You are on page 1of 296
Historia do Pensamento Cristao PAUL TILLICH AT ASTER SERNA c= Historia «*° Pensamento Cristao 2? edicdo “Estas aulas sobre a histdria do pensamento aparecem num momento em que a compreensao da histéria tornou-se tarefa central e problema urgente da atual reflexao teologica. Evidenciam a maneira como o proprio Tillich utilizava a historia. Para ele o passado carregava em si o presente, e seu estudo era como uma alameda aberta para 0 futuro. S6 se pode viver no presente plenamente, aberto para o futuro, em dialogo com 0 passado, interpretando seus monumentos € compreendendo seus movimentos. Este livro demonstra o poder da histéria para um tedlogo que jamais mergulhou no passado para escapar do presente. A historia torna-se viva para o estudante que se deixa introduzir por Tillich na sua forca.” Carl E. Braaten Editor ———4 oe SS —. 8 =——=s io © Paul Tillich nasceu em Starzeddel (atual Starosiedle, Polénia) em 20 de agosto de 1886. Estudou teologia em Berlim, Tubingen @ Halle. Doutorou-se em filosofia em 1910 na Universidade de Breslau e ficenciou-se em teologia, em 1912, na Universidade de Halle, com duas teses sobre filosofia da refigiao e sobre o misticismo ne pensamento do filésofo idealista alemao Friedrich Schelling. Ordenado pastor luterano em 1974, foi capelao do exércifo prussiano durante a primeira querra mundial. Foi professor de teolagia e filosofia em Marburgo, Dresden, Leipzig e Frankfurt. Pertenceu ao grupo, formado por T. Adorno eM. Horkheimer. que deu origem a conhecida “Escola de Frankfurt". Fundador do movimento “Socialismo Religiosa” e adversario deciarado do nazismo em ascencao, Tillich foi obrigado a deixar a Alemanha ea asilar-se nos Estados Unidos em 1933. Ele lecionou no Union Theological Seminary e na Universidade Coltimbia, em Nova York, ha Universidade Harvard e em Chicago. onde morreu em 22 de outubro de 1965. Tradutor Jaci Maraschin - tedlogo, musico € poeta - fai aluno do curso de histéria do pensamento cristéo ministrade por Pauf Tillich no Union Theological Seminary de Nova York em 1955. jl (lll Historia do Pensamento Cristao PAUL TILLICH A publicagao deste livro foi possivel gracas as contribuigées da Evangelisches Missionswetk in Deutschland (Hamburgo, Alemanha) ¢ das Igrejas Protestantes Unidas na Holanda - Ministérios Globais (Utrecht), as quais a Associagio de Seminarios Teoldgicos Evangélicos agradece. Associagio de Seminarios Teolégicos Evangélicos Presidente: Prof. Dr. Nelson Kilpp (Sao Leopoldo) Vice-Presidente: Prof. Dr. Zaqueu Moreita de Oliveira (Recife) Secretario: Prof. Manoel Bernardino de Santana Filho (Rio de Janeito) Tesouseiro: Prof. José Carlos de Souza (Sao Bernardo do Campo) Vogais: Prof. Emilson dos Reis (Engenheiro Coelho) Profa. Jolia Moroszezuk (Porto Alegre) Prof, Werner Wiese (Gio Bento do Sul) Secretatio Geral: Prof. Fernando Bortolleto Filho Nota biografica Nar Jnl (thal 1919-1924 1821 923 1924 1924-1925 m5 1925-1929 1926 1927-1929 Paul Tillich nasce no dia 20 de agosto em Starzeddel (atual Starosiedle, hoje na Polénia). Estudos de teologia protestante em Berlim, ‘Tiibingen, Halle e, de novo, em Berlim. Primeiro exame teolégico. Aspitante a pastor em Lichtenrade. Doutor em filosofia pela Universidade de Breslau. Vicatiado em Nauen. Licenciado em teologia pela Universidade de Halle. Ordenacio na Igreja de Sio Mateus, em Berlim. Pregador assistente na Igreja do Redentor em Berlim-Moabit. Systematische Theologie (inédito). Casa-se com Greti Wever, Capelao militar voluntitio no fronte oeste. Habilitagéo em teologia pela Universidade de Halle. ‘Transferéncia da habilitacado para a Universidade de Betlim. Uber die Idee einer Theolagie der Kultur. Livre-docente da Universidade de Beslim. Divorcia-se de Greti Wever. Das System der Wissenschaften nach Gegenstinden und Methoden. Casa-se com Hannah Werner. Rechifertigung und Zweifel. Professor convidado de teologia sistemAtica na Universidade de Marburgo. Religionsphilosophie. Dogmatiz (publicagio péstuma). Professor catedtatico de ciéncia da religiio da Escola Técnica Superior Saxénica, em Dresden. Dit religidse Lage der Gegenwart. Das Damonische. Kairos und Lagos. Professor catedritico honoritio de filosofia da religiio e de filosofia da cultura da Universidade de Leipzig. 1928 1929-1933, 1930 1933 1933-1934 1933-1937 1936 1937-1940 1940 1940-1955, 1942-1944 1948 1951 1952 1954 1955 1955-1962. 1957 1962 1962-1965 1963 1965 Dax religiise Symbol Professor catedratico em filosofia e sociologia, Universidade de Frank- furt-Main. Redgiise Verwirklichang. Proibido de exercer suas fungdes. Emigracio aos Estados Unidos. Die soxialistische Entscheidung, Lecturer na Universidade Cohimbia de Nova York. Lecturer no Union Theological Seminary de Nova York, The interpretation of history. Associate Professor de teologia filos6fica no Union Theological Seminary de Nova York, ‘Tillich torna-se cidadao norte-americano. Professor de teologia filoséfica no Union Theological Seminary de Nova York. Discursos an meine dentschen Freunde (aos meus amigos alemies). Primeiza viagem 4 Alemanha depois da If Guerra Mundial. The shaking of the foundations. The protestant era. Spsternatic Theolagy I. The courage t0 be. Lave, power, and justice. Biblical religion and the search for ultimate reality, The New Being. Professor na Universidade Harvard. Systematic Theology IT. Dynamics of faith. Prémio da paz dos editores ¢ livreicos alemacs. Professor da cétedra John Nuveen da Faculdade Teoldgica Federada de Chicago. Systematic Theology HI. Christianity and the encounter of world religions. The eternal now. Morality aud beyond. Paul Tillich morre no dia 22 de outubro em Chicago. Fonte: W. Schiisster, Pasd Tilich, Munigne, CH. Beck, 1997, p. 125-126, Crédito: Mazinho Rodngues. Obras de Doagaakxelusiva para: 0rtA 3 (Brasil), - REFS AED logicos blogspot.com, ieizoyPaz. c ‘Terra, 197? A era prot (The protestant era)/Sa0 Paulo, Ciéned ida Religiao, 1997 Dinamica da Pé (Dynamics of faith), Sao Leopoldo, Sinodal, Fiisioria do pensamento cristiio i ane tory of christian thought), Sio Paulo ASE» 1988. pecityas da teologia protestante nos séeulos X XX s on 19% and 20% century prot wlo, ASTE, 1999. Sociedade Paul Tillich do Brasil A/C Prof. Dr. Etienne A. Higuet Universidade Metodista de Sao Paulo — Ciéncias da Religiio Rua do Sacramento 230 — Rudge Ramos 09735-460 Sao Bernardo do Campo, SP, Brasil posreligiao@umesp.com.br Historia do Pensamento Cristao PAUL TILLICH segunda edicao tradugao de Jaci Maraschin ASTE Sao Paulo 2000 Titulo original: 4 History of Christian Thoughi. Publicado primeiramente em Nova York por Harper and Row cmt 1968. © Hannah Tillich 1968, Primeiza edigao em lingua postugue- sa da Associagio de Seminarios Teoligicos Evangéticos @ 1988. Segunda edigdo em lingua portuguesa da Assovinglio de Seminérios Teoldgicos Evangélices © 2000. Todos os direitos reservados, Diregdo editorial Fernando Bortolieto Fitho Revisio Fetnando Bortolleto Filho e Odair Pedroso Mateus Diagramagéo Katharina Vollmer Mateus Capa: Martos Gianell Assessorta editorial: Bwblena ideios Vinsis emblemansiasQcot.com Dados Intemacionais de Catalogagaona Publicagdo(CIP) {Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Vii Pal, 1886-1968, Hiseicin do Pervamento Cristio / Paul illic, aradugie de | aci Maraschin, - 2 ed. - Sio Paula: ASTI, 2000, “Tittulo oeiginal 4 history of Chetan thought ISBN 85.87566402.8 1. Teologia dgmtica 2."Teologia dogma - eben L. Tea, ongaat cpp-2309 dices para catilogosistemidicos 1. Tonlognlggen vt: Hi 2000 Associagao de Seminarios Teolégicos Evangélicos Rua Rego Freitas, $30 P13 1220-010 Sto Paulo SP Brasil Tel. (11) 257.5462 — Fax (11) 256.9896 aste@uol.com. ar wwwaaste org. br Prefacio a segunda edicao brasileira PREFACIO INTRODUCAO OCONCEITO DE DOGMA caPiTULOT APREPARACAO PARA O CRISTIANISMO A Kaitos B, Univetsalismo do impétio romano C. Filosofia helénica 1. Ceticismo 2A tadigio platinica 3. Estoicismo 4. Ecletismo D. Periodo intertestamentatio E. Religides de mistério F Metodologia do Novo Testamento CAPITULO H DESENVOLYIMENTO TEOLOGICO Na IGREJA ANTIGA A. Pais apostélicos B. Movimento apologético 1, Filosofia crista 2. Deus e Logos 15 16 18 24 a 25 26 28 29 31 32 35 38 38 47 49 C. Gnosticismo D. Os pais antignésticos 1. Sistema de autoridades 2..A reacio montanista 3. Deus ctiador 4. Historia da salvagio 5. Thindade e cristologia 6.0 sacramento do batismo E. Neoplatonismo E Clemente e Origenes de Alexandria 1. Cristianismo e flosofia 2. Método alegorico 3, Doutrina de Deus 4. Cristologia 5, Escatologia G. Monarquismo dindmico e modalista 1. Paulo de Semosata 2, Sabélio H. Controversia trinitaria 1. Atianismo 2. Concilio de Nicéia 3. Atanasio ¢ Marcelo 4, Tedlogos capadécios I. Cristologia 1. Teologia antioquena 2. Tealogia alexandina 3. Concilio de Calcedénia 4, Leéncio de Bizincio J. Pseudo-Dionisio Areopagita K. Tettuliano ¢ Cipriano L, Vida e pensamento de Agostinho 1. Oitinetirio de Agostinho 2.A epistemologia de Agostinho 3. Idéia de Deus 4, Douttina do homem 5. Pilosofiz ds histéria 6, Controvérsia pelagiana 7. Doutrina da Lgteja 17 Bt 133 134 142 CAPITULO TIL OMUNDO MEDIEVAL A. Escolasticismo, misticismo e biblicismo B. Método escolastico C. Feicdes do escolasticismo 1. Dialética e tradigio 2. Agostinismo ¢ aristotelismo 3. Fomismo e escousmo 4, Nominalismo ¢ realismo 5. Panteismo e douttina da igeeja D. Forgas religiosas E Algreja medieval F Sactamentos G, Anselmo de Cantuaria H, Abelardo de Paris 1. Bernardo de Claraval J. Joaquim de Fiori E OSéculo treze L. Doutrinas de Tomas de Aquino M. Guilherme de Ockham N. Misticismo germinico 0. Os pré-teformadores CAPITULO IV CATOLICISMO ROMANO DE TRENTO AO SECULO VINTE A. OSignificado da Contra-Reforma B. Doutrina das antoridades C. Doutrina do pecado D. Doutrina da justificagao E. Sacramentos E Infalibilidade papal G. Jansenismo H. Probabilismo 1 Catolicismo atual 145 146 148 150 150 151 151 152 154 154 158 166 174 179 182 186 196 202 205 206 212 212 213 214 215 216 ato 222 224 CAPITULO V A TEOLOGIA DOS REFORMADORES PROTESTANTES A. Martinho Lutero 1. Asuptura 2. A ctitica de Lutero a igteia 3, Conflito com Erasmo 4. G conflito de Lutero com os evangélicos radicais 5. Douttinas de Lutero a. Principio biblico b, Pecado e fé ¢. Idéia de Deus d. Douteina de Cristo ¢. Igteja e Estado B. Huldreich Zwinglio C. Joao Calvino 1. A majestade de Deus 2. Providéncia predestinagio 3. Vida crista 4, Igtejae Estado 5. Autondade das Escrituras CAPITULO VI O DESENVOLVIMENTO DA TEOLOGIA PROTESTANTE A. Ortodoxia 1. Razio ¢ revelacio 2. Principio formal e principio material B, Pietismo C. Tuminismo Indice de nomes 227 227 233 236 237 241 244 243 248 247 249 254 259 261 266 268 270 272 272 274 275 279 282 289 Prefacio a segunda edigio brasileira Ac publicar esta segunda edicao brasileira das aulas de Paul Tillich que receberam onome de Flistéria do Pensamento Cristdo, a Associagao de Seminarios Teolégicos Evan- gélicos — ASTE completa o conjunto que este livro forma com outro, Perspeciinas da Teolygia Protestante nos Séculos XIX e XX, publicado também em segunda edicio, no segundo sermestre do ano passado. Sio obras que se completam ¢ permitem o acesso ao pensamento de um dos maiores tedlogos do nosso século. Assim como ocorreu com Perspecsivas, esta obra ceve seu texto revisado e tivemos condicées de torné-la disponivel com uma apresentagao grafica de excelente qualida- de. Além disso, esta segunda edicio brasileira inclui um indice de nomes, importante recurso neste tipo de obra. Reconhecemos, com respeito e consideragio, a valiosa colaboragao do Prof. Dr. Odair Pedroso Mateus ¢ de sua esposa, Sra. Katharina Vollmer Mateus, pata este empreendimento. Para a ASTE é um privilégio publicar mais uma vez esta obra e, assim, ajudar a aumentar o j4 imenso numero de “alunos” dos cursos de Paul Tillich. Agosto de 2000 Fernande Bostolleto Filho editor da ASTE 15 PREFACIO Esta edicdo das aulas de Paul Tillich sobre a histéria do pensamento cristao revisa o texto da segunda edigio de 1956. A primeira edigdo reunia ¢essas mesmas aulas proferidas por ele em 1953, no Seminario Teolégico Unido de Nova York. As pala- vras de Tillich foram estenografadas e transcritas por Peter H. John e por ele distribu- idas numa pequena edigio. No preficio da “segunda edicdo” desse trabalho, Peter John observava que “tentara corrigir ertos de tipografia, de ortografia ¢ outros de io mais profunda do texto “no transcrigio”’, B reconhecia a necessidade de uma revis que concerne ao estilo e 20 contetido”, que talvez viesse a ser feita no futuro. Em termos ideais, tal revisio teria que set realizada com a assisténcia do proprio Tillich. Sem a sna ajuda esta revisio no seria tio completa como seria de esperar. Embora eu tenha sido liberal no tratamento do estilo, modificando-o quando necessario, tratei do conteido de forma conservadora, Esta Historia do Pensamento Cristao de Tillich pode ser tecebida como complemen- to ao seu liveo Perspectivas da Teolgia Protestante dos Séatos XIX ¢ XX, formando com este o conjunto da visio do autor da teadig&o classica crista. Esse livro comega onde o outto termina. Ha cetta coincidéncia no tratamento da ortodoxia ¢ do iluminismo em relagio com o protestantismo, Os estudantes da histéria intelectual do cristianismo ¢ da teologia contemporanea tetio necessidade de ler as duas obras para apteciar plena- mente a manieica como Tiltich apreende essa tradigio, Essas obras revelam a profandi- dade histéxica da petcepgio de Tillich mais ditetamente do que seus outros ensaios incluindo mesmo a Teolagta Sivtemdtica. Estas aulas sobte a histéria do pensamento aparecem num momento em que a compreensao da histéria totnou-se tarefa central e problema urgente da atual reflexdo teoldgica. Evidenciam a maneira como o préprio Tillich utilizava a histéria. Para ele o passado carregava em si o presente, ¢ seu estudo era como uma alameda aberta pata o futuro. $6 se pode viver no presente plenamente, aberto para o futuro, em didlogo com 9 passado, interpretando seus monumentos e compreendendo seus movimentos. 16 Este livto demonstra o poder da histéria para um tedlogo que jamais mergulhou 10 passado para escapar do presente. A histdtia torna-se viva para o estudante que se deixa introduzir por Tillich na sua forga. Os que foram alunos de Tillich conhecem estas aulas muito bem. Espera-se, con- tudo, que esta edigio sirva as necessidades de uma nova geracio de estudantes de teologia que nio tiveram a sorte de ter Tillich como professor ou de conviver com cle. Sinto-me honrado pox editar esta obra bem como as Perypertivas. Desejo expressar minha profunda gratidio 4 senhora Hannah Tillich ¢ a Robert C. Kimball, encarrega- do do testamenta de Tillich, pela permissao que deram a este trabalho. Também agtadeco ao meu colega, Robert H. Fischer, pelas sugest6es que me deu para melhorar © texto. Carl B. Braaten Osford, Inglaterra setembro de 1967 INTRODUCAO O CONCEITO DE DOGMA ‘Toda experiéncia humana envolve pensamento, simplesmente porque a vida inte- lectual e espiritual do seres humanos manifesta-se pela linguagem. A linguagem é pen- samento expresso em palavtas faladas e ouvidas. Nao hi existéncia humana sem pen- samento. © emocionalismo, tantas vezes dominante nas teligi tante do que o pensamento. FE menos, isso sim. B reduz a religiio ao nivel da experi- éncia subumana da realidade. es, fdo é mais impor- Schleiermacher tessaltava a fancao do “sentimento” na religiao e Hegel a do “pen- samento”, fazendo surgi a tensdo entre ambos. Hegel dizia que até mesmo os cies Ppossuem sentimentos, mas apenas o homem, pensamento. Essa tensao surgiu de um inal-entendide nio intencional do que Schleiermacher queria dizer com “sentimento”, coisa que ainda se repete hoje em dia. Mas o mal-entendido expressa a verdade que 0 homem nae pode viver sem pensamento, O ser humano tem que pensar mesmo se for o mais piedoso dos cristios sem qualquer educagio teoldgica. Até na seligiio damos nomes a objetos especiais; fazemos dis tingio entre 0s divetsos atos da divinda- de; relacionamos os simbolos entre si e explicamos os seus significados. Todas as religides se utilizam da linguagem, e onde hé Jinguagem ha também termos universais ou conceitos que precisamos usar mesmo nos mais primitivos niveis de pensamento. Convém observar que esse conflito entre Hegel e Schleiermacher ji fora antecipado, no século terceiro de nossa era, por Clemente de Alexandria quando disse que se os animais tivessem religido, ela seria muda, sem palavras. A cealidade precede o pensamento, mas ¢ também verdade que o pensamento molda a realidade. Sio interdependentes; um nio pode ser abstraido pelo outro. Nao podemos nos esquecer disso quando tratarmos da trindade ¢ da cristologia. Baseados em muito pensamento, os padres da igteja chegarar a conclusées que influenciam a vida de todos os ctistiios, desde os tempos ptimitivos até hoje. Temos também desenvolvimento de pensamento metodoligico segundo as re- 18 gras da légica que se utiliza de certos métodos para tratar com experiéncias, Quando esse pensamento metodoldgico se expressa, por meio da fala ou de escritos ¢ é comu- aicado 2 outras pessoas, produz doutrinas teolégicas. Trata-se de um passo além do uso mais primitivo do pensamento. Ideaimente, tal procedimento conduz a sistemas teoldgicos, Ora, os sistemas nao so feitos para permanecermos neles. Os que se prendem dentro de determinados sistemas comegam a sentir, depois de algum tem- P®, que 9s sistemas se transformam em prisio. Se vocés criarem sistemas teoldgicos, como eu criei a minha teologia sistemitica, sera preciso it além do sistema para nao se aptisionar nele. Nao obstante, o sistema é necessario por causa de sua consisténcia. Na minha experiéncia, es estudantes que mais se rebelam contra o carter sistematico de minha teologia sio os que se mostram mais impacientes quando descobrem que dois enunciados de minha autoria se contradizem entre si. Sentem-se frustrados quando encontram pontos vulneriveis na estrutura do sistema. E entio, quando consigo supe- rat essa concradi¢aio, acharn que estou tentando aprisiond-los maldosamente no meu sistema. Trata-se de curiosa reacdo. Mas ¢ uma reagio compreensivel. Quando se considera o sistema resposta definitiva ¢ final, ele se torna pior do que qualquer ptisao. Mas se entendermos o sistema como esforgo de reunir conceitos teolégicos em for- mas consistentes de expressio, sem contradigées, ele se torna inevitavel. Mesmo se pensarmos fragmentariamente, como certos fildsofos ¢ tedlogos (alguns até mesmo extraordinarios), cada fragmento conterd o sistema implicitamente. Quando lemos os fragmentos de Nietzsche - em minha opinido o melhor fildsofo que escreveu nesse estilo - encontramos todo um sistema de vida implicito em cada um deles. Nao se pode, pois, evitar o sistema, a nao ser que se escolha dizer asneiras ou escrever de modo contraditorio. Naturalmente, 4s vezes isso aconiece. O sistema corte o perigo nao sé de se transformar em prisio, mas também de se movimentat dentro de si mesmo. Pode se separar da realidade e se transformar em algo, por assim dizer, acima da realidade que pretende descrever. Portanto, meu inte- resse ndo se limita aos sistemas enquanto sistemas, mas no poder que tém para expres- sar a realidade da igteja ¢ da sua vida. As doutrinas da igreja tm sido chamadas de dogmas. Em outros tempos este tipo de curso se chamava “hist6ria do dogma”. Agora o conhecemos pelo nome de “historia do pensamento cristio”. Trata-se apenas de mudanga de designagio. Na verdade, ninguém ousaria discorrer sobre a historia completa do pensamento de to- dos os tedlogos que jé existiram ¢ ainda existem na igreja cristi, Estarfamos num 19 INTRODUCAO oceano de idéias contraditarias. O propésito deste curso é outta. Vamos examina os Pensamentos que se tornaram expressGes aceitas da vida da igreja. E o que a palavra “dogma” queria dizer originalmente. O conceito de dogma situa-se na fronteira entre a igreja eo mundo secular. Mui- tas pessoas que vivem nesse mundo secular tm medo dos dogmas da igreja. Mas nio apenas elas. Ha também pessoas, membros de igrejas, que também tém medo dos dogmas. Os “dogmas” sio como essas capas vermelhas que os ioureiros usam para provocar os toutos na arena; provocam raiva ou agtessividade e, as vezes, até mesmo hota. Acho que essa luta se dé mais entre gente fora da igreja com a igzeja. Para entender essas coisas precisamos examina a histéria do conceito de dogma, que & bastante curiosa. O primeito passo ¢ compreender a palavea “dogma”. Vern do voedbulo grego doken que significa “pensar, imaginar ou ter uma opiniio”, Nas escolas filoséficas gre- gas, anteriores ao cristianismo, doymaia exam as doutrinas especificas que diferenciavam uma escola de outta, os académicos (Platao), os peripatéticos (Anistoteles), 08 estdicos, os céticos e os pitagéricos. Cada escola tinha suas préprias idéias fundamentais. Se aiguém desejasse se tornar membro de uma delas, tinha que aceitar, pelo menos, os pressupostos basicos que a distinguiam das outras. Assim, nem mesmo as escolas filosdfieas deixavamn de ter suas dygmza. De modo semelhante, as douttinas cristis foram entendidas como dogzaia, distin- guindo aescola cristd das escolas filosdficas. Aceitava-se tal situagio como natural; ndo se parecia com a capa vermelha do toureiro nem ptoduzia sentimentos antagénicos. © dogma cristéo, no periodo primitive da historia da igreja, expressava as crencas dos cristios quando ingressavam nas congregacées locais, correndo muitos riscos e trans- formando tremendamente as suas vidas. Assim, os dogmas nao eram declaragdes tedricas individuais; expressavam uma realidade especifica, a realidade da igreja. Em segundo lugar, todos os dogmas foram formulados negativamente, para combater interpretacdes errdneas apacecidas dentro da propria igreja. Eo caso, por exemplo, do Credo Apostélico. Tomemos o primeiro artigo desse credo, “Creio em Deus Pai Todo Poderoso, Ctiador do céu ¢ da terta”, Nao se trata apenas de uma declaracio voltada para si mesma. Representa, ao mesmo tempo, a tejeigdio do dualismo, formulada depois de uma luta de vida e morte por mais de cem anos, O mesmo se pode dizer dos demais dogmas. Quanto mais tardios forem mais claramente mostra- 20 OCONCEITO DEDOGMA rao esse cardter negativo. Podemos chaméa-los de doutrinas protetoras, pois pretendi- am proteger a substincia da mensagem biblica. Até certo ponto essa substincia era fluida, muito embora houvesse uma base fixa que era a confissio de Jesus como o Cristo. Além disso tdo mais era mutivel. Quando surgiam novas doutrinas que pate- cam ameagar a confissio fundamental, as doutrinas protetoras eram-lhe acrescenta- das, Foi assim que o dogma foi se desenvolvendo. Lutero também reconhecia esse fato: 05 dogmas nao resultaram de interesses tedricos, mas da necessidade de se pro- teger a substancia da mensagem ctista. Uma vez que essas novas formulagées protetoras estavam sujeitas 4 interpreta- Ges errdneas, sempre havia a necessidade de forrnulagdes tedricas mais precisas. Nao se podia realizar essa tarefa sem a ajuda de termes filoséficos. Poi assim que muitos conccitos filosé fices entraram nos dogmas cristios. Nao ¢ que as pessoas se interessas- sem por eles enquanto conceitos filosdficos. Lutezo era muito franco a respeito, Dizia abetiamente que nao gostava de termos como “trindade”, “horreousins”, e outtos do mesmo tipo, embora admitisse a necessidade de seu uso, certamente imptdptio, por- que nfo tinhamos termos melhores. Novas formulagées tedricas ptecisam ser feitas sempre que a substincia da fé comece a ser ameacada por doutrinas ou teologias inadequadas. Deu-se mais um passo na histéria desse conceito. Os dogmas comegaram a ser aceitos como ‘ei canénica da igreja. A lei, segundo o cAnon, é a regra do pensamento ou do comportamento. A lei canénica é a lei eclesidstica a qual todos os que pertencem A igreja devern se submeter. Assim, o dogma recebe sangao legal. Na Igreja Romana o dogma faz parte da lei canénica. Sua autoridade emana do dominio da lei. Foi assim que se desenvolveu a Igreja Romana. A propria palavra “romana” conota esse desen- volvimento legalista. Entretanto, a enorme reacdo contra o dogma nos ultimos quatro séculos nio teria havido se talvez nao tivesse surgido um novo fato: a aceitagdo da lei eclesidstica pela sociedade medieval como lei civil, Com isso, a pessoa que quebra a lei canénica das doutrinas allo é 6 herege, discordando das doutrinas fundamentais da igreja, mas criminoso contra o Estado, Foi precisamente o que produziu a reagio tadical na época moderna contra o dogma. Posto que o herege nao apenas subverte a igreja, mas também 0 Estado, nfo lhe basta a excomunhio; deve ser entregue as autoridades civis para ser punido como criminaso. Foi contra essa situagao que o iluminismo se rebelou. A Reforma, na verdade, no mudara esse procedimento. Nio ha divida, porém, de 21 INTRODUCAO que desde © iluminismo todo o pensamento liberal se caracterizou pela recusa do dogma. Essa atitude teve o apoio do desenvolvimento da ciéncia. Pata que a ciéncia e a flosofia pudessem crescer criativamente eta preciso que tivessem completa liberda- de. Na sua famosa Histéria do dogma, Adolf von Harnack j4 perguntava se 0 dogma nao estava no fim em vista da desintegragao softida desde 0 inicio do iluminismo. Tinha consciéncia da existéncia de dogmas ainda no protestantismo ortodoxo, mas acteditava que o Ultimo momento da historia do dogma havia chegado nessa desinte- gragio do dogma provocada pelo iluminismo. Desde entio nio teria havido mais dogma no protestantismo. E clata que Harnack tinha em mente um conceito bastante limitado de dogma, no sentido das doutrinas trinitdrias e cristolégicas da igreja antiga, Ao contrario de Harnack, Reinhold Seeberg afirmou que o desenvolvimento do dogma nao terminou com o iluminisme ¢ que ainda se processa. Estamos diante de ama questio sistemdtica muito importante. Existem ainda dogmas oo protestantismo contemporaneo? Os que se destinam ao ministério da igreja tém de passar por determinados tipos de exame nao tanto de conhecimento, mas de fé. As igrejas querem saber se concotdam ou nfo com suas afirmagdes dogmiticas fandamentais, Em geeal, esses exames sfio conduzidos a partir de uma visio muito limitada da teologia, sem verdadeira compreensio do desenvolvimento do pensamento ctistao, desde os tempos da ottodoxia protestante. Muitos desses estudantes se revoltam intetiortmente contra esses exatnes da £6, muito embora nao devessem se esquecer de que estio entrando num grapo particular, diferente de outros grupos. Em primeiro lugar, trata-se de um grupo cristio e nao pagao; de um grupo protestante ou catdlico; dentro do ptotestantismo o grupo seta episcopal ou batista, ou qualquer outro. Com esse exame a igreja demonstra justificado interesse em receber os que aceitam os seus fundamentos, uma vez que serao seus representantes. Qualquer clube de futebol exige que seus jogadores aceitem as regras € padrées do esporte. Por que deveria a igreja deixar a questo completamente aberta aos sentimentos arbitratios dos individuos? Tal situagao nao seria possfvel. Uma das tarefas da teologia sistematica consiste em auxiliar as igtejas a resolver esse problema a fim de que nio dependam tao unilateralmente dos tedlogos dos séculos dezesseis e dezessete. Quem entra para a igreja deve aceitar certas idéias funda- mentais. Nao se tata, porém, de exigir dos ministros a aceitacao de certo conjunto de dogmas, Como poderiam eles afirmar que no tém chividas sobre tais dogmas? Se 22 OCONCEITO DE DOGMA nao tivessem chividas dificilmente seriam bons ctistéos, porque a vida intelectual é tao ambigua como 4 vida moral. F quem ousaria se chamar de motalmente perfeito? Como, entio, chamar-se de intelectualmente perfeito? © elemento de divida é um elemento da prdpria fé. Compete 4 igreja aceitar os que consideram a fé questio de sua preocupacio suprema, a qual querem servir com toda a sua forca. Mas se a igreja fica querendo saber o que cada um acredita a respeito desta ou daquela doutrina, acabard provocando a desonestidade. Se alguém afismar que concorda completamente com determinada doutrina, por exemplo, a do nascimento virginal, sera desonesto ou deixou de pensar. Como ninguém pode deixar de pensat, tem necessariamente que duvidas. Eis af o problema. Acredito que a nica solugdo possivel ao mundo protestante consiste em entender esse conjunto de doutrinas como representagio de nossa pteocupacao suprema, a qual queremos servir num determinado grupo, que também se fandamenta na mesma preocupacao suprema. Mas ninguém jamais podera prometer que nao vai duvidar diante de qualquer uma dessas douttinas, Os dogmas nao deveriam ser abolidos, mas interpretados de tal maneiza que nao venham a set poderes repressivos destinados a produzir desonestidade e fuga. Ao contririo, sio expresses profundas e maravilhosas da verdadeira vida da igreja. Nesse sentido, procurarei demonstrar que na discuss%o desses dogmas, mesmo quando expressos nas formulas mais abstratas por meio de dificeis conceitos gregos, estamos tratando de coisas nas quais a igreja acteditava expressarem adequadamente sua vida e devocio na luta de vida ov morte contra o mundo pagio ¢ judaico, ld fora, ¢ contra todas as tendéncias desintegradoras aparecidas em seu interior. Conclue afiemando a necessidade de termos o dogma em alta estima; hé certa grandiosidade no dogma. Mas niio devetia ser compreendido como conjunto de doutrinas especificas 4s quais ito. do dogma e © espirito do teriamos que subscrever. Tal atitude contratia o esp cristianismo. CAPITULOI A PREPARACAO PARA O CRISTIANISMO A. Kairos Segundo o apéstolo Paulo nem sempre existe a possibilidade de acontecer 0 que, por exemplo, aconteceu no aparecimento de Jesus, 0 Cristo. A vinda de Jesus se deu hum momento especial da histdria em que tudo estava pteparado. Vamos discutir, agora, essa “preparagio”. Paulo fala de Aaéros, para descrever o sentimento de que o tempo estava pronto, maduro, ou preparado. Esta palavra grega exemplifica a riqueza da lingua grega em compatacao com a pobreza das linguas modetnas. S6 temos um vocibulo para “tempo”. Os gregos tém dois, chrones ¢ airas. Chronos € ¢ tempo do relégio, que se pode medis, como aparece em palavras como “cronologia” ¢ “crond- metro”. Kairos niio tem nada a ver com esse tempo quantitativo do relégio, mas se refere a0 tempo qualitativo da ocasiao, o tempo certo. Algumas histérias do Evange- lho falam desse tempo. Determinados fatos acontecem quando o tempo certo, o aires, 0 chega. Quando se fala em Aairos se quer indicar que alguma coisa aconteceu tornando possiveis ou impossiveis certas agdes. Todos nés experimentamos momen- tos em nossas vidas quando sentimos que agora é 6 tempo certo para agirmos, que ja estamos suficienternente maduros, que podemos tomar decisGes, Trata-se do Aairos. Foi nesse sentido que Paulo € a igreja primitiva falaram de Aarros, o tempo certo para avinda do Cristo. A igreja primitiva ¢ Paulo até certo ponto tentatam mostrar por que esse tempo eta o tempo certo, e de que manecira o seu apatecimento tinha sido possi- bilitado por uma constelagio providencial de fatores. ‘Vamos examinat a seguir a preparagao para a teologia ctisti na situaggo do mun- do no qual Jesus veic. Vamos partir de um ponto de vista teoldgico - ha outros - buscando compreender as possibilidades da teologia ctisti, Nao € como se a revela- cio de Cristo caisse do céu como urna pedra, como alguns tedlogos parecer acredi- tar. “Aqui est: aceitem-na ou tejeitem-na”. E o conttitio de Paulo. Ha de fato um a4 poder revelador universal perpassando a historia toda e prepatando-a para o que o cxistianismo considera a revelagio final. B. Universalismo do império romano O evento do Novo Testamento surgiu na época do universalismo do império romano. Hi elementos positivos ¢ negativos nesse fato, a0 mesmo tempo. Negativa- mente, significa o desmoronamento das zeligises ¢ das culturas nacionais. Positivamen- te, fortalecia a idéia de que a humanidade podia ser concebida como um todo. O império romano produzin clara consciéncia de histéria mundial, em contraste com historias nacionais acidentais. A histéria mundial nao era apenas um propésito a ser alcancado na histétia, no sentido dos profetas; tornara-se, em vez. disso, numa tealida- de empitica. E esse o sentido positive de Roma. Essa cidade representava a monat- quia universal na qual se unia todo o mundo conhecido. Essa idéia foi absorvida pela Igreja Romana e aplicada a0 Papa. Ainda permanece nessa igreja. Com isso, Roma ainda reivindica o poder monazquico sobre o mundo inteiro, seguindo o ideal do império romano. Talvez seja importante observar que jamais deveriamos esquecer que a lgreja Romana é rwana, ¢ que o desenvolvimento dessa igeeja nao foi influenciado apenas pelo cristianismo, mas também pelo império romano, por sua grandiosidade e por cua idéia de lei. A Igeeja Romana tornou-se a herdeira do império zomano, Nunca devemos esquecer esse fato. Quando formos tentados a avaliar a Igrej2 Romana aci- ma do que deveriamos, sera hora de perguniarmos a nds mesmos: quantos elementos romanos ainda petsistem nela, e até que ponto sio vilidos hoje em nossa cultura? © mesmo processo se aplica aos conceitos filoséficos gregos que criaram o dogma cristo. Até que ponto sio vilidos hoje em dia? Naturalmente, nio ¢ preciso rejeitar certos elementos simplesmente porque se romanos ou gregos, ou aceita-los, por outro lado, porque se originacam em Roma ou aa Grécia, mesmo quando sanciona- dos por decisées dogmiaticas. C., Filosofia helénica No contexto desse mundo Unico, dessa histdtia mundial e dessa monarquia criada pot Roma, encontramos o pensamento grego. E o que se conhece como periado helénico da filosofia grega. Fazemos distincZo entre 0 periodo classico do pensamento 25 CAPITULO! prego, que termina com a morte de Aristételes, € o helénico, em que se situarn os estdicos, 0s epicuristas, os neopitagoricos, os céticos € os neoplaténicos. Acha-se aia fonte imediata de boa parte do pensamento ctistio"O cristianismo Primitivo nio foi influenciado tanto pela filosofia cldssica, mas pelo pensamento helénico. Vou novamente distinguir entre elementos positivos e negativos no pensamento gtego do periodo do &airos, quando o mundo antigo terminou. O lado negativo encontra-se no que chamamos de ceticismo, O ceticismo, nio sé na escola dos céticos, mas também em outras escolas de filosofia grega, € 0 fim da tremenda ¢ admiravel tentativa da construcio de um mundo de sentido baseado na interpretagio da realida- de em termos objetivos e racionais, A filosofia grega havia minado as antigas tradigSes mitologicas e rituais. Na época de Sécrates e dos sofistas era Sbvio que essas tradigdes nao ecam mais validas. A sofistica era a revolugio da mentalidade subjetiva contra as antigas tradicées. Mas a vida precisava continuar. Era, todavia, preciso investigar o sentido da vida em todas as suas dimensées, na politica, no direito, na arte, nas relagdes sociais, no conhecimento, na religido etc. Os filésofos gregos procuraram realizar essa tarefa, Nao ficaram sentados em suas esctivaninhas escrevendo livros de filosofia. Se tivessem apenas filosofado sobte filosofia j4 terfamos ha tempo esquecido seus no- mes. Em vez disso, tormatam sobre sia tarefa de criar um mundo espiritual observan- do objetivamente a realidade conforme lhes era dada, interpretando-a em termos de razao analitica e sintética, 1, Ceticismo Esse vasto projeto dos fildsofos gregos de ctiar um mundo de significados co- mecou a desmoronar no apagar das luzes do mundo antigo e produziu o que chamo de epilogo cético do desenvolvimento antigo. Originalmente, o termo skepsis queria divet “observar as coisas”. Mas assumiu um sentido negativo de examinar os dogmas, até mesmo as dogmata das escolas gregas de filosofia, para tejeitd-los, Os céticos, assim, duvidaram de todas as formulagées das escolas de filosofia. Nao que essas escolas nao contivessem em seu ensino boa parte desses elementos céticos, como, por exemplo, a academia platénica. O ceticismo nao conseguiu avangar além do probabilismo en- quanto que as outas escolas tornaram-se pragmiticas. Assim, essa atmosfera cética invadiu todas as escolas e permeou a vida toda no mundo antigo de entio. Tratava-se de assunto vital e muito sério. Nio se tratava novamente de se sentar em mesas de estudo para descobrir que se podia duvidar de todas as coisas. Essa tarefa seria com- parativamente facil. Na verdade, esse movimento significava o desabamento de todas 26

You might also like