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Tr Hume por Gilles DELEUZE SIGNIFICAGAo DO EMPIRISMO A HISTORIA DA FILOSOFIA mais ou menos absorveu, digeriu © empirismo. Ela o definiu numa relagio de inversio com 0 racionalismo: haveré ou no nas idéias alguma coisa que no esteja nos sentidos ou no sensivel? Ela fez do empirismo uma critica do inatismo, do @ priori. Mus 0 empirismo sempre teve outros segredos. E do esses que Hume eleva ao mais alto grau, que exibe em plena luz, em sua obra extremamente dificil e sutil. Por isso, Hume tem uma posi¢éo muito particular. Seu em- pirismo €, antecipadamente, uma espécie de universo de ficcdo cientifica, Como na ficgéo cientifica, tem-se a im- presséo de um mundo fictfcio, estranho, estrangeiro, visto or outras criaturas; mas também o pressentimento de que esse mundo jé 6 0 nosso e essas outras criaturas, nés préprios. Paralelamente, opera-se uma conversio da cién- cia ou da teoria: a teoria torna-se inguérito (a origem dessa concepeao esta em Bacon; Kant dela se lembrard, muito embora a transforme e a’ racionalize, quando con’ ceber a teorla como tribunal). A ciéncia ou a teoria so um inquérito, isto é, uma prética: prética do mundo aparentemente ficticio que o empirismo descreve, estudo das condigdes de legitimidade das prdticas nesse mundo empirico que 6, de fato, 0 nosso. Grande conversio da teoria & prdtica. Os manuais de histéria da filosofia des- conhecem 0 que chamam de “associacionismo” quando nele véem uma teoria, no sentido ordinério da palavra, © como que um racionalismo as avessas. Hume propée oo © ILusiismo questées insélitas, que nos sf, porém, familiares: bas- tara, para se tornar proprietario de uma cidade abando nada, langar 0 seu dardo contra a porta da cidade, ou seri preciso tocar essa porta com 0 dedo? Até que ponto sera possivel ser proprietdrio dos mares? Por que 0 solo € mais importante do que a superficie num sistema juri- dico, mas também a pintura, mais importante do que a tela? & somente ai que o problema da associagio das idéias encontra 0 seu sentido. O que se denomina teoria da associacio encontra sua destinagio e sua verdade numa casuistica das relagdes, numa pratica do direito, da politica, da economia, que muda inteiramente a natu: reza da reflexio filoséfica. ‘A NATUREZA DA RELAGKO A originalidade de Hume, uma das originalidades de Hume, provém da forea com que afirma: as relag6es sao exteriores aos seus termos. Uma semelhante tese no pode ser compreendida a no ser em oposigio a todo © esforco da filosofia enquanto racionalismo, que tentara reduzir'o paradoxo das relagdes: seja pela descoberta de um meio de tornar a relagdo interior aos seus pré- prios termos, seja pela descoberta de um termo mais compreensivo e mais profundo ao qual a prépria relagio fosse interior. Pedro é menor do que Paulo: como fazer dessa relagio algo de interior a Pedro ou a Paulo, ou a0 seu conceito, o1 ao todo que formam ou & Idéia da qual participa? ‘Como vencer a irredutfvel exterioridade da Telagio? E, sem divida, 0 empirismo havia sempre mili- tado em favor da exterioridade das relagdes. Mas, de certa forma, sua posi¢ao a esse respeito permanecia encoberta pelo problema da origem dos conhecimentos ou das idéias: tudo encontrava sua origem no sensivel e nas operagées do espirito sobre o sensivel. Hume opera uma inversio que vai elevar o empirismo a uma poténcia superior: se as idéias no contém nenhuma outra coisa e nada mais do que o que se encontra nas impressées sensiveis, € precisamente porque as relagGes sio exterio- Tes e heterogéneas a seus termos, impress6es ou idéias, A diferenca nao se encontra, pois, entre idéias ¢ impres. sOes, mas entre duas espécies de impressOes ou idéias, as impressées ou idéias de termos e as impresses ov Hume er idéias de relagdes, Assim, 0 verdadeiro mundo empirista desdobra-se pela primeira vez em toda a sua extensio mundo de exterioridade, mundo em que 0 proprio pensa mento esté numa relago fundamental com o Fora, mundo onde bh termos que S40 verdadeiros dtomos, e relacdes que séo verdadeiras passagens externas — mundo onde a eonjuncio “e” destrona a interioridade do verbo “é”, mun- do de Arlequim, mundo disparatado e de fragmentos nfio- totalizdveis onde nos comunicamos por meio de relagdes exteriores. O pensamento de Hume se estabelece num duplo registro: 0 atomismo, que mostra como as idéias ‘ou impress6es sensiveis remetem a minima punctuais que produzem o espago e o tempo; 0 associacionismo, que mostra como se estabelecem relagdes entre esses termos, sempre exteriores a esses termos e dependendo de outros prinefpios. De uma parte, uma fisica do espirito; de outra parte, uma légica das relagdes. £ a Hume que per tence 0 mérito de ter rompido a forma coercitiva do jut zo de atribuicéo, tornando possivel uma Iégica auténoma das relagSes, descobrindo um mundo conjuntivo de éto mos e de relag6es, cujo desenvolvimento se encontraré em Russell v na l0gica moderna. Pois as relagdes sho as préprias conjungées. ‘A NATUREZA HUMANA © que 6 uma_relagio? # 0 que nos faz passar de uma impresséo ou de uma Idéia dadas“& tdéla de alguma coisa que nfo é atualmente dada. Por exemplo, penso em ‘algo de “semelhante”... Ao ver o retrato de Pedro, penso em Pedro, que nao esté ai. Em vio se buscaria no termo dado a razio da passagem. A propria relagio é 0 efeito de principios ditos de associagao, contigilidade, seme Thanga e causalidade, que constituem precisamente uma natureza humana. Natureza humana significa que o que 6 universal ou constante no espirito humano néo é jamais tal ou qual idéia como termo, mas somente maneiras de yassar de uma a outra idéia particular. Hume, nesse sen- tido, entregar-se-4 & destruicdo concertada das trés eran des idéias terminais da metafisica, o Eu, o Mundo e Deus. Todavia, a tese de Hume parece a principio muito decep- a © Ikummismo cionante: que vantagem haveré em expllcar as rela por meio de principios da natureaa ‘humana, ‘principios de associagéo que parecem ser tio-somente um outro nome para designar as relagées? Se fieamos decepciona. dos ¢ por compreendermos tho mal o Problema O probe ma no é 0 ds eausas, mas 9 do futelonamento Res se lagdes como efeitos dessas causas e das condigées prati- cas deseo funclonamente, Consideremos a esse respeito uma relagdo muito es. pecial, a de causalidade. Ela é especial porque nfo nos faz apenas passar de um termo dado & idéia de alguma coisa que nao é atualmente dada. A causalidade me faz passar de alguma coisa que me foi dada & idéia de algu- ma coisa que jamais me foi dada, ou mesmo que nao € davel na experiéncia. Por exemplo, a partir dos sinais inscritos num livro, acredito que César venceu. Ao ver © sol se levantar, digo que se levantard amanhé; tendo Visto a gua ferver a 100", digo que ela ferve nocessatia, Mente a 100°. Ora, locugdes como “amanha”, “sempre”, “necessaramente™ expressam algo que nio se pode Gar na experiéncia: amanha n&o é dado nem se tornar hoje, sem cessar de ser amanhi e toda experiéncia é a de um particular contingente. Em outros termos, a causalidade € uma relagio em conformidadé com a qual ultrapasso 0 dado, digo mais do que é dado ou davel, em suma, infiro e creio, agiiardo, conto com... Hssencial ¢ esse pvimeiro Geslocamento operado por Hume, que pde a crenca na base e no principio do conhecimento. Um tal funciona- mento da relagio causa explea-se assim: 6 gue os cases semelhantes observados (todas as vezes em que vi a Seguir ou acompanhar b) se fundam na imaginacao, mui- to embora permanegam distintos e separados uns dos outros no entendimente, Essa propriedade de Nso ea imaginagdo constitui o hébito (conto com...), ao mes- mo tempo que a distincéo no entendimento proporciona & crenga no célewlo dos casos observados (probabilida de como eéleulo dos graus de crenga). O principio do ‘hhabito, enquanto fusio dos casos semelhantes na imagi- nagéo, e o principio da experiéncia, enquanto observacado dos casos distintos no entendimento, combinam-se por- tanto para produzir ao mesmo tempo a relagao, e a infe- réncia segundo a relagéo (crenga), em conformidade com a8 quais funciona a causaldede, a \ \ Home 6 A Ficcko Ficofo e natureza tém uma certa maneira de se distribuir no mundo empirista, Entregue a si proprio, o espirito flo esté privado do poder de passar de uma a outra idéia, mas passa de uma a outra ao acaso e segundo um delirio que percorre 0 universo, formando dragées de fogo, cavalos alados, gigantes monstruosos. Os principios da natureza humana, ao contrario, impéem a esse delirio Tegras constantes como leis de passagem, de transicéo, de inferéncia de acordo com a propria Natureza. Mas, a partir dai, desenrolase uma estranha batalha. Pois, se é verdade que os princfpios de associagao fixam 0 espirito ao Ihe impor uma natureza que disciplina o de- lo ou as ficebes da imaginacdo, inversamente 2 imagi ago servese desses principios para deixar passar suas flogdes, suas fantasias, para lhes conferir uma caugio que no poderiam ter por si mesmas. Pertence, nesse sentido, a ficgo fingir as prdprias relagdes, induzir relagdes ficti- cias © fazer-nos crer em loucuras. Isso pode ser visto nio somente no dom que tem a fantasia de duplicar toda relagio presente por outras relagdes que nao existem neste ou naquele caso. Mas, sobrettido no caso da causa Udade, a fantasia forja cadeias causais ficticias, regras ilegitimas, simulacros de crenca, seja por confundir 0 acidental com o essencial, seja por se servir das proprie- dades da linguagem (ultrapassar a experiéncia) a fim de substituir as repetices de casos semelhantes real- mente observados por uma simples repeticao verbal que simula o seu efeito. # assim que o mentiroso cré em suas mentiras de tanto repeticlas; ¢ assim que procedem igualmente a educagéo, a supersticéo, a eloqtiéncia, 2 poesia. Nao ultrapassamos mais a experiéncia em uma via clentifica que sera confirmada pela propria Natureza @, por um célculo correspondente, ela é ultrapassada em todas as diregdes de um delirio que forma uma contraNatureza e assegura a fusio de qualquer coisa. A fantasia serve-se dos principios de associacéo para torcer esses préprios principios ¢ Ihes dar uma extensiio ilegitima, Hume est em vias de operar um segundo grande deslocamento va filosofia, que consiste em subs tituir o concelto tradicional de’ erro pelo conceito de delirio ou ilusio, segundo o qual hé crengas, nio falsas mas ilegitimas, exercicios ilegitimos das faculdades, fun- ct © TLusamismo Clonamentos ilegitimos das relagdes. Af também, Kant deverd a Hume alguma coisa de essencial. Nao estamos ameagados pelo erro, mas, 0 que é muito pior, estamos imersos no delirio. De qualquer maneira, isso ainda nada significa, na medida em que as ficgdes da fantasia torcem os princi- pios da natureza humana contra eles Proprios, mas em condigdes que podem sempre ser corrigidas: é 0 que acontece com a causalidade, onde um calculo severo das. probabilidades pode denurciar as ultrapassagens deli Tantes cu as relagées fingidas. Mas a ilusio ¢ singular. mente mais grave quando ela propria faz parte da natu- reza humana, isto é, quando o exercicio ou a crenga ilegi- tima 6 incorrigivel, insepardvel das crengas legitimas, in- dispensdveis a sua organizacdo, Neste caso, 0 proprio uso fantasista dos principios da natureza humana tornase um principio. O delirio e a ficgio passam para o lado da natureza humana. £ 0 que Hume mostrar em suas mais sutis, mais dificeis andlises, concernentes &s idéias de eu, de’ mundo e de Deus: como a posicao de tuma existéneia dos corpos distinta e continua, como a posigéo de uma identidade do eu fazem intervir toda sorte de funeionamentos ficticios das relages, © principaimente da causalidade, em condigdes tais que nenhuma ficgao pode ser corrigida, mas nos precipita ao contrdrio em Outras fiegdes que fazem parte, todas elas, da natureza humana. E numa obra péstuma que é talvez sua obra- prima, Didloaos sobre a Religiéo Natural, Hume aplica © mesmo método critico nfio somente & religido revelada, mes & religiio dita natural e aos argumentos teleolégicos sobre os quais ela se funda, Jamais o humor de Hume atingiu um tal ponto: crencas que fazem tanto mais parte de nossa natureza quanto mais completamente ilegitimas ‘sao do ponto de vista dos principios da natureza humana. E, sem diivida, é af que se pode compreender a nocaio complexa de ceticismo moderno tal como Hume a ela- bora. Diferentemente do ceticismo antigo, que repousa sobre a variedade das aparéncias sensiveis e os erros dos los, 0 ceficismo: moderno_repousa sobre o estatuto Be exterioridade. O primeiro ato do cett nsistiu em descobrir a crenca na base do-conheciniento, isto 6, em naturelizar a crenea (vositi. smo). Conseqiientemente, 0 segundo ato consiste em denunciar as crengas ilegitimas como acuelas que nfo obedecem &s regres efetivamente produtoras de um canhecimento (probabilismo, célculo das probabilidades). Mas, por meio de um ultimo refinamento, num terceiré ato, as crencas ilegitimas no Mundo, no Eu e em Deus mostram:se como 0 horizonte de todas as crencas legiti mas possiveis, ou como o grau mais baixo de crenca. Pols, se tudo € crenca, até mesmo 0 conhecimento, tudo ‘uma questo de graus de crenca, até mesmo o delirio néo-conhecimento. O humor, virtude eétiea moderna de ‘Hume, contra_a ironia, ie dogmatica antiga de Sd- ‘crates € de Platao. A Imacrnagio ‘Mas se 0 inquérito sobre o conhecimento tem por prin- cfpio e resultado 0 ceticismo, se ele termina na mistura inextricdvel da fico e da natureza humana, é talvez por no representar senio uma parte do inguérito, que néo € sequer a sua parte principal. Os princ{pios de associa. $40, com efeito, s6 tomam sentido com respeito as pai- xes. Néo somente so as circunstincias afetivas que Girigem as associagbes de idéias, mas as proprias relagdes yéem-se atribuir um sentido, uma diregSo, uma irreversi- bilidade, uma exclusividade em fungdo das paixes. Em suma, o que constitui a natureza humana, o que dé uma natureza ou constancia ao espirito, no $40 somente os principios de associagéo de onde decorrem as relagées, mas os principios de paixio, de onde decorrem os “pen: dores”. Cumpre considerar duas coisas a esse respeito: que as paixdes nao fixam o espfrito, néo Ihe déo uma natureza da mesma forma que os prineipios de associa go! — e, de outro lado, que o fundo do espirito, en- quanto deli-io ou ficgiio, nao reage as paixdes da mesma forma pela qual reage as relagdes. Vimos como os principios de associagio — e espe- cialmente a causalidade — determinavam o espirito a ultrapassar 0 dado, inspirando-lhe crengas ou ultrapassa- gens que nao eram todas ilegitimas. Mas as paixdes tem antes por efeito a restricéo do alcance do espfrito, sua fixagdo em idéias e objetos privilegiados. Pois o fundo da paixio nfo é o egoismo, mas, o que é ainda pior, @ parcialidade: nés nos apaixonamos inicialmente por nossos pais, nossos prdximos e nossos semelhantes (cau: 6 0 Itumiismo salidade, contigiiidade, semelhanga restritas). E isso & mais grave do que se féssemos governados pelo egoismo. Os egofsmos exigiriam apenas que fossem limitados para que a sociedade fosse possivel: é nesse \sentido que, do século XVI 20 XVIII, as célebres teorias do contrato colocaram o problema social como devendo ser o de uma limitagao dos direitos naturais, ou mesmo de uma rentin- cia a esses direitos, donde nasceria a sociedade contra- tual. Mas, quando Hume diz que o homem no é natural- mente egoista, que ele é uaturalmente parcial, nio se deve ver nisso uma simples nuanga nas palavras, é pre- ciso que se veja ai uma mudanca radical na posicéo prética do problema social. O problema no é mais: como limitar os egoismos e os direitos naturais corresponden- tes?, mas sim: como ultrapassar as parcialidades, como passar de uma “simpatia limitada” a uma “generosidade ampliada”, como estender as paix6es, darthes uma ex- tensdo que elas ndo tém por si mesmas? A sociedade néo é mais absolutamente pensada como um sistema de limitag6es legais e contratuais, mas como uma invenc&o institucional: como inventar artificios, como criar insti- tuigdes que forcem as paixdes a ultrapassar sua parciali. dade e formem outros tantos contimentos morais, juri dicos, politicos (por exemplo, 0 sentimento de justica) etc.? Donde & oposicéo que Hume estabelece entre 0 con- trato e a convengio ou 0 artificio. Hume é, sem diivida, © primeiro a romper com o modelo limitativo do con’ trato e da lei que ainda domina a sociologia do século XVIII, para a ele opor 0 modelo positive do artificio e da instituicao. E assim todo o problema do homem vé-se por sua vez deslocado: no se trata mais, como no conhecimento, da relacdo complexa entre a ficgio e a natureza humana, mas da relacdo entre a natureza huma- na e 0 artificio (0 homem enquanto espécie inventiva) As PAIXOES No conhecimento, eram os préprios princfpios da na- tureza humana que instauravam regras de extensio ou de ultrapassagem, de que a fantasia se servia por sua vez para deixar passar simulacros de crenga: a tal ponto que se precisava constantemente de um cdiculo para cor- rigir, para selectonar o legitimo e o ilegitimo. Na paixio, ( o contrério, o problema se coloca de outra maneir: se pode inventar a extensdo artificial que ultra a parcialidade da natureza humana? 6 ai que a fantasia e a ficcdo tomam um novo sentido. Como diz Hume, 0 espirito ou a fantasia nao se comportam em relago As paixdes & maneira de um instrumento de sopro, mas 2 maneira de um instrumento de per- cussio, “onde, apds cada golpe, as vibragées ainda conservam um 'som que morre gradual e insensivelmente”. Em suma, pertence & imaginacdo refletir a paix, fazé-la ressoar, fazer com que ultrapasse os limites de sua par- cialidade e de sua atualidade naturais. Hume mostra como os sentimentos estéticos e os sentimentos morais so assim constituidos: paixdes refletidas na imaginagéo, que se tornam paixées da imaginacio. Ao refletir as paixdes, a imaginacéo libera-as, estira-as infinitamente, Projetaas para além de seus limites naturais. E, pelo menos num ponto, é preciso corrigir a metéfora da per- cussio. Pois, ao ressoar na imaginagéo, as paixdes no se contentam em se tornar gradualmente menos vivas menos atuais, elas mudam de cor ou de som, um. pouco como a tristeza de uma paixio representada na tragédia se transmuta no prazer de um Jogo quase infi- nito da imaginacdo; elas assumem uma nova natureza e so acompanhadas por um novo tipo de crenga. Assim @ vontade “movese facilmente em todos os sentidos ¢ produz uma imagem de si propria, até mesmo no lado em que ela nfo se fixa”. ¥ isso que constitui o mundo do artificio ou da cultura, essa ressonfincia, essa reflexio das paixdes na imaginacao, que faz da cultura ao mesmo tempo o que ha de mais frivolo e de mais sério. Mas como evitar dois defeitos nessas formagdes culturais? Por um lado, que as paixdes ampliadas sejam menos vivas que as Paixdes atuais, se bem que tenham uma outra natu reza. E, por outro lado, que sejam inteiramente inde- terminadas, projetando suas imagens enfraquecidas em todos os sentidos e independentemente de toda regra. © primeiro ponto encontra sua solucio nas insténcias de poder social, nos aparelhos de sancao, recompensas € punigées, que’ conferem aos sentimentos ampliados ou as paixdes refletidas um grau de vivacidade e de crenca suplementar: 0 governo principalmente, mas também instancias mais subterraneas e implicitas como as do HE & © Icummvismo costume e do gosto — a esse respeito também, Hume € um dos que primeiro propds 0 problema do poder e do governo ‘néo em termos de representatividade, mas de credibilidade. _ _ @uanto 20 segundo ponto, ele concerne igualmente & maneira pela qual a filosofia de Hume forma um sis tema geral. Pois, se as paixdes se refletem na imaginacdo ou na fantasia, néo ¢ numa imaginagio nua, mas na imaginacao tal como Jé estd fixada ou naturalizada por esses outros princfpios que so os princfpios de asso- cago. A semelhanga, a contigiiidade, a causalidade, em suma, todas as relagdes, tals como constituem 0 objeto de um conhecimento ou de um céleulo, fomecem regras gerais para a determinagéo dos sentimentos refletidos, para além do uso imediato e restrito que delas fazem as paixdes ndo-refletidas. 1 assim que os sentimentos estéticos encontram nos principios de associagio verda- Geiras regras de gosto. E, sobretudo, Hume mostra mi- nuciosamente como, ao se refletir ‘na imaginagio, as paix6es da posse encontram nos princ{pios de associagao Os meios de uma determinacao de regras gerais que cons: tituem os fatores da propriedade ou 0 mundo do direito. ¥ todo um estudo das variagdes das relagdes, todo um edlculo das relagdes, que permite responder em cada caso &@ questo: haveré entre tal pessoa e tal objeto uma relacdo de natureza que nos faga crer (que faga com que a imaginacéo creia) numa apropriagdo de um pelo outro? “Um homem que houvesse perseguido uma lebre até 0 Ultimo grau da fadiga, consideraria como uma injustica que outro homem se precipitasse & sua frente se apos- sasse de sua presa, Mas 0 mesmo homem que avanca para colher uma magé que se acha ao seu alcance néo teré nenhuma razdo de se queixar, se outro, mais alerta, passar & sua frente e dela se apoderar. Qual serd a razio dessa diferenca sendo que a imobilidade, que no é natu ral & lebre, estabelece uma forte relagéo com o cagador @ que essa Telacdo estd ausente no outro caso?” Um dardo langado contra a porta bastaré para assegurar a proprie dade de uma cidade abandonada, ou seré preciso tocé-la com a mio, para estabelecer uma relac&o suficiente? Por que © solo'predomina sobre a superficie, segundo a lei civil, mas a pintura sobre a tele, ao passo que o papel predomina sobre a escrita? Os prineipios de associagao Home o encontram 0 seu verdadeiro sentido em uma casufstica das relages que determina o pormenor do mundo da cultura e do direito. Tal ¢ exatamente o verdadeiro objeto da filosofia de Hume: as relacdes como meios de uma atividade, de uma pratica juridica, econémica ¢ politica. UMA FILOSOFIA POPULAR E CIENTIFICA ‘Hume € um fildsofo particularmente precoce: € por volta dos vinte e cinco anos que redige seu grande livro, Tra tado da Natureza Humana (publicado em 1739-1740). Um novo tom na filosofia, uma extraordinéria simplicidade e firmeza desprende-se de uma grande complexidade de argumentos, que fazem intervir a0 mesmo tempo o exer- cfcio das ficgdes, a ciéncia da natureza humana, a prética dos artificios. Uma espécie de filosofia popular e cient! fica, uma pop'filosofia. E, por ideal, uma clareza decisiva, que nao é a das idéias, mas a das relagdes ¢ das opera- Oes. E essa clareza que ele tentaré impor cada vez mais nos livros seguintes, mesmo correndo 0 risco de sacrifi car algo da complexidade e de renunciar ao que conside. rava mais dificil no Tratado: Ensaios Morais e Politicos (1742), Inquérito sobre o Entendimento (1748), Inqué- rito sobre os Princfpios da Moral (1751), Discursos Po- liticos (1752). Depois, voltase para a Historia da Ingla terra (1754-1762). Os admiraveis Didlogos sobre a Reli- gido Natural, publicados apds a morte de Hume (1779), voltam a encontrar ao mesmo tempo o mais complexo eo mais claro. ¥ talvez 0 tnico caso de verdadeiros dié- logos em filosofia: porque no ha somente dois persona- gens, mas trés, e que nao tém papéis univocos, que concluem aliangas provisdrias, depois as rompem, se reconciliam. .. etc. Demea, 0 defensor da religiio revela- da; Cleanto, o representante da religiio natural; Filon, © cético. O' humor de Hume‘Filon néo é somente um modo de por todo o mundo de acordo em nome de um ceticismo a distribuir “graus", mas jé é um modo de romper até mesmo com as correntes dominantes do sé- culo XVIII, de modo a prefigurar um pensamento do futuro. 7” © Ikummismo BIBLIOGRAFIA 1199 A Treatise of Human Né ture, Te IL ‘trad. franc. de André Leroy, : \Aubier: Traité de la Nature 1140 A Treatice of Human Na- (Humaine. ‘ture, TIT J ilnémicos foram traduzides du 1142 Eesaye, Moral and Political, {ante 0 séeulo XIX publi- Ii? cados pela editora Guillaumin, 1148 Philosophicat Essays Con- cerning Human Understand. | Tradugio francesa de André ing" (needitado em. 1758 s0b pLeroy, Aubler, Enguéte eur © titulo Enquiry Concerning | Pentendement humain. ‘Human Understanding) 11741 Evsays, Moral and me ensaios sobre assuntos eco: 1751 An Enquiry Concerning the | trad. franc. André Leroy, Principles of Morale Auber: Enguéie sur les prin eipee de Ia Morale. 1754 The History of Great Britain: The Stuarts, 1 AIST The History of Great Britain: The Stuarts, Ii 3159. The History of England: The Tudors 1162 The Hiatory of England, from the Invasion of Julius Cacsar te the Accession of Henry VIL, Te Tl 1766 Exporé succinct de la contestation entre M, Hume et MM, Rousseau ATT The Life of David Hume, written by himself. LITT The Essays, of Suivide, of the Immortality of the Soul. A179 Dialogues Concerning Natu-|trad. franc. Maxime David, ral Religion Alcan, depos Pauvert: Dialo- ‘gues dur la Religion naturetie. ‘A. mais recente edigio das Cartas de Hume é a de Oxford ‘University Press, 1969. A edigdo das Obras Filoséficas 6 a de Green ¢ Grose, 4 vols,, 1964. Bibliografia suméria sobre Hume Jean Laronte, “Le Scepticisme de Hume", Revwe philosophique, 1983, Norman Kemp Sauru, The Philosophy of David Hume, Mac Millan, 1941. 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O ILUMINISMO O Século XVIII Segunda edigéo por Jacqueline Adamov-Autrusseau ‘bnearegac de cursor ha Universe de Paris I Ferdinand Alquié Professor na Universi de Paris V Gilles Deleuze ‘Professor na Universidade de Paris VII Frangois Duchesneau Profesiornd Universidade de Ottawa Claire Salomon-Bayet Attache de penqusat no CNRS Roland Desné Encarregado de ensino na Universidade de Reims Tradugdo Guido de Almeida ZAHAR EDITORES RIO DE JANEIRO

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