida humana plena tem


início na concepção, de modo que o aborto não pode ser justificado com base
no simples direito à privacidade e à autonomia da vontade, como se o concepto
fosse uma coisa da qual a gestante pudesse dispor ao bel-prazer e por simples
inconveniências.

Em segundo lugar, quanto à hipótese do aborto terapêutico ou


necessário, sustento que sua prática não viola o sexto mandamento traduzido
pelo “não abortarás”. Tem-se nesse desvão, em verdade, não um abortamento
propriamente dito, mas uma cirurgia cuja intenção é salvar a gestante.
Ademais, o aborto nesse caso equivale moralmente à legítima defesa (Ex
22:2), de modo que assim como o sexto mandamento não é violado com o
exercício legítimo da proteção da própria vida, também não o é pelo aborto
necessário.

Em terceiro lugar, consideramos de modo diverso o aborto


sentimental, ético ou humanitário e o do feto anencefálico. No primeiro caso, há
ardorosos defensores a vaticinar no sentido de que não devemos impor uma
gravidez que decorreu do ato bárbaro e humilhante do estupro, de modo que
nenhuma mulher deveria ser obrigada a ter um filho nessas condições.

De fato, não discutimos a dor e o vexame envolvidos na crueldade


do estupro. Entretanto, o que está em jogo é se o estupro da mãe justifica o
assassinato de uma pessoa humana, questão que deve ser respondida com
um retumbante “não”. A uma, porque o bebê em formação não fez nada para
morrer, não é culpado de nada. Como o criminoso é o estuprador, se alguém
deve morrer, não é criança. A duas, o aborto ético não remove a ofensa do
estupro, apenas acrescenta mal a mal. A três, solução melhor que o aborto
seria a facilitação da adoção do recém-nascido pelo Estado quando a mãe
insistisse em não querer a criança, o que não acontece em muitíssimos casos.
Hans Ulrich Reifler conta-nos, a propósito, que

Está ao nosso alcance a citação de uma carta escrita por um homem


a um amigo depois do estupro de sua esposa, quando o exército
russo invadiu a Alemanha nazista: “Nossa família cresceu com o
nascimento de um pequeno nenê russo, um moço tão vivo e amável
que ninguém lhe deseja mal algum” 246.

Quanto ao abortamento do feto anencefálico, os argumentos


daqueles que o defendem, em geral, são a falta de viabilidade de vida extra-
uterina, pela ausência da calota craniana, e o drama psicológico vivenciado
pela gestante e sua família com uma gravidez que não resultará em vida
duradoura pós-parto. Acrescenta-se ainda que o anencefálico equipara-se a
alguém com morte cerebral.

Entretanto, devemos considerar que o anencéfalo, embora carente


de formação cerebral completa, “tem tronco encefálico, tem reflexos, nasce e
vive... até um mês ou mais”, segundo Zalmino Zimmermann247. É possível
inclusive que tenha algum grau de consciência, sensibilidade e percepção à
dor, hipóteses não descartadas pela medicina. De todo modo, o que é certo é
que morto não está, até que o seja pela violação do sexto mandamento.

4.3) Aborto na Ciência Médica e nos Debates Sociais. Ao passo


em que as legislações têm tendido a ser mais permissivas quanto ao aborto, o
progresso da ciência tem corroborado a noção de que a vida humana tem início
na concepção. Nesse sentido, Norman Geisler pontifica quanto ao aspecto
genético:

Que um óvulo humano fertilizado representa um ser 100% humano é


um fato genético. A partir do exato momento da fertilização, toda a
informação genética encontra-se presente. O próprio sexo da criança
também é determinado no momento da concepção. O óvulo feminino
possui apenas vinte e três cromossomos e o esperma masculino
possui vinte e três cromossomos, mas um ser humano adulto normal
tem quarenta e seis cromossomos. No exato momento da concepção,
quando o espermatozoide masculino se une ao óvulo feminino, um
novo e microscópico ser humano com quarenta e seis cromossomos
surge. Do momento da concepção até a morte, nenhuma informação
genética nova é adicionada. Tudo o que é acrescentado desde o
momento da concepção até a morte é comida, água e oxigênio248.

Tecnologias modernas, tais como a ultrassonografia, que permite-


nos ver até mesmo as feições do feto, tornaram mais difíceis as atitudes
depreciativas da vida intrauterina, do ponto de vista científico. O Dr. Bernard

246
REIFLER, Hans Ulrich. A Ética dos Dez Mandamentos. São Paulo: Edições Vida Nova, 1992. p. 132
247
NAMBA, Edison Tetsuzo. Manual de Bioética e Biodireito. São Paulo: Editora Atlas, 2015. p. 49, 50
248
L. GEISLER, Norman. Ética Cristã: Opções e Questões Contemporâneas. São Paulo: Vida Nova, 2010.
p. 175
Nathanson, que foi considerado “o rei do aborto”, por haver supervisionado
mais de 60.000 abortos, renunciou em 1973 o cargo de diretor do Centro de
Saúde Sexual e Procriação, nos EUA, a primeira e, na ocasião, a maior clínica
de aborto do hemisfério ocidental. Sua decisão foi tomada porque passou a
sentir-se pesaroso por haver concluído que de fato supervisionou a morte de
“60.000 pessoas”. Suas conclusões resultaram de observações estritamente
científicas, como explicou:

Os critérios Harvard para atestado de óbito dizem que se o indivíduo


não responde a estímulos externos (p. ex., a dor), os reflexos internos
estão ausentes, não há movimentos espontâneos ou esforço
respiratório, o EEG não revela atividade do cérebro, pode-se concluir
que o paciente está morto. Na falta de algum, ou todos, desses sinais
- se o feto responde à dor, faz esforço respiratório, move-se
espontaneamente e tem atividade eletroencefalográfica – a vida deve
249
estar presente .

A ultrassonografia e a medicina fetal, juntas, são responsáveis em


grande medida pela conclusão de que a vida tem início na concepção.
Segundo o Dr. Nathanson, a tecnologia do ultrassom “colocou uma janela no
ventre materno”, forneceu um quadro preciso e permitiu que “estimulemos a
criança, que verifiquemos como respira, como se movimenta, como engole,
como urina, permite ver como tudo acontece” 250.

Em 1981, o Congresso dos Estados Unidos promoveu uma


audiência pública para debater a questão do início da vida. Na ocasião, uma
plêiade de cientistas reconhecidos internacionalmente compareceu perante
uma comissão interna do Senado trazendo uma conclusão unânime no sentido
de que a vida tem início na concepção. A Dra. Micheline Mattews-Roth afirmou:
“Na biologia e na medicina, é fato aceito que a vida de um organismo individual
reproduzida por meio de reprodução sexual tem início na concepção” 251. O Dr.
Jeromy LeJeune, por sua vez, disse que

Aceitar o fato do surgimento de um novo ser após a


fertilização ter acontecido, não se trata mais de uma
questão de opinião ou gosto. A natureza humana do ser
humano, que vai da concepção até a velhice, não
pertence ao campo das discussões metafísicas, pois
trata-se de evidência plenamente experimental 252.

Igualmente categóricas são as palavras do Dr. Hymie Gordon,


abaixo transcritas:

249
ORR, Robert D.; SCHIEDERMAYER, David L.; BIEBEL, David B. Decisões de Vida e Morte. Rio de Janeiro:
JUERP, 1994. p. 51
250
ANKERBERG, John ;WELDON, John. Os Fatos Sobre o Aborto: Respostas da Ciência e da Bíblia Sobre
Quando Começa a Vida. Porto Alegre, RS: Obra Missionária Chamada da Meia Noite, 1997. p. 18, 19
251
Ibdem. p. 13
252
L. GEISLER, Norman. Ética Cristã: Opções e Questões Contemporâneas. São Paulo: Vida Nova, 2010.
p. 175
Agora nós podemos dizer, de modo inequívoco, que a questão acerca
de quando a vida começa deixa de ser algo disputado nos campos da
filosofia e da teologia. Isso porque se trata de um fato científico
estabelecido. Teólogos e filósofos podem prosseguir debatendo sobre
o significado da vida ou sobre o propósito dela, mas é um fato
estabelecido que toda a vida, incluindo a vida humana, começa no
momento da concepção253.

Com efeito, a fetologia moderna trouxe à baila informações


impressionantes sobre a pessoa minúscula que se desenvolve no ventre
materno. Diz-nos que o coração começa a bater a partir da terceira semana,
que ainda no primeiro mês, braços e pernas começam a aparecer e, no
segundo mês, nariz, olhos, ouvidos e dedos começam a se formar. Ainda no
segundo mês, o feto já apresenta reflexos e, no terceiro, apalpa e até consegue
chupar o dedão do pé. No quarto mês todas as características humanas estão
presentes e o feto pode ouvir a voz da sua mãe.

Não obstante todas essas constatações, muitas das quais auxiliadas


pelo progresso das tecnologias e da medicina, há ainda intensos e acalorados
debates em torno da (i)legalidade do aborto. Em geral, os que defendem a
proibição do aborto são denominados “pró-vida” e os que desejam sua
legalização, “pró-escolha”. A seguir, iremos avaliar os principais argumentos
pró-escolha, à luz dos ensinos claros da Palavra de Deus e do que podemos
aprender com a ciência.

Em primeiro lugar, diz o movimento pró-escolha: a mulher tem


direito de fazer com o seu corpo o que bem entender. Este argumento
baseia-se nos direitos à liberdade e à privacidade e na suposição de que o feto
não é considerado uma pessoa distinta da mulher. Antes de tudo, é bom
ressaltarmos que não existem direitos absolutos, nem sobre o próprio corpo.
Na sistemática do Código Civil pátrio, o art. 13 do capítulo “Dos Direitos da
Personalidade” aduz que “Salvo por exigência médica, é defeso o ato de
disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da
integridade física, ou contrariar os bons costumes”. Do dispositivo, conclui-se
que só é possível dispor do próprio corpo por exigência médica; caso contrário,
somente se a diminuição da integridade física não for permanente e não
contrariar os bons costumes. A ilação mais palpável da redação legal é no
mínimo essa: ninguém possui direitos absolutos sobre o próprio corpo.

No entanto, ainda mais importante, à propósito do argumento em


debate, é assinalar que o zigoto-embrião-feto não é parte do corpo da mulher
que o carrega, ou uma mera extensão ou desdobramento dele. A gravidez
resulta em dois corpos, o da mulher e o da criança, fato que pode ser
estabelecido a partir das seguintes constatações: primeira, muitas crianças têm
253
L. GEISLER, Norman. Ética Cristã: Opções e Questões Contemporâneas. São Paulo: Vida Nova, 2010.
p. 175
tipo sanguíneo diverso do da mãe e, conforme a medicina, é impossível que
um único indivíduo possua dois tipos sanguíneos diferentes; segunda, diversas
gestantes carregam em seu ventre bebês de sexo masculino, com identidade
sexual diferente da mãe; terceira, o próprio corpo da mãe percebe a criança
como um corpo estranho que, se não for protegido pela placenta, será
expelido. O Dr. A. W. Liley, considerado o “pai da medicina fetal”, afirmou que
“Em termos biológicos, não podemos afirmar que o feto, seja em que estágio
for, seja apenas mero acréscimo da mãe...”254. O mesmo foi destacado por
Margarita Bosch:

O embrião pré-implantado está muito longe de ser um


amontoado de células e de tecidos incipientes. Desde o
zigoto se verifica que uma vida orgânica, independente,
autônoma, se desenvolve ponto a ponto, de forma
organizada, gradual e coordenadamente programa o
desenvolvimento próprio da espécie255.

Um segundo argumento dos adeptos pró-escolha diz que forçar


mães a terem filhos indesejados é trazer ao mundo crianças que serão
objeto de maus tratos e abusos de toda ordem. Mais uma vez, essa
proposta só faria sentido se pudéssemos pressupor que o feto não é uma
pessoa, noção contra a qual já nos posicionamos peremptoriamente. De plano,
contra-argumento lembrando que o fato de haver crianças indesejadas diz
muito sobre a perversidade dos pais e não sobre o valor e a santidade da vida
da criança, feita à imagem e semelhança de Deus. Crianças indesejadas não
são crianças de menor dignidade. Por outro lado, se queremos proteger
crianças indesejadas de sofrimentos nesta vida, certamente levá-las à morte
não é o melhor caminho.

Outro argumento pró-escolha ampara-se na ideia de que tornar


ilegal o aborto propicia o surgimento de clínicas clandestinas e do
consequente aumento do risco à vida e à saúde das gestantes.
Novamente, noção tão grotesca só pode lastrear-se no pressuposto de que o
feto não é um ser humano, porque quais outras razões levariam a sociedade a
legalizar o assassinato para proteger a vida e a saúde da assassina? Não faria
sentido algum, salvo se na base da argumentação prevalecer que é melhor
livrar-se de uma “coisa” sob boas condições médicas e sanitárias para que a
gestante não corra riscos. Doutra sorte, o que se quer é que o Estado propicie
condições seguras para o cometimento de assassinatos.

E o que dizer do argumento pró-escolha segundo o qual se não for


legalizado o aborto, as famílias de baixa renda sofrerão ainda mais com o

254
ANKERBERG, John ;WELDON, John. Os Fatos Sobre o Aborto: Respostas da Ciência e da Bíblia Sobre
Quando Começa a Vida. Porto Alegre, RS: Obra Missionária Chamada da Meia Noite, 1997. p. 21
255
VERBAN, Cícero de Andrade (Org.). Bioética Clínica. Rio de Janeiro: Editora Revinter, 2003. p. 116
aumento desenfreado da prole? Na mesma toada, o que está em jogo nessa
colocação absurda é que a vida intrauterina não é humana, porque ninguém
propõe, aberta e seriamente, que matemos os pobres para que suas famílias
passem a ter menos encargos financeiros.

Mais ainda, dizem os defensores pró-escolha, não deveríamos


obrigar mulheres a terem filhos com má formação genética. É bom que
pensemos nas consequências de um arrazoado desse viés. O que ele pretende
é que a sociedade politicamente organizada dê carta branca para que todos os
deficientes sejam mortos, a não ser que o direito à vida, próprio da pessoa
humana, só seja reconhecido com o nascimento. Outra vez, o que subjaz no
porão do argumento é que o feto não é uma pessoa humana. Ademais, mesmo
que consideremos a possibilidade da legalização do aborto de feto
anencefálico, tal como decidiu o Supremo Tribunal Federal na ADPF 54, a
hipótese não pode ser estendida a situações menos extremas, tais como a
microcefalia e a Síndrome de Down.

Finalmente, arrematamos a análise das razões apresentadas pelo


movimento pró-escolha retomando o caso da gravidez resultante de estupro.
Segundo esse movimento, jamais deveríamos forçar as mulheres a ter filho
cuja gravidez resultou de estupro. Esse é sem dúvida, conforme pontuamos
alhures, o argumento mais recheado de emoções. “Não seria uma forma de
violentar outra vez a mulher já violentada? Não a estaríamos vitimizando-a
duplamente, uma vez no estupro e outra vez na imposição de uma gravidez
levada a cabo pelo estupro?”

Ainda aqui, sou obrigado a repetir que o argumento só é válido se


consideramos o feto como algo que seja menor que uma vida humana, porque,
de outra forma, “o modo pelo qual a concepção ocorreu é irrelevante para a
questão central da personalidade do feto”256. Quanto às demais razões alçadas
na defesa da vida do feto concebido em um estupro, remeto o leitor ao que já
escrevi em tópico anterior.

5. A fertilização in vitro.

Fertilização é sinônimo de procriação, quando se trata do homem,


porque fertilizar é realizar um novo ser257. Quando artificial, a fecundação pode
ser homóloga (método que busca a concepção a partir dos gametas dos
próprios esposos) ou heteróloga (quando a concepção é obtida a partir de
gametas provenientes de ao menor um doador diverso dos esposos). Quanto

256
B. RAE, Scott. Ética Cristã: Curso Vida Nova de Teologia Básica. São Paulo, Vida Nova, 2013. p. 158
257
SGRECCIA, Elio. Manuel de Bioética I: Fundamentos e ética Biomédica. São Paulo: Edições Loyola,
2002. p. 399
às técnicas, podemos resumidamente classificá-las em fecundação artificial
intracorpórea (com a transferência de esperma anteriormente colhido para as
vias genitais) e extracorpórea, também chamada “fecundação in vitro” (FIVET –
fecundação in vitro com embryo-transfer), podendo ambas ser do tipo
homóloga ou heteróloga.

A fecundação in vitro começou a desenvolver-se em meados do


século passado. Após mais de uma década de experimentos in vitro com
embriões de mamíferos, R. G. Edwards, em 1963, conseguiu realizar a
maturação em proveta de ovócitos humanos retirados dos ovários. Em 1969,
ele mesmo demonstrou a possibilidade de fertilizar ovócitos humanos in vitro,
ocasião em que dos 56 ovócitos que receberam espermatozoides, 18 foram
fertilizados. Entre os anos de 1970 e 1971, Edwards e seus colaboradores
alcançaram um extraordinário desenvolvimento embrionário in vitro e estiveram
a um passo de recolocar o embrião no útero materno de modo a poderem obter
uma gravidez e nascimento naturais. Mas foi somente no dia 25 de julho de
1978 que a equipe do Dr. Edwards viu nasceu, no Oldham General Hospital,
em Manchester, a primeira “menina de proveta” (test tube baby), de nome
Louise Brown. “Hoje é difícil fazer uma avaliação exata de quantas crianças
nasceram desde 1978 com a fecundação in vitro, por causa da falta – exceto
em alguns casos – de um registro apropriado em nível nacional, mas julga-se
que se trata de dezenas de milhares de casos”258.

Dentre as diversas e polêmicas questões morais envolvidas, a


fertilização in vitro deu azo ao surgimento das “mães de aluguel” (“surrogate
mother”), com todas as implicações daí advindas, como observado por
Sgreccia:

As surrogate mothers apareceram com nome e sobrenome nas


revistas e na televisão: essas mulheres, mediante pagamento e com
a intermediação de agências, desenvolveram até o fim, por conta de
terceiros, a gestação de embriões fecundados in vitro com óvulo e
esperma de outras pessoas comitentes. Foi o caso de mães que,
mesmo tendo filhos próprios, aceitaram essa incumbência para dar
um filho à própria irmã estéril; houve também o caso da “mãe de
aluguel” que, depois de terminar a gestação de um filho
encomendado, negou-se a entregá-lo, vendo-o como próprio. Neste
caso de sub-rogação de útero fica evidente a estranheza do casal
comitente com relação a essa mãe adicional, que, todavia, consegue
ficar intimamente ligada ao filho por vínculos de estreita comunicação
biológica durante a gestação. Caracteriza-se assim uma manipulação
da corporeidade do filho, que recebe o patrimônio genético de duas
pessoas, enquanto recebe o sague, a nutrição e a comunicação vital
intra-uterina (com consequências também em nível psíquico) de uma
outra pessoa, a mãe substituta259.

258
SGRECCIA, Elio. Manuel de Bioética I: Fundamentos e ética Biomédica. São Paulo: Edições Loyola,
2002. p. 422
259
Ibdem. p. 439, 440
5.1) O problema ético colocado. Entretanto, o dilema ético vai
além - e esse é o ponto específico a nos ocupar nesse tópico: há violação do
“não matarás” no uso ou no descarte de embriões humanos que não se lhes
conferem a possibilidade de nidar para o útero materno? Impedir sua
implantação para que vivam ou por qualquer meio ou para qualquer finalidade
obstaculizar seu desenvolvimento é afrontar o sexto mandamento? Tais
perguntas são pertinentíssimas, porque a partir da fecundação in vitro nasceu a
possibilidade (ou mesmo necessidade) de produção de embriões humanos em
proveta numa escala maior do que a que seria destinada à transferência para o
útero materno. É dizer, surgiu da técnica ora avaliada uma “legião” de embriões
humanos cujo destino ganharia sorte diversa da proposta que originalmente
justificou seu empreendimento – remediar a infertilidade do casal.

Em síntese, os embriões “excedentes” da fecundação in vitro


recebem, grosso modo, três destinos: a adoção por outros casais, a
conservação por congelamento em nitrogênio líquido ou o uso em pesquisas
laboratoriais. Quanto à transferência para o útero, hipótese de adoção de
embriões congelados por casais, cumpre ressaltar que a técnica FIVET é um
flagrante insucesso. Sgreccia aponta pesquisas que indicavam que apenas
17,1% dos casos tem efetivamente uma gravidez iniciada e somente 6,7% são
levados até o final, e afirma ainda que 93 ou 94% dos embriões são
perdidos260. Angelo Serra, citando dados de Winston e Handyside, destaca que
já em 1993 (passados 15 anos da primeira “menina de proveta”), nos Estados
Unidos, a taxa de nascimento era de 14% e, na Inglaterra, a taxa de nascidos
vivos era de 12,5%, e acrescenta que o insucesso persiste, embora pesquisas
de 1996 apresentem média de partos de 22,3%261. As razões de tantas perdas
de embriões, segundo Serra, estão relacionadas à alteração do cariótipo (o
conjunto de cromossomos do indivíduo), a mutações genéticas e a outras
variáveis próprias da manipulação, tais como pequenas variações de
temperatura. Diante dessas estatísticas, impõe-nos perguntar se cristãos
deveriam tentar beneficiar-se, com o fito de vencer eventual infertilidade,
através de uma técnica que resulta no aniquilamento em massa de embriões
humanos, de seres humanos.

Ademais, a fertilização in vitro trouxe consigo a funesta tentação


quanto a um empreendimento eugênico. Isso surge a partir da seleção que se
faz nos chamados “bancos de esperma”. Além disso, pesquisas há que
desejam descobrir, mediante biópsia embrionária, sobre a normalidade dos
embriões para que somente os sadios sejam implantados no útero materno. A
consequência é que embriões afetados por alguma anomalia são descartados.

260
Ibdem. p. 427
261
VERBAN, Cícero de Andrade (Org.). Bioética Clínica. Rio de Janeiro: Editora Revinter, 2003. p. 132
Questão não menos tormentosa diz respeito à experimentação em
pesquisas e manipulação de embriões humanos destinados a ser matéria-
prima de células-tronco. O processo de formação de células-tronco dá-se, em
síntese, através dos seguintes passos: a) produz-se embriões humanos por
fecundação in vitro; b) estimula-se seu desenvolvimento até o estágio de
blastocisto (com 4 a 5 dias de fecundação); c) retira-se, por meio de
imunocirurgia, a chamada massa celular interna, composta das células do
embrioblasto, com a necessária consequência da destruição do embrião; d)
essas células são colocadas repetidamente em cultura até à formação de
células capazes de se renovarem indefinidamente e de produzir quaisquer tipos
de células adultas, são as células-tronco embrionárias, ou células pluripotentes.
Em uma fase posterior a cinco dias, o embrião já apresenta estruturas mais
complexas como coração e sistema nervoso em desenvolvimento, significando
que suas células já se especializaram e já não podem ser consideradas
células-tronco. Resumo da ópera: embriões humanos congelados são objeto
de manipulação e descarte para o fim de alcançar-se as células pluripotentes,
as células-tronco.

Outra possível linha de pesquisa com embriões humanos está


relacionada com a clonagem – a reprodução de dois ou mais indivíduos
geneticamente idênticos. Cogita-se as ideias repugnantes de obter-se dois
embriões idênticos por clonagem e um deles ser congelado para ser
eventualmente usado em caso de morte do primeiro ou simplesmente prestar-
se como reserva de tecidos e de órgãos.

Fato é que em todas as hipóteses, o conjunto da obra resume-se em


objetificação do embrião humano, cujo lastro tem que ser apenas um: a
negação de sua humanidade.

5.2) A legislação pertinente. As duas Câmaras inglesas aprovaram


e a Rainha sancionou, em 1990, uma lei que permite pesquisas em embriões
humanos que resultem da fecundação in vitro, inclusive com embriões criados
com fins experimentais, desde que até o 14º dia de fecundação. Nos anos
seguintes outras nações aprovaram leis semelhantes, com mais ou menos
restrições. A “Convenção para a proteção dos direitos humanos e a dignidade
do ser humano com relação à aplicação da biologia e a medicina” adotou uma
postura igualmente permissiva, limitando-se a prescrever, no art. 18, que trata
acerca da “Pesquisa sobre os embriões in vitro”, que “(1) onde a lei permite a
pesquisa sobre embriões in vitro, ela deveria assegurar uma proteção
adequada do embrião... (2) a criação de embriões humanos para fins de
pesquisa é proibida”262.

262
VERBAN, Cícero de Andrade (Org.). Bioética Clínica. Rio de Janeiro: Editora Revinter, 2003. p. 131
No Brasil, o tema é regulamentado pela Lei 11.105, sancionada pelo
Presidente da República em 24 de março de 2005, que disciplinou os incisos II,
IV e V do § 1º do art. 225 da Constituição Federal, estabelecendo, dentre
outras disposições, “normas de segurança e mecanismos de fiscalização de
atividades que envolvam organismos geneticamente modificados”, além de
dispor sobre a Política Nacional de Biossegurança, a PNB.

A doutrina civilista pátria contemporânea afirma que os direitos da


personalidade (direitos que protegem a existência da personalidade) são
adquiridos na concepção. Por isso, segundo o Enunciado 1 da 1ª Jornada de
Direito Civil, o natimorto teve direitos da personalidade, tais como imagem e
sepultura. Para o Superior Tribunal de Justiça, o nascituro tem legitimidade
ativa, podendo, por exemplo, ajuizar ações de indenização, embora a execução
patrimonial só possa ser movida após o nascimento com vida263.

Quanto à proteção dos embriões laboratoriais, o Enunciado 2 da 1ª


Jornada de Direito Civil disse que “o art. 2º do Código Civil não é sede
adequada para questões emergentes da reprogenética humana, que deve ser
objeto de um estatuto próprio”. O “estatuto próprio” é precisamente a Lei de
Biossegurança, acima referida, que traz em seu art. 5º a seguinte redação:
o
Art. 5 É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de
células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos
por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento,
atendidas as seguintes condições:
I – sejam embriões inviáveis; ou
II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da
publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação
desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da
data de congelamento.
§ 1o Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores.
§ 2o Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem
pesquisa ou terapia com células-tronco embrionárias humanas
deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos
respectivos comitês de ética em pesquisa.
§ 3o É vedada a comercialização do material biológico a que se refere
este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei
no 9.434, de 4 de fevereiro de 1997 (com grifos).

A lei brasileira, como se percebe, permite a manipulação de


embriões humanos produzidos in vitro para fins de pesquisa e terapia, exigindo
alguns requisitos: a) que sejam embriões inviáveis ou viáveis, desde que, neste
caso, congelados há três anos ou mais; b) que haja consentimento dos
genitores; c) vedada a comercialização, o que implicaria no crime previsto no
art. 15 da Lei 9.434/97, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e

263
STJ, REsp 399.028/SP. Isso porque embora o nascituro tenha direitos da personalidade, só terá
direitos patrimoniais após nascimento com vida.
partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento e dá outras
providências264.

O dispositivo legal destacado teve a sua constitucionalidade


questionada perante o Supremo Tribunal Federal, na ADI 3510/DF, na qual a
Suprema Corte reconheceu sua constitucionalidade, afirmando que o descarte
de embriões humanos nele previsto é compatível com a Constituição Federal.
É dizer, conforme o STF, o embrião fertilizado in vitro não é titular de direitos da
personalidade.

Vale ainda ressaltar que a Lei de Biossegurança, em seu art. 6º,


incisos III e IV, proíbe, respectivamente, a “engenharia genética em célula
geminal humana, zigoto humano e embrião humano” 265 e a “clonagem
humana”.

5.3) O debate ético. Nesse passo de nossos estudos, avaliaremos,


à luz da Palavra de Deus e das evidências científicas, as razões alçadas pelos
proponentes da fertilização humana in vitro e da manipulação laboratorial dos
embriões decorrentes.

Em primeiro lugar, argumenta-se que as células-tronco


embrionárias possuem tal valor terapêutico que negar-lhe reprodução
seria um mal à humanidade. O Ministro Carlos Ayres Britto, Relator na ADI
acima mencionada, ponderou que “as células-tronco embrionárias,
pluripotentes, ou seja, capazes de originar todos os tecidos de um indivíduo
adulto, constituiriam, por isso, tipologia celular que ofereceria melhores
possibilidades de recuperação da saúde de pessoas físicas ou naturais em
situações de anomalias ou graves incômodos genéticos”266.

Analisada de forma mais lúcida, a razão apresentada pelo eminente


Ministro não há de prevalecer, salvo se sonegarmos ao embrião concebido in
vitro a categoria de ser humano. Que o debate está exatamente em torno do
status humano do embrião, exsurge claramente das reflexões de Serra:

Se for concedido [ao embrião] o status de “indivíduo humano”,


certamente poderia ser utilizado para pesquisa, mas nas mesmas
condições exigidas para a experimentação em qualquer outro
indivíduo humano, segundo as normas convencionadas
internacionalmente; isto é: (1) o seu consentimento direto; (2) que não

264
Art. 15. Comprar ou vender tecidos, órgãos ou partes do corpo humano: Pena - reclusão, de três a
oito anos, e multa, de 200 a 360 dias-multa. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem promove,
intermedeia, facilita ou aufere qualquer vantagem com a transação.
265
A própria Lei conceituou “engenharia genética” como sendo a “atividade de produção e manipulação
de moléculas de ADN/ARN recombinante” (art. 3º, IV).
266
Informativo 508. http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo508.htm#ADI e
Lei da Biossegurança – 6. Acesso em: 28/04/2016.
se ponha em perigo a sua vida; (3) que qualquer tratamento seja
vantajoso para ele267.

Na mesma senda, Sgreccio vaticina que o princípio terapêutico não


pode ser aplicado “in vivo” quando se tem um alto percentual - e, nesse caso, a
certeza - da morte, lembrando que “Somente nos campos de concentração
nazistas é que foram aceitas e adotadas experiências “in vivo” que previam a
morte dos indivíduos, e sem o consentimento deles” 268.

Fato é que os fins não justificam os meios!

Em segundo lugar, o Ministro Ayres Britto ainda reconheceu -


também não poderia deixar de fazê-lo - que o nascituro goza de proteção do
ordenamento jurídico, mas que tal tutela não alcançaria o embrião
humano fertilizado in vitro. Para o Ministro, a Lei 10.406/2002 (Código Civil),
a Lei 9.434/97 e o Decreto-lei 2.848/40 (Código Penal),

que tratam, respectivamente, dos direitos do nascituro, da vedação à


gestante de dispor de tecidos, órgãos ou partes de seu corpo vivo e
do ato de não oferecer risco à saúde do feto, e da criminalização do
aborto, ressaltando, que o bem jurídico a tutelar contra o aborto seria
um organismo ou entidade pré-natal sempre no interior do corpo
feminino. Aduziu que a lei em questão se referiria, por sua vez, a
embriões derivados de uma fertilização artificial, obtida fora da
relação sexual, e que o emprego das células-tronco embrionárias
para os fins a que ela se destina não implicaria aborto.

Nós todos desejamos saber qual a diferença ontológica que pode


haver entre embriões humanos, fertilizados ou localizados no útero ou no
laboratório, não é mesmo?

Em terceiro lugar, a ideia odiável em torno prevenções eugênicas é


absolutamente reprovável. Nas mesmas bases, desejando um mundo povoado
por uma raça superior, Hitler empreendeu seu esforço genocida. Para nós,
cristãos, somente a redenção na cruz e suas conquistas, consumadas na
glorificação, produzirá uma “raça superior”, que ama a Deus com todo o ser e
ao próximo como a si mesmo. Nós ficamos felizes pelos filhos que recebemos
de Deus. Eles são “herança do Senhor”, uma recompensa de Suas mãos
bondosas.

Finalmente, porque buscaríamos um método para vencer nossa


infertilidade que é potencialmente destruidor de vidas humanas? Nós,
cristãos, a confiamos nas mãos de Deus, o Autor da vida, Àquele que disse:
“eu mato e faço viver” (Dt 32:39). Em resposta às justas reivindicações de

267
VERBAN, Cícero de Andrade (Org.). Bioética Clínica. Rio de Janeiro: Editora Revinter, 2003. p. 135
268
SGRECCIA, Elio. Manuel de Bioética I: Fundamentos e ética Biomédica. São Paulo: Edições Loyola,
2002. p. 442, 443
Deus, nós respondemos como Ana: “O SENHOR é o que tira a vida e a dá” (I
Sm 2:6); e como Jó: “o SENHOR o deu e o SENHOR o tomou; bendito seja o
nome do SENHOR” (Jó 1:21).

6. O suicídio.

Suicídio é vocábulo que se origina de duas palavras latinas, sui (a si


próprio) e caedere (cortar ou matar), e pode ser conceituado como o ato
voluntário e intencional de matar a si mesmo, de causar a autodestruição.
Como o sexto mandamento pretende proteger o valor da vida e sua santidade,
por sua fonte divina, matar a si mesmo é sempre, a princípio, em qualquer caso
e independentemente das razões invocadas, uma violação do “não matarás”.

A estatística do suicídio é alarmante. O mais recente relatório da


Organização Mundial de Saúde noticiou que a cada 40 segundos uma pessoa
comete suicídio no mundo e que 804 mil pessoas cometem suicídios todos os
anos, o que equivale a uma taxa de 11,4 mortes para cada 100 mil habitantes.
Em 2012, os países que mais registraram casos foram a Índia (258 mil óbitos),
a China (120,7 mil óbitos), os Estados Unidos (43 mil óbitos), a Rússia (31 mil
óbitos), o Japão (29 mil óbitos), a Correia do Sul (17 mil óbitos) e o Paquistão
(13 mil óbitos). O Brasil é o oitavo país em número de suicídios do mundo. Em
2012, foram registradas 11.825 mortes, o correspondente a 6 mortes em cada
100 mil habitantes269.

As causas imediatas do suicídio podem ser das mais variadas,


havendo dissenso entre os estudiosos das mais diversas disciplinas em como
classificá-las. Andrew Solomon, consoante anotou Hernandes Dias Lopes,
classifica os suicidas em quatro grupos: o primeiro é o que comete suicídio sem
pensar no que está fazendo; o segundo, por vingança, como se o ato não fosse
irreversível; o terceiro grupo pratica o suicídio a partir de uma lógica falha, por
acreditar que a morte é a única fuga de problemas intoleráveis; e o quarto
grupo suicida-se através de uma lógica racional, em virtude de doença,
instabilidade mental ou mudança nas circunstâncias de vida270.

José de Souza Gama apontou cinco causas que levam pessoas a


tentar suicídio (atenção, vingança, sair de uma situação desagradável, ir para
um lugar melhor e paz) e esclareceu que duas escolas buscam explicar sua
origem: a escola biológica ou psiquiátrica e a escola sociológica. A primeira
afirma que todos os suicidas são mentalmente alienados e que o instinto de

269
Brasil é o 8º país com mais suicídios no mundo, aponta relatório da OMS.
http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2014/09/brasil-e-o-8-pais-com-mais-suicidios-no-mundo-
aponta-relatorio-da-oms.html. Acesso em: 05/05/2016.
270
DIAS LOPES, Hernandes. Suicídio: Causas, Mitos e Preservação. São Paulo: Hagnos, 2007. p. 32, 33
autopreservação é tal que somente um estado mórbido pode embotá-lo. Para a
escola sociológica, o suicídio é um fenômeno social e sua causa está
relacionada com a falta de integração na sociedade. Para o francês Émile
Durkheim, considerado o pai da sociologia, há três tipos de suicídio: o egoísta,
que é resultado da desintegração dos laços sociais; o altruísta, praticado nos
interesses da sociedade; e o anômico - o sem lei -, relacionado a
desorientações e a choques, que ocorrem, por exemplo, na descoberta de uma
doença ou ante a ocorrência de falência 271.

Segundo Ulrich Reifler, na Filosofia e na Ética fala-se em dois


motivos principais para o suicídio: o heroísmo e o desespero. Reifler
exemplifica o primeiro tipo lembrando os kamikazes japoneses, os pilotos que
guiavam aeronaves repletas de explosivos até seus alvos militares e morriam
na explosão. Um exemplo de suicídio heroico contemporâneo é a atividade
terrorista dos jihadistas do islamismo mais radical. Em casos de desespero,
explica Reifler, “o suicídio parece ser a única solução possível para um grande
problema, um ato redentor que acabaria com um tremendo pesadelo” 272.

6.1) Uma possível classificação. Pelo exposto, percebe-se que as


causas imediatas que levam pessoas a tentar assassinarem a si mesmas são
multifacetadas e interdisciplinares, embora julguemos que elas podem reduzir-
se a quatro fundamentos essenciais. Se não, vejamos.

Em primeiro lugar, tentativas suicidas podem decorrer de influências


demoníacas. Os evangelhos sinópticos narram uma incursão de Jesus na terra
dos gadarenos, onde Ele encontrou dois homens endemoninhados, segundo a
narrativa de Mateus (Mt 8:28-34), embora apenas um seja mencionado por
Marcos (Mc 5:1-20) e Lucas (Lc 8:26-39). Esses homens estavam possuídos
de um sem número de demônios, pelo que se pode deduzir do epíteto que
deram a si mesmos: “Legião” (uma legião romana tinha cerca de 6.000
soldados). Essa possessão levou os endemoninhados à vida solitária nos
sepulcros, separando-os da sociedade e da família, e tornou-os violentos com
os outros (Mt 8:28) e consigo mesmos, porque Marcos registra que eles
andavam noite e dia pelos sepulcros e pelos montes ferindo-se com pedras
(Mc 5:5). Essa era a razão pela qual tantas vezes se tentou acorrentá-los,
embora inutilmente, porque os demônios lhes dotavam de força descomunal.

Outro episódio que guarda relação com o nosso ponto é o da cura


de um jovem possesso desde a infância por um espírito imundo (Mt 17:14-23;
Mc 9:14-31; Lc 9:37-45). O pai do moço, em desespero, disse a Jesus que um
demônio causou a mudez do seu filho único, que quando o possui lhe

271
DIAS LOPES, Hernandes. Suicídio: Causas, Mitos e Preservação. São Paulo: Hagnos, 2007. p. 56
272
REIFLER, Hans Ulrich. A Ética dos Dez Mandamentos. São Paulo: Edições Vida Nova, 1992. p. 122
convulsiona, lançando-o no chão, e por diversas vezes jogou o menino na água
e no fogo para matá-lo.

Certamente, embora sejam possessões como essas as tendências


suicidas decorrentes de influências demoníacas mais notórias, não se pode
descartar influências satânicas discretas, condicionamentos indiretos e
sugestionamentos mais sutis associados com as demais causas do suicídio.

Em segundo lugar, suicídio pode também decorrer de distúrbios de


ordem psiquiátrica e doenças mentais de variados matizes. É absolutamente
equivocada a noção de que todos os tipos de doenças mentais decorrem de
possessões demoníacas. Em Mt 4:24, o primeiro evangelista noticiou que que
trouxeram a Jesus “todos os doentes, acometidos de várias enfermidades e
tormentos: endemoninhados, lunáticos e paralíticos. E ele os curou”.
Observemos que “várias enfermidades e tormentos” são expressões genéricas
para comunicar que, não importa qual seja o problema, nem tampouco sua
origem, Jesus pode solvê-lo. Em seguida, Mateus especifica três situações que
para ele são distintas: endemoninhados, lunáticos e paralíticos.

O certo é que todos esses males e tormentos são próprios de um


mundo como o nosso, caído. Entretanto, a causa imediata de cada mal pode
assumir manifestações múltiplas. Doenças físicas podem ser resultado direto
de uma ação demoníaca ou não, e de algum pecado específico (Jo 5:14; I Co
11:30; Tg 5:15) ou não (Jo 9:2,3). O termo grego seleniazoménous, traduzido
na ARA por “lunáticos” e na NVI por “loucos”, significa etimologicamente “ser
trazido sob a influência da lua” 273. Em Mt 17:5, o mesmo vocábulo é usado para
expressar um tipo de convulsão, por isso Hendriksen o traduz por
“epiléptico”274. A palavra, conforme Carson, refere-se a “qualquer tipo de
insanidade ou de comportamento irracional quer relacionado com o fato de a
pessoa estar possuída por demônios quer não” 275.

Destarte, doenças mentais, não necessariamente oriundas de


influências malignas, podem conduzir pessoas a um estado de morbidez tal
que as faça perder a capacidade de raciocinar com lucidez, de modo a não
verem nenhuma outra saída em determinadas circunstâncias além do suicídio.
Ademais, é possível falar-se inclusive em suicídio cometido sem o necessário
discernimento quanto à gravidade do fato e mesmo sem a capacidade de

273
RIENECKER, Fritz; ROGERS, Cleon. Chave Linguísica do Novo Testamento Grego. São Paulo: Vida Nova,
1995. p. 8
274
HENDRIKSEN, William. Comentário do Novo Testamento: Mateus. Volume 1. São Paulo: Cultura
Cristã, 2001. p. 351
275
CARSON, D. A. O Comentário de Mateus. São Paulo: Shedd Publicações, 2010. p. 153
determinar-se de acordo com esse discernimento, caso em que não haveria
responsabilidade moral pelo fato276.

A grave dificuldade da nossa sociedade está em promover uma


ampla vitimização através de rotulações eufemísticas pelas quais tudo é
considerado doença.

Em terceiro lugar, suicídio pode decorrer de persuasões de ordem


filosófica ou religiosa. A antiga filosofia estoica costumava justificar o suicídio,
afirmando ser lícito morrer quem não interessa mais viver. Os epicureus o
consideravam como parte da própria existência. E, mais recentemente,
Schopenhauer, em “Dores do Mundo”, aconselhava o suicídio como a única
lógica à existência humana indefectivelmente presa aos sofrimentos277.

Basta partirmos do princípio que não há Deus para logo concluirmos


que a vida é destituída de sentido, valor e propósito, nos termos de William
Lane Craig. Jean-Paul Sartre, por exemplo, partindo da declaração de
Nietzsche de que Deus está morto, negou que haja na vida um sentido a ser
descoberto. Para ele, se é verdade que todos estamos caminhando à
inexistência, não faz a menor diferença se isso demora muitas horas ou muitos
anos. Assim, se o homem não quer conviver com o absurdo de uma vida sem
sentido, que ele crie um sentido à própria vida escolhendo um curso de
ação278.

Como se percebe, não há muitas alternativas à luz de reflexões


consistentes fundamentadas no ateísmo. Para Bertrand Russell, filósofo
britânico, a única opção é construir a vida sobre “a firme fundação do mais
obstinado e inflexível desespero”. Albert Camus, existencialista francês,
concluiu que, visto que Deus não existe, a vida é um absurdo. Camus era
contra o suicídio e promovia a fraternidade entre os seres humanos, embora
para ele o suicídio fosse a única questão filosófica séria 279.

O apóstolo Paulo afirma o vazio da vida no presente sem a


perspectiva da eternidade, quando diz que “Se a nossa esperança em Cristo se
limite apenas a esta vida, somos os mais infelizes de todos os homens” (I Co
15:19). A palavra grega eleeinóteros seria melhor traduzida como “os mais
dignos de compaixão”, como na NVI (e não “os mais infelizes”). Em outras
palavras, se Cristo não ressuscitou dos mortos, nós não temos nenhuma
expectativa de vida após a morte. Nesse caso, ficamos somente com um

276
Assim como não há crime quando o fato típico, isto é, previsto em lei penal, é praticado por
inimputável em decorrência de doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado,
consoante dispõe o art. 28 do Código Penal brasileiro.
277
DIAS LOPES, Hernandes. Suicídio: Causas, Mitos e Preservação. São Paulo: Hagnos, 2007. p. 40
278
CRAIG, William Lane Creig. Em Guarda: Defenda a Fé Cristã com Razão e Precisão. São Paulo: Vida
Nova, 2001. p. 34, 46
279
Ibdem. p. 43, 44
evangelho vazio e os ateus têm razão em nos considerar as pessoas mais
iludidas e enganadas, que não merecem nada além de piedade. David Prior, a
propósito, contou-nos o caso de “Certa senhora idosa, que frequentava a
igreja”, que, ao ouvir “um desses céticos modernos falar no rádio que tudo em
que havia crido até então, por intermédio do cristianismo ortodoxo, era indigno
de confiança, se não uma mentira”, cometeu suicídio 280.

As religiões, a seu termo, podem também prover a motivação para


suicídios. É famoso o caso ocorrido em 18 de novembro de 1978, quando
membros da seita Templo do Povo, fundada na década de 50 por James
Warren “Jim” Jones, cometeram suicídio em massa. A seita já fornecia
treinamento para suicídio em massa, a ser cometido em caso de ameaças por
parte das autoridades americanas. Nesse dia fatídico, morreram 918
moradores da comunidade de Jones e o Deputado Leon Ryan e três jornalistas
foram assassinados. Outro exemplo é o da seita americana Porta do Céu
(Heaven‟s Gate), fundada em 1972 por Marshall Applewhite e Bonnie Nettles.
Dos membros dessa seita, 39 cometeram suicídio entre os dias 24 a 26 de
março de 1997. Eles beberam uma dose letal de fenobarbital com suco de
maçã e vodka, por acreditarem que pegariam um OVNI que estaria passando
com o cometa Hale-Bopp – denominado o grande cometa de 1997.

Devemos destacar também as atividades terroristas dos radicais


islâmicos. Com efeito, por mais que tentemos tergiversar com a doutrina dos
muçulmanos, o certo é que tanto em diversas passagens do Alcorão quanto
das Hadiths e da Sharia, lemos um estímulo à Jihad como parte da sua
devoção a Alah. No Hadith 1301, por exemplo, Maomé teria dito que “Há uma
outra coisa que leva o servo de Alá a escalar cem graus na escala do paraíso,
[a distância] entre esses graus corresponde à distância entre o céu e a terra”,
“A Jihad pela causa de Alá!”281.

Em quarto lugar, podem ser catalogadas juntas todas as hipóteses


nas quais o suicídio decorre da falta de capacidade de lidar com os fracassos
circunstanciais da existência, em cuja base reside, invariavelmente, o orgulho e
o egoísmo e seus frutos. Sem embargo, nessa categoria inclui-se, segundo
suponho, a maioria esmagadora das ocorrências de suicídio e suas tentativas,
que nada mais é que reações a vicissitudes das mais variadas ordens, tais
como: relacionamentos desfeitos e traições282, falência financeira, desejos de

280
PRIOR, David. A Mensagem de 1 Coríntios. São Paulo: ABU Editora, 1993. p. 284
281
POLLMANN, Leo. O que contém realmente o Alcorão? São Paulo: Edições Loyola, 2013. p. 175
282
Richard Bauckhan e Trevor Hart contam a história de Helmut Thielicke, um homem que foi mantido
muito tempo pelo nacional socialismo nazista na solitária, onde suportou torturas constantes. Duas
semanas depois de solto, Thielicke foi encontrado morto por enforcamento. Ele havia se suicidado no
sótão de sua casa. Muitos perguntaram sobre a razão do suicídio de homem tão destemido, mas os que
lhe conheciam de perto sabiam que seu suicídio foi uma reação por ele haver descoberto que havia sido
entregue à polícia nazista pelo próprio filho. A partir dessa história, os autores escreveram: “A traição,
que em sua essência acarreta o sofrimento de ser entregue ao perigo ou ao desconforto por uma pessoa
livrar-se de grandes sofrimentos, a descoberta de uma doença incurável,
graves pecados morais, etc.

6.2) O suicídio na legislação pátria. Em Atenas, a atitude de


autoeliminar-se era vista como uma injustiça contra a comunidade. Tal ato
vedava ao suicida as honras de uma sepultura regular e, além disso, tinha a
mão cortada e enterrada à parte. Em Roma, o cidadão que desejasse se matar
deveria submeter suas razões ao Senado que, por sua vez, decidiria se tais
razões eram aceitáveis e, então, determinava o gênero da morte 283. O direito
canônico foi recrudescendo em cada concílio o tratamento dispensado ao
suicida até à decisão pela excomunhão, em 693, no Concílio de Toledo.

Na idade moderna, tanto o suicídio como a tentativa foram


considerados fatos criminosos em alguns períodos. Na Inglaterra e no País de
Gales, o suicídio era uma ofensa capital até o século XIX. A lei estabelecia que
quem viesse a cometer suicídio ou estivesse propenso a fazê-lo deveria ter
seus bens confiscados. A tentativa de suicídio deixou de ser crime na Inglaterra
e País de Gales somente em 1962 e, na Irlanda, cerca de vinte e cinco anos
mais tarde284.

No Brasil, o suicídio e sua tentativa não são fatos típicos penais. A


legislação penal pátria rotula como crime a conduta de terceira pessoa que
pratica “Induzimento, instigação ou auxílio a suicídio”, punindo a ação
criminosa com pena de reclusão de 2 a 6 anos, se o suicídio se consuma, e
com reclusão de 1 a 3 anos, se da tentativa resulta lesão corporal de natureza
grave. Noutro dizer, para o Estado brasileiro, criminoso não é quem se suicida
ou tenta suicidar-se, mas aquele que de qualquer modo induz, instiga ou auxilia
o suicida. Induzir é fazer nascer a vontade suicida em quem não a havia
cogitado; instigar é reforçar a vontade mórbida pré-existente; e auxiliar é
prestar assistência material, disponibilizando os meios necessários a que o
suicídio ocorra. O parágrafo único do art. 122 do Código Penal pátrio dispõe
que as penas são aumentadas se o induzimento, instigação ou auxílio são
cometidos por motivo egoísta (com vistas a interesses pessoais) e se a vítima
for menor (até 18 anos incompletos) ou tem diminuída, por qualquer causa, a
capacidade de resistência (são exemplos o ébrio, o enfermo e o senil).

Segundo Rogério Greco, se um adepto da seita das Testemunhas


de Jeová se acidenta gravemente a ponto de necessitar de transfusão de
sangue e nega-se a recebê-la, isso deve ser considerado tentativa de suicídio,

amada ou de confiança, causa uma dor que ultrapassa a dor física, não importa a intensidade”.
BAUCKHAN, Richard; HART, Trevor. Ao Pé da Cruz: Reflexões sobre Homens e Mulheres que Viram a
Crucificação. São Paulo: Mundo Cristão, 2000. p. 25
283
CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal: Parte Especial. Salvador-BA: Editora JusPodivm,
2015. p. 68
284
DIAS LOPES, Hernandes. Suicídio: Causas, Mitos e Preservação. São Paulo: Hagnos, 2007. p. 44
devendo o médico necessariamente intervir, pois está na posição de
garantidor285.

6.3) O suicídio na Escritura. A Bíblia é farta quanto ao tema e


concede-nos diversos exemplos que os dividiremos em dois conjuntos: no
primeiro, abordaremos os casos em que homens de grande envergadura
espiritual pediram a Deus a morte para si; no segundo, trabalharemos os casos
de ocorrência de suicídio ou, pelo menos, de iniciativas tendentes ao suicídio.

Em primeiro lugar, conheçamos os casos registrados na Escritura de


homens que pediram a Deus a morte para si. A Bíblia registra três homens que
pediram a morte a Deus – Moisés, Elias e Jonas -, e um quarto, que desejou
ardorosamente não ter nascido tanto quanto ver a morte – o patriarca Jó.
Moisés foi o homem que lidou com Faraó e foi usado por Deus para massacrar
o Egito através das dez pragas e libertar os hebreus de quatrocentos anos de
escravidão. Foi ele quem recebeu a Lei, orientou a construção do Tabernáculo
e enviou os espias à Canaã. Entretanto, quando acossado pelo populacho
queixoso pela falta das comidas do Egito, e vendo Moisés que as famílias
pranteavam desgostosas à porta das tendas, disse a Deus: “Se assim me
tratas, mate-me de uma vez” (Nm 11:15). Não nos parece que Moisés queria
propriamente a morte. O que ele desejava mesmo era ver-se livre daquele
momento, daquela tensão. Tanto é assim que quando Deus lhe informou que
ele não conduziria o povo para dentro da terra prometida, em face da
desobediência no episódio das águas de Meribá (Nm 20:1-13), ele suplicou a
Deus que lhe prolongasse a vida (Dt 3:23-27).

Elias foi o profeta que enfrentou o rei Acabe e sua terrível esposa,
Jezabel, e os profetas de Baal. Ele foi alimentado por corvos e pela viúva de
Sarepta, a mãe do jovem que ele ressuscitou. Foi Elias que disse a Acabe que
não choveria por três anos, e não choveu; e posteriormente disse que choveria,
e choveu. Quando orou, desceu fogo do céu no altar do monte Carmelo. Mas
quando recebeu a notícia de ameaças de morte da rainha Jezabel, foi ao
deserto, se assentou debaixo de um zimbro “e pediu para si a morte e disse:
Basta; toma agora, ó SENHOR, a minha alma, pois não sou melhor do que
meus pais” (I Rs 19:4). Mais uma vez, o que temos aqui, senão o desejo de
livrar-se de um tempo de adversidades? Fato é que se Deus lhe tivesse
atendido ao pedido, ele não teria ungido o profeta que lhe substituiria nem o rei
que sucederia Acabe, tampouco seria levado para o céu como foi, sem a
experiência da morte (II Rs 2:11).

O profeta Jonas é mencionado em II Rs 14:25, texto do qual


tomamos ciência que sua profecia quanto ao alargamento das terras de Israel,

285
CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal: Parte Especial. Salvador-BA: Editora JusPodivm,
2015. p. 77
no tempo em que reinava Jeroboão II, foi plenamente cumprida. Tendo sido
enviado a pregar aos ninivitas, Jonas tomou direção diametralmente oposta.
Após ser lançado ao mar e retomado o curso que deveria ter originalmente
seguido, prega aos ninivitas, estes se arrependem e Deus deixa de puni-los
naquele momento. Jonas desgostou-se com a decisão do Senhor ao ponto de
ficar irado e de fazer a seguinte oração: “Ah! SENHOR! Não foi isso o que eu
disse, estando ainda na minha terra? Por isso, me adiantei, fugindo para
Társis, pois sabia que és Deus clemente, e misericordioso, e tardio em irar-se,
e grande em benignidade, e que te arrependes do mal. Peço, pois, ó SENHOR,
tira-me a vida, porque melhor me é viver do que morrer” (Jn 4:2, 3). Jonas
estava inconformado porque Deus não agia segundo seus planos, tampouco as
ações de Deus pareciam encaixar-se na lógica egoísta do profeta.

Por fim, Jó foi efetivamente levado a cogitar uma espécie de suicídio


indireto pela própria esposa, quando, após todas as tragédias que desabaram
sobre ele, ela sugeriu: “Ainda conservas a tua integridade? Amaldiçoa a Deus e
morre” (Jó 2:9). A mulher do patriarca ponderou que uma vida como aquela
não valeria a pena ser vivida e o instigou a levar Deus a matá-lo. Jó resiste
piedosamente, acusando a esposa de insensatez: “Falas como qualquer doida;
temos recebido o bem de Deus e não receberíamos também o mal?” (Jó 2:10).
Para Jó, é impensável a ideia de blasfemar contra Deus, ainda que isso lhe
trouxesse indiretamente alívio ao sofrimento. Entretanto, no auge do seu
suplício físico e emocional, o patriarca amaldiçoa o dia que nasceu (Jó 3:1-10),
lamenta não ter sido abortado (Jó 3:11, 12) e deixa escapar seu desejo de ver
a morte (Jó 3:20-22). Jó, nesses momentos tormentosos, nem conhece os
planos do Deus Eterno e nem sabe como sua história findará.

Em segundo lugar, voltemo-nos aos personagens referidos na


Escritura que cometeram suicídio ou pelos menos tentaram fazê-lo, quais
sejam: Sansão, Saul e seu escudeiro, Aitofel, Zinri, Judas Iscariotes e o
carcereiro de Filipos. Sansão foi um homem escolhido por Deus para ser juiz
em Israel. Seu declínio teve início quando tomou para esposa uma mulher
filisteia em Timna, para tristeza dos seus pais (Jz 14:3). Não satisfeito,
afeiçoou-se de Dalila (Jz 16:4), por quem foi traído e através de quem foi
levado cego ao cárcere (Jz 16:19-21). Durante uma grande festa filisteia em
homenagem ao deus Dagon, Sansão, inconformado com a vida que tem e com
o que causou, faz desabar o templo pagão sabendo que morreria soterrado
com os filisteus (Jz 16:28-30).

Saul foi o primeiro rei de Israel. A batalha que pôs fim à sua vida e
dinastia ocorreu com os filisteus no monte Gilboa, onde morreram também
seus filhos Jônatas, Abinadabe e Malquisua. Se reunirmos os relatos de I Sm
31:1-6 e II Sm 1:6-10, parecer-nos-á que Saul temeu estar vivo nas mãos dos
inimigos como objeto de tortura e escárnio e, tendo seu escudeiro se negado a
atender seu pedido para que o matasse, o próprio rei lançou-se sobre sua
espada, mas não morreu até ser encontrado pelo amalequita que o matou e
levou a notícia a Davi. Se o amalequita falou a verdade (o que não se pode
afirmar convictamente), Saul tentou suicidar-se, mas foi morto pela ação
daquele. Quando o escudeiro de Saul viu que Saul atentou contra a própria, fez
o mesmo (I Sm 31:5; I Cr 10:4, 5).

Aitofel foi o conselheiro sincero de Absalão, que aconselhou a atacar


Davi com agilidade e surpresa (II Sm 17:1-3). Husai, por sua vez, traz uma
proposta flagrante e propositalmente desarrazoada, mas a apresenta com
bastante eloquência (II Sm 17:7-14). Ao perceber que seu conselho não foi
ouvido, e sim a orientação desastrosa de Husai, diz o texto que Aitofel
“albardou o jumento, dispôs-se e foi para casa e para a sua cidade; pôs em
ordem os seus negócios e se enforcou; morreu e foi sepultado na sepultura do
seu pai” (II Sm 17:23).

Zinri foi um comandante militar que assassinou o rei Elá, de Israel, e


reinou em seu lugar (I Rs 16:8-10). Ocorre que o reinado de Zinri, homem cruel
e assassino, durou apenas sete dias, na cidade de Tirza, porque quando o
povo ouviu que ele havia matado o rei Elá, constituiu Onri como rei de Israel e
não demorou até que Tirza estivesse sitiada pelo novo rei. Quando Zinri viu
que a cidade estava cercada pelo exército de Onri, queimou o castelo do rei
sobre si (I Rs 16:15-18). O escritor sagrado relaciona o fim de Zinri com os
pecados que cometera (I Rs 16:19).

No Novo Testamento, lemos a respeito de duas tentativas de


suicídio não decorrentes de possessão maligna, a de Judas Iscariotes e a do
carcereiro de Filipos. Judas, movido pelo desespero, enforcou-se (Mt 27:3-5),
embora Lucas nos informe que sua morte foi causada por uma queda que
provocou o derramamento de suas entranhas (At 1:18). O texto de Mateus dá-
nos a impressão de que Judas foi tomado de “remorso” após tomar ciência da
condenação de Jesus (Mt 27:3). Verbo grego metamelomai, que é
praticamente sinônimo de metanoeo, não comunica na passagem que Judas
se arrependeu, mesmo somado à sua confissão perante o sinédrio de ser
culpado de traição de uma pessoa inocente (lit. “sangue inocente”) (Mt 27:4).
Judas não conheceu uma transformação fundamental da mente. Apenas se
encheu de autocondenação infrutífera, posto que sua tristeza não lhe conduziu
a suplicar por graça. Seu suicídio decorreu claramente da incredulidade em
lidar com o fracasso espiritual.

O carcereiro de Filipos ainda chegou a puxar a espada para se


suicidar ao ver as portas do cárcere abertas, concluindo que os presos haviam
fugido (At 16:27), mas foi impedido por Paulo de fazê-lo: “Não te faças nenhum
mal, que todos estamos aqui!” (At 16:28). Para Justo González, aquele
carcereiro era um homem tão apegado à sua carreira e prestígio pessoal que,
“quando ele pensa que os prisioneiros fugiram, está preparado a tirar a própria
vida. Para ele, a vida não tem valor sem o prestígio e respeito” 286.

6.3) A natureza espiritual do suicídio e a orientação bíblica


pertinente.

O suicídio é um pecado, porque é um ato que tenciona a destruição


da vida cujo doador é Deus. É um pecado porque atenta contra o ser humano,
feito à imagem e semelhança de Deus. Os que se matam ou tentam se matar
no momento dos fracassos circunstanciais o fazem porque descreem nas
ações providenciais de Deus quando são tomados de desespero. Quando
esses fracassos são espirituais, o pecado que leva ao suicídio reside em não
confiar na graça de Deus para perdoar os mais horrendos e escandalosos
pecados. O crente teme o enfrentamento do vexame público e/ou desconfia da
fidelidade de Deus e da justiça de Cristo em perdoar os pecados confessados
(I Jo 1:7).

Mais que isso, na base de todo suicídio há, como antes indicamos,
os gérmens do egoísmo e do orgulho. O suicida não cogita que será
encontrado pendurado numa corda por pessoas que muito lhe amam, nem
como permanecerão essas pessoas em sua ausência. Naquele momento, tudo
o que importa é a sua própria vida, em como se livrará das agruras de
existência. Na verdade, o suicida não é a pessoa que menos ama a si mesma.
Pelo contrário, ele se ama tanto que acha que Deus - ou o destino ou o acaso
ou a existência – não está lhe ofertando a vida como deveria ou que ele
mereceria receber. Assim, ou a vida torna-se como ele acha que ela deveria
ser ou ele se autodestruirá. Portanto, o suicídio é um pecado contra Deus e
contra o próximo.

Entretanto, o suicídio pode vir a ser cometido por um salvo. Cristãos


genuínos já desejaram a morte e outros, como o poeta William Cowper,
chegaram a tentar o suicídio. Mais que isso, suicídio não é a blasfêmia contra o
Espírito Santo, o único pecado para o qual a Bíblia afirma não haver perdão (Mt
12:22-32; Mc 3:20-30). Hernandes Dias Lopes esclarece que

Quando Jesus falou sobre blasfêmia contra o Espírito Santo (...) não
estava tratando de um pecado vago, mas da decisão consciente e
deliberada de atribuir a obra de Deus ao poder de Satanás. Os
fariseus acusavam Jesus de expulsar demônios pelo poder de
Belzebu, o maioral dos demônios. Por inveja, eles atribuíam as obras
de Cristo, feitas no poder do Espírito Santo, ao poder do maioral dos
demônios. Esse pecado de satanizar Jesus é classificado como
blasfêmia contra o Espírito Santo, e esse pecado não tem perdão
nem neste mundo nem no vindouro287.

286
GONZÁLEZ, Justo L. Atos: O Evangelho do Espírito Santo. São Paulo: Hagnos, 2011. p. 234
287
DIAS LOPES, Hernandes. Suicídio: Causas, Mitos e Preservação. São Paulo: Hagnos, 2007. p. 128
Finalmente, vejamos como a Bíblia traz orientações bastante
precisas sobre o suicídio:

Em primeiro lugar, como o suicídio é um pecado, como qualquer


outro pecado ele deve ser resistido. Nosso Senhor começou a demonstrar que
é apto a reverter as consequências do pecado de Adão nas tentações que
sofreu no deserto. Uma dessas cruéis tentações foi a sugestão satânica de que
Jesus desse um salto suicida do pináculo do templo, a ver se se cumpririam as
palavras do Salmos 91 quanto ao cuidado de Deus por Ele (Mt 4:5, 6; cf. Sl
91:11, 12). Hendriksen observa que o local exato aonde Jesus foi conduzido
não é informado, mas sugere que pode ter sido a parte superior do teto do
pórtico real de Herodes, com uma altura de cerca de 150 metros288. O que
desejo ressaltar, por ora, é que tentação não é pecado; pecado é ceder à
tentação. Jesus foi tentado, mas resistiu à tentação.

Em segundo lugar, o arrependimento, segundo a Escritura, é o


caminho necessário àquele que tentou o suicídio e mesmo àquele cuja
tendência é depreciar a própria existência. Nenhum sofrimento, limitação, dor
ou angústia, de qualquer forma ou intensidade, torna a existência indigna de
ser vivida. O homem que não tem pernas e braços, oportunidades ou
notoriedade, e mesmo aquele cuja existência dá-se em meio a dores
indescritíveis, carrega a imagem do Criador e deve valorizar esse fato
estupendo. Na verdade, somente em uma única ocasião o Senhor Jesus
afirmou que seria melhor a um homem que ele não tivesse nascido: “O Filho do
Homem vai, como está escrito a seu respeito, mas ai daquele por intermédio de
quem o Filho do Homem está sendo traído! Melhor lhe fora não haver nascido!”
(Mt 26:24, com grifo nosso). Isso não é dito sobre mais ninguém! Portanto,
aquele que deprecia a sua existência a ponto de decidir eliminá-la deve ser
responsabilizado por sua atitude e conduta e chamado, amorosamente, ao
arrependimento. Se for tratado como vítima, se verá com direto à
autocomiseração, sem culpas e responsabilidades, e não atentará à urgente
necessidade de arrependimento.

Em terceiro lugar, a Escritura nos exorta a confiar em Deus, a


depender de Deus, a lançar nossas ansiedades em Deus (I Pe 5:7). Paulo diz
aos filipenses que devem entregar a Deus em oração, com ações de graças, as
suas necessidades, acrescentando que a paz de Deus, que excede todo o
entendimento, guardará seu coração e mente (Fp 4:6, 7). Isso não quer dizer
que Deus, necessariamente, nos poupará imediatamente daquilo que nos
aflige, mas que seremos capacitados a enfrentar paciente e piedosamente a
aflição. Paulo, dentre tantos outros sofrimentos, padeceu muitíssimo sob um
“espinho na carne”, do qual ele pediu a Deus livramento por três vezes. Mas,

288
HENDRIKSEN, William. Comentário do Novo Testamento: Mateus. Volume 1. São Paulo: Cultura
Cristã, 2001. p. 319
ao invés de alívio, Deus lhe deu graça para que ele o enfrentasse (II Co 12:7-
9).

Em quarto lugar, a vida cristã é repleta de recursos poderosos e


inesgotáveis, capazes de nos fortalecer nos piores momentos. A Escritura é
frequente em ensinar-nos que Deus tem sempre um socorro todo adequado
para cada situação da vida. Ele tem livramento e força para a tentação (I Co
10:13), graça no sofrimento (II Co 12:9), conforto na angústia, firmeza no
desespero (II Co 1:4, 8, 9) e perdão para o pecado confessado (I Jo 1:7).

O Senhor Jesus se nos apresenta como Aquele que é todo


suficiente para salvar-nos e realizar-nos plenamente. Ele é a luz do mundo (Jo
1:4; 8:12; 9:5; 12:35, 36) e o pão da vida, que desceu do céu e dá vida ao
mundo (Jo 6:33, 35). É Ele quem possui uma água que se torna para quem
dela bebe uma fonte que jorra para a vida eterna (Jo 4:13, 14). Ele afirmou ter
vindo para dar vida plena (Jo 10:10) e para fazer de Seus servos, aos quais
chamou de amigos (Jo 15:15), partícipes do Seu amor, da Sua alegria e da Sua
paz (Jo 14:27; 15:9, 11). Com efeito, João afirmou: “Porque todos nós temos
recebido da sua plenitude e graça sobre graça” (Jo 1:16). Certamente, o
quadro que a Escritura nos revela é o do Homem mais feliz do mundo, sendo
Ele o Todo-poderoso capaz de nos tornar os homens mais felizes do mundo.
Todas essas promessas maravilhosas nos comunicam fortemente que a vida
cristã nada tem de pobre.

J. C. Ryle, defendendo lindamente “o valor incalculável da


excelência dos dons de Cristo”, afirmou que há milhares de pessoas que vivem
a buscar diariamente aquilo que seu coração deseja, mas permanecem
cansadas e insatisfeitas. Enfatizou que “Riquezas, posições, prestígio, cultura e
diversões são totalmente incapazes de satisfazer a alma”. Por outro lado, o
bispo anglicano disparou:

Somente Jesus Cristo pode preencher os espaços vazios em nosso


homem interior. Somente Ele pode dar felicidade real e duradoura. A
paz concedida por Ele é como uma fonte que, começando a jorrar na
alma, jorra por toda a eternidade. As águas desta fonte poderão
diminuir ou aumentar ocasionalmente; mas são águas vivas e nunca
secarão por completo289.

Entretanto, a fé cristã não oferece uma “terapia” a quem não se


arrepende dos seus pecados. A Escritura não promete “cura” a quem ama o
pecado, nem bem-aventurança na prática do pecado. Para aqueles que
desejam conviver felizes com o pecado, o melhor é buscar outras “terapias”.

Em quinto lugar, a mensagem e a comunhão cristãs são alentos


eficazes e amparo aos desanimados. A esperança quanto à segunda vinda do

289
RYLE, J. C. Meditações no Evangelho de João. São José dos Campos-SP: Editora Fiel, 2013. p. 45
Salvador e à ressurreição dos corpos é um tema poderosamente edificante e
consolador (I Ts 5:4-11), a ser lembrado em situações potencialmente
deprimentes. A comunhão cristã, promovida pelo Espírito (Fp 2:1), é um
ambiente adequado a que os “desanimados” sejam encorajados (I Ts 5:14). A
palavra grega “oligopsichos” significa desanimado, desencorajado, abatido,
tímido ou medroso. A igreja inteira, a quem Paulo dirige essa admoestação,
deve cuidar dos seus desanimados, encorajando-os a viverem de acordo com
a fé que professam.

Tiago, nesse mesmo sentido, orienta os cristãos a que confessem


seus pecados uns aos outros e orem uns pelos outros (Tg 5:16). A confissão
de pecados aqui referida é feita “uns aos outros”, entre irmãos, e não somente
aos líderes da igreja, como veio a ocorrer ao longo da idade média e tornar-se
o dogma romano da confissão auricular. Além disso, devemos orar uns pelos
outros, rogando a Deus por cura. Veja o leitor que o que se tem em vista aqui é
a cura de alguma enfermidade física, e não espiritual. Mas é possível que uma
enfermidade física esteja relacionada a um pecado inconfesso, como
transparece do contexto. Finalmente, não custa salientar que a busca da cura
pela confissão e orações mútuas não dispensam o uso de medicamentos (I Tm
5:23; II Rs 20:7; Is 38:21).

Em sexto lugar, os cristãos têm uma razão adicional para não


cometerem suicídio: eles não pertencem a eles mesmos, porque foram
comprados na cruz de Cristo. O apóstolo Pedro diz que fomos resgatados “pelo
precioso sangue, como de cordeiro sem defeito e sem mácula, o sangue de
Cristo” (I Pe 1:18, 19). Paulo também nos adverte sobre o que fazer com o
corpo, porque ele é santuário do Espírito Santo, e que não somos de nós
mesmos, porque fomos comprados por preço (I Co 6:19, 20). Perceba-se que
não podemos destruir aquilo que não é nosso. Somos mordomos de Deus
quanto à administração dos bens da vida e do corpo, que não nos pertencem.

Em sétimo lugar, a Escritura nos exorta a não vivermos e a não


morrermos para nós mesmos: “Porque nenhum de nós vive para si mesmo,
nem morre para si mesmo. Porque, se vivemos, para o Senhor vivemos; se
morremos, para o Senhor morremos. Quer, pois, vivamos ou morramos, somos
do Senhor” (Rm 14:7, 8). Esse texto mavioso do apóstolo diz que o Senhor
Jesus Cristo é o alvo da vida e da morte dos cristãos. Aqui reside o segredo da
vida e da morte! Se vivemos, é para o Senhor que vivemos. Se morremos, para
o Senhor morremos. Viver para si e morrer para si são expressões de egoísmo
incrédulo e estão umbilicalmente relacionadas. Quem vive apenas para si
mesmo morre apenas para si mesmo e, eventualmente, se suicida, se
enclausura, se deprime, se autoflagela. Quem, por outro lado, vive para o
Senhor (e somente assim!), morre também para Ele e, nesse caso, morrer é
ganho, vivificação, revestimento, descanso e ressurreição – Fp 1.21; Ap 14.13;
20.4; 2 Co 5.2-4; Jo 11.25, 26.

Por fim, os cristãos não se matam porque têm tantas razões para
viver quanto para morrer, de modo que a fé cristã autêntica jamais induzirá
pessoas a assassinarem a si mesmas. E quem tem razões para viver e para
morrer nem se desesperam pelo prolongamento da vida nem se arvoram
assumindo uma postura de antecipar a morte. Ouçamos o apóstolo Paulo:

Porquanto, para mim, o viver é Cristo e o morrer é lucro. Entretanto,


se o viver na carne traz fruto para o meu trabalho, já não sei o que hei
de escolher. Ora, de um e outro lado, estou constrangido, tendo o
desejo de partir e estar com Cristo, o que é incomparavelmente
melhor. Mas, por vossa causa, é mais necessário permanecer na
carne (Fp 1:21-24).

Realmente, eu e você temos tantas e tão impressionantes razões


para viver quanto para morrer. Passaríamos mais mil anos por aqui ou
partiríamos nesse exato instante, não é mesmo? Sim, nós também já não
sabemos o que escolher e sentimo-nos pressionados dos dois lados!
Desejamos morrer, porque morrer é viver; mas não nos suicidamos, porque
desejamos viver. Desejamos morrer, porque morrer é partir e estar com Cristo -
que é a nossa vida (Cl 3:4); e desejamos viver, porque viver é servir ao corpo
de Cristo, a quem Ele concedeu vida na Sua morte. Se vivemos, não tememos
o envelhecimento, nem as rugas, nem as cãs, nem quaisquer perdas; se
morremos, não julgamos que a morte nos causará dano, mas que nos será um
ganho.

Por todas essas razões, não se pode ler na história que cristãos
perseguidos tenham lançado mão do suicídio para evitarem sofrimentos crueis
pelos quais tantas vezes passaram.

7. A pena de morte.

Ainda a propósito do sexto mandamento, é de rigor que analisemos


o tema deveras controvertido da pena de morte. Desejamos saber se a pena
capital se opõe ao “não matarás” em todos os casos ou, ao revés, se se trata
de um recurso a que os Estados modernos podem, de maneira justa e em
determinadas hipóteses, lançar mão à retribuição de crimes ou ainda se goza
da aprovação da Escritura.

Como já indiquei, os cristãos dividem-se quanto ao tema. Para


alguns, a pena de morte restou superada no Novo Testamento e deve ser
abolida, como de fato tem sido por inúmeras nações civilizadas. Essa posição
tem sido chamada de abolicionismo (porque propugna pela abolição da pena
capital) ou reabilitacionismo (para a qual a pena é sempre um meio de reabilitar
ou ressocializar o criminoso). Outros cristãos, em extremo oposto,
denominados reconstrucionistas, teonomistas ou dominionistas, advogam que
a pena de morte deve ser aplicada pelas nações modernas para todos os
casos de pecados morais em que o era ao tempo da lei mosaica, excluídas as
hipóteses de violação de leis cerimoniais. A título de exemplo, as nações,
segundo a teologia do domínio, como também é conhecido o
reconstrucionismo, não podem aplicar pena capital a casos como tocar em
coisas sagradas sem a devida consagração (Nm 5:15), mas devem fazê-lo em
hipóteses tais como homossexualismo, adultério e rebeldia de filhos (Lv 18:22,
29; 20:10; Ex 21:15; Dt 21:18-21). Isso porque, segundo os reconstrucionistas,
apenas os aspectos cerimoniais da lei de Moisés foram abolidos por Jesus,
enquanto os morais têm validade permanente. Finalmente, há cristãos,
denominados retribucionistas (porque para eles a pena tem função
eminentemente punitiva), que defendem a aplicação da pena de morte pelas
nações modernas, mas somente para crimes capitais, a exemplo dos
homicídios considerados de natureza hedionda 290.

7.1) Pena de morte na Escritura. Qual a posição que deveríamos


adotar, dentre as acima discriminadas? O Brasil deveria ampliar as hipóteses
de pena de morte? Você, sendo Deputado Federal ou Senador, levaria projetos
de lei e votaria em que sentido - no de abolir as atuais previsões de aplicação
de pena capital ou de ampliá-las? Verifiquemos, nesse momento, o que diz a
Escritura quanto a tema tão polêmico.

A primeira menção a pena de morte está implícita na narrativa


envolvendo o assassinato de Abel e suas consequências (Gn 4:8-16). Teria
sido natural a pena capital aplicada ao homicídio de Caim, porque se diz que o
sangue de Abel clamou a Deus da terra, pedindo justiça (v. 10), e que a terra
abriu a boca para receber das mãos de Caim o sangue de Abel (v. 11). O
próprio Caim esperou a pena capital em consequência do seu pecado brutal,
pois disse: “... quem comigo se encontrar me matará” (v. 14c). Entretanto, Deus
poupou Caim de uma execução sumária por seu crime, pondo nele um “sinal”
para que quem o encontrasse não viesse a matá-lo (v. 15b). Vê-se que a
princípio temos uma proibição de pena de morte, o que vem a ser significativa
para os abolicionistas. Por outro lado, Deus mesmo se compromete com uma
vingança sétupla em relação ao assassino de Caim (v. 15a).

Destarte, talvez possamos concluir da passagem que é natural que a


vida deva ser paga com a vida, que o sangue da vítima clame por justiça e seja
requerido das mãos do assassino. Noutro giro, é possível que o episódio
contenha uma exceção da pena capital, ou seja, que Deus mesmo tenha

290
“Retencionistas” e “abolicionistas” são termos utilizados pela Anistia Interacional, entidade que luta
pela abolição da pena de morte para todos os crimes em todo o mundo há mais de três décadas.
protegido Caim em face de circunstâncias pontuais, tais como a ausência,
nesse momento da história, de um aparato estatal, ainda que embrionário. Por
fim, a pena de morte não está ausente do texto, visto que recairia sobre
eventual assassino de Caim, mas que nesse momento ela seria executada por
Deus mesmo.

A segunda passagem relevante à nossa discussão é Gn 9:5, 6, que


traz palavras proferidas no contexto da aliança de Deus com Noé. Lembremos
que Deus havia consumido a terra com o dilúvio. Entretanto, como o problema
do pecado jamais poderia ser resolvido com um cataclismo (Gn 8:21), Deus
compromete-se em preservar a humanidade (Gn 9:9-11), cujo sinal possui
conotações e alcance claramente universais (Gn 9:12, 13). Assim, ao lado da
ordem para ser fecundo e multiplicar (Gn 9:1, 7), o Senhor concede três formas
de proteção da vida humana: contra a ação dos animais (Gn 9:2), através da
alteração dietética (Gn 9:3, 4) e em face da ação do homem contra o seu
semelhante. É nesse ponto que se situa o texto que deve ser por nós analisado
(Gn 9:5, 6). É aqui que Deus impõe que a vida do homicida seja exterminada
pela mão do homem.

Embora o pacto com Noé contenha claramente a ideia de


preservação da humanidade, a razão imediata da ordem divina quanto à pena
capital é que o homem carrega em si, a despeito da depravação inata, a
imagem do Criador (v. 6b). Matar o homem, nas palavras de Reifler, é “matar
Deus em efígie”291. Como afirma Robertson, até então Deus havia reservado
somente para si o direito de tratar com o homicida (Gn 4:15). Mas agora, como
a humanidade deve ser preservada das forças assassinas dos homens e dos
animais, Deus coloca sobre o homem a responsabilidade de tratar com o
ofensor, visto que, na sabedoria de Deus, a execução do homicida é um freio
maior para conter excessos de iniquidade292. É aqui, segundo esse mesmo
autor, que Deus planta a semente do Estado. Ouçamo-lo:
Ainda que as palavras que foram ditas a Noé não apresentem uma
teologia elaboradamente desenvolvida do papel do Estado,
certamente a semente do conceito está presente. Com efeito, Deus
instituiu o poder temporal do Estado como seu instrumento na
insistente necessidade de confrontar o mal. Esse poder de espada,
agora posto pela primeira vez nas mãos dos homens, intimida o
malfeitor em potencial e restringe a atividade consciente da
iniquidade293.

Assim, temos que em Gn 9:5 diz-se que o Senhor requererá o


sangue da vítima tanto do homem quanto do animal que mata. O versículo
seguinte deixa evidente que o sangue da vítima será requerido através da mão
do homem: “Se alguém derramar o sangue do homem, pelo homem se

291
REIFLER, Hans Ulrich. A Ética dos dez Mandamentos. São Paulo: Edições Vida Nova, 1992. p. 116
292
ROBERTSON, O. Palmer. O Cristo dos Pactos. São Paulo: Cultura Cristã, 2011. p. 98
293
Ibdem.
derramará o seu...”. Para Robertson, “torna-se claro que a intenção da
passagem é designar o homem como o agente de Deus na execução da justiça
contra o assassino”294 295.

As referências seguintes à pena de morte no Antigo Testamento


estão insculpidas na lei de Moisés, de modo que Israel (a nação-Estado eleita)
é responsabilizada pela execução da pena capital contra o assassino (Ex
21:12). Nesse contexto, há cerca de vinte pecados contra os quais a lei
mosaica comina pena de morte. Alguns estão relacionados com os crimes
capitais ou tendentes a sê-lo, como o homicídio (Ex 21:12), o ato de ferir ou
amaldiçoar os pais (Ex 21:15; Lv 20:9), o sequestro para fins de escravidão ou
venda no mercado de escravos (Ex 21:16; Dt 24:7), a provocação de aborto
(Ex 21:22-25), o crime do dono de animal sabidamente perigoso (Ex 21:29) e o
de falso testemunho em crime punido com pena capital (Dt 19:16-19). Outros
crimes punidos com a pena máxima são de ordem religiosa, dentre os quais se
incluem a idolatria (Ex 22:20; Lv 20:2), a feitiçaria (Ex 22:18), a violação do
sábado (Ex 31:14), a blasfêmia (Lv 24:15, 16) e a falsa profecia (Dt 18:20).
Ainda há crimes de natureza sexual, cujos praticantes podiam sofrer a pena
capital. São dessa ordem o homossexualismo (Lv 18:22, 29), a bestialidade (Lv
20:15, 16), o adultério (Lv 20:10), o incesto (Lv 20:11, 12) e o estupro (Dt
22:25). Finalmente, havia ainda pena capital a ser aplicada aos transgressores
de leis cerimoniais, tais como aos sacerdotes que oficiassem embriagados (Lv
10:9) e aos que tocassem em objetos sagrados sem a necessária consagração
(Nm 5:15).

Como acima aventado, os teonomistas acreditam que somente nos


casos de violação de leis cerimoniais a pena de morte não poderia ser aplicada
em nossos dias. Quanto aos demais crimes, porque relacionados à lei moral e,
por isso, permanente de Deus, caberia sua punição em nossos dias pelas
nações modernas com a execução capital. Parece-nos, a princípio, que a
“teologia do domínio” não concede a devida consideração às descontinuidades
entre a Igreja no Antigo e no Novo Testamento, que a nós parecem evidentes.
Se não, vejamos.

Em primeiro lugar, enquanto a Igreja no Antigo Testamento


organizava-se como Estado, uma nação politicamente organizada para ser
uma luz às demais nações, a Igreja neotestamentária é uma sociedade
internacional que tem na excomunhão a disciplina máxima (I Co 5:3-5; Mt
18:15-20), no uso do poder das chaves que fecha as portas do Reino que não
é deste mundo (Jo 18:36). Assim, apenas por desencargo de consciência,

294
Ibdem. p. 100
295
Robertson ainda diz noutro lugar: “... a aliança com Noé deve ser considerada como a primeira
revelação da sanção da pena capital. O conceito não surgiu na legislação dada a Israel nos dias de
Moisés, que foi subsequentemente projetada em passado lendário. Em vez disso, originou-se no novo
começo da humanidade, com a família de Noé”. Ibdem. p. 101
deixo o alerta que de modo algum a Igreja neotestamentária como tal pode
infligir a pena capital como resultado de suas próprias decisões, nem pelas
próprias mãos296.

Em segundo lugar, a perspectiva teonomista em transportar às


nações modernas penas capitais a serem aplicadas a todos os pecados
morais, nos termos como o foram no Antigo Testamento, decorre, a nosso
sentir, da resistência em enxergar a singularidade da nação de Israel enquanto
teocracia, experiência única e irrepetível na história da salvação (Sl 147:19,
20). Nesse sentido, são esclarecedoras as lições de Wayne Grudem, in verbis:

A interpretação correta das leis de Israel também requer


compreensão do caráter singular de Israel, que devia ser “reino de
sacerdotes e nação santa” (Ex 19:6). Essa nação era uma teocracia
governada pelo próprio Deus e, portanto, as leis de Israel
regulamentavam a vida religiosa do povo de Deus (como os
sacrifícios, as festas e o culto ao único Deus verdadeiro), bem como
questões que, em todas as eras da história, costumam ser
associadas ao governo civil297.

Some-se ao já exposto o fato de Cristo haver abolido tanto as leis


cerimoniais quanto as civis. Recordo o leitor oportunamente do que já
pontuamos alhures: que se as leis cerimoniais prefiguravam Cristo como o
grande Sumo Sacerdote, as civis O apontavam como o grande Rei, que detém,
Ele só, a prerrogativa de legislar e regular os mais variados aspectos da vida
social do Seu povo. Todavia, como a Igreja neotestamentária é uma
comunidade internacional, ligada pelos laços da fé, torna-se anacrônico desejar
uma nova teocracia para os nossos dias.

Entretanto, a pena capital aplicada a crimes capitais e não capitais


na vida da nação eleita reforça um ponto importante para os nossos estudos,
no sentido de admitir que a pena de morte em si não é incompatível com o
sexto mandamento, tanto quanto indicar um princípio da pena de morte como
permanente. Nesse sentido, Rae conclui que o defensor do retencionismo, que
não apoia a pena de morte para todos os tipos de crimes que assim eram
punidos sob a lei mosaica, “dirá também que, ainda assim, os textos do Antigo
Testamento fornecem uma sólida base para o princípio da pena de morte. Os
detalhes da Lei podem ou não ser relevantes para o dia de hoje, mas a Lei dá
apoio à ideia da pena de morte” 298.

Portanto, em uma perspectiva conglobante, o não matarás não


constitui obstáculo a que nações modernas elejam certos crimes capitais,
dotados de suficiente hediondez, aos quais lhes comine pena de morte. Muito
296
A advertência tem valor histórico. Não esqueçamos as atrocidades cometidas pela famigerada Santa
Inquisição.
297
GRUDEM, Wayne. Política Segundo a Bíblia: Princípios que todo cristão deve conhecer. São Paulo:
Vida Nova, 2014. p. 117, 118
298
B. RAE, Scott. Ética Cristã: Curso Vida Nova de Teologia Básica. São Paulo, Vida Nova, 2013. p. 258
ao contrário, é exatamente pela santidade da vida que ela deve ser preservada
a todo custo, inclusive com ameaça de execução capital aos assassinos em
potencial. Ademais, conforme podemos antes observar, como a pena de morte
não foi prescrita na lei de Moisés, mas no pacto universal de Deus com Noé,
nem tampouco somente para violações a prescrições cerimoniais e civis
(ambas abolidas em Cristo), seu uso é divinamente autorizado para todas as
eras e para todas as gentes.

É o que temos no Novo Testamento. A espada concedida ao


governo humano em Gn 9:6 permanece com ele na era neotestamentária.
Nesse sentido, Jesus admitiu a autoridade divinamente outorgada de Pilatos
(Jo 19:11), como Paulo o fez em relação aos romanos (At 25:11). Em Rm 13:4,
Paulo afirmou que a autoridade é ministro de Deus, advertindo que “se fizeres
o mal, teme; porque não é sem motivo que ela traz a espada”. Para John
Murray, apesar da “espada” do magistrado não implicar necessariamente em
aplicação da pena de morte, ela, por ser a peça mais significativa do seu
equipamento, “não é apenas o símbolo de sua autoridade, mas também de seu
direito de aplicar aquilo que a espada faz” 299.

Perceba-se que ao Estado foi exigido aquilo que aos cristãos, como
tais, foi vedado. A esses, impõe-se uma regra de conduta pessoal pela qual
devem evitar a retaliação pelas próprias mãos, porque Deus jamais prescreveu
a vingança privada, que é o uso da força por quem não é magistrado (Rm
12:17). Lembremos que antes que houvesse governo humano, somente Deus
poderia vingar o assassino (Gn 4:15). Aos cristãos, o apóstolo exorta a que não
se vinguem, mas deixem que Deus o faça, porque o mal jamais é subjugado
pela retaliação pessoal, mas pela bondade (Rm 12:19-21). Esse é apenas o
eco do ensino do Senhor Jesus, segundo o qual o perverso não deve ser
resistido, “mas, a qualquer que te ferir na face direita, volta-lhe também a outra”
(Mt 5:39). Eis a norma a ser seguida pelos cristãos: fica-lhes vedada a
vingança privada, o uso da força pelas próprias mãos, pelo menos em regra.
Situações há, todavia, como na hipótese de legítima defesa, que a Escritura
concede-lhes o direito de exercê-la.

O mesmo não se diz acerca do Estado. O que é vedado aos cristãos


(a vingança privada), repita-se, ao Estado é exigido (a reparação pública).
Note-se que após o apóstolo vedar aos cristãos a vingança com as próprias
mãos e a exortá-los a deixarem suas questões com Deus (Rm 12:17, 19), ele
apresenta os magistrados como instituídos por Deus, como ministros de Deus,
para castigar os praticantes do mal (Rm 13:1-5). Isso não quer dizer que Deus
não haja providencialmente de forma extraordinária e direta, sem a
instrumentalidade do Estado (cf. At 5:1-11; 12:20-23), mas que a ação ordinária

299
MURRAY, John. Romanos: Comentário Bíblico. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2012. p. 515
de Deus no castigo dos malfeitores dá-se através dos magistrados, Seus
ministros, inclusive através da pena capital.

Nesse sentido, leiamos as palavras de Rae:


Os ensinamentos do Novo Testamento sobre vingança e perdão
fazem parte de uma ética pessoal que proíbe os indivíduos de se
vingarem e exige que perdoem quando injustiçados. Essa ética, no
entanto, não pode ser aplicada ao Estado. A responsabilidade do
Estado é punir criminosos, não perdoá-los. Deus conferiu ao Estado a
responsabilidade de punir os crimes (Rm 13.1-7; 1 Pe 5.15), muito
embora este não possa exercer seu papel de forma injusta ou
indiscriminada300.

A nossa conclusão, portanto, é que a pena de morte deve ser


medida punitiva adotada pelos Estados modernos, mas tão somente a crimes
capitais dolosos, tais quais os tipificados na lei penal brasileira como
homicídios dolosos consumados qualificados pela torpeza ou crueldade
(Código Penal, art. 121, §2º), reconhecidos como crimes hediondos (Lei
8.072/90, Lei de Crimes Hediondos, art. 1º, I).

7.2) Pena de morte no Brasil e no mundo. A Anistia Internacional


agrupa os países do mundo em quatro categorias: abolicionistas para todos os
crimes, abolicionistas apenas para crimes comuns, abolicionista na prática e
retencionista. Os dados de 2015 apontam para a existência de 58 países
retencionistas, 102 abolicionistas, 32 abolicionistas na prática (que não
executam a pena capital há mais de dez anos) e 6 abolicionistas para crimes
comuns301.

O Brasil é legalmente abolicionista apenas para crimes comuns e


abolicionista na prática. A Constituição da República veda as penas de caráter
perpétuo302, de trabalhos forçados, de banimento, as cruéis e de morte, salvo,
neste último caso, quando houver guerra declarada pelo Presidente da
República na hipótese de agressão estrangeira, quando autorizado a fazê-lo
pelo Congresso Nacional ou por ele referendado quando a agressão
estrangeira ocorrer nos intervalos das sessões legislativas (CF, art. 5º, XLVII;
art. 84, XIX; art. 49, II) 303.

300
B. RAE, Scott. Ética Cristã: Curso Vida Nova de Teologia Básica. São Paulo, Vida Nova, 2013. p. 249
301
https://www.amnesty.org/en/what-we-do/death-penalty/. Acesso em 09/06/2016.
302
O art. 75 do Código Penal brasileiro preceitua que “O tempo de cumprimento das penas privativas de
liberdade não pode ser superiora 30 (trinta) anos”.
303
O Código Penal Militar dispõe sobre a pena de morte nos arts. 55, “a”, 56 e 57. Exsurge desses
dispositivos que no Brasil a pena de morte é executada por fuzilamento. Uma vez aplicada por sentença
definitiva, deve ser comunicada ao Presidente da República e não será executada antes de passados
sete dias da comunicação. O art. 72 desse Diploma Legal aduz que o juiz pode atender ou não as
atenuantes nele previstas quando ao crime for cominada como pena máxima a de morte. Conforme o
art. 125, I, os crimes punidos com pena de morte prescrevem em 30 anos. Os crimes aos quais é
cominada a pena de morte como a mais grave vêm insculpidos no Livro II, que trata “Dos Crimes
Apesar de advogarmos a reinserção da pena de morte no Brasil para
determinados crimes comuns, além dos previstos para tempos de guerra,
admitimos que tal não ocorreria sem uma perigosa, diga-se de passagem,
ruptura das atuais configuração estatal e ordem jurídica tais como perfilhadas
pela Constituição Cidadã de 88. É que o art. 60 da Carta da República, em seu
parágrafo 4º, inciso IV, dispõe que proposta de emenda à Constituição que
apenas tenda a abolir “os direitos e garantias individuais” (dentre os quais o
que veda a pena de morte, exceto na hipótese de guerra declarada) não será
sequer ”objeto de deliberação”. É parte, segundo doutrina constitucionalista, do
núcleo imodificável da Constituição, denominado “cláusula pétrea”. Assim, a
não ser por obra de um novo Constituinte originário, criando um novo Estado, a
pena de morte não será estendida no Brasil.

Ademais, não custa frisar que o Estado brasileiro carece de uma


reforma profunda, a envolver os três poderes, que deve ser executada
paralelamente à implementação da pena de morte no país para crimes comuns
capitais dolosos. Necessita-se, além disso, de políticas públicas que realmente
incluam os socialmente alijados, ou que proveja condições otimamente
democratizadas para tanto, e de um sistema de persecução criminal que
alcance a todos, indistintamente, e não apenas de leis. Também não olvidamos
que a pena de morte é geralmente utilizada no mundo por ditaduras ou
governos totalitários, nos quais os apenados são executados sem o devido
processo legal e por esposarem opiniões contrárias ao sistema, tal como se dá
em países como China, Irã e Paquistão.

7.2) Pena de morte nos debates sociais. Os argumentos erguidos


contra a pena de morte, além de, segundo se argumenta, tratar-se de uma
pena desumana e cruel, atentatória da dignidade da pessoa humana, são
basicamente dois: a irreversibilidade do erro judiciário e o ideal de reabilitação.

Quanto à irreversibilidade do erro, arrazoa-se que mesmo que o


Judiciário utilize-se do devido processo legal e das mais modernas técnicas de
investigação criminal disponíveis em nosso tempo, ele ainda assim pode errar.
Em caso de erros reversíveis, a vítima pode ser ressarcida por meio de justa
indenização. Mas, se o erro for irreversível, como se dá numa possível
execução capital de um inocente quanto à acusação que lhe foi imputada, o
ressarcimento à pessoa do injustamente condenado resta impossibilitado.

A isso respondo que o mesmo arrazoado poderia ser manipulado


para defender a abolição de quaisquer tipos de penas, salvo aquelas que,
apesar de mobilizar o aparato persecutório estatal, são risíveis e

Militares em Tempo de Guerra” (arts. 355 a 362; 364 a 366; 368; 371 e 372; 375, parágrafo único; 378 e
379, § 1º; 383 a 387; 389 e 390; 392; 394 a 396; 400 e 401; 405 e 406; 408, parágrafo único, b), em cujos
capítulos estão previstas condutas tais como traição, favor ao inimigo, espionagem, dano em bases de
interesse militar e deserção.
flagrantemente incapazes de inibir a reiteração criminosa304. Imagine-se, por
exemplo, um erro judiciário que condenou um inocente à pena privativa de
liberdade pelo prazo de 30 anos e que, em face das condições péssimas,
“cruéis” e “desumanas” das penitenciárias brasileiras, ele veio a óbito depois de
cumprir seis anos, pouco antes de descobrir-se o verdadeiro culpado pelo
crime. Pergunta-se: o cenário apresentado é suficiente para abolirmos os
presídios ou as penas privativas de liberdade? Acaso não poderíamos
consentir que sempre há chances de erros irreversíveis?

Finalmente, de acordo com o argumento do ideal da reabilitação, a


pena deve ter funções necessariamente reabilitacionistas ou ressocializadoras.
Noutro dizer, ela objetiva sempre conduzir o criminoso no caminho de retorno
ao convívio social harmonioso, pretendendo torná-lo um membro útil da
sociedade. Entretanto, o debate em torno da função das penas arrasta-se
desde a Idade Média, e produziu, grosso modo, duas teorias, a teoria absoluta
e a teoria relativa.

Aos absolutistas, tais como Kant, Hegel Carrara305 e Rossi, a pena


tem finalidade retributiva, isto é, visa apenas retribuir o mal praticado. Para
essa escola, a pena fundamenta-se no ideal de justiça, sem interesses quanto
à sua utilidade. Para os que defendem a teoria relativa, também chamados
utilitaristas, a pena tem finalidade preventiva, que pode ser geral e especial. A
prevenção geral pode ser negativa (segundo a qual o Estado pune para
promover uma intimidação coletiva) e positiva (a pena pretende reafirmar o
direito e garantir a confiança da coletividade na higidez do Estado para
executar o ordenamento jurídico). A prevenção especial, a seu turno, volta-se à
pessoa do condenado. Diz-se ser ela negativa quando a pena inibe a
reiteração criminosa e positiva, porque pretende ressocializar o infrator 306 307.
As escolas absoluta e relativa fundaram-se em pressupostos diversos. Para a
primeira, o criminoso deve ser punido porque é moralmente livre. Para a
segunda, o criminoso nasce como tal, de modo que não pode ser considerado
moralmente livre, caso em que o crime seria resultado de puro atavismo, com a
consequente conclusão de que a pena deveria ser considerada não uma
punição, mas uma forma de tratamento.

304
No Brasil, o crime de porte de droga para consumo pessoal é punido com as “penas” de
“advertências sobre os efeitos das drogas”, “prestação de serviços à comunidade” e “medida educativa
de comparecimento a programa ou curso educativo” (Lei 11.343/2006, art. 28).
305
Francesco Carrara foi um expoente da “Escola Clássica”, como passou posteriormente a ser chamada
a teoria absoluta. Ele, todavia, se opunha à pena de morte, embora defendesse a relação de
proporcionalidade entre o crime e a sanção aplicada.
306
O Brasil adotou a teoria mista ou eclética. O art. 59 do Código Penal dispõe que o juiz aplicará a pena
“conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime” (grifei). A mesma teoria
foi adotada também no Pacto de São José da Costa Rica.
307
A teoria relativa ou utilitarista é também denominada de Escola Positiva, cujo marco inicial é a obra
de Cesare Lombroso “O Homem Deliquente”, de 1876.
A função retributiva da pena é amplamente amparada na Escritura
(Rm 13:1-5; I Pe 2:13, 14; 4:15). Considerando Rm 13:4, Geoffrey B. Wilson
lançou palavras pertinentíssimas:
A fim de desincumbir-se eficazmente deste dever [exercer vingança
contra o malfeitor], o Estado é armado com a espada. Nestes dias
degenerados, quando a peçonha do humanismo dirige sua simpatia
ao criminoso em vez de dirigi-la à sua vítima, deve-se notar
particularmente que o apóstolo descreve as restrições impostas pela
lei em termos de vindicação retributiva308.

Assim, devemos considerar seriamente que a determinados crimes a


justiça só é efetivamente concretizada com a pena de morte, visto que a
punição deve ser proporcional à ofensa perpetrada. Socorro-me de Rae outra
vez, quando afirma que

Somente a pena de morte consegue expressar a indignação moral da


sociedade com a morte de um inocente. O fato de a justiça ser feita é
algo especialmente importante para uma sociedade que abriu mão de
fazer justiça com as próprias mãos e depende do devido processo
legal para restaurar o desequilíbrio criado pelo crime 309.

A prevenção geral, de seu termo, é também requerida na Escritura


(Dt 17:12, 13; 19:16-20) e, a despeito de todos os protestos contrários, a pena
de morte inibe, sim, a prática de crimes, sobretudo quando eficazmente
exercida (Ec 8:11). Por outro lado, a prevenção especial e as ideias de
ressocialização, embora eventualmente decorram, não parecem coadunar-se
com noções de responsabilização moral do infrator. Como concluiu Lombroso,
o criminoso não é livre, mas nasce como tal. Nesse sentido, a posição
retribucionista (alinhada com a Escola Clássica e com a teoria absoluta) em
muito dignifica o ser humano como tal, sobretudo por reconhecer sua
responsabilidade moral, com o que pouco contribui a prevenção especial.
Nesse sentido, as palavras de Geiler merecem transcrição integral, se não,
vejamos:
A suposição da perspectiva que se opõe à pena de morte é
desumanizadora. Prisioneiros não são pacientes, eles são pessoas.
Eles não são objetos a serem manipulados, e sim seres humanos a
serem respeitados. O criminoso não está doente, mas é pecador.
Trata-se de um ato tirânico submeter uma pessoa a um processo
compulsório de cura contra a sua vontade. É um ato humanitário
ilusório, com implicações políticas sinistras. Esse procedimento
desumaniza o indivíduo, uma vez que este passa a ser tratado como
um “caso” ou como um paciente, quando deveria ser tratado como
uma pessoa responsável por suas ações. Como Lewis disse: “Ser
„curado‟ contra a própria vontade... é o mesmo que ser colocado no
nível daqueles que ainda não alcançaram a idade da razão ou

308
WILSON, Geoffrey B. Romanos. São Paulo: PES, 2007. p. 240
309
B. RAE, Scott. Ética Cristã: Curso Vida Nova de Teologia Básica. São Paulo, Vida Nova, 2013. p. 248,
249
daqueles que nunca irão alcançá-la; é ser classificado com as
crianças, com os tolos e com os animais domésticos”310.

310
GEISLER, Norman. Ética Cristã: Opções e Questões Contemporâneas. São Paulo: Vida Nova, 2010. p.
243, 244

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