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Introdução
1. Prima facie, pode-se considerar como “ação etnocida”, no que concerne às minorias
étnicas indígenas situadas em território nacional, toda decisão política tomada à
revelia das instâncias de formação de consenso próprias das coletividades afetadas por
tal decisão, a qual acarrete mediata ou imediatamente a destruição do modo de vida
das coletividades, ou constitua grave ameaça (ação com potencial etnocida) à
continuidade desse modo de vida. É passível de tipificação antropológica como
etnocídio todo projeto, programa e ação de governo ou de organização civil (missões
religiosas proselitistas, por exemplo) que viole os direitos reconhecidos no capítulo VIII
da Constituição Federal de 1988 (“Dos Índios”), em particular mas não exclusivamente
aqueles mencionados no caput do art. 231, que sancionam a existência — e portanto
o direito à persistência — de “sua [dos índios] organização social, costumes, línguas,
crenças e tradições, e o direito originário sobre as terras que ocupam”.
1
http://www.un.org/esa/socdev/unpfii/documents/DRIPS_pt.pdf
direitos ali estabelecidos é uma grave ameaça à sobrevivência e autonomia
socioculturais dos povos concernidos.2
2. Robert Jaulin entende que o etnocídio não se caracteriza pelos meios, mas pelos
fins. Ele é um processo que visa a destruição sistemática do modo específico de vida
(técnicas de subsistência e relações de produção, sistema de parentesco, organização
comunitária, língua, costumes e tradições) de povos diferentes, sob estes aspectos, do
povo, agência ou Estado que leva a cabo a empresa de destruição. Se o genocídio
consiste na eliminação física deliberada de uma etnia, povo ou população, o etnocídio
visa o “espírito” (a moral) de um povo, sua eliminação enquanto coletividade
sociocultural diferenciada. Naturalmente, o genocídio é um dos meios mais eficazes
de cometer o etnocídio — já que é um meio suficiente para tal fim —, mas não é um
meio necessário. Ademais, os dois crimes podem se combinar, como se deu no caso
do genocídio dos judeus (e outros “não-arianos”, tais os ciganos) perpetrado pelo
nazismo, quando não só milhões de seres humanos deste povo foram friamente
assassinados, como todo traço, comportamento ou objeto cultural identificado,
corretamente ou não, como “judeu”, foi banido e obliterado pelo governo nazista
(literatura, obras de arte, trabalhos científicos, língua, habitações etc.).
2
Sobre a Convenção 169, ver uma breve história de sua ratificação pelo Brasil em: http://
pib.socioambiental.org/pt/c/direitos/internacional/convencao-oit-sobre-povos-indigenas-e-tribais-em-
paises-independentes-n%20.-169
3
O verbete da Wikipedia sobre o autor (https://en.wikipedia.org/wiki/Robert_Jaulin#The_concept_of_ethnocide)
apresenta um resumo útil do contexto em que o conceito foi formulado, e sua definição básica.
cultural original, a propaganda caluniosa, a remoção forçada dos territórios
tradicionais, o abandono compulsório dos usos e costumes da coletividade visada
como alvo — tudo isso são outras tantas formas de comissão de etnocídio, que,
particularmente quando Estados nacionais estão implicados, pode ser muito
eficazmente levado a cabo por omissão: incúria, indiferença, apoio oficioso,
silenciamento mediático induzido.
II
III
4
Ver http://unesdoc.unesco.org/images/0005/000507/050786eb.pdf. Reuniões e resoluções análogas
foram feitas e tomadas relativamente a outras partes do mundo em que o etnocídio é um problema
gravíssimo, como a África. Ver: http://unesdoc.unesco.org/images/0005/000557/055780EB.pdf
5
Recorde-se apenas confrontação e as combinações complexas entre as chamadas teorias
“primordialistas”, “instrumentalistas” e “construtivistas” da etnicidade (Ver o verbete “Ethnicity”,
assinado por S. Solokovskii & V. Tishkov, da Encyclopedia of Social and Cultural Anthropology, A.
Barnard & J. Spencer, orgs. (Routledge, 1996).
definição com bom potencial de consenso aquela oferecida por Anthony D. Smith:
uma comunidade étnica ou etnia
pode ser definida como um grupo humano cujos membros compartilham mitos comuns
de origem e descendência, memórias históricas, valores e padrões culturais, a
associação com um território determinado, e um senso de solidariedade...6
3. Ainda que nem todos esses critérios sejam automaticamente aplicáveis a toda coletividade
que já foi caracterizada, na literatura corrente, como etnia ou grupo étnico, e admitindo que
eles podem ser estendidos, cum grano salis, aos membros de um Estado-nação constituído
como uma coletividade etnicamente homogênea — caso raro, e universalmente não verificável
nas Américas, exceto sob a forma de ideologias nacionalistas autoritárias que omitem de sua
“narrativa”, isto quando não os comemoram, sucessivos etnocídios — , tais critérios podem
aplicar-se de maneira razoavelmente adequada (e completa) ao caso das etnias indígenas das
Américas, do Brasil inclusive.
4. A definição de Smith, entretanto, pode ser criticada por seu caráter pouco dinâmico,
excessivamente externalista ou objetivista, ao não contemplar os processos históricos de
constituição e especialmente de reconstituição ativa de coletividades etnicamente
diferenciadas — os chamados processos de ressurgência ou “emergência” étnica, isto é, de
reivindicação de continuidades memoriais e originárias interrompidas por processos de
etnocídio que hoje se constata terem sido incompletos. Essa situação é de especial relevância
no Brasil contemporâneo, sobretudo a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988,
que consagrou e perenizou o instituto do indigenato (em que pesem as iniciativas legislativas e
decisões tribunalícias recentes que vêm procurando descaracterizá-lo ou aboli-lo), quando
diversas identidades étnicas indígenas “submersas” passaram a lutar para terem sua condição
indígena reconhecida pelo Estado, com as devidas consequências jurídicas previstas pelo
artigo 231 da CF — em particular o direito de terem os territórios que ocupam precariamente
postos a salvo do violento processo de privatização por corporações agroindustriais e/ou de
intervenção socioambientalmente devastadora por parte de projetos de “desenvolvimento”
patrocinados pelo Estado.
IV
1. A situação dos povos indígenas no Brasil pode ser claramente caracterizada como uma
condição minoritária. Os índios no Brasil são uma minoria étnica, social, cultural e política. A
6
A.D. Smith, “The Politics of Culture: Ethnicity and Nationalism” in T. Ingold, org, Companion
Encyclopedia of Anthropology: Humanity, Culture and Social Life (Routledge, 1994).
condição minoritária, neste sentido, não tem um sentido quantitativo ou “estatístico” — ainda
que tenha um sentido indissociável de sua inserção em um Estado. Embora a população
indígena, oficial ou real, seja censitariamente pequena (ainda que crescente, em proporção
muito significativa) dentro do conjunto da população de “cidadãos” do Estado nacional,
muitas outras minorias nacionais — raciais (negros), de gênero (mulheres), de orientação
sexual (LGBT) e outras — são compostas por contingentes numericamente expressivos, em
alguns casos estatisticamente majoritários.
7
A distinção entre “raça” (no sentido de discriminação racial objetiva, não no sentido errôneo de
categoria de conteúdo genético-biológico) e “etnia”, ou, para sermos mais diretos, entre “negros” e
“índios”, é instável e mutável, haja vista: (1) a tipificação aceita, como crime de racismo, para as
violências e humilhações cometidas contra indígenas motivadas por sua condição de indígenas; (2) o
reconhecimento constitucional da categoria dos quilombolas, isto é, de comunidades territorializadas de
afrodescendentes, que lhes atribuiu direitos coletivos sobre as terras que ocupam, embora de natureza
distinta dos direitos territoriais indígenas; (2) a emergência crescente de um vasto universo de
comunidades e complexos culturais “afro-indígenas” disseminados por praticamente todo o país,
universo que vem se constituindo como um novo ator antropológico, e verossimilmente sociopolitico,
dentro da multiplicidade de comunidades e povos — no sentido lato e correto, isto é, plural, da
expressão — que constituem o conjunto do impropriamente denominado “povo brasileiro”. A ideologia
da “mestiçagem”, eufemismo hipócrita para o projeto secular de branqueamento da Nação, vem-se
dissolvendo a olhos vistos, à espera de uma reconstituição real do caráter diverso e “majoritariamente
minoritário” das classes dominadas do país.
V
2. Minoria e maioria não se opõe de uma maneira apenas quantitativa. Maioria implica uma
constante, algo como um metro-padrão que lhe serve de instrumento avaliador.
“Suponhamos” (dizem D & G; mas a suposição é uma constatação) que a constante ou padrão
ocidental seja algo como “Homem, branco, macho, adulto, urbanita, heterossexual, falante de
uma língua europeia ‘de cultura’” — podemos acrescentar, no caso brasileiro: católico
nominal, de classe média ou alta, morador do Sul ou do Sudeste, de formação superior, com
uma determinada pauta de consumo, e outras determinações facilmente enumeráveis. Como
observam ironicamente Deleuze & Guattari, este “Homem, branco etc.” é efetivamente a
Maioria, mas ele é menos numeroso que os mosquitos, as mulheres, os negros, os
camponeses, os homossexuais e assim por diante. Ele aparece ao mesmo tempo como
constante e como uma variável de onde se extrai a constante. A maioria supõe um estado de
poder e de dominação, e não o inverso; ela supõe o metro-padrão e não o inverso. Mas por
outro lado, a maioria, na medida em que é analiticamente compreendida pelo metro-padrão,
nunca é alguém, ela é sempre Ninguém, “ao passo que a minoria é o devir [a variação,
diferente de uma variável] de todo mundo”, sua trajetória potencial, na medida em que todo
mundo desvia de um modo ou outro do modelo-padrão. Por isso os autores distinguem entre o
majoritário como sistema homogêneo e constante, as minorias como sub-sistemas variáveis
(incluídas e dominadas pelo sistema majoritário), e o minoritário como devir ou trajetória
potencial, como variação contínua, figura universal da consciência minoritária. “É a variação
contínua que constitui o devir minoritário de todo mundo, por oposição ao Fato majoritário de
Ninguém”. E como sabemos, nós brasileiros, somos governados por Ninguém — mesmo os
governantes são governados pelo metro-padrão da Maioria. “O devir minoritário como figura
universal da consciência se chama autonomia”.
3. Neste sentido conceitual, cuja complexidade não temos espaço para desenvolver aqui, as
minorias étnicas indígenas não são simplesmente subconjuntos ou subsistemas socioculturais
“incluídos” na Maioria, cuja figura política por excelência é o Estado-nação soberano, mas
coletividades em processo incessante de minoração, de variação contínua, processo
propriamente intolerável pela máquina administrativa da Maioria (“quem é índio, afinal?”;
“mas esses caras não são índios”; “agora todo mundo quer ser índio na Amazônia” etc.). Por
isso os processos de “etnogênese”, de reafirmação ou reemergência étnica que marcam a
história contemporânea se mostram tão ameaçadores para os poderes constituídos e os
interesses que eles representam; por isso também os processos de resistência (que deveríamos
escrever “rexistência”) indígena contra as forças etnocidas são afirmações da recusa em se
deixar capturar pelos mecanismos de representação, delegação, “consenso informado”,
indenização, planos emergenciais, programas de mitigação de impacto, conversão religiosa,
inserção no mercado de trabalho, capacitação profissional, benefícios sociais, e outras tantas
formas de sabotagem da autonomia como horizonte móvel da ação política indígena. O
etnocídio, neste sentido, é mais que um ato, ou série encadeada de atos específicos, limitados
no tempo e no espaço, contra as minorias étnicas indígenas — é a essência mesma da relação,
de 1500 até os dias de hoje, entre a forma-Estado (o Estado colonial, imperial e republicano) e
a forma-ethnos (os povos indígenas) no Brasil.
VI
3. O Estatuto do Índio tinha como eixo uma subcategorização dos “silvícolas” em “isolados”,
em “contato intermitente”, “contato permanente” e “integrados”. Ela deixava em branco seu
último e verdadeiro desiderato, a subcategoria final — o índio “assimilado”, o índio extinto
como índio e virado “brasileiro”: caboclo, ribeirinho, seringueiro, camponês. Em suma, o índio
virado pobre. A categorização do Estatuto, herdeira de séculos de colonialismo e de décadas
de positivismo evolucionista, supunha um processo evolutivo, no duplo sentido de trajetória
unilinear e irreversível, por um lado, e de melhoramento sócio-moral incontestável, por outro
lado. O objetivo apenas aparentemente paradoxal das políticas de Estado era o de proteger os
índios e ao mesmo tempo desindianizá-los progressivamente, seja de modo proativo, seja
apenas “assistindo-os” paternalmente em sua desindianização espontânea, a qual seria como
um efeito natural de seu contato com uma civilização superior.
4. A partir de 1975, o Ministro do Interior do governo Geisel, Rangel Reis, iniciou a elaboração
de um projeto que criaria a figura da “emancipação dos índios”, como forma de dar uma
9
Compare-se a ética “morrer se preciso for, matar, nunca” do indigenismo nacional-positivista de
Rondon ao estado em que esse “indigenismo” foi encontrado pelo Procurador Jader de Figueiredo
Correia (o célebre e terrível, e sumido por décadas, ‘Relatório Figueiredo”), um dos elementos que levou
à extinção do SPI e à criação da FUNAI em 1967, em plena ditadura empresarial-militar.
solução final ao problema do desrespeito ao estabelecido no Estatuto do Índio de 1973, a
saber, que as terras indígenas deveriam ser demarcadas no prazo de cinco anos. O “projeto de
emancipação” previa a extinção da condição de indígena (tutelado pela União e com direito
ao usufruto exclusivo das terras que ocupavam tradicionalmente) para aquelas comunidades
que já se encontrariam “integradas”. Rangel Reis exprimia sem rebuços a opinião de que a
politica indigenista do governo deveria se pautar pela diretriz da “integração rápida” dos
indígenas, e sua consequente emancipação.10 O objetivo evidente era a liberação das terras da
União ocupadas pelos índios para que pudessem ser incorporadas ao mercado (lati)fundiário
capitalista. Estávamos então ainda nos primeiros anos do processo de ocupação induzida
(subsidiada e coordenada pelos poderes públicos) e de devastação acelerada da Amazônia,
processo ao qual o presente governo veio dar um impulso tão gigantesco quanto inesperado,
considerando-se as supostas diferenças político-ideológicas entre a ditadura empresarial-militar
e nosso atual governo “democrático e popular”, generosamente sustentado, como é de
conhecimento geral, pelas mesmas forças econômicas dos anos de chumbo.
6. Vemos hoje que as ações anti-indígenas não precisam ser, e talvez seja melhor mesmo que
não sejam, consagradas tão desavergonhadamente em instrumentos legais. Mesmo a ofensiva
legislativa atual contra os direitos indígenas (PEC 215 etc.) é menos explicitamente etnocida,
ainda que os efeitos visados não se distingam em muito dos do projeto Rangel Reis. Mas o fato
é que o Projeto de Emancipação da ditadura deu espetacularmente com os burros n’água,
produzindo um resultado exatamente inverso ao almejado. Pois ele foi o estopim que
desencadeou uma reação pró-indígena, e mais importante, uma reação indígena, cuja
atividade política firme e concertada não só influenciou decisivamente o conteúdo do capítulo
“Dos Índios” da CF de 1988, como transformou os povos indígenas, e seus porta-vozes mais
10
“Vamos procurar cumprir as metas fixadas pelo presidente Geisel, para que através de um trabalho
concentrado entre vários ministérios, daqui a dez anos possamos reduzir para 20 mil os 220 mil índios
existentes no Brasil e daqui a 30 anos eles estarem devidamente integrados na sociedade
nacional” (“Histórico da Emancipação”, in Cadernos da Comissão Pró-Índio nº1, 1979).
11
Cadernos da Comissão Pró-Índio, loc. cit.
em evidência, em atores políticos — para surpresa e indignação dos donos do poder — de
grande visibilidade na cena nacional e internacional. Resumamos em poucas (se possível)
palavras como isso se deu. (Retomo na seção seguinte, com algumas modificações, partes da
entrevista que concedi em 2005 ao Instituto Socioambiental, sob o título provocativo de “No
Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é”.)12
VII
2. Foi em reação a esse projeto de desindianização jurídica que apareceram as Comissões Pró-
Índio e as Anaís (Associação Nacional de Ação Indigenista); foi também nesse contexto que se
formaram ou consolidaram organizações como o Centro de Trabalho Indigenista (CTI) e o PIB ,
o “Projeto Povos Indígenas no Brasil” do CEDI (projeto que origem ao Instituto
Socioambiental). Tudo isso surgiu desse movimento, que se constituiu precisamente em torno
da questão de quem é índio – não para responder a essa questão, mas para responder contra
essa questão, pois ela não era uma questão, mas uma resposta, uma resposta que cabia
“questionar”, ou seja, recusar, deslocar e subverter. “Quem vai responder a essa resposta?”,
pergunta o personagem de um filme de Werner Herzog. Justamente: como responder à
resposta que o Estado tomava como inquestionável em sua questão, a saber: que “índio” era
um atributo determinável por inspeção e mencionável por ostensão, uma substância dotada de
propriedades características, algo que se podia dizer o que é, e quem preenche os requisitos
de tal qüididade – como responder a essa resposta? Pois, a se crer nela, tratar-se-ia apenas de
mandar chamar os peritos e pedir que eles indicassem quem era e quem não era índio.
3. Note-se que, naquela época, a questão de saber quem era índio não se cristalizava em torno
daquilo que se veio a chamar etnias emergentes, fenômeno bastante posterior: foram tais novas
etnicidades, ao contrário, que surgiram da questão, respondendo a ela com uma resposta
deslocada, isto é, inesperada. O problema da época, muito ao contrário de qualquer
“emergência”, era o problema das etnias submergentes, daqueles coletivos que estavam
seguindo, por força das circunstâncias de etnocídio generalizado, uma trajetória histórica de
12
http://pib.socioambiental.org/files/file/PIB_institucional/No_Brasil_todo_mundo_é_%C3%ADndio.pdf
afastamento de suas referências indígenas, e de quem, com esse pretexto, o governo queria se
livrar: “Esse pessoal não é mais índio, lavamos as mãos. Não temos nada a ver com isso.
Liberem-se as terras deles para o agronegócio e o desenvolvimento nacional; deixe-se eles
negociarem sua força de trabalho no mercado”.
4. Nosso objetivo político e teórico, como antropólogos, era estabelecer definitivamente que
índio não é uma questão de cocar de pena, urucum e arco-e-flecha, algo de aparente e
evidente nesse sentido estereotipificante, mas sim uma questão de “estado de espírito”. Um
modo de ser e não um modo de aparecer. Na verdade, algo mais (ou menos) que um modo de
ser: a condição indígena designava para nós um certo modo de devir (ver seção V, supra), algo
essencialmente “invisível” mas nem por isso menos eficaz: um movimento incessante de
diferenciação, não um estado massivo de “diferença” anteriorizada e estabilizada, isto é, uma
“identidade”. A nossa luta, portanto, era conceitual : nosso problema era fazer com que o
“ainda” do juízo de senso comum: “esse pessoal ainda é índio” (ou “não é mais índio”) não
significasse um estado transitório ou uma etapa a ser vencida. A idéia que defendíamos é a de
que os índios “ainda” não tinham sido vencidos, nem jamais o seriam. Eles jamais acabar(i)am
de ser índios, “ainda que”... Ou justamente porquê. Em suma, a idéia era que “índio” não
podia ser visto como uma etapa na marcha ascensional até o invejável estado de “branco” ou
“civilizado”.
5. Mas a filosofia da legislação brasileira era justamente essa: todos os índios “ainda” eram
índios, no sentido de que um dia iriam, porque deviam, deixar de sê-lo. Mesmo os que
estavam nus no mato, com seus proverbiais cocares de plumas, seus colares de contas, seus
arcos, flechas, bordunas e zarabatanas, os índios com “contato intermitente” ou os “isolados” –
mesmo esses ainda eram índios. Apenas ainda; ou seja, ainda, apenas, porque ainda não eram
não-índios. O objetivo da política indigenista de Estado era gerenciar (e, como vimos, acelerar)
um movimento visto como inexorável (e desejável): o célebre “processo histórico”, artigo de fé
comum aos mais variados credos modernizadores, do positivismo ao marxismo. Tudo o que se
“podia fazer” era garantir — isso para os mais bem-intencionados — que o “processo” não
fosse demasiado brutal. Mas, de uma forma ou de outra, entendia-se que a almejada omelete
nacional só poderia ser feita, bem, sabe-se como: quebrando as entidades indígenas,
dissolvendo as diferenças étnico-culturais, subjugando politicamente os povos indígenas que
ainda mantinham sua autonomia. Etnocídio, um crime piedoso.
7. Até aquele momento, muitos coletivos indígenas sentiam vergonha de sê-lo, e o governo
tinha todo interesse em aproveitar essa vergonha inculcada sistemicamente, tirando as
conseqüências jurídico-políticas do eclipsamento histórico da face indígena de várias
comunidades caboclas, sertanejas, ribeirinhas, caiçaras, caipiras do país. Nos velhos tempos
da velha esquerda nacional-popular, os especialistas no “processo histórico” martelavam-nos
os ouvidos com o dogma de que a “condição camponesa” (com opção de “proletarização”)
era o devir histórico inexorável e portanto a verdade das sociedades indígenas, e que a
descrição dessas sociedades como entidades socioculturais auto-referidas — como minorias
étnicas indígenas, entenda-se — supunha um “modelo naturalizado” e “a-histórico” da
dinâmica histórica do Brasil. Mas eis que, pouco a pouco, os índios começaram a reivindicar e
terminaram por obter o reconhecimento constitucional de um estatuto diferenciado
permanente dentro da chamada “comunhão nacional”; eis que eles passaram a implementar
ambiciosos projetos de retradicionalização marcados por um autonomismo “culturalista” que,
por instrumentalista e etnicizante, não é menos primordialista nem menos naturalizante; eis,
por fim, que algumas comunidades rurais situadas nas áreas mais arquetipicamente
“camponesas” do país reassumiram sua condição indígena, em um processo de transfiguração
étnica que é o exato inverso daquele anunciado, nos idos de 1970, por Darcy Ribeiro no
célebre Os índios e a civilização, em profecia acreditada, com um retoque ou outro, pela
maioria dos antropólogos.
8. Com a Constituição de 1988, o jogo virou completamente. De fato, houve uma inversão de
180 graus em relação ao projeto de emancipação. O propósito explícito desse projeto era
emancipar indivíduos, mas seu verdadeiro objetivo, como se sabe, era o de “liberar”
comunidades inteiras. Com a Constituição, consagrou-se o princípio de que as comunidades
indígenas constituem-se em sujeitos coletivos de direitos coletivos. O “índio” deu lugar à
“comunidade” (um dia vamos chegar ao “povo” — quem sabe), e assim o individual cedeu o
passo ao relacional e ao transindividual, o que foi, desnecessário enfatizar, um passo
gigantesco, mesmo que esse transindividual tenha precisado assumir a máscara do supra-
individual para poder figurar na metafísica constitucional, a máscara da Comunidade como
Super-Indivíduo. Mas de qualquer modo o individual não podia deixar de ceder ao relacional,
uma vez que a referência indígena não é um atributo individual, mas um movimento coletivo,
e que a “identidade indígena” não é “relacional” apenas “em contraste” com identidades não-
indígenas, mas relacional (logo, não é exatamente uma “identidade”), antes de mais nada,
porque constitui coletivos transindividuais intrarreferenciados e intradiferenciados. Há
indivíduos indígenas porque eles são membros de comunidades indígenas, e não o inverso.
9. Foi a partir desse momento que se acelerou a “emergência” de comunidades indígenas que
estavam submersas por várias razões: porque tinham sido ensinadas a não dizer mais que eram
indígenas, ou ensinadas a dizer que não eram mais indígenas; porque tinham sido colocadas
em um liquidificador político-religioso, um moedor cultural que misturara etnias, línguas,
povos, regiões e religiões, para produzir uma massa homogênea capaz de servir de
“população”, isto é, de sujeito (no sentido de súdito) do Estado. Como se sabe, as antigas
missões que estão na origem de tantas cidades, vilas, vilarejos e arraiais do interior do Brasil
foram os lugares privilegiados dessa fabricação do componente indígena do “povo brasileiro”,
ao sintetizar os célebres índios genéricos, os índios de aldeamento, catecúmenos do
sacramento estatal da transubstanciação étnica: a comunhão nacional... A Constituição de
1988 interrompeu juridicamente (ideologicamente) o projeto multissecular de desindianização,
ao reconhecer que ele não se tinha completado, e ao sancionar o direito permanente à
condição indígena. E foi assim que as comunidades em processo de distanciamento da
referência indígena começaram a perceber que voltar a “ser” índio — voltar a virar índio,
retomar o processo incessante de virar índio — podia ser interessante. Converter, reverter,
perverter ou subverter o dispositivo de sujeição armado desde a Conquista de modo a torná-lo
dispositivo de subjetivação; deixar de sofrer a própria indianidade e passar a gozá-la. Uma
gigantesca ab-reação coletiva, para usarmos velhos termos psicanalíticos. O retorno do
recalcado nacional.
IX
1. O capítulo “Dos Índios” da Constituição Federal de 1988 define com clareza os direitos dos
índios, mais particularmente os direitos coletivos das comunidades indígenas; como já
observamos, essa definição permite caracterizar como etnocídio qualquer iniciativa ou ação,
de Governo ou de particulares, que viole tais direitos. Entretanto, e por motivos certamente
deliberados, a Constituição não define quem é o sujeito desses direitos, ou por outras palavras
quem é índio no Brasil, e o que é uma comunidade indígena.
5.1. “Índio” é qualquer membro de uma comunidade indígena, reconhecido por ela
como tal.
No sentido estabelecido pelo filósofo John Austin em seu célebre livro dado à luz em 1962, How to
13
5. O outro aspecto definicional (5.2.2/b) é a orientação positiva e ativa dos membros do grupo
face a discursos e práticas comunitários derivados do fundo cultural ameríndio, e concebidos
como patrimônio coletivo relevante. Se tomarmos o ponto pela outra ponta, isso quer dizer:
ninguém é obrigado a ser índio. Os membros de uma comunidade podem decidir: “nós talvez
sejamos índios, mas não queremos ser; de qualquer maneira, estamos virando brancos.” A
noção de “virar branco”, como se sabe, está presente em vários mundos indígenas. Ela não
quer dizer necessariamente o que nós achamos que quer dizer; ao contrário, o que ela quer
dizer é justamente um dos problemas mais complexos com que se defrontam os antropólogos.
Alguns brancos lamentam que há vários brancos querendo virar índio e, ao mesmo tempo, há
outros brancos que lamentam que há vários índios querendo virar branco. Os Yanomami estão
querendo virar branco, e alguns caboclos lá no sertão do Cariri estão querendo virar índio. O
mundo está de cabeça para baixo. Os Yanomami deviam continuar a querer ser índios (alguém
precisa continuar a querer ser; alguns índios são necessários), e os caboclos deveriam
continuar a querer ser brancos, cada vez mais brancos — cidadania. Na verdade essas duas
coisas são muito mais complicadas do que se imagina. Aqueles (poucos) Yanomami que dizem
estar “virando branco”, não estão dizendo exatamente o que se imagina que estejam, e os
caboclos do semi-árido nordestino que “querem” virar índio (ou “passar para indígena”, como
se fala em várias comunidades ribeirinhas da Amazônia), têm suas próprias ideias sobre o que
isso significa. Cabe aos antropólogos discernir e diferenciar toda a complexidade que está por
trás de assertivas tão banais como “nós estamos virando branco.” Esse é um discurso comum,
como dissemos, em algumas comunidades indígenas: “nós estamos virando branco”, “os
índios estão acabando”. O que parece, entretanto, é que não se acaba nunca de virar branco;
e que os índios não acabam de acabar; é preciso continuar a ser índio para poder se continuar
a virar branco. E parece também que virar branco à moda dos índios não é exatamente a
mesma coisa que virar índio à moda dos brancos. Até que se vire. Mas aí, como se sabe,
aquilo que se virou vira outra coisa.
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“Indígena — ETIM lat. indigena,æ, ‘natural do lugar em que vive, gerado dentro da terra que lhe é
própria...” (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, s.v. Eu sublinho) Essa ’propriedade’, permito-me
interpretar, é um atributo imanente ao sujeito, não uma relação extrínseca com um objeto apropriável.
Não são poucos os povos indígenas do mundo a afirmarem que a terra não lhes pertence, pois são eles
que pertencem à terra.
6. Continuando o comentário do item 5.2.2./b: “deve” haver uma orientação positiva e ativa
do grupo em relação aos produtos característicos da vida comunitária. Rituais, mitos,
configurações relacionais mais ou menos reificadas, a própria comunidade enquanto ponto de
orientação, pólo de territorialização, e assim por diante. Em vista dos processos de
esmigalhamento antropológico associados à situação já evocada (reduções, descimentos,
escravização, catequização etc.), tais discursos e práticas não são aqueles específicos da “área
cultural”, no sentido histórico-etnológico, onde hoje se acha a comunidade. Ou seja, certos
índios podem ter uma orientação positiva e ativa em relação ao fundo cultural ameríndio, mas
um fundo que remete a uma outra região “original”, simplesmente por que a deles foi
destroçada. Então, se os caboclos do Nordeste importam um xamã Wajãpi para ensinar o ritual
do toré, hoje um signo diacrítico da indianidade nordestina, qual o problema? Os antigos
romanos importavam professores de grego para ensinar filosofia grega para eles, e ninguém
dizia com isso que os romanos estavam deixando de ser romanos. Ou dizia (alguns romanos
de fato diziam), mas nem por isso eles deixaram de ser romanos.
Conclusão
1. Neste momento, nesta república, neste governo, assistimos a uma concertada maquinação
política que tem como alvo as áreas de preservação ambiental, as comunidades quilombolas,
as reservas extrativistas e em especial os territórios indígenas. Seu objetivo é consumar a
‘liberação’ (a desproteção jurídica) do máximo possível de terras públicas ou, mais
geralmente, de todos aqueles espaços sob regimes tradicionais ou populares de
territorialização que se mantêm fora do circuito imediato do mercado capitalista e da lógica da
propriedade privada, de modo a tornar ‘produtivas’ essas terras, isto é, lucrativas para seus
pretendentes, os grandes empresários do agronegócio, da mineração e da especulação
fundiária, vários deles aboletados nas poltronas do Congresso, muitos apenas pagando seus
paus-mandados para ali ‘operarem’. Na verdade, são os Três Poderes da nossa república
federativa que vêm costurando uma ofensiva criminosa contra os direitos indígenas,15
conquistados a duras penas ao longo da década entre 1978, ano do ‘Projeto de emancipação’
da ditadura, e 1988, ano da ‘Constituição cidadã’ que reconheceu os direitos originários dos
povos indígenas sobre suas terras, consagrando e perenizando o instituto fundamental do
indigenato. Esse acolhimento dos índios como uma categoria sociocultural diferenciada de
pleno e permanente direito dentro da nação suscitou uma feroz determinação retaliativa por
parte do sistema do latifúndio, que hoje ocupa vários ministérios, controla o Congresso e
possui uma legião de serviçais no Judiciário. Chovem, de todas as instâncias e níveis dos
poderes constituídos, tentativas de desfigurar a Constituição que os constituiu, por meio de
projetos legislativos, portarias executivas e decisões tribunalícias que convergem no propósito
de extinguir o espírito dos artigos da Lei Maior que garantem os direitos indígenas.
2. O presente governo, e refiro-me aqui ao Executivo, desde sua comandante até seus
ordenanças ministeriais, vem-se mostrando o de pior desempenho, desde a nossa tímida
redemocratização, no tocante ao respeito a esses direitos, agravando a já péssima
administração anterior sob a mesma gerência: procedimentos de demarcação e homologação
de terras indígenas praticamente nulos; políticas de saúde mais que omissas, desastrosas para
as comunidades indígenas; uma indiferença quase indistinguível da cumplicidade diante do
genocídio praticado continuadamente e às escâncaras sobre os Guarani-Kaiowá, ou
periodicamente e ‘por descuido’ sobre os Yanomami e outros povos nativos, bem como diante
do assassinato metódico de lideranças indígenas e ambientalistas pelo país afora — quesito no
qual o Brasil é, como se sabe, campeão mundial.
3. Veja-se por fim, mas não por menos lamentável, a jóia da coroa da suprema mandatária da
república, a saber, a construção a toque de caixa, por mega-empreiteiras de capital privado a
serviço do poder público e/ou vice-versa, ao arrepio insolente da legislação e às custas de
‘financiamentos’ de dimensões obscenas, feitos com o chamado dinheiro do povo, de dezenas
de hidrelétricas na bacia amazônica, que trarão gravíssimos danos à vida de centenas de povos
indígenas e de milhares de comunidades tradicionais16 — para não falarmos nas dezenas de
15.
Ver a entrevista de Henyo Barreto a Clarissa Presotti, “Três Poderes contra os direitos indígenas”, in
http://www.portalambiental.org.br/pa/noticias?id=134.
Chamam-se “populações tradicionais” (”ribeirinhas”, “caboclas”), àquelas comunidades camponesas
16.
e extrativistas da bacia amazônica cuja consciência da relação com os povos indígenas que as
precederam parece ter sido, em alguns casos, abolida. A cultura trazida pelos imigrantes ‘brancos’ (de
origem principalmente nordestina) que se fundiram com o ‘substrato’ autóctone recalcou toda memória
milhares de outras espécies de habitantes da floresta, que vivem nela, dela e com ela; que são,
enfim, a floresta ela própria, o macrobioma ou megarrizoma autotrófico que cobre um terço
da América do Sul, e cuja estrutura lógico-metafísica foi claramente exposta no livro
admirável, recém-publicado, de Davi Kopenawa e Bruce Albert, A queda do céu. Mas de que
vale tudo isso, perante as leis inexoráveis da Economia Mundial e o objetivo supremo do
Progresso da Pátria? A entropia crescente se transfigura dialeticamente em antropia triunfante.
E ainda se diz que são os índios que crêem em coisas impossíveis.
5. Eliane Brum, notável jornalista e escritora, uma das poucas vozes na imprensa brasileira que
se conseguiu fazer ouvir através da cortina de silêncio erguida por esta mesma imprensa,
graças à sua coragem, talento e pertinácia, observava, algumas semanas atrás:
Nada é mais autoritário do que dizer ao outro que ele não é o que é. Essa também é
parte da ofensiva de aniquilação, ao invocar a falaciosa questão do “índio verdadeiro”
e do “índio falso”, como se existisse uma espécie de “certificado de autenticidade”.
Essa estratégia é ainda mais vil porque pretende convencer o país de que os povos
indígenas nem mesmo teriam o direito de reivindicar pertencer à terra que reivindicam,
porque sequer pertenceriam a si mesmos. Na lógica do explorador, o ideal seria
transformar todos em pobres, moradores das periferias das cidades, dependentes de
programas de governo. Nesse lugar, geográfico e simbólico, nenhum privilégio seria
nativa e se orientou mimeticamente para o Brasil oficial. Na maioria dos casos, porém, a relação apenas
entrou em situação de latência, exprimindo-se ‘vestigialmente’ por automatismos práticos e
idiomatismos simbólicos. Essa aparente perda de consciência, assim, tem-se mostrando cada vez mais
frequentemente como sendo não tanto uma ruptura definitiva mas antes um longo desmaio — uma
espécie de coma étnico do qual a Amazônia ‘cabocla’ começa a despertar, como atesta o fato de que,
hoje, apenas no Médio Solimões, cerca de duzentas comunidades tradicionais reivindicam sua
“passagem para indígena”, isto é, sua condição de titulares dos direitos reconhecidos no artigo 231 da
Constituição Federal (Deborah Lima 2015 [com.pess.], citando dados de Rafael Barbi para os rios
Copacá, Tefé, Uarini, Jutaí, Caiambé e Mineruá; as Reservas de Mamirauá e Amanã respondem por 50
comunidades deste total). O fenômeno é geral no ‘Brasil profundo’, e parece ainda mais paradoxal
quando se constata que ele vai se tornando mais intenso à medida que este Brasil profundo ‘vem à
superficie’, isto é, se moderniza, inserindo-se nas redes por onde circulam os fluxos semiótico-materiais
que atravessam o planeta, do dinheiro à internet.
colocado em risco. E não haveria nada entre os grandes interesses sem nenhuma
grandeza e o território de cobiça.