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Cad.Est.Ling., Campinas, (24):47-57, Jan./Jun, 1993 DO QUE RIEM OS AFASICOS MARIA IRMA HADLER COUDRY S{RIO POSSENTI * TEL/UNICAMP Se um homem ndo entende as brincadeiras adeus! E sabem, nao pode ser mesmo inteligente, mesmo que seja um poco de sabedoria (Tchecov). Neste trabalho, analisaremos dois epis6dios de recontagem de piadas por ums affsico para outros afisicos ¢ para os investigadores, bem como outras situagdes discursivas em que os mesmos problemas de interpretagdo ou produgao de significagéo se manifestam. O objetivo € argumentar em favor de um percurso relacional entre discurso e cognicao. Ha uma longa tradicao que considera que as piadas se caracterizam pela brevidade - "a brevidade € 0 corpo e a alma do chiste* (Jean Paul, apud Freud (1905:26) - e "complexidade” do texto (ver Dascal (1985), Raskin (1985 € 1987), Possenti e Coudry (1991) € Possenti (1991) para argumentos). Estas caracteristicas fazem delas um material privilegiado de investigagao do funcionamento das linguas. A brevidade permite um controle relativamente facil do pesquisador sobre os dados; a complexidade é uma garantia de acesso a dados relevantes. Se se adata uma abordagem discursiva no estudo dos fendmenos linguisticos, 0s ingredientes que sio responsiveis tiltimos pela natureza da piada aparecem como mais fundamentais do que os considerados mais relevantes em abordagens “cognitivistas”. Isto porque as piadas jogam fundamentalmente com duplicidades, sejam elas de natureza estritamente linguistica, sejam elas um misto de material estriiamente linguistico € material de ordem mais amplamente contextual. Diante de dados tais, os exemplos tipicos de teorias como a GGT (parece que ele vem, ele parece vir, eles se odeiam um ao outro, etc) ou de seménticas de tipo referencial (O autor de Waverly..., Sir Walter Scott...), embora coloquem problemas interessantes, soam até triviais. E que aqueles envolvem de modo crucial fatos de lingua relacionados tanto com sua estrutura “ M. 1. 11. Coudry trabatha também na Unidade de Neuropsicologia © Neurolinguistica da Eaculdade de Cineias Médicas da Unicamp e € bolsista do CNPa, proc, no, 303975/85-2, Sirio Possenti € bolsista do CNPg proc. no, 303984/85-6, Este trabalho faz parte de peruisas de ambos os autores upoiadas pelo CNPq quanto com seu uso social, enquanto estes envolvem basicamente problemas de estrutura; aqueles dizem respeito a varias fungdes simultaneas da linguagem, estes, 2 uma fungdo Gnica, mesmo que fundamental. Pensamos ser vantajoso assumir como principio a “dualidade radical da linguagem, a um s6 tempo integralmente formal e integralmente atravessada pelos embates subjetivos e sociais” (Maingueneau 1987: 2). O estudo de dados obtidos de pacientes com afasia semantica, que afeta todo © processo verbal, mostra alteragGes de caracteristicas constitutivas do processo de significagdo das linguas naturais. A idéia de investigar material chistoso na produgao ¢ interpretagdo de interlocugdes de que participam afasicos parece, portanto, duplamente instigante. A situagdo se apresenta em "“solugéo saturada", tamto pelas ricas caracteristicas do material linguistico quanto pelas caracteristicas do usuario em questio, que apresenta dificuldades linguistico-cognitivas para entender ¢ recontar piadas, como veremos abaixo, € que por isso exibe no limite certas condicdes de funcionamento da linguagem Que as piadas apresentam dados lingufsticos em solucdo saturada seria facil de demonstrar. Na verdade, uma lista de pequenos chistes mostext logo que praticamente todos os grandes problemas da linguistica, ai incluidos campos mais recentes como a pragmatica e a andlise do discurso, so acionados pelos contadores ¢ ouvintes de piadas Nelas, segmenta-se alternativamente a cadeia sonora, acionam-se ambiguidades lexicais € estrutrais, pdem-se em jogo uso € mencdo, infere-se, pressupde-se, leva-se em conta ‘0 conhecimento prévio € as leis conversacionais, etc. Os contadores e ouvintes de piadas sio obrigados a conhecer as guestdes culturais ¢ ideolégicas mais problematicas © comptexas da sociedade, sem as quais as piadas nao teriam razio de ser € nem conseguem ser interpretadas, porque estes ingredientes so fundamemtais. Além disso, nos modos normais de circulapZo e acesso a estes textos, exige-se uma andlise instanténea, 0 que poe a prova ainda mais crucialmente 0 dominio linguistico € discursivo dos falantes. Considerem-se, intuitivamente, estes poucos casos, para confirmar o que acaba de ser dito: 1) A mie volta de viagem e 0 filho the diz: - Mim dormi com o papai ontem ~ Eu dormi - corrige a baba, - 86 se foi depois que eu peguei no sono 2) - Meu filho, © que € que se diz quando a visita vai embora? - Gracas a Deus. 3) - Sua mie est af. Vocé nio vai receber? - Receber por que? Por acaso ela me deve alguma coisa? 4) - Manuel, vocé sabe o que é homosexual? 48 - E um sabao para lavar as partes. 5) = Comandante! Estou vendo uma tropa se aproximando! ~ So amnigos? = Acho que sim. Esto todos juntos 6) ~ Vocé sabe definir um motim? ~ Sei. E uma reagdo em cadei Em fermos neurolinguisticos, assumimos uma perspectiva tebrica afinada cont 08 trabalhos da Andlise do Discurso que pode ser chamada de terceira geracao (Pécheux 1983), e com uma concepgio integrativa e dindmica da atividade mental, baseada nos postulados vygotskyanos acerca da naturera sécio-cultural dos processos: mentais. Segundo esta concepcio, a linguagem, ao mesmo tempo que tem um papel em cada um dos processos cognitivas, tem em relagio a cles uma posigao privilegiada. de ser mediadora, tanto em termos inler-cognitivos (mediando a relagio do sujeito com 0 mundo social) como inter-cognitivos (mediando os diversos aspectos da atividade mental) Henoonbbanerenonneeee rr Uma das caracteristicas constitutivas das linguas naturais é sua heterogeneidade, caracteristica que se tornou mais visivel & luz das obras de Bakhtin (historicidade ¢ dialogicidade como caracteristicas basicas das linguas) ¢ de certas correntes da psicandlise (pelo que esta abordagem revela sobre a potencialidade de o significante ser contexto de produgao de sentidos e de associagao). Afirmar a heterogeneidade das Tinguas naturais € recusat-se a traté-las como cédigo, ¢ postular sua indeterminagao. Conceber a lingua como cédigo é assumir que o contetido seméntico esti integralmente explicitado por estruturas sintéticas. Seria tedioso repetir aqui argumentos para mostrar que sentidos sio veiculados mesmo sem estarem codificados. Tomamos isto como aceito ou, pelo menos, conhecido. Posigdo contraria é assumir a indeterminacao das linguas, isto é, postular que ndo ha relagdo biunivoca entre forma e contetido, de maneira que ora as formas de expresso so redundantes, ora insuficientes; ora 0 mesmo sentido se expressa por varias formas, ora a mesma forma expressa varios sentidos (Franchi 1976, 1977). Assim, falores contextuais, de alcance imediato (como os situacionais) ou Constitutivos (como as condigées mais gerais de produgao) ndo so meros acréscimos, mas definidores das condigdes de existéncia ¢ de uso social das linguas naturais. Em especial sio definidores do sentido. Se olharmos a lista que, didaticamente, é apresentada por Maingueneau (1987) para expor o conceito de heterogeneidade, por um lado, se examinarmos piadas, por outro, e se analisarmos ainda os dados obtidos em interlocugdes com affisicos 49 tentando entender e contar piadas, veremos que quase todos os mecanismos que marcam a heterogeneidade estdo ausentes na linguagem do affsico, e que estdo presentes crucialmente em piadas A idéia basica da heterogeneidade é a de que todo discurso tem com outro uma relagdo ndo casual, mas constitutiva. Esta relago pode ser chamada de mostrada (ver Authier-Revuz 1982), quando hé marcas (p. ex., discurso direto, indireto, ironia, pressuposi¢ao, consideragdes epilinguisticas do préprio locutor, etc.) ou nao estar visivelmente marcada e, no entanto, ser relevante, dita constitutiva dos discursos. Assim, um discurso tem com outro relagdes diversas, como as de oposigio, de complementariedade, de inclusio, etc, mesmo que isto nao esteja visivel no texto Manter uma ou mais de uma destas relagdes com outros textos ¢ de sua natureza enunciativa e é da historia das linguas, nas quais todas as palavras so, segundo jargao j4 corrente, atravessadas por muitos discursos, isto 6, tem uma histéria que esti Longe de ser resultado de uma convengao pacifica que produziria ou uma univocidade de sentido, ou, pelo menos, univocidade em campos on contextos previamente definides ~ salvo talvez se utilizada em contextos quase formais. Assim, a ambiguidade, a proliferacdo dos sentidos, fruto de associagdes com outras palavras ¢ outros textos, & constitutiva, € nao excepcional ou circunstancial ou acrescida. As piadas vivem da heterogeneidade. Dos miiltiplos efeitos de sentido ligados ou associados, livres ou “convencionalmente”, as mesmas formas; da relago de formas com seu "exterior", que tanto pode ser uma situagao visivel (um fato), quanto algo que resulta de um contexto linguistico (ver Dascal 1989:31). As piadas exigem que os interlocutores operem ativamente sobre as relacdes de sentido. Nao thes basta 0 conhecimento gramatical. Trata-se, para os interlocutores, de fazer com que as expresses rendam o maximo de sentidos em conexio com siluagdes, imediatas ou culturalmente assentadas, nas quais os interlocutores estio mergulhados € que os discursos nio sé refletlem, mas ajudam a constituir O imteresse pelo estudo das afasias tem sido o de investigar, por meio de andlise de mecanismos linguistico-cognitivos,os processos de significayao alterados, por um lado, e, por outro, as alternativas de que o sujeito lana mo na reconstrugio de formas linguisticas para interagir apesar de suas dificuldades. Dizemos que o sujeito esta afisico quando The faltam recursos expressivos € interpretativos da linguagem, sejam eles relativos ao sistema linguistico, sejam relativos aos processos discursivos que se desenvolvem sobre este proprio sistema, A afasia € uma perturbagio no processo de significagao em que ha alteragées em um dos niveis linguisticos, com repercussio em outros. Causada por lesdo adquirida no_ sistema nervoso central em virtude de acidentes vasculares cerebrais, traumatismos crineo-encefalicos ov tumores, a afasia € em geral acompanhada por alterages de outros processos cognitivos (agnosias, apraxias, discalculia, etc), ¢ de outros sinais neurolégicos (como a hemiplegia, por exemplo).. 50 Nossa hipétese mais forte neste trabalho é a de que € porque nao incorpora a heterageneidade do discurso de que participa que o portador de afasia semantica manifesta uma forte tendéncia a uma mesma interpretagdo: em geral, esta é determinada por uma caracteristica de tipo “objetal”: o nico sentido a que tem acesso € o que se relaciona diretamente com determinado objeto (ver abaixo 0 exemplo com "martelar”), com literalidade estrita (ver exemplo com "fim de ano”) ou com sua experiéncia pessoal (ver exemplo com "sogra"). Por isso, tem dificuldade em decifrar os "segredos" das piadas, O caso AF Sujeito de 38 anos, destro, motorista profissional, com escolaridade até 3a. série do primeiro grau. Sofreu um traumatismo créneo-encefalico que acometeu o hemistério esquerdo. A tomografia computadorizada revelou uma lesio na regio temporal esquerda. Ao exame neuropsicoldgico € neurolinguistico, foi diagnosticado inicialmente um disturbio cerebral difuso de predominio frontal - afasia dinamica, segundo classificacdo luriana - que evoluiu para uma afasia semantica, persistindo problemas de selego relativos a manutengdo do t6pico conversacional, com a relevancia de temas em relagao a seus propésitos e, principalmente, com sentidos indiretos ou implicados. $6 para dar um exemplo de seu quadro inicial, a uma pergunta sobre se ele tocava violdo antes do acidente, comecou a contar, sem parar, a hist6ria de seu casamento. Um dos problemas semanticos iniciais de AF, tanto em termos de produgao como de interpretacao, era selecionar ou manter o que é topicamente relevante. Durante © acompanhamento longitudinal de AF, observou-se que as formas através das quais “resolvia” seus problemas linguisticas, presentes tanto em didlogos como em warrativas, como se vé na produgdo € na interpretacio de piadas e provérbios, ficam na dependéncia do sentido afetivo, nos termos de Luria (1979). AF nao interpreta a partir do discurso, mas a partir da referéncia objeial ou de sua experiéncia pessoal. Isso pode nao se configurar as vezes como problema; mas o fato € que certos textos exigem arbitragens intertextuais que se definem a partir de referéncias estabelecidas culturalmente, isto &, 05 textos tém condigdes de producao que os retiram da érbita de uma possivel leitura livre por parte do interlocutor (ver nota 16 de Pécheux & Fuchs 1975:238). Para ilustrar os problemas semanticos de AF, servimo-nos de alguns exemplos que esclarecem seu déficit afiisico, tanto do ponto de vista linguistico quanto cognitive, Queremos com isso mostrar "lugares" em que se pode flagrar um funcionamento deficitério, € por isso afasico, em relacdo ao papel da linguagem na construgao de significagdes € como mediadora de outros processos cognitivos. Na sua relagdo com enunciag6es proverbiais, AF mostrou varios problemas, seja na manipulagao de sentidos indiretos ¢ menos cristalizados, seja_na incorporagao Bi do discurso veiculado pelo provérbio (tema, no sentido de Bakhtin). E caracteristica recorrente do quadro afasico de AF a dificuldade de manipular a condigao_polissémica € ndo univoca da fingua; sua interpretacdo objetal interfere nos aspectos discursivos que orientam a significacdo; seu problema de selecdo seméntica (quer lexical, quer de t6picos) dé origem a parafasias, digressdes, mal-entendidos, nao reconhecimento de intengdes, etc. Veja-se, no exemplo abaixo, a diticuldade tipica de AF com enunciagées proverbiais: 2)- AF vinculou 0 provérbio "Feliz foi Addo que nao teve sogra” a umn sentido individual, relacionado a sua propria experiéncia, embora respondesse a perguntas da investigadora de modo tal que demonstraram que mantinha o conhecimento enciclopédico: AF sabe que Adio foi o primeiro homem, que a Eva foi a primeira mulher, que sogra é a mie da muther ou do homem com quem se é casado, etc. O que nao consegue dizer é que, neste caso, 0 texto significa que ter sogra € ruim, que mulher é Eva, que sogra ¢ a mae de Eva, Mesmo quando a investigadora intervém muito clara e quase diretivamente, perguntando se, afinal, segundo esse provérbio, ter sogra é bom ou ruim, ele diz que é bom € volta a seu caso pessoal: “eu viajava sempre € em todos os lugares, tava |...] podia estacionar ¢ ja tava na mao |...]", distanciando-se de uma interpretacdo intertextual ou histérica. Mostraremos, a seguir, analisando um conjunto de dados relativamente diversos entre si, algumas das dificuldades seménticas de AF e€ sua repercussao enunciativo-discursiva. b)- Uma atividade no grupo de affsicos consistiu em cada um contar aos outros onde morava, fornecendo os pontos de referencia a partir dos quais um imerlocutor que nio conhecesse 0 local deveria poder localizé-lo. Os demais integrantes serviram-se de pontos de referencia conhecidos e idemtificaveis como, por exemplo, a prefeitura, o Banespa de Bardo Geraldo, a rodovidria, etc. AF, que mora numa cidade préxima a Campinas, disse que sua casa ficava perto do bar da esquina e era a segunda da quadra de uma rua que ia e vinha. Este tipo de informagao, que evidentemente nao permite que se encontre sua casa, revela que AF parece no levar em conta que seu interlocutor ndo sabe onde ele mora: deu referéncias de quem pressupde que seu interlocutor ja conhece as Proximidades, faltando-Ihe apenas localizar 2 casa. c}- Numa outra atividade de grupo em que se pretendia investigar relagdes entre a afasia e a representacio gestual, a proposta foi que cada um representasse, dramatizando, um tipo de profissio. AF escolheu “pipoqueiro". Comegou, 52 agachado, representando mimicamente uma roda, que éle girava em posi¢ao vertical, o que Iovou o grupo, na tcntativa de adivinhar de que profiss4o se tratava, a dizer "borracheiro", "mecanico", “corsedor de Formula I", etc. Finalmente, esgotado um rol de possibilidades plausiveis, uma paciente disse “pipoqueito", ¢ AF confirmou. O grupo manifestou estranheza com a representacdo. Indagado sobre o porqué de sua representagao, de seu gesta, AF disse: “porque meu pai era pipoqueiro e a oda do carrinho dele |...] sempre encrencava". Como se vé, neste exemplo também AF recorre a sua experiéncia individual para a construgao de significagdes, mesmo com linguagens especiais. Estes fatos revelam, em {ermos tufianos, que © aspecto cognitivo alterado pela afasia de AF diz respeito a sua capacidade de operar no plano das relagdes logico-gramaticais ¢ abstratas € no plano do pensamento categérico, ambas produzidas sOcio-historicamente, por isso nao redutiveis A experiéncia pessoal. De acorde com este pardmetro te6rico, dirimaos hoje que ao pensamento produtivo de AF fazem falta matrizes semanticas a partir das quais aceda, por inferéncias, a sentidos indiretos ou a polissemia. No que tange a este ultimo aspecto - central para os nossos propésitos - é coma se a linguagem nao carregasse a experiéncia cultural de geragdes, que os provérbios, as piadas, ¢ outros tipos de discurso "saturados” cevelam mais claramente, mas que nao sao dispensdveis mesmo em insténcias como as acima, aparentemente triviais. As relagées de sentido recobrem manifestagdes do funcionamento da lingua como a pressuposigao, os diversos critérios da textualidade (argumentatividade, coeréncia, coesdo, intencionalidade, etc.), a relevancia t6pica, o trabalho inferencial, © reconhecimento de intengdes, as leis discursivas, etc. Nos termos de Geraldi (1990), elas recobrem as “operagdes discursivas com as quais, utilizando-se de uma lingua que € uma sistematizagdo aberta (ou seja, relativamente indeterminada), o locutor faz uma "proposta de compreenséo” a seu interlocutor” (p. 194). Eo que AF nao faz mais. prdximo exemplo ilustra, de outra maneira, a interpretacdo restrita tipica de AF, que € um misto de recurso a sentidos relacionados com swa experiéncia pessoal € concreta € a sentidos o mais literais possivel d)- —_Depois de um miés de férias, na primeira sesso do grupo em 1991, as pacientes contavam o que fizeram no final do ano ¢ um deles perguntou a AF: S.- que fez no fim de ano? AF.- No fim do ano eu fui 14 na easa do meu ex-cunhado, que fez uma festinha l, churrasco, cerveja, um som 14, ele pds bastante misica, assim, e dangamos a Noite inteira, Fim de ano, para AP, significa s6 0 iltimo dia do ano. A referéncia a fim de ano consiste em relatar que foi a casa do ex-cunhado no dia 31 de dezembro, ou seja, 53 elimina a interpretacdo usual segundo a qual a expressio "fim de ano” refere um perfodo mais tongo de tempo, que foi o que outros pacientes fizeram e era 0 que a pergunta que S fez a AF demandava como resposta. ¢)- Em outra atividade, AF tinha que formular um final de historia. Dado o final, © grupo iria fazendo perguntas até montar um *solving-problem" compativel coma seguinte hist6ria, que s6 ele conhece: (rés andes assaltaram um banco de uma cidade onde todo mundo se conhecia; assaltaram disfargados, mascarados, destruiram as provas do assalto, esconderam 0 dinheiro, mas a policia conseguin descobrir, de imediato, Como e per que? Observe-se a “dica" fornecida por AF: AF. ~ Era uma vez numa cidadezinha, uma lutminha que resolveu fazer um assaltinho. Na formulagio do enunciado, AF nao conseguiu se desvencilhar do segrodo da historia, deu mais indicios do que devia, sobredeterminando morfologicamente 0 conteddo semantico da instrucdo final; com tantos diminutivos, s6 poderia tratar-se de andes, . H- Neste outro exemple, o déficit de AF se manifesta pela dificuldade de operar com discurso citado, Veja-se: 1. = Qual foi o recado do sew Pedro pra voce? AF, ~ Que vocé foi Ié no ... escrit6rio. I~ Escritério? AF. ~ Foi ld telefonar ... 1. ~ Telefonar pra casa. Este exemplo mostra uma dificuldade especifica de AF com a construcao do discurso indireto: a resposta & pergunta inicial deveria ter sido "o seu Pedro disse que vocé foi telefonar para casa". AF consegue permanecer no frame, mas substitui telefone por escritério (menciona um objeto presente no escrit6rio ao invés de mencionar o escritério), instabilidade que compromete 0 contetido seméntico preciso da enunciagaio sobre a qual se estrutura 0 relato (Bakhtin, 1979), de modo a fazer com que ela nao conserve sua autonomia. Recontagem de piadas Na abordagem discursiva que adotamos, aceita-se que a sedimentagdo do sentido dé-se historicamente. Fruto da pratica social, s6 € capturavel pelo papel 54 mediador tributério da linguagem. Mas nao € porque é social que o funcionamento da \inguagem dispensa o trabalho dos interlocutores para interpreté-la, Nem a forma, em © sentido se dio magicamente, como efeito do discurso. Os interlocutores trabalham sobre a matéria linguistica, lancando mo de estratégias, que também sao sociais. S40 estas estratégias que por vezes fazem falta a AF: 1) AF conta a outro paciente, EF, uma piada que acabara de conhecer ¢ que consiste, no que € relevante para a questo que aqui se analisa, nun desenho com um homem empunhando um martelo ¢ com o qual prega um cartaz, no qual esté escrito "Paz Mundial" AF, - sobre um mogo, a paz mundial. 1. = Que que ele fazia com a paz mundial? AF. Ele colocava a ... martelo, martelava. L (dirigindo-se a D) O senhor eniendet alguma coisa? O que ele fazia com a paz mundial? AF. - Colocava. { Colocava? AP. — Colocava a paz, pra ter paz no Brasil. 1 Mas o que ele fazia com a paz. mundial? Ele colocava? Essa é a expressao melhor pra chegar no fim da piada? O que ele fazia com a paz mundial? Ble ... E isso que vocé, vocé tem que escolher exatamente a palavra chave, sendo nio da certo a piada. Bla fica sem graga. O senhor D nao entendeu, AF. - Batia como um martelo 1. ~ Mas dé pra bater como um martelo a paz. mundial? AP. - Nao, 1. ~ Nao. Nao € tude que combina com tudo, Ent, 0 que ele fazia 6 Bater como um martelo ... qual é outrapalavra sindnima dessa daf? Pensa ne prego AB, ~ Prego... € 1. - A-uma palavra que parece com prego. Bater com warielo € a mesma coisa que ... pre ... pre AB, - Pregar. (segue) Este dado também mostra a mesma instabilidade de AF em selayao a um conteiido semantico preciso. Sua dificuldade de encontrar a boa palavra (pregar) atesta a nio reversibilidade entre o textual € 0 social, vertentes do discurso que imtegram a prética discursiva (Maingueneau 1987) € pelo qual se reconhece a significagio. A solugdo de AF, como nos outros exemplos, € de tipo objetal, fruto da interferéncia muito forte do objeto martelo, que faz com que selecione "martelar” e nao aceda a “pregar" 55 2) O investigador contou a AF a seguinte piada: Tinha um cara que tinha 15 filhos ¢ que foi procurar um emprego. Falou para o patrao: - "Eu preciso arranjar um emprego porque eu tenho 15 filhos". O patrio respondeu: - "E 0 que mais o senhor sabe fazer?" Foi s6 apés sucessivas pardfrases do texto por parte do investigador que AP entendeu a chave da piada, que consiste numa jnterpretagdo precisa do pressuposto veiculado em “e o que mais ...". Dias depois, AF recontou a mesma piada para outro investigador. Ea piada do cara de 15 filhos? F. - ... 15 filhos? Casou e teve ... 15 anos teve 15 filhos. E depois dos 15 fithos ele foi procurar emprego. Dai o patrao ... ele foi procurar servigo ¢ falou pra ele que sa ... falou sei, no ... depois desse tempo vocé ja teve 15, entao servigo nao tem, tem ... (em ... outros ... outros [,..] € outros peda ... outra idéia sei li, o servigo ... sem ter, sem ser servigo. . - Entendi nada ... F, - Sem ter, sem ser o servigo + Entendi nada .. F, ~ Sem ter o servigo, ele falou que ... falou que tinha outro servigo . =~ Que outro servigo? F, - Ajesqueci um pedaco. O mais evidente nessa recontagem € a dificuldade de AF em aceder a sentidos heterogéneos (ver andlise da pressuposi¢o nesses termos em Maingueneau (1987) ‘Além do mais, nesta piada a habilidade de fazer filhos € posta no mesmo nivel de habilidades profissionais, o que deixa mais claro que o sentido de textos como este nao pode ser apreendido com base apenas no material linguistic. O que AF demonsta é uma dificuldade de selec lexical (por isso ocorrem parafasias semanticas, hesitacoes com sucessivas tentativas epilinguisticas de encontrar um recurso que veicule de maneira mais usual a significagao do texto) que repercute na relagdo essencialmente dialética entre discurso e cognicao. Em outras palavras, as dificuldades seménticas, por sua origem, e discursivas, por seus efeitos no funcionamento da linguagem, que obervamos em AP, parecem indicar que 0 que esti afetado si um ou mais aspectos do sistema Jinguistico que repercutem na relagao entre discurso € cognigdo. O pensamento de AF esté afetado nesta justa medida, nem mais nem menos, o que diferencia seu problema seméntico, por exemplo, dos que ocorrem em portadores de deméncias neurodegenerativas. Mas, afinal, do que riem os afisicos? Como todos, riem do cdmico. Riem no fim das piadas, porque sabem que nessas circunstancias se ri, como muitos que passam por normais. E do humoristico, quando entendem. A diferenca € que, em geral, entendem menos. BIBLIOGRAFIA AUTHIER REVUZ, 3. (1982), "Hétérogeneité monirée et hétérogeneité constitutive: éléments pour une approche de I'autre dans de discours*. in: PRLAYV, 26. Paris, Centre de Recherche de L’Université de Paris VII, pp.91 - 151 BAKIITIN, M, (1979). Marxismo e filosofia da linguagem. S. Paulo, Hicitec. DASCAL, M. (1985). "Language use in jokes and dreams: sociopragmatics vs. psychopragmaties” Language & Communication, $ (2). pp.95 106. 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