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Como é duro trabalhar...

16.03.2016 Revista da Cultura, Mauricio Duarte


O tripalium era um instrumento de tortura usado na antiguidade. Antecessor da crucificação romana, era
uma técnica de sofrimento que consistia em três paus fincados no chão, aos quais se prendia o condenado
e lá ele ficava até morrer. Frequentemente, ele era empalado em um deles. Desse instrumento bárbaro
destinado ao suplício do ser humano, origina-se a palavra trabalho, desdobramento do latim tripalium.
Isso explica em parte os motivos pelos quais até hoje associamos a atividade de trabalhar a algo penoso e
até mesmo com a característica de um castigo.

O conceito de trabalho foi se transformando através do tempo e se adequando ao tipo de sociedade. Na


antiguidade, por exemplo, nas sociedades grega e romana, os escravos garantiam a produção necessária
para suprir as necessidades da população. Até o fim da Idade Média, o trabalho não orientava as relações
sociais, que eram definidas principalmente pela hereditariedade e pela religião. A partir do mercantilismo,
e do consequente capitalismo, ganhando corpo na revolução industrial, o trabalho passou a ser uma
atividade que dignifica o indivíduo, pois sem ele não há produção de riqueza. Porém, a atividade criativa
e satisfatória ficou em segundo plano, e isso acentua a impressão de sofrimento.

“A sensação de que o trabalho é algo penoso advém do fato de que numa sociedade capitalista ele é
majoritariamente alienado, isto é, heterônomo, subalterno e compulsório. Se outros definem
meticulosamente o que eu devo fazer, eu não posso ser livre no trabalho e, consequentemente, não
conseguirei realizar minhas potencialidades criativas, meus sonhos e projetos, por meio de meu próprio
trabalho. Além disso, devido à anarquia econômica produzida pela concorrência entre os diferentes
capitalistas, as condições de trabalho, assim como os salários da maioria dos trabalhadores, tendem à
deterioração”, analisa Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia da USP, autor de A política
do precariado – Do populismo à hegemonia lulista.

Para Daniel Mercure, sociólogo especialista no tema desta reportagem, professor da Universidade Laval,
no Canadá, e presidente de honra da Associação Internacional dos Sociólogos de Língua Francesa, o
trabalho é cada vez menos um local de interação social, porque o ritmo e a intensidade não o permitem
nas sociedades de produção. Segundo ele, o trabalho tornou-se um lugar de sobrecarga mental. “Há
também a sensação de que o trabalho invade muito nossas vidas. Há mais e mais trabalhadores que levam
seus problemas para casa. Muitos sentem que precisam sacrificar parte de sua privacidade no local de
trabalho”, afirma.

De certa maneira, o trabalho sempre foi um movimento pendular entre a criação e o esforço. Porém, o
segundo sem o primeiro é o que torna a tarefa punitiva. “Se formos pensar na Grécia antiga, embora fosse
sustentada pelo trabalho escravo, os cidadãos eram livres. No Renascimento, Michelangelo sofria, mas,
quando terminava, a obra de arte era primorosa. O trabalho, porém, sempre foi momento de sacrifício. O
que se passa no mundo atual é que o século 20 celebrizou-se como sendo o século do trabalho. Por isso a
indústria automobilística foi dominante. O mundo da mercadoria se sobrepõe ao mundo da não
mercadoria. Isso gera uma sociedade que forma o indivíduo para o trabalho”, diz o sociólogo Ricardo
Antunes, autor dos livros Adeus ao trabalho? e Os sentidos do trabalho.

Esse trabalhador infeliz e automatizado foi retratado por Charlie Chaplin no célebre filme Tempos
modernos, de 1936. Nele, seu clássico personagem vagabundo tenta se adaptar e, em última instância,
sobreviver no mundo industrializado. “O trabalho é vivido como atividade desagradável, um fardo a
carregar, um verdadeiro castigo quando não permite a realização das potencialidades humanas, isto é,
inteligência, criatividade, iniciativa, espírito crítico, tornando-se uma atividade alienada e alienante, dadas
a insignificância da função realizada e a incompreensão do seu significado”, exemplifica Noêmia
Lazzareschi, professora de sociologia da PUC-SP e autora do livro Sociologia do trabalho.

Mas estaria, então, o trabalho esgotado em nosso modelo de sociedade? “Infelizmente, vivemos em uma
sociedade que se especializou em impor um tipo de trabalho alienado e degradante à maioria da população.
A cultura e o conhecimento do produtor, assim como as relações sociais necessárias às atividades laborais,
como a família e os companheiros de ofício, tendem a se amesquinhar onde predomina o trabalho alienado.
Daí a ampliação do sofrimento que verificamos hoje em dia, tanto por meio do aumento das depressões,
quanto por meio da elevação do número de acidentes e adoecimentos decorrentes do trabalho”, opina
Braga.

Para Antunes, somente uma profunda mudança em nossa sociedade seria capaz de retirar do trabalho essa
aura de fardo. Especialmente a questão do desemprego. “Se centenas de milhões trabalham muito e outra
centena de milhão não trabalham nada, é só reduzir a jornada de trabalho dos que trabalham muito e
incorporar os que não trabalham. É uma coisa elementar. Mas isso fere a lógica do capital. Os indivíduos
mais ricos do mundo não estão preocupados com o trabalho, com os trabalhadores. As grandes
corporações querem crescer, elas se matam para isso. E essa conta cai no trabalhador. O capital, que
estrutura o trabalho, desestrutura a humanidade. E o trabalho que estrutura a humanidade não é o que os
capitais querem”, diz.

Na visão de Mercure, entretanto, o trabalho ainda é um motor civilizatório e tornou-se uma preocupação
central para a população mundial. De acordo com ele, a questão do emprego tem precedência sobre o
trabalho, que é mal dividido – uns trabalham muito, enquanto outros se ocupam pouco ou nada (nesse
ponto, está de acordo com Antunes). “Temos que perguntar qual será o papel futuro do trabalho na
redistribuição de serviços e riqueza. Nós temos escolhas a fazer, que devem ser feitas no seio da
população, e não por aspectos financeiros”, afirma.

Jamais poderemos deixar de trabalhar, pois da ocupação material e não material depende a satisfação das
necessidades humanas, conforme atesta Noêmia. “É uma atividade exclusivamente humana por ser
consciente, deliberada, proposital e gerar resultados. Só é possível ser realizada porque somos dotados de
inteligência, iniciativa, espírito crítico e criatividade, que se desenvolvem ao longo de seu processo e, por
isso, o trabalho deve permitir a realização plena da natureza humana”, finaliza.

ECONOMIA COMPARTILHADA
Um conceito que vem ganhando força no universo do trabalho é a economia compartilhada. Dado o limite
tanto da capacidade humana quanto dos recursos naturais, é o momento de dividir bens e serviços, e até
mesmo de otimizar espaços de trabalho. Daí nasceu o coworking, locais que podem ser compartilhados
por empresas e trabalhadores autônomos. Para os especialistas, é uma tendência e um caminho a seguir,
mas longe de resolver a questão do modo como lidamos com o trabalho e o emprego, principalmente das
grandes massas. “É legal, é legítimo, mas é uma aspirina para quem tem um câncer na cabeça”, avalia
Antunes.

Isabel Imbassahy, que trabalha para a Mofilm, utiliza esse método de trabalho, já que a sede da empresa
de vídeos fica na Inglaterra e ela, no Brasil. “Não sei se me adaptaria mais em um sistema normal de
trabalho, ter que prestar contas para quem está do meu lado. Embora eu tenha que ter disciplina e rotina,
é mais descontraído”, conta.

Antunes lembra, no entanto, que esse tipo de trabalho está disponível basicamente para quem realiza
atividades relacionadas à criação e já possui uma condição diferenciada de formação. Logo, não pode ser
vista como alternativa para um trabalhador de fábrica, por exemplo.

Mercure reforça que é uma opção interessante, mas somente para o trabalho independente. Segundo ele,
a tecnologia da informação está redefinindo os princípios de colaboração no trabalho, que não passa por
uma hierarquia vertical. “Isso soa muito positivo, uma vez que esta forma de trabalho reavalia o caráter
social do mesmo e mostra que pode levar à participação na tomada de decisões e formas de organização
do trabalho”, diz. Assim como Antunes, porém, ele lembra que não se pode perder de vista a questão da
proteção social do trabalhador, ou seja, de seus direitos como empregado.

“Acho que todas essas formas de produção têm o seu lugar. Elas exigem adaptações nas economias
tradicionais. Na minha mente, o importante é manter uma diversidade nas formas de participação na
economia, de modo que elas se enriqueçam mutuamente. O que também é importante não perder de vista
é que o financiamento está a serviço do trabalho, e não o inverso”, completa.

Disponível em: http://www.boitempoeditorial.com.br/v3/Noticias/visualizar/4425, Acesso em: 28.08.2017

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