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O CUIDADO AS CRIANCAS PEQUENAS NO BRASIL ESCRAVISTA Maria Vittoria Pardal Civiletti do Mestrado em Psicologia Social da Universidade Gama Filho (RJ) RESUMO Este artigo desoreve e analisa as transtormagdes no discurso & na prética do culdado a crianga pequena no Brasil do século XIX, apoiando-se em textos da época. A andlise destaca 6 st ‘dimento do discurso sobre creches @ salas de asio, logo spés ‘A aboligho da escravidio, sugerindo quo tale instituigdes Vieavam conter a classes populares, liberar mio-de-obra feminina do cui dade com a prépria prole para absorvé-a nos sorvigos domést- 08 0, ainda, melhorar 0 rondimento da méc-de-obra masculina. ABSTRACT This article describes and analyzes the changes in both discourse ‘and practices concerning child care in Brazil during slavery (ate 19th Century), based on texts from the period. it stresses the onset of a diecoursa on day care centers after slave's liberation, suggesting that advocacy for these institutions had controlling tims and was linked to the interest in releasing poor fomales ‘tom child care so as to employ them as housohold servant, as woll a to improve male labour force produstiveness. Cad. Pesq., Sd0 Paulo (76): 31-40, fevereiro 1991 31 Quem me dera lombrar da tote negra de mint’ama de leit... (Infancia, Manuel Bandoira, 1886-1968). Até 1888 a questao da creche emergiré como fruto {da relagao figuraftundo mulher branca/mulher negra. Sen- do a nossa unidade de trabalho textos de época, seréo feitas citagdes que, ressuscitadas, algumas vezes falardo por si mesmas. MENTALIDADE A RESPEITO DA FUNGAO MATERNA E DA FAMILIA Em fins do século XIX, 0s indices de mortalidade infantil ram naturalments mais alarmantes do que os atuais foram alvo de estudo dos higienistas do Segundo Impéro. Entre 1845 @ 1947, 0 dr. Haddock Lobo observava que 51,9% da mortalidade total era de criangas de um a dez anos de idade (Costa, 1979, p.162). A morte da crianca ‘Ado era entretanto vivenciada com muito sottimento, de- vido & identificagéo da crianga morta ao “anjinho”, puro @ ainda intocado pelo pecado. Luccock, comerciante in- gles que esteve cerca de dez anos no Brasil, entre 1808 © 1818, relatou a soguinte cena: Em uma dessas ocasiées foi ouvida uma mée, que assim 0 exprimia: ‘6 como estou fel! 'O como estou fol, pois que morreu 0 titimo dos meus fhos. Que feliz estou. Quando eu morrer e chegar dante dos portées do céu, nada me impediré de enirar, pois que all estaréo cinco Griancinhes a me rodear @ @ purarme pola sala excl mando: Entra Mamée, entra! © que felz que sou’, repetiu ainda, rindo a grande. Se isso fosse um exemplo isolado die sentimentos maternais estranhos, poderla ser consi- dorado efeito de um desvio mental passagelr; 0 caso, porém, & que a satisfagdo em tals momentos 6 geral de- ‘mals, @por demals ostensiva, para que debe lugar & des- ‘upa dessa espécle. (Luccock, 1975, p. 80) ‘A conotagao angelcal da crianga era valida tanto para brancos quanto para negros. Se a mortaidado ora aia entre as criangas brancas, o que dizer das condicoes de sobrevivéncia das negras? A escrava parturente retomava geralmente ao trabalno em carca de trés das, Adalberto da Prossiarelata vista a uma senzala om 1842: ‘Uma negra estava deitada em sua esteira de junco ama- ‘mentando 0 seu negrinho a quem dera a luz a noite an- terior. ‘Dentro de dois dias voltaré a0 trabalho’, disse o Doutor a0 Conde de Bismark, a quem devo este relato (.J' (Adalberto da Prissia, 1977, p. 85-6). ‘Jé em 1822, José Bonitacio colocava, no art. 18 de ‘seu projeto de lei, uma “Representacdo a Assembiéia Na- Cional Constituinte do Brasil sobre a Escravatura’’ A escrava durante a prenhez, @ passado 0 3° mez, néo seré obrigada a servigos violentos ¢ aturados; no 8° mez 86 serd ocupada em caza, depois do parto ter um mez de convalescenga, @ pasado este, durante um ano, néo trabalharé longe da cria. (apud Moncorvo Filho, 1926,p.80) AA julgar pela data do relato do principe Adalberto (1842), 0 projeto de lei de José Bonitécio nao fol colocado ‘em pratica, 32 Para sobreviver, portanto, a crianga escrava era in- corporada ao trabalho da mae. Walsh, que esteve no Brasil entre 1828 e 1829, descreve, nas proximidades de Irajé: Em um grande terreno lavrado, no meio deste anfitestro verde, estavam de oitenta a cem negros dos dois sexos; alguns deles com bebés amarrados nas suas costas em fila cavandd a terra com enxadas para plantio (Walsh, apud, Mott, 1979, p.60) ‘Outros viajantes também falam do hébito das negras _amarrarem os filhos 8 Costas a fim de conciliar 0 trabalho Com 0s culdados & crianga. Kidder, entre 1837 @ 1840, descreve esse hdbito entre as lavadeiras das Laranjeiras; Ewbank, em 1846, aponta-o entre as vendedoras @ as oleiras. Nesta fazenda fazem-se tijolos e telhes em grande quan- tidade. Sob um telheiro estavam negras jovens © maduras, 4quase completamente nuas, sé com uma tanga, @ algumas com criangas presas as costas, inclinadas sobre bancos f pondo 0 barro em moldes, @ tendo os bragos © as pemas cobertas @ as faces marcadas por ele. (Ewbank, 1976, p:80) 4 de Oliveira publicou em 1895 um trabalho sobre 08 efeitos das condigées de trabalho do negro, em seu desenvolvimento fisico. Sobre o hAbito de atar por longos eriodos as criangas as costas, diz: véem mais tarde os seus flhos ficarem com as pernas defeituosas, arqueadas, de modo que, tocando-se os pés, formam uma elipse alongada. (Sé de Oliveira, 1895, apud Freyre, 1975, 1.359) (© hébito de levar os filnos &s costas durante viagens: ‘ou pequena parte do dia era amplamente uilizaco na Atri- ca, como também entre nossos indios. AS deformacées encontradas por S4 de Oliveira, portanto, eram fruto de uma deturpagéo de um hébito cultural preexistente, Esse ‘autor detectou também uma grande incidéncia de ache- tamento da regio occipital do crénio, devido a0 nAbito das mées deixarem as criangas deitadas todo 0 dia, no ‘caso das escravas que néo as podiam levar as costas, Brando Jtinior refere-se a uma invengao engenhosa {de um fazendeiro do Maranhéo, que obrigava as escravas ‘8 deixarem seus filhos, criangas ainda de mama, no teju- ‘pabo — buraco cavado na terra onde a crianga era colo- cada até a metade do corpo (apud Freyre, 1975, p.359). © destino dos fihos das escravas escolhidas para servir como amas-de-leite era muitas vezes a Roda. Tra- tar-se- especificamente da questéo mais adiante Actianga escrava que frequentava a casa-grande des- fratava de methores condigées de vida, tendo mesmo al- ‘guns viajantes descrito sua relagdo com o senhor como afetuosa, Para Debret, entretanto, as criangas eram con- sideradas como espécie de bichinhos domésticos (Debret esteve aqui entre 1816 @ 1831): (..) 08 dois negrinhos, apenas em idade de engatinhar @ ‘que gozam, no quarto de dona da casa, dos privilégios do pequeno macaco, experimentam suas forges na esteira da criada (..) (Debret, 1978, p.185) 'No Rio, como em todas as outras cidades do Brasil, 6 ‘costume, durante o ‘téte-&-t8te’ de um jantar conjugal que (0 marido se ocupe silenciosamente com seus negécios, @ a mulher se distrala com os negrinhos que substituem (0s doguezinhos, hoje quase completamente desapareci- dos na Europa. Esses molecotes, mimados até a idade de cinco ou seis anos, séo em seguida entregues a tania Cad. Pesg. (76) fevereiro 1991 dos outros escravos que os domam a chicotadas @ os hhabituam assim a compartinar com eles das fadigas dissabores do trabalho. (Debret, 1978, v.1 p.195) Mott (1978) detectou que, nos relatos dos viajantes, a idade de cinco a seis anos parece encerrar uma fase ra vida da crianga escrava. De seis a doze anos ela apa- rece desempenhando alguma atividade, geralmente pe- uenas tarefas auxiiares. Dos doze em diante as meninas @ meninos escravos eram vistos como adultos, no que se refere a0 trabalho e & sexualidade. Rugendas, entre 1821 @ 1825, relata, referindo-se &s fazendas do clero: (.) até a idade de doze anos as criangas néo séo obri- {gadas a trabaihar; apenas limpam os felj6es e outros ce- reais destinados @ alimentacdo dos escravos ou cuidam dos animais 6 executam pequeninos trabalhos domést- 608. Mais tarde, as mogas e os rapazes sao encaminhados para os campos. Quando um menino mostra dispasigées ‘especiais para determinado oficio, ihe este ensinado, a fim de que o pratique na prépria fazenda. (Rugendas, 1976) A pattr dos seis anos iniclava-se, para 0 menino bran- 0, 0 aprendizado do latim, da gramatica, das boas ma- neiras, nos colégios religiosos. A vara de marmelo e a palmatéria se incumbiam de transformar o antigo “anjinho" ‘numa miniatura de aduito precoce, Dr. Rendu, médico fran. 8s que visitou o Brasil em principios do s6c. XIX, assus- tou-se com a precocidade dos meninos, Em seus Etudes topographiques, medicales et agronomiques sur le Brésil, assinala: ‘Ags sete anos 0 jovem brasileiro j& possui a gravidade de um adutto; ele passeia magestosamente, uma bengala na méo, orgulhoso de um vestuério que faz com que se pparega mais com as marionetes de nossas feiras que com um ser humano’. Fletcher, vinte @ poucos anos depois, compartha da mesma opiniéo a respeito do menino brasil: {le se toma um homenzinho velho antes de ter doze anos de idade, com seu chapéu preto cerimonioso, colarinho duro, ena cidade anda como se todos estivessem olhando para ele @ como se estivesse envolvido por um espartilho. Ele néo corre, pula ou atira pedras como os meninos na Europa ou na América do Norte? Pode-se notar que a mentalidade a respeito daiinténcia 1o Brasil, durante 0 periodo escravista, em muito se apro- xima da descrigéo feita por Aries (1978) e Badinter (1985), {a situagao da crianga na Franca no Antigo Regime. Logo, apés um primeiro periodo de extrema fragliiade, marcado, ‘pelos altos indices de_mortalidade e pouco investimento, afetivo, a crianga 6 incorporada ao mundo adulto. A estra- ‘nheza demonstrada por Rendu @ Fletcher em meados do sséculo XIX indica que, por esse periodo, uma nova men- talidade a respeito da Infancia jé se havia implantado na Europa abe salientar as diferengas encontradas entre crianga negra e crianga branca e entre meninos @ meninas. Na primeira intancia, até 08 seis anos, acrianga branca, era geraimente entregue & ama-de-leite. O pequeno escra- vo sobrevivia com grande diticuldade, precisando para is- 80 adaptar-se ao ritmo de trabalho materno. Apés esse Perfodo, brancos e negros comecavam a paficipar das atividades de seus respectivos grupos. Os primeiros, de- dicando-se ao aprimoramento das fung6es inielectuais, © (08 segundos iniciando-se no mundo do trabalho ou no aprendizado dos ofcios. 0 cuidado as criangas. Se, para o “arjinho", naturaimente assexuado, ea ir- relevante ser menino ou menina, aps 08 seis anos apenas (08 meninos freqientardo 0s colégios ou aprenderéo um Oficio. As reteréncias & menina negra salientam apenas sua sexualidade, Schlichthorst descreve, em 1825-6 Doze anos 6 a idade em flor das aricanas. Nelas ha de quando em quando, um encanto téo grande que @ gente esquece a cor. As negrinhas sao geralmente fornidas ¢ sdlidas, com felgdes denotando agradével amabilidade @ todos os movimentos cheios de graga natural, pés e maos plasticamente belos. Labios vermelhos-escuros ¢ dentes afvos e brilhantes convidam ao beijo. Dos olhos se irradia lum fogo téo peculiar ¢ 0 seio arta em téo ansioso desejo que 6 dificil esistira tais sedugdes. Até 0 digno Clepperton rmuitas vezes compartihou as mesmas sensagbes que me assaltavam no momento, sem disso se envergonhar. Por {ue devarei eu me doar influenciar pala soberba européia © negar um sentimento que néo se originava em baiva sensualidade, mas no puro agrado causado por uma obra prima da criagéo? A menina que se achava & minha frente era, @ seu modo, uma dessas obras primas da criacéo, « para ela eu me pocia servir das palavras em inglés: beautiful negro lady? (Schiichthorst, 1943, p. 203-4) © aspecto materno da condigéo feminina durante esse perodo nao possula uma valorizagao social especial, j& ‘que seu objeto, a crianga pequena, também nao a tinha, Cabia & crianga apenas vencer 0 desatio de sobreviver, para ser, logo que possivel, incorporada ao mundo ad. Essa situacéo se transformard a partir do momento em {que a crianga @ a mae eniram na mira do movimento higienista Analisar-se-80 a seguir dois aspectos especticos re- lativos & situagao da primeira inféncia: A Rloda @ sua re- lagao com a quastéo da amamentacéo. ‘A RODA DOS EXPOSTOS ‘A.Casa dos Enjeitados, Casa dos Expostos, Casa da Roda ou simplesmente Roda existia em quase todos os paises do mundo nos séculos XVIll ¢ XIX. Lallemand, em 1885, escreveu um histérico do atendimento a infancia abando- nada desde 0 antigo Egito, além de realizar um levanta- mento sobre a situagéo deste atendimento nos cinco con- tinentes, na 6poca. Acusa a existéncia de Casas de En- jatados em quase todos os paises da América do Sul, dentre eles 0 Brasil. Segundo Lallemand, a primeira Casa de Expostos existentes em nosso pals fol fundada pelo vice-rei, em 1726, em Salvador. 0 nome de Roda, pelo qual tornou-se mais conhecida, deve-se assimilagao da Instituigéo ao dispositivo onde eram depositadas as crian- (as. Trata-se de um cilindro cuja superficie lateral é aberta 1. A sopt ans le joune brésilin a déja la gravité d'un adult; i ‘se proméne majestueusement, une badine & la main, fer d'une follette qu fe fait plutdt ressembler aux marionettes de nos Toros qu’a un étro humain (Rendu apud Freyro, 1978, p.411). 2 He is made a lite old man before he is twelve years old of ‘age, having his stif black hat, standing collar and in the city 12 walks as i everybody were looking at him and as if he were encased In corset. He does not run of jump or play 10008 or throw stones as boys in Europe and North America (Fletcher apud Froyre, 1975, p. 411), 2 Uma bela dama negra. 33 fem um dos lados e que gira em torno de um elxo vertical © lado fechado fica votado para a rua. Uma campainna exterior 6 colocada nas proximidades. Se uma mulher de- seja entregar um recém-nascido, ela avisa pessoa de plantéo tocando a campainha, Imediatamente, 0 cilindro, irendo em toro de si mesmo, apresenta para fora o seu lado aberto, recebe o recém-nascido e, continuando 0 mo- vimento, leve-o para o interior. Em 1738, Roméo Mattos Duarte funda a Casa dos Expostos do Rio de Janeiro, Em 1882, a0 apresentar 0 atendimento realizado no Brasil inféncia abandonada no ‘Congres International de la Protection de rEntance, Araujo, (1883) acusa a existéncia de Rodas em quase todas as rovincias brasileiras, AAs criangas entregues & Roda eram geraimente en- ‘caminhadas para tamflias que as criariam mediante paga- mento da instituigo. Teoricamente, dos 13 aos 18 anos ‘98 expostos receberiam das famfias um salério para tra- bahar, @ 08 que fossem devolvidos & Casa da Roda iriam, 10 caso dos meninos, para o Arsenal de Guerra, a Escola de Aprendizes Marinheiros (fundada pelo Império em 1873) ou para as oficinas do Estado. As meninas iriam para 0 recoihimento das orfas, até sairem casadas (apud Cony, 8.4). Na realidade, porém, 08 indices de mortalidade eram ‘enormes © pouco se sabia do destino dos sobreviventes, ‘como se pode perceber pela fala de D. Pedro | & Assem- biéia Constituinte de 1823: primeira vez que ful & ‘Roda dos Expostos', achei, parece incrivel, ste criangas com duas amas; nem bergos, nem vestudrio, Pedi o mapa vi que em treze annos tinham ‘entrado perto de doze mil @ apenas tinham vingado mil, ndo sabendo a Misericérdia verdadeiramente onde ellas se acham... (apud Moncorvo Filho, 1926, p.36). Os usuérios da Roda eram basicamente os filhos das ‘escravas. Estas muitas vezes a utiizavam na tentativa de livrélos da escravidéo. Para tal, qualquer estratégia ora vélida, incluindo a morte. Walsh, segundo Mott (1978), nos relata, nos anos de 1828-1823 Esse horror & escravidao 6 tdo grande, que oles ndo sé 180 suicidam como também matam seus filhos para esce par dela. As negras séo conhecidas como sendo stimas ‘mes (..) mas este mesmo amor freqdentemente as leva ‘a cometer infanticioio. Varlas delas, sobretudo as negras ‘Minas, tem a maior aversdo a ter filhos @ provocam aborto, precavendo-se assim, contra o desgosto de dar a vida a escravos. Dentro deste contexto, colocar 0 filno na Roda repre- sentava uma esperanca. ‘A Roda recebia criangas de qualquer cor e preservava © anonimato dos pais. A partir do alvard de 31 de janeiro de 1775, as criances escravas colocadas na Roda eram Consideradas livres (Mott, 1978). Na prética, contudo, iss nem sempre acontecia, Maria Graham narra em 1821-1823: Ful a0 asilo de drféos que 6 também o hospital dos ex- postos. Os rapazes recebem instrugdo profissional em ida- de adequada. As mogas recebem um dote de 200 mil reis, ‘que apesar de pequeno, as ajuda a estabelecerem-se ¢ muitas vezes acrescido por outros fundos (..) Dentro de pouco mais de nove anos foram recebidas 10,000 crian- (g88: estas eram dadas a crier fora, ¢ de muitas nunca ‘mais houve noticia, Nao talvez porque todas tinham mor- rido, mas porque a tentagéo de conservar uma crianga 4 ‘mulata como escrava deve, ao que parece, garantir 0 cur dado com sua vida (..) (Graham, 1956, p. 345) ‘A Roda era também amplamente utiizada pelos pro- pretérios que no queriam se responsabilizar pelos en- ‘cargos da criagéo da prole de seus escravos. Livrar-se do pequeno estorvo efa tao mais importante quanto se desejasse da escrava um trabalho que tornasse incompa- tivel a manutencao do fino junto a si, Esse era sem david © caso da polémica pratica do aluguol da ama-de-ate Gilberto Freyre, em Casa-Grande & Senzala 1975, atr- bui & heranga portuguesa o hébito das mes ricas no ‘amamentarem seus filhos. Enquanto em Portugal essa fun- do era delegada a mulheres mais humildes, no Brasil Coube as escravas negras amamentar as criangas brancas. ‘A partir da segunda metade do séc. XIX, essa prética tor- nou-se alvo de violentas crfticas, quer por parte de inte- grantes do movimento abolicionista, quer por parte dos médicos higienistas. Um belo exemplo de propagacao das id6ias abolcionistas junto eo pUblico feminino é 0 folhetim “A Mai Escrava" publicado de novembro de 1879 a maio de 1880 no jomal A Mai de Familia e assinado por Solrac (@s citagdes que se seguem foram retiradas dessa publi- cagao): Vamos referir a hist6ria de uma mai escrava, histéria que infelizmente tantas vezes se reproduz e que 6 a origem de muitas desgragas domésticas socials. (nov. 1879, p.165) © conto comega com a descrigéo de um palacete: Em todos os mezes eram abertos os seus salées para bailes, concertos, representagdes teatrais, etc., etc. [..] Vamos penetrar no interior do palacete do Sr. T., em uma noite em que em seus sal6es reina a alegria, imperam a belleze natural @ a do carmim, pé de arroz, etc... (nov. 1879, p. 174, grifado no original), Na senzala, Clare, uma jovem escrava tinha seu pri meio flo. Tendo tido problemas no parto, outra escrava, Rosaura, chama os senhores na festa. A Sra. T,, initada porter sido solictada ao quarto da parturiente,trava com ‘Clara 0 seguinte cialogo: —Bem — Voltando-se para Rosaura disse: Diga 20 co- Ccheiro que leve esta crianga para a Roda... Clara ergueu-se @ péz-se de joelhos na cama — Nha-nha, 6 meu primeiro filho, me delxe comigo — Jé disse. A Sra. T. 20 proferir ja sahindo (nov. 1879, p.174). Ciara desmaiou e a Sra. T. voltou para a festa. A escre vva 6 entdo alugaca como ama-de-eite para um casal bon- doso, cujo marido havia recolhido uma pequena enjeltada na Roda. O Sr. C. entrega a Clara duas criangas para serem amamentadas, deixando claro entretanto que: "Cla- ra, has-de dar de mamar a minha fiha de 2 em 2 horas © outra 3 vez0s por dia" (an. 1880, p.7). A escrava, comovida com a viséo da negrinha que Ihe lembrava sua fiha, chora muito. Por insisténcia dos amos, conta 0 que houve, @ 0 Sr. C. acaba descobrindo que 0 “feliz acaso reunia sob 0 seu teto a maie a filha’. A Sra. C., entretanto; ‘quiz guardar o silencio em relacao @ Clara ‘para que a amamentacao de sua fitha nada sofresse" (fev. 1880, p. 28, gfifado no original. ‘A descontianga de Clara de ser a crianga negra sua fitha leva-a a dedicar-se muito & menina, em detrimento da crianga branca. A Sra. C., percebendo isto, afasta a crianga negra da casa, alugando uma escrava para cuidar dela. Clara revotta-se profundamente, 0 que chega ao co- Cad. Pesq, (76) fevereiro 1991 nhecimento do Sr. C., que tem uma discusséo com a rmuaher. — Més estés louca minha filha, disse o Sr. C., pois tu indo és méi? Néo comprehendes que néo se podem su- focar sentimentos d'essa ordem! Nao comprehendes tam- ‘bém que assim sacrificaste 0 nosso socego @ a saude de nosso filho! E agora 0 que fazer? — Negros séo sempre negros, respondeu a Sra. C. Nao duvide que ella estime seu filho; mas também agora sé0 ‘exageragdes; porque talvez espere algum beneficio... 0 ‘melhor 6 fallar com a senhora que néo é de gragas e ella the fard chegar a ordem (mer. 1880, p.47). © conto tem um final dramético. Clara, desesperada, {ol procurar um feiticeiro para descobrir onde estava a fiha. "O que passou, bem podem avaliar todos os que conhecem a malvadez estupida @ a credulidade fanatica dos atricanos" (maio 1880, p.79). © Pai Quibombo acon- selha Clara a envenenar nhd-nhdé fugir com sua filha *0 sau coragéo naturalmente bom arredou-a d'esse infame proposito” (Maio 1880, p.79). Clara no entanto foge, acaba fencontrando a fila ¢, fora de si, suicida-se junto a ela. © que devemos accrescentar a esta histéria de todos os dias? E que a nuvem negra que empana o brilho do sol de ‘nossa Pétiia s6 poderd dissipar-se com o s6pro benefico da Emancipago dos escravos! (maio 1880, p.79, grifado no original) © tom abolicionista do conto garante o final autodes- trutivo da escrava, que néo mata nh-nhb ao mesmo tem- PO que apavora as senhoras o suficiente para os riscos da ama-de-eite, A crtica dos higisnistas & uilizaggo da Roda 9 das, ‘amas-de-lite tinha um objetivo claro: reformular a conduta, das mulheres das classes abastadas em face dos fihos. Recriminar as mes inconscientes que "esquivando-se 20 ‘cumprimento da nobre e sublime tarefa a ellas imposta pela natureza” entregavam os filhos a mulheres sem educagéo, de hébitos péssimos; as escravas, mesmo tendo em sua companhia seus préprios fihos, néo obs- {ante @ mais solicta vigilancia, maltractéo os recém-nas- ‘cides que thes séo entregues para criar apresentando al6m disso o grande inconveniente de incutir maos hébitos nas criangas confiadas aos seus culdados. (Azevedo, 1873, p. 67) Por trés da crftica & colocagao do pequeno escravo na Roda, a fim de que 0 ambicioso @ despético senhor obtenha pola escrava-ama um salério maior depois de pretender rnegar-Ihe até 0 instincto da maternidade, que a natureza implantou nos préprios iacionais. (Azevedo, 1873, p. 67) ‘encontramos a preocupacao com a conduta das famtlas abastadas, verdadeiro objetivo da filantropia higiénica. Za- mith nota, erm 1869: H4 um fato muito conhecido entre nés, © 6 0 seguinte: 1nd certos senhores que tem 0 costume de mandar pér (98 filhos de suas escravas na roda para que obtenham ‘melhor aluguel. Este fato, que parece @ primelra vista de pouca Importéncla, influl sobremaneira no moral da ‘escrava, de modo que ela com a lembranga do flho nunca poderé nutrr bem outra crianga. Algumas hé que, apesar de terem consigo 0 seu filho, maltratam a crianga que © cuidado as criancas... tom obrigagao de criar, porque foram alugadas ou servem contra a vontade, Endo obstante toda a vigiléncia que as mées empregam, elas néo cuidam das criangas como devem. (Zamith, apud Costa, 1979, p.167, gifo meu) Através da denuncia dos efeitos deletérios da ama- negra sobre a crianga, os higisnstas inciam uma cruzada fem pro! da reeducagto tisica, morale intelectual da mae urguesa, O resultado desta campanha educativa foi a Instauragao do ideal da mulher-mae, tao bem descrito @ analisado por Costa (1979). ‘Se aLeido Ventre Liv (1871) provocou uma pequena diminuigao no numero de expostos, apés a aboligao a quantidade de criangas colocadas na Roda cal vartigino- samente, No Jornal do Comércio de 2 de julho de 1899, © Dr. Pires de Almeida assina um artigo sobre “A Santa Casa da Misericérdia do Rio de Janeiro", onde apresenta tum quadro do movimento da Gasa de Expostos desde sua fundagéo (1738) até a data do artigo (1899). Nestes 161 anos, a Misericérdia atendeu a 42.937 enjatados. De 1738 @ 1763 encontramos uma média de 46,3 criancas por ano, De 1763 a 1810, 131; de 1810 a 1836, 295,7; de 1836 a 1871, 562.5; de 1871 a 1888, 399,1; e finalmente, de 1888 a 1899 a Roda atendeu a 124,9 criangas por ano ‘em média. Podemos, portanto, verfcar que 0 periodo de maior utlizagéo da Roda foi de 1836 a 1871. A queda observada apés esta data deve-se provavelmente & Lei do Ventre Livre @ a campanhas abolicinistas, como a de- ‘senvolvida pelo citado conto de Solrac (1879). E somente, porém, com a aboligao, que esta prética entra em franco desir. CONTROVERSIA SOBRE A MAMADEIRA AAs crficas &s amas-de-lete desembocam numa nova @ polémica discusséo — a dos perigos e beneficios do uso da mamadeira. A julgar pelo desacordo dos médicos na ‘época, as maes da virada do século viveram uma profunda confusdo a respeito de como melhor alimentar seus beb&s. Azevedo (1873) jusifica a necessidade da utlizacao do aleitamento articial dreto — em t8meas de animais @ sobretudo fémeas humanas — pela dficuldade de con- servagéo do lete no clima quenta. O autor invoca, porém, ‘28 maes “que somente entreguem seus fihos a amas mer. Ccenérias quando ines for absolutamente impossivel alimen- télas com seu proprio leita” (Azevedo, 1873, p. 68) Em 1875 parece surgir uma solugao para o problema Nota da Eeltore Plo menos trs textos publicados nos iltimos ance diecutem 1 probiemética tratada pela autora, em mesmo periodo ou ‘em outros momentos da histéria de cuidado &erlanga pequena, no Brasil: as dissertagées de mestrado de Moysée Kuhlmann ‘Ue — em especial 0 capitulo 3 “Assisténcia & inféncia: edu- ‘cando © pobre para proteger o ico" —e de Livia M. F. Vie ue, no capitulo 4, discute a proposta de ereches do Depar ‘tamonto Nacional da Crianga come forma de combate a prd- tica das criadeiras; © © artigo de Elizabeth de Magalhies ¢ Sonia Giacomini, que analisa contradicSes © confltos pre- sentes na utlizagio das escravas amas-de-leite pela familia branca: KUHLMANN JR., M, Ectcago pré-escolar no Brasil (1899-1922): ‘exposigGes © congressos patrocinando a “assisténcia cien- tica” S80 Paulo, 1900, Dissert. (mestr.) PUC-SP. MAGALHAES, E.K.C. & GIACOMINI, S. M.A eser ‘ama-de-lete: ‘anjo ou deménio? In: BARROSO, C. & COSTA, AO. (orgs) ‘Mulher, mulheres. So Paulo, Fundagéo Carlos ChagasiCor oz, 1983. p.73-88, cdo compensar caréncias tumo & construgéo de um projeto ‘educative. Bolo Horizonte, 1986. Dissert. (mestr) Fas, Edu: ‘cago/UFMG. 40 Cad. Pesq. (76) fevereiro 1991

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