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HEEMENTOS DA NACIONALIDADE PORTUGUES 3.—As populagdes ibericas Os modernos estudos de antropologia esclarecendo o problema da classificagao das ragas, os da ethnologia comparando os costu- mes, os da linguistica restabelecendo pela toponymia a séde de de- terminados povos, os da archeologia classica coordenando as inseri- pedes lapidares, tém carreado para a reconstrucgao da historia inesperados subsidios, chegando-se a penetrar em épocas remotis- simas que nos nao legaram documentos voluntarios. 0s povos ibericos considerados como os primeiros emigrantes asiaticos que occuparam a peninsula sao apontados nos geographos gregos e ro- manos t@0 vagamente, que ficaram por muito tempo uma raga mys- teriosa, de que se, duvidaria, se nao persistissem vestigios da sua lingua e individualismo nas *povoagdes bascas da Hespanha e da Franga pyrenaicas. Eram os bascos ou iberos um ramo dos povos aricos, que precedeu esta corrente de migragiéo para a Europa? Eram um ramo dos povos mongolvides, os quaes precederam todas as oulras ragas humanas no seu cosmopolitismo? Eram um ramo dos povos semitas, como se podera inferir pela facilidade com que foram assimilados pelos phenicios, lybio-phenicios, carthaginezes @ arabes? § este o primeiro problema a definir, porque sobre a sua complexidade se basearam innumeras theorias. Pelo que se pode inferir da linguagem euskariana, pertence ella ao grupo das linguas agglutinativas, estado caracteristico da linguagem nas racas amare 1- Jas; pela sua actividade industrial davam-se aos trabalhos da meta Jurgia, peculiar no mundo primitivo das tribus mongoloides ; pela 1.9 Axxo, 4 50 REVISTA DE ESTUDOS LIVRES sua religido, estavam n’esse estado de fetichismo, d’onde nunca sairam os mongoloides, ou turanianos como dizem alguns escri- ptores, 0 que se confirma pelo nome dos seus deuses, como Oke, Dovel, Ywma, e pela persistencia das formas do chtonismo nas superstigdes dos povos peninsulares. Eram os Iberos evidentemente de raca amarella, mas n’aquelle estado primario em que ainda se confundia com a raga drica; esta situagao especial nado tem sido notada pelos antropologistas, deixando por isso de explicarem um grande numero de factos. Bergmann estudando a raga japhetica, + mostra que ella se divide em tres grupos, 0 oriental, ou dos Arias (da India, Bactria, Media e Persia), 0 sub-occidental comprehendendo os Athurs, (tronco dos Assurs) os Haigans (tronco dos Armenios) e os /bers, tronco dos Luguses das Gallias e dos Iberos da Hespanha ; © grupo occidental, comprehende os Kamars (tronco dos Kimero- kelticos), os Javans (tronco dos Hellenos) e os Scythas, (tronco dos Getas, dos Germanos e Scandinavos). Por este quadro se explica na Asia o duplo caracter antropologico de lowro e@ trigueiro, e ethnico de pastoral e agricola; explica-se a relagdo dos gregos com os egy- Ppcios, e com os iberos da peninsula antes das conquistas carthagi- nezas, e a dos iberos com os gaulezes, com os celtas-cimerianos, e mais tarde com as hordas germanicas, de cabello ruivo. O berber da Africa, cuja dolichocephalia coincide com a dos bascos da Hespa- nha, apresenta tambem esse typo lowro, que os arias receberam do contacto com a raga amarella da alta Asia, Esta raga essencial- mente nomada foi das primeiras que se deslocou do seu habitat; Bergmann, estudando os Getas e os Germanos, mostra plenamen- te o seu parentesco com os Scythas, restabelecendo as relagdes ethnicas dos arias primitivos com a raga nomada da alta Asia; as migragdes aricas foram, por assim dizer, sobre as pégadas d’ella, como quem lhes abrira o caminho. Spencer explica a causa d’essas grandes migragdes pela climatologia: «Quando se langa os olhos sobre a carta dos climas do globo, vé-se uma superficie quasi con- tinua, a regido sem chuva, que se estende através do norte da. Africa, a Arabia, a Persia, o Thibet e a Mongolia; foi do interior ou das fronteiras d’esta regio que sairam todas as racas conquis- tadoras do mundo antigo. A raga tartara transpondo a cadeia mon- tanhosa, limite meridional d’estas regiio, povoou a China e os paizes que a separam da India, repellindo os aborigenes para as 1 Nome generico, que Rask deu a raga branca, substituido por Cuvier” ez de caucasica, as Schlegel e Bopp pelo de Indo-europeia, e por Ewald & eckel pelo de mediterranea. ELEMENTOS DA NACIONALIDADE PORTUGUEZA SL montanhas ; ella nao se limitou a dirigir para este lado as ondas de invasores que se destacavam d’ella successivamente, arremessou-as de tempos a tempos para o occidente. A raga drica espalhou-se pe- Ja India e abriu caminho através da Europa. A semitica tornou-se dominante no norte da Africa, e inflammada pelo fanatismo mussul- mano conquistou uma parte da Hespanha.» ' Estas tres racas par- tindo de pontos diferentes da regido sem chuva, encontram-se na peninsula em differentes 6pocas, trazidas pelo impulso que as attra- hia para regides relativamente humidas, como diz Spencer. As in- cursdes tartaras na Europa até 4 ultima invasao da Russia, foram o resto d’esta corrente que seguiram tambem os povos aricos. Reclus explica como pelas depressdes entre o Thian-Chan e.o Altai foi por onde os mogoes se arrojaram sobre a Asia menor e a Europa cen- tral; tambem pelas desembocaduras do planalto da Persia para as planicies da Tartaria e do mar CGaspio, precisamente onde se ligam os planaltos da Mongolia e da Persia, existe o desfiladeiro por onde irromperam as migragdes arianas. * Estes factos da geographia que illuminam a historia, mostram-nos como a idéa de Bergmann em quanto aos elementos mongoloides da alta Asia misturados com os arias se torna uma verdade imprescindivel. 0 Ibero, representa no Oceidente da Europa esta grande migracao asiatica, que precedeu a dos Arias; @ 0 seu recuamento para o extremo occidente, na Hespa- ha, Franga e Inglaterra, corresponde ao periodo mais vetusto e ao facto de ser repellido por novos invasores, como se deu com os chinezes no extremo Oriente. Se algum nome se pdéde dar a este estado dos povos mongoloides quando confundidos com os arias, 6 0 de Turanianos, cuja civilisagio tem caracteres poderosos, que constituem j4 um importante capitulo da historia da humanidade; os Arias ao constituirem-se em raga distincta, repelliram 0 contacto com os filhos de Turan, da mesma forma que os Semitas despreza- vam a raca vil de Kusch, sendo este elemento melanoide os proto- semitas, os fundadores da civilisagdo kuschita, sem a qual, segundo Renan e outros, nao se explica a origem da cultura semita. Assim as povoagoes ibericas da peninsula representam-nos uma civilisagio proto-historica, industrial e agricola, cujo centro foi a Aquitania, onde resistiram as correntes da invasao arica, e onde ssa civilisagio teve a sua renascenga, conspirando para o estabe- . lecimento d’esse facto téo admiravel da unidade da civilisagaéo oc- cidental, sem o qual ‘a’ historia da Grecia, Roma, Italia, Franga, 1” Sociologia, t. 1, p. 32, da trad. franceza. 2 Les Phenoménes terrestres, p. 46 6 47. 52 REVISTA DE ESTUDOS LIVRES. Hespanha, Portugal @ Inglaterra, verdadeiramente solidarias, fica inintelligivel, * « Antes de entrarmos na exposigaéo da segunda migragao asiatica, ou dos Celtas, importa accentuar pelos dados actuaes da antropolo- gia os elementos communs da populagao occidental, na Italia, na Franca, na Hespanha e na Inglaterra, para comprehendermos as formas similares da sua organisagao social, da aggregacao nacio- nal, e homegeneidade de civilisagao. A Italia, entre as suas diversas populagdes, destaca os seguin- tes grupos: 4.° 03 Osquos, (comprehendendo os Marsas, Sabinos, Samnitas, Lacanios, Campanios) pela sua designacao generica analogos aos Husk, da Hespanha e aos Awsci da Franca meridio- nal; e os Jllyrios ou Pelasgos, (Siculos, Liburnos, Venetes ou Hene- tes) correspondentes ao Ibero da Hespanha, e aos Siluros, da In- glaterra, os quaes, segundo Tacito, eram Iberos. f verdadeiramente notavel esta concordancia ethnica, que ainda com relagio 4 Franga se confirma com o Gelta louro, que os antropologistas destacam do Celta da historia. O segundo grupo ethnico pertence ji 4s migra- ges Aricas: 2.° Os Sicanos e Ligurios, que entram pelo desfila- deiro occidental dos Alpes, e os Ambrones ou Umbrios, que entram pelo Tyrol, fixam-se na Gallia cisalpina e descem ao meio-dia fixan- do-se na Umbria. Sao dois elementos celticos identicos aos da Franga, que os geographos distinguiam pelo nome Keltoi e Keltikoi, e os ethnologos em Celta nomada, Kimri ou Cimbro, @ os Gaels ou Welches, ramo das montanhas descendo do norte da Europa. Na peninsula hispanica apparece tambem este duplo elemento cel- tico, o maritimo ou Celta lygio, e o Gallaeco, similhante ao celta francez do Garonna ao Sena, e dos Alpes ao Altantico. Com rela- ¢ao a Inglaterra, vé-se tambem a mesma duplicidade nos celtas Caledonios e Bretéos. B um prospecto comparativo em que se esta- belece com clareza o quadro d’estas duas primeiras grandes migra- g0es asiaticas. O conflicto d’estas duas ragas provocou a primeira aggregagao social, Na Italia estabelecem-se confederagoes de trinta 1 No seu livro La Polilique del Histoire, t. 1. p. 81. escreve Ernest Char riére: «Nao vémos difficuldades para erér que primitivamente a raga hes- panhola @ italiana eram ideaticas e vinham juntar-se pelo lago natural da Aquitania ¢ pelo meio-dia da Gallia, como o indicam todas as relagdes actuaes. A analogia da raga iberica com esta antiga raga. autochtone, que apre- sontam todas as antiguidade da Italia, tio completamente obliterada na his- toria sob a triplice invasio dos Gaulezes, dos Etruscos ¢ dos Gregos, deve ter sido anterior mesmo dquella que se estabeleceu depois pela immigragio dos Sicanos, e dos Ligurios, e as denominagies ibericas da ftalia podem perten- cer a esta communhao natural que nds attribuimos 4s duas populagées. » si iii all ELEMENTOS DA NACIONALIDADE PORTUGUEZA 33 cidades; a forma de confederacao repete-se na Franca e na Hespa- nha; 6 um facto de uma extraordinaria importancia historica para explicar as duas formas de aggregacao social, o Municipio, que per- siste através de todas as revolugdes por que ‘tem passado % a Europa, e a Federagao, cujos restos ainda se manifestam nos paizes mais politicamente atrazados. Na Italia, pela fusio d’esses dois elemen- tos emigrantes, comeca uma unificacdo nacional, como se depre- hende do Osquo, fallado junto a Tarento, na Campania, no Latium até Roma. Os vencidos perdem facilmente a sua lingua, quando a do invasor tem mais condigdes de universalidade ; 6 assim que os Rhasenos, ramo latino, operam a incorporagao da Italia. Assim se estabeleceu com a occupacao a linguagem, que na época dos Ro- manos tao facilmente se propagou 4 Franca e Hespanha, o que se nao pdde explicar por uma simples occupagao militar de tao pou- os seculos, e por meros interesses de pressdo administrativa. Fique por tanto {ndicado este facto indispensavel para comprehendermos a incorporagao romana do Occidente, e em especial na nossa penin- sula, que deu tantos poetas e rhetoricos para Roma, quando ja lhe escasseavam os talentos. Na peninsula hispanica os Celtas tambem se fusionaram com os Iberos formando uma raga mixta dos Celti- beros, notavel pelas suas formas de agegregacao social, em federa- goes com que se defenderam contra as invasdes semitas. Um facto scientifico de alta importancia, por isso que 6 0 ver- dadeiro criterio para a ethnogenia das ragas deduzida das suas ci- vilisagdes historicas, 6 essa « contradiceao apparente que existe en- tre o facto linguistico e o facto antropologico; a linguistica pura e simples indicaria uma filiagdo que os antropologistas nao podem admittir.» 1 Este facto apresentado por Broca 6 exemplificado com os phenomenos ethnicos da Inglaterra, da Franca e da Hespanha, pela sua lucidez se comprehende por exemplo na Peninsula hispa- nica, como 6 que estes povos fallaram latim e dialectos romani- cos sem serem romanos, e como é que fallaram dialectos deixando Na toponymia uma grande parte do seu vocabulario, sem que os Celtas preponderassem aqui pelo sea numero. Broca procura a ra- zao d’este facto no determinismo antropologico, ou hereditarieda- de do typo physico, formulando este principio, ja anteriormente pre- visto por Miiller:; « Quando duas ragas vivem no mesmo solo é sé fusionam, o typo physico altera-se principalmente na proporcao da intensidade do cruzamento, depois a raga mestigada tende a regres- sar, na serie das geragdes, ao typo da raga mae como mais nume- rosa. 0 typo physico que resiste ao criamente com mais ou me- 1 Broca, Mem. d’ Anthropologie, tom. 1, p. 276. 54 REYISTA DE ESTUDOS LIVRES nos pureza 6 entado o d’aquella raga que predomina nwmericamen- te.» + Além da importancia do numero, que influe na regressdo ao typo physico, existe o gro de civilisagao, que influe na generalisa- gao da linguagem do povo mais avangado, que se torna o idioma nacional. Importa citar as proprias palavras de Paul Broca, pelo va- Jor da coordenagdo que introduzem em todas as questdes de ori- gens historicas e sociaes: «Por consequencia, quando dois povos se fusionam, nao ha nenhum parallelismo entre as condigdes que . fazem’ prevalecer o typo physico e as que fazem prevalecer o typo physico de uma ou outra raga. Ao cabo de um certo numero de geragdes, quando a fusdo se effectuou, a raga cruzada tende a aproximar-se cada vez mais do typo physico da raga a mais nume- Tosa, ao passo que algumas vezes a lingua da raga menos nume- rosa 6 que supplanta e substitue a da maioria. Assim, acontece muitas vezes, que a raga conquistada regressa completamente ou quasi completamente ao seu typo primitive, que ella absorve os seus conquistadores, e que ella n&o conserva nenhum vestigio do sangue d’elles, diluido pela serie de geragdes, continuando com- tudo a fallar-Ihes a lingua, porque a exlincgdo dos idiomas nacio- naes proseguiu a par e passo com a extinceao dos caracteres physi- cos das ragas estrangeiras».* Na ethnogenia dos povos peninsula- res, este facto antropologico é de uma immensa luz. Os Iberos occuparam a peninsula a que deram o nome, supplantando pelo seu numero e pela superioridade de cultura as populagdes autochtones € trogloditas, de que ainda se acham os yestigios craneanos. Po- rém, apésar da sua civilisagdo metallurgica, uma invasao de Celtas vinda das fiallias, pela sua mais elevada capacidade militar e cul- tura moral, como se observa pelo druidismo, facilmente se impoz aos habitantes do solo iberico, fusionando-se em uma povoagao cel- tiberica, em que a superioridade numerica ficava ao ibero, e a su- perioridade moral ao celta. 0 que se vé na historia 6 do mais alto interesse; os Celtas desapparecem, e tornam-se quasi uma ficgao, * mas os logares conservam através dos seculos nomes com radicaes celticos, alguns deuses, a ponto dos linguistas da peninsula se illu- direm querendo que & existencia dos Iberos seja um mytho, por falta de documentos linguisticos, e que os Celtas sejam a raca com realidade historica. As populagdes mauritanas e lybio-phenicias que entraram na peninsula hispanica, fizeram pelo seu cruzamento com 0s celtiberos regressar ao typo iberico, mas persistindo a cultura * Tae Be d'Anthropologie, t. 1, p- 276. id... = ionstiien i dr. Francisco Martins Sarmento. ELEMENTOS DA NACIONALIDADE PORTUGUEZA 38 eeltica, que coadjuvou de um modo excepcional a implantagaio da cultura é das instituigdes provinciaes romanas na peninsula. Os ro- manos dominaram na Hispania mas nao pelo seu numero; a supe- rioridade administrativa e¢ a sua forte incorporagao em nada in- fluiu no typo physico, ao passo que radicou a instituigéo municipal em harmonia com o antigo espirito separatista ou cantonal, e sub- stituiu ao celta o latim, coadjuvado pelas analogias primordiaes de um fundo Arico commum. Quando as ragas germanicas inva- diram .o Imperio, e os visigodos occuparam a peninsula hispa- nica, ellas estavam ainda em um grande atrazo ou barbarie; en- tre os visigodos vinham tribus scythicas do norte, como os ala- . Ros, que favoreciam a persistencia do typo. physico do ibero, e por isso a impetuosidade germanica na sua conquista submetteu-se 4 cultura romana, traduzindo-lhe os codigos, e fallando os dialectos romanicos differenciados pela falta de escripta. Aqui da-se tambem uma illuséo nos historiadores da peninsula, que attribuem todas as origens sociaes e litterarias da peninsula aos romanos, quando el- les pelo seu diminuto numero nao exerceram mais do que uma acgio moral, sendo a lingua o instrumento de assimilacdéo por onde o conquistador se relacionou como povo vencido e civilisa- do. Na invasao dos Arabes duas fortes ragas e duas civilisagdes se acharam em conflicto, e por isso penetraram-se, como se vé pela imitagao dos costumes arabes pelos Mosarabes, @ depois na assimi- lago dos costumes hespanhoes pelos Mwdjares; a lingua arabe vul- garisava-se na Aravia, e a lingua romanica arabisava-se no aljamia- do, mas uma d’ellas viria a preponderar de um modo exclusivo e absoluto. Havia de ser aquella que fosse orgiéo de uma maior civi- lisagdo; o arabe diffundido pela Hespanha, Franga meridional e Ita- lia maritima, como se vé pelos seus vestigios nos vocabularios actuaes, ter-Se-hia. tornado triumphante, se a Europa occidental, diante de um perigo commum e immenso, nao repellisse para 0 oriente esse ultimo ramo dos povos semitas que ainda disputava a hegemonia da humanidade. Na peninsula os nomes arabes sao si- multaneos com os latinos, como sastre e alfaiate; mas o typo lin- guistico ficou o do latim, instrumento unificador da Civilisagao occidental. 0 Arabe foi coadjuvado na conquista da Hespanha pelo elemento mauresco, fazendo-se assim a regressdo ao typo iberico, ao qual as convulsdes historicas coadjuvaram sempre a sua per- sistencia do typo antropologico, Para estabelecer as bases scientificas da ethnologia da Peninsula hispanica, convém condensar os resultados recentes da antropolo- gia acerca das ragas da Europa, até 4s conquistas romanas ; em ge- ral as camadas succedem-se n’esta accumulagdo de povos pela mesma ordem tanto para a Italiae Hespanha, como para a Franga e : : 36 REVISTA DE ESTUDOS LIVRES Bretanha. Paul Broca resume em poucas palavras o-estado da ques- to, que tomaremos como direcgao do nosso criterio: « Eu penso, quanto a mim, que os Bascos dos Pyreneos soos ultimos repre- sentantes de ‘cabellos negros que occupou outr’ora a maior parte do nosso territorio; que uma grande invasao, procedendo do nor- te ao sul e léste a oéste, conduziu entao os Gallos para a Franca central e até ao pé dos Pyreneos, que o mixto, d’esta populagdo nova com a populacao primitiva produziu no sudoéste, onde domi- nava-o sangue indigena, a raga dos Aquitanios.de cabellos negros (Aquitanos, [Auch] Ausci, Auskes, Buskes, Vascos, Bascos), e, n0 resto da Gallia, a raga dos Celtas de cabellos castanhos a qual se estendeu depois, antes das edades historicas, para a Bretanha, (a dos antigos, hoje Gram-Bretanha), para a Irlanda, para a Hespanha e Italia; que, finalmente, em época incomparayelmente mais. re- cente, a partir do seculo vm antes de Jesus Christo, os Kimris, Cimmerianos ou Cimbros repellidos das. bordas do Mar Negro pela invasao dos Scythas, (d’onde proyeiu o nome de Criméa) espalha- Tam-se por toda a Europa occidental, transpuzeram o Rheno-e con- quistaram sobre os primeiros conquistadores a zona, nordeste da Gallia. Foram estes mesmos Kimris, de estatura elevada, cabellos louros e mesmo ruivos, de indole vagabunda, de bravura. estouva- da, que serviram de typo 4 descripgao dos antigos Gaulezes,. por- que foi a sua populacao irrequieta a que muitas vezes se arremes- sou contra a Ilalia, Grecia, Thracia e Asia Menor. Os Cellas, mais pacificos, entregues a agricultura, edificando cidades, ligados ao solo, s6 foram conhecidos muito tarde e sbmente quando os Roma- nos penetraram no seu paiz.» * Tal 6 o ponto de vista da succes- sao das ragas no Occidente da Europa, segundo Paul Broca; ainda que fosse uma simples theoria, bastava ser apresentada por um an- tropologista tio eminente, para exercer uma aceao coordenadora na serie immensa de factos desconnexos que se acham nos geogra- phos antigos quando tratam da Peninsula; porém esses factos as- sim coordenados recebem uma luz tio nova, que a theoria torna-se uma. synthese scientifica com mais uma comprovagao particular. A persistencia do typo ethnico iberico nao se deve. explicar nos ‘povos que constituem as nagdes da Peninsula pelos phenomenos de recorrencia unicamente ; 6 importante esse facto antropologico, emt que a maior parte das ragas que invadiram a peninsula traziam em si elementos turanianos, nas modificagdes scythicas, aqui- tanicas e maurescas ou berberes; porém, 6 de uma nao me- Nor importancia o facto ethnico que coadjuvava a persistencia do 1 Memoires d’Anthropologie, t, 1, p. 292. on a ELEMENTOS DA NACIONALIDADE PORTUGUEZA 37 typo iberico. Apesar do seu isolamento de classe, todas as aris- tocracias e familias privilegiadas tendem a extinguir-se; a aris: tocracia romana desappareceu e com ella o imperio, da mesma forma a aristocracia germanica ou feudal que jé se achava extin- cla no seculo:xvr. 0 proletario moderno desenvolveu-se 4 medida que o seu numero pdde exigir e impér novas condigdes de vida; © proletariado sahin na sua maior parte dos trabalhadores adstri- ctos 4 terra, d’aquelles que nao podiam fazer cruzamentos de san- gue com Classes superiores, d’aquelles que, acabado o regimen mi- litar das transplantagdes, faziam parte da propriedade territorial, @ como filhos da terra fundaram o seu direito na garantia local, 6 a sua forga na visinhanca, confederagao dos Vici ou povoagdes de colonos agricolas. Portanto quando esta classe figurou na historia Manifestou as qualidades ethnicas de raca primitiva, nas suas tradi- g0es, nos seus cantos e nas supertigdes e costumes vulgares, do mesmo modo que apresentou menos modificagdes no typo antropo- logico. Paul Broca, na sua lucida Memoria sobre a Kthnologia da Franca, chega a esta conclusio: «a classe dos aldedos 6 aquella que, desde que a Franga se constituiu em nagao, soffreu menos mudangas ethnologicas, e 6 quasi que exclusivamente n’esta clas- se, que se pdde achar hoje os representantes das antigas racas gallo-romanas. » * Este facto torna-se quasi que uma lei antropolo- gica; Strabao descreve o caracter de isolamento das povoagdes ibericas e celtibericas ; esse isolamento conservava-se até nas cidades duplas por um muro divisorio, conservou-se no vicws romano, no burgo germanico, na aldeia arabe, @ ainda no foral ou conce- Tho neo-gothico, Além d’estes factos incOntestaveis, temos como isoladores dos povos peninsulares do contacto das outras ragas da Europa os Pyreneos e o Atlantico, pelo menos até 4 época das grandes navegagdes do seculo xv. A persistencia do typo iberico no onomastico local apparece tambem como um resultado da per- sistencia antropologica e ethnica, subretudo no que sé chama o grosso da populacao. Quando os Romanos entraram na Peninsula sob o commando de Scipido, aqui encontraram, segundo a phrase de Varrao, cinco po- vos. Histes cinco povos com existencia historica suo pela sua ordem, Iberos, Celtiberos, Phenicios, Gregos e Carthaginezes. Todos estes povos eram extranhos 4 peninsula, vindo apenas exploral-a com- mercialmente, como os phenicios e gregos, ou occupal-a por causa das suas riquezas mineraes, como 0 ibero. 0 nome de Jbero foi dado pelos gregos aos povos mais antigos 1 Memoires d’Anthropologie, t. 1, p. 201. 58 REVISTA DE ESTUDOS LIVRES da peninsula; a significagio d’este nome tem sido considerada como geographica, mas a necessidade de tornar extensivo 0 seu sentido leva-nos tambem a procurar o seu valor ethnico. Na acce- peao geographica, o Ibero é 0 que habita na regiao cortada pelo rio Ebro, e portanto o territorio da Iberia era a regido nordeste da Hespanha; outros escriptores antigos, como Herodoro de Heracléa, no Iv seculo antes da éra vulgar, Scylax, Avienus, Scymnus de Chio, Thucydides e Philisto de Syracusa, dio 4 designagao de Iberia um sentido extensivo, collocando junto do Rhodano.o limite occi- dental dos Iberos. Gomo diz Jubainville: «A Jberia era. para elles um grande paiz comprehendendo.a Hespanha inteira e uma parte da Gallia. » * Por aqui se vé que a designacio geographica precisa de ser alargada pelo sentido ethnico. 0 facto de estacionar junto do Ebro néo é uma caracterislica, mas o porqué d’essa designagao jé nos pdde revelar alguma cousa da raga que ahi se estabele- cera. M. de Rougemont, conhecendo a tendencia metallurgica das tribus. turanianas, considera o nome de Abar, dado ao estanho en- tre varios povos semiticos, como tendo relagdéo toponymica com a Iberia do Caucaso, Lenormant nota que a palavra Abar «nao tem etymologia bem natural nas linguas semiticas » * e portanto que se nao deve rejeitar sem exame essa hypothese. Os gregos, que conhe- ceram’ uma designagao do estanho commum aos poyos dricos e se- mitas, e portanto recebida de uma raca diversa, (gr. kassiteros; sansk. kastira; assyr. kasazatirra; arab. gazdir; dial. afr. kesdir) chamavam 4 Gram-Bretanha, explorada pela raga iberica, pelo nome de Kassiterides. Para um povo que explorava os jazigos de esta- nho, aber, e que o fornecia a todos os povos do mundo, o nome de Jbero era um nome com um sentido ethnico profundo; portanto o nome de Ebro podia ser dado por esse povo ao rio, junto do qual habitavam, e ir-se estendendo por ampliagdo ethnica pelos gregos até 4s margens do Rhodano onde havia povoagdes d’essa raga, O Ibero da Peninsula 6 commum tambem 4s ilhas britanicas, que os phenicios exploraram pela riqueza das suas minas de esta- nho; ¢ tanto na peninsula hispanica como na italica, e nas ilhas britanicas soffreram um cruzamento pela cohabitagdo com os inva- sores celticos. A ethnologia da Inglaterra nos ajuda bastante a fixar a ethnologia peninsular; diz Jubainyille: «As ilhas Scilly, na ex- tremidade sudoéste da Gram-Bretanha, t¢m sido até ao presente ge- ralmente consideradas como identicas a estas ilhas occidentaes —@ 1 Les prémiers Habitants de l’Europe, p. 20. 3. Les arene ‘es Civilisations, 1, p. 180, nota. E e : : ELEMENTOS DA NACIONALIDADE PORTUGUEZA 59 patria do estanko — que uma tradigao colligida no fim do seculo 1 depois da nossa éra por Denys o Periegeta, nos apresenta como — habitadas pela rica nag&o dos nobres Iberos. — Porém, as ilhas do estanho, as Cassilerides, como lhes chamavam os gregos na sua linguagem, nado sao outra cousa sendo as Ilhas Britanicas. Cassite- ride, em grego, estanho, 6 0 mais antigo nome d’estas ilhas na lingua -grega. » + Este sentido ethnico revelando-nos um povo me- tallurgico, que ainda nao conhecia o ferro, demonstra tambem que ee da Asia ndo 6 uma designag&o casual, como quer Jubain- ille. Maspero considerando os Bascos actuaes como representantes dos antigos Iberos da Europa, decide-se pela affirmagao de que 0s Iberos sao twranianos,? justamente pela caracteristica ethnica da Meltallurgia. 0 nome de Turan 6 restricto, e segundo Bergmann, dado por desprezo pelos Persas aos anaryas, aos que nao compre- hendiam os dogmas iranianos: (Ywran, de fora de Iran) paiz dos barbaros e dos malvados. * A um ramo scythico da Asia 6 que foi dado o nome de Zuran, e por isso os linguistas nao tém querido acceitar este nome para designar os povos uralo-altaicos; porlanto, procurando uma caracteristica antropologica definiriamos o lero como pertencente ao ramo allophylo do tronco branco, (Prichard),y de craneo brachycephalo, vindo com outros grupos finnicos e cau- casicos dos planaltos da Asia central para a Europa. A dislinccio dos turanianos na Asia anterior em habitantes das montanhas (Ac- cads) e habitantes dos valles (Swmirs) acha-se tambem entre os Tberos da Asia, como observou Strabo; os dos valles pareciam-se com os Armenios e Medas no seu modo de viver, e¢ 0s das montar nhas pareciam-se mais com os Scythas, seus visinhos, com quem tis nham uma origem commum. * Da preponderancia do elemento tu- ‘raniano entre os Scythas, considerados iranianos, temos a prova nos vestigios de sepulturas scythicas da Russia, e Maury conclue que os elementos inferiores da populagdo eram turanianos. ° Bergmann, considerando tambem os scythas como indo-europeus, reconhece que os gregos comprehenderam sob este nome povos que 0 nao eram;® o elemento scythico que da origem aos scandinavos @ germanos, da-lhes logo na sua constituigao primiliva uma grande 1 Jubainville, op. cit., p. 31. 2 Hist. anc. de U’Orient, p. 135. $ Les Scythes, p. 2 7. Adiante exporemos uma origem que nos parece mais verdadeira. 4 Jubainville, op. cit., p. 304. 5 Ibid., p. 293. 6 Les Scythes, p. Iv. 60 REVISTA DE ESTUDOS LIVRES: parte de »sangue turaniano. «Nas linguas scandinavas, diz Ber- gmann, a palavra Sami conserva excepcionalmente a antiga signi- ticagdo de Oceano, como por exemplo em Sams-ey (ilha do Ocea- no), Sam-land (paiz: maritimo) ; cf. Samo-Getia, a Getia maritima, e Samo-thrake, a Thracia maritima.» 10 paiz de Swomi 6 o ber- ¢o.das ragas finnicas, como descobriw Castren, ragas a que perten- ce o ramo iberico. Na vinda d’este ramo allophylo do tronco branco para a Eu- ropa, uma parte entrou pelo norte da Europa, como nos deseo- brem estes factos| supracitados, como os finlandezes, esthonianos; outra veiu através da Africa, (opiniao de Leibnitz) como se vé pelo typo berbere, e pelos vestigios de euskariano na Africa e no Egy- plo, e além d’isso por uma certa dolichocephalia que denota fusao com grupos africanos de raga branca.* «Os Iberos, da raga de » Cham, invadiram a Huropa occidental pela Asia Menor e foram en- contrados depois pelos Celtas Arianos, que acabaram de se misturar com elles, » ® Analysemos esta dupla convergencia. Duas designagdes se encontram entre os povos peninsulares an- teriores aos Cellas: a primeira 6 dada pelos gregos, na forma de Iberos, e a segunda 6 adoptada pelos proprios povos primitivos, que se chamavam Luskes, e Vaskes. Diz Guilherme de Humboldt, nas suas Investigacdes sobre os habitantes primitivos de Hespanha: «Ignora-se se ha alguma relacdo entre o nome Jbero e os nomes Euskes @ Vaskes. 0 que nao 6 demonstrado 6 que os povos iberi- cos sé qualificassem com esse nome de Jberos; 6 muito mais pro- vavel que em uma época remotissima 0 nome de uma das suas tri- bus fosse considerado pelos estrangeiros como o do povo intei- ro.» De facto os nomes que os bascos ainda hoje adoptam eskwa- rae eskaldunac, revelam um radical primitivo, que Chaho traduz por aska mao, e Humboldt por um outro nao menos phantasioso; antes porém de etymologias importa vér a extensao d’este radical, € essa mesma extensio revelara o seu valor ethnico. Zsc encontra- se como radical mais ou menos assimilado nos seguintes nomes de cidades e povoagies: Brescia, Tuscus, Gasconha, Vascenes, Escos- sia, Vesci, Vescitani, Osca, Heosca, Itosca, Menosca, Virovesca, Auscii, Osquidates, Squillace, Scilly, Sculeticos, Biscaya, Aiscerris, Asseconia, Esquillinum, Nescania, Muscaria, Isca, Luskinus, Esca- dia, Fscua, Bascontum, Volsquos. Do valor extensivo d’este radical 2 Les Scythes, pag. 32, : 2 Bulletin de ta Societé de Geographie, (avril, 1876) p. 428 © seg. 8 Utvalvi, Migrations des Peuples, p. 124. 4 Op. cit., trad. Marrast, p. 86. | 7 : : : . ELEMENTOS DA NACIONALIDADE PORTUGUEZA 61 Esk, diz Guilherme de Humboldt, que o nome de Osca deve referir- se a todos os povos ibericos, por isso que a immensa quantidade de argentwm oscense mandado para Roma, nao se cunhava na pe- quena cidade de Osca, e segundo o padre Florez, significava essa phrase todo o dinheiro colhido no territorio da Hespanha, + 0 radi- cal Zsk revela-nos portanto uma designagdo ethnica bem caracte- tistica; 0 escudo era a arma distincliva dos povos scythicos, em geral, e segundo Gesar, 0 grande e 0 pequeno escudo eram pecu- liares ao ibero da peninsula hispanica. Era vulgar entre os povos antigos chamaram-sé¢ a si mesmo pelo nome das armas que usa- — vam, Como os Quiriles, os romanos, (de quir a langa) os Frankos (de frankisk, ou machada), os Herwlos, (pequenas espadas) 0s Lom- bardos, (longas hallabardas) os Sawdes (os punhaes); 03 Scythas, a cujo ramo pertencem os Gaulezes, chamavam-se a si mesmo Skw- tai (escudo; no lith. skyda, velho slay. schtchyt; all. schutz, etc. *) Pela caracteristica do escudo 6 que se distinguiam os varios ramos ibericos na Peninsula. Diz Humboldt no seu estudo, e seguindo Ce- sar: «Os Celtiberos eram mais temiveis no ataque e mais seguros nas batalhas ordenadas. Haviam conservado 0 longo escudo gaules; os Lusitanos tiaham um escudo menos longo com que se cobriam rapidamente por todos os lados. Os Celtiberos, mais dados & aggres- sao, eram bem providos de armas defensivas. A armadura dos Lu- sitanos era commum a toda a Hespanha citerior, a dos Celtiberos 4 Hespanha ulterior (scwéate: citerioris provinciee et cebrate ulterioris Hispanise cohortes. Cus., De Bello civili, 1, 39). Comtudo as duas armaduras, a pesada e a leve, eram egualmente empregadas nas guerras de alguma importancia. Havia pequenos escudos e mililes cetrali entre os Celtiberos e os Carpelanos, e geralmente na Hespa- nha citerior, (Ges., De Bello civ., 1, 48). 86 nao descubro em parte alguma que os Lusitanos adoptassem 0 escudo largo e pesado, » * Este facto accusa uma profunda dilferenciagdo ethnica, que vem a prevalecer através dos seculos na separagao entre Portugal e Hes- panha. Humboldt, notando a differenga nas armas, observou tam- bem a mesma differenga na toponymia: «A Lusitania, vista a sua exiensdo, apresenta poucos nomes bascos. Isto se.explica pelo facto de ser mais predominante n’esta provincia a terminagao briga na forma dos nomes das grandes cidades, que unicamente apparecem citadas pelos geographos e pelos historiadores.» * B mais adiante: 1 Recherches, p. 34. 2 Bergmann, Les Scythes, p. 11. 3 G. Humboldt, Recherches, p. 133. (Trad. Marrast). 4 Ibid. p. 413 62 REVISTA DE ESTUDOS LIVRES accrescenta: «Plinio nos descobre que a maior parte dos nomes cellicos se acham na Lusitania... »* Assim como 0 radical Hsk nos descobre a origem scythica de um ramo iberico da peninsula, assim tambem: 0 radical Briga, brig, @ bri, brwm, nos conduzira 4 determinagéo do ramo iberico, que entrou na peninsula pelo sul. 0 Ibero distinguia-se pelo seu conhe- cimenfo da industria metallurgica, e se nos lembrarmos da relagdo toponymica proposta por M. de Rougemont entre a palavra Adar, que significa chumbo nas linguas semiticas, e o nome de Jberia, que Lenormant considera como devendo ser verificada, veremos que o proprio Guilherme de Humboldt presentiu a importancia d’esta caracteristica onomastica. Accumulando a lista dos nomes topicos terminados em Briga entre as povoacdes celticas e ihe- ricas, diz Humboldt, que os Medwbricens eram denominados por Plinio plwmbarii, evidentemente por causa das suas minas de chumbo; e accrescenta este facto para uma comparagdéo importan- te: «Berwna, significa chumbo, em basco. »* A palavra semitica Abar, que significa estanho, j4 tem pois um termo de comparacao, donde se podera inferir a pura origem. 0 emprego da forma briga torna-se uma delimitagao ethnica, e Humboldt, traga essa linha: « Para bem conhecer os povos onde estes nomes existem, e deter- minar o seu dominio, basta tragar uma linha que parta da costa norte do Oceano, para as fronteiras dos Autrigones, collocadas a léste, elevando-se ao sul de maneira a deixar ao oéste os Carystes e@ 0s Yardulos, até que attinja as fronteiras dos Vascones e dos Cel- tiberos, depois a dos Oretanos, e siga finalmente o Boetis alé ao mar. Tudo quanto esta linha, correndo através da Hespanha, deixa ao norte é a léste, constitue o dominio dos nomes terminados em bri- ga, que nao se encontram nunca ao sul e a oéste, para os Pyre- neos @ Mediterraneo. Esta ultima porgao da peninsula nao apre- senta populagao alguma celtica ou celtiberica. Comprehende ao con- trario a Biscaya, sua costa desde Bilbao, a Navarra inteira, a maior parte das provincias onde se falla hoje a lingua basca e toda a costa do Mediterraneo. No dominio dos nomes em briga, figuram ao contrario os Cantabros, os habitantes da costa do oceano até ao Betis, todas as tribus celticas e celtibericas e as povoagdes do inte- rior para o oéste. Esta regiao forma a maior parte da Hespanha... A diviséo da Peninsula em duas partes tio nitidamente cortadas, separada de um lado pelo Jberus e o Betis e do outra pela cadeia de montanhas /bubeda, 6 tao notavel, que se nao comprehende, que 1 Recherches, p. 124. a Ibid., p. 78. ELEMENTOS DA NACIONALIDADE PORTUGURZA 63 ella nao haja até aqui attrahido a altencdo de alguem. »* EB mais adiante accrescenta: « Os nomes que tem por iniciaes ou finaes bri, brig, brum, bret, britivm n&o se encontram seniio nas provincias em que predominava o seu parente briga.» ® 0 problema tao luci- damente proposto por G. Humboldt entre os dois elementos ethni- cos, Buskes e Iberos, nao podia ser explicado no seu tempo, por- que ainda prevalecia na sciencia a confusio vulgarisada pelos ro- Manos entre os celtas com os gaulezes, que eram um ramo scythico. ‘A persistencia do nome briga, na Gallia, na Bretanha, nas regides do sul do Danubio e até na Thracia, revelam-nos a corrente que trouxe da Asia para a Europa pelo Mediterraneo e pela Africa, esse primitivo elemento iberico. 0 Berbere ainda conserva a cor branca, cabello ruivo e olhos azues da passagem d’esse ramo allophyliano do tronco branco através da Africa; @ segundo a lei de Humboldt, © achada na persistencia das consoantes, 0 grupo BR conserva-se em um grande dominio geographico que denota a migragao primi- tiva, como em Hibernia, Cumberland, Cambria, Britania, Ibericwm mare, Berber, Bretanha, Cimbre, Celtiberia, Breguez, Brenner, Umbria, Calabria, na Georgia. Guilherme de Humboldt accumula muitos outros nomes topicos em que entra este radical, mas a preoccupacao infundada de uma etymologia celtica nao o deixa ti- rar a demonstragao da verdade que presentia determinando a exis- tencia de dois ramos ibericos, um, que entrou na peninsula. pelo sul, era dado aos trabalhos da exploragio das minas de chumbo, @ n’esse interesse chegou até 4s ilhas Cassiterides, (ilhas Britdnicas) € 0 outro que desceu do norte, separado do seu tronco scythico, @ dado 4s invasdes guerreiras, e os que mais vieram a resistir como mercenarios e aventureiros contra os Romanos. Esta divisio con- serva-se nos dous nomes de Jbero e Euske, que por si indicam a primitiva distribuigio geographica, e ainda hoje a differenciag&o das nacionalidades da peninsula. A raca iberica nao péde ser bem conhecida sem se estabele- cer a relagio ethnica com o typo berber da Africa; os antropolo- gistas modernos sao concordes em considerar este typo berber como 0 elemento primitivo das populagdes do sul da Buropa; diz Topinard Acerca da sua extensio: «Chegava até ds Canarias sob 0 nome de Guanchos; ha mesmo fortes presumpgdes que se esten- desse até 4 Buropa meridional e que o fundo commum o mais antigo da peninsula iberica, da bacia do Garonna e das ilhas do 1 Recherches, p. 80. 2 IThid., p. 77. 64 : REVISTA DE ESTUDOS LIVRES Mediterraneo é berber.» * Prichard, na Historia natwral do homem, apresenta uma caracteristica do berber, que o relaciona intima- mente com o ibero: «A agricultura nao 6 a sua unica industria; occupa-se tambem com vantagem da exploragdo das minas que as suas montanhas encerram, e d’ellas tiram o chumbo, o ferro eo cobre. » ® Esta aptidio metallurgica concorda com a sua designacao ethnica. Antes, porém, de investigarmos a sua proveniencia, apre- sentaremos uma analogia historica entre a resistencia do ibero na Europa e do berber na Africa, diante das mesmas invasdes, 0 ber- ber resiste 4 invasdo dos Phenicios, dos Gregos, dos Romanos, dos Wandalos, dos Byzantinos, dos Arabes, dos Judeus e dos Turcos, acantonando-se com 0 Atlas; 0 ibero resiste a pressdes ainda mais fortes, ajuntando as ja citadas os Ligures, os Celtas e os Wisigo- dos, fortalecendo-se com os Pyreneos. 0 estudo do typo berber tor- na-se indispensavel para uma verdadeira ethnologia da Peninsula, por isso que elle vem a influir em phenomenos de recorrencia ethnica pela occasido da invasdo dos Arabes. Hoje que se conhece que o Mouro é 0 producto do cruzamento do typo berber com o Arabe, * e que og Arabes da Hespanha eram considerados na desi- gnacao usnal como Mouros, jé se podem deduzir grandes conse- quencias d’esta circumstancia nao observada. Este facto explica como 6 que se deu na Peninsula uma tao facil conquista arabe ac- ceita pela populagao inferior, como se desenvolveu o typo mosara-~ be, € como 6 que o arabe tendo acceitado a civilisagao turaniana, veiu provocar no meio-dia da Europa uma revivescencia do lyris- mo tradicional, que primeiro irradiou da Provenga. 0 nome de Lybios dado pelos gregos a raga dos berbers nao era conhecido por essa mesma raga, € 0 seu nome nacional e particu- lar era corrompido pelos gregos no de Barbaros, que prevaleceu durante toda a edade-média da Europa, com o sentido com que foi applicado 4s ragas germanicas, pelos romanos. Ebn Khaldun, que historiou os berbers, cita a personificagao Beramis, (berwn, no bas- co significa chumbo) povos descendentes de Ber, o qual Duprat con- sidera como radical do nome Berber. * A separagio dos Lybios dos Berberes foi proveniente de um erro dos geographos e historiado- res anligos; como os Lebahim (Lybios) que vieram da Asia, os 1 Anthropologie, p. 486. Hist. nat, de ? Homme, 1, 388. 8 «Qs Mouros sio os fructos de eruzamentos complexos dos Berberes com todas as sortes de elementos ethnicos, nos quaes prepondera 0 Arabe.» Topinard, Anthropologie, p. 488. s Races anciennes et modernes de UAfrique septentrionale, p. 64. ELEMENTOS DA NACIONALIDADE PORTUGUEZA 63 Berberes tambem apresentam o seu nome nacional nos documentos orientaes. No Ramayana, si0 esmagados sob os mesmos, golpes os Javanas, os Tambodschas e os Warwaras; e no Hitopadessa figura um Barbar. 0 seu contacto com a civilisagdo indiana e egypcia 6 que motiva estes dois nomes; ainda hoje uma raga nubiana do Nilo 6 chamada Barabras, * e uma grande parte das tribus berbe- Tes conservam como nome nacional a designacio de Amarig (Ma- ehlyes de Herodoto, Mazikes de Ptolomeu, Amazig, na velha lin- gua lybica) que significa homem livre, ® e que se pode bem apro- ximar do nome Jberico, e mesmo de Mourosioi (Mouros). Os ber- heres, ou propriamente os Iybios, eram divididos por Herodoto em duas classes, os de léste e os de oéste, os primeiros nomadas, e 8 segundos ligados ao trabalho da terra, mas ambos entregues 4 vida pastoral, differenciando-se nos seus habitos pela adaptagao geographica; os de léste era nomadas por causa das grandes pla- nicies escalvadas, os de oéste eram sedentarios por causa das cordilheiras de montanhas; Sallustio e Procopio citam a raga ly- hica pela sua “belleza, pela austeridade de costumes, frugalidade, faes como se encontram ainda no basco actual.ys Segundo Alfredo Maury, algumas linguas da Africa central como o Fellata, 0 Wolof e o Kanari, apresenlam cerlas parecengas grammaticaes com o bas- co, ® este mesmo escriptor considera a legendaria Atlantida como “propriamente a regido do Atlas, a parte noroéste da Africa compre- hendendo tambem as ilhas do Atlantico nas costas d’esta regido. Os Iberos da peninsula eram considerados como restos de uma an- tiga invasdo dos povos da phantastica Atlantida, ° mas pela sensata interpretagio de Alfredo Maury se vé que eram simplesmente Ber- eres, Os Atlantes, segundo Denis de Halicarnasso, chamaram-se as- sim da montanha junto da qual habitavam, e isto basta para cor- rigir o valor dos Atlantes legendarios de Plalao; 0 nome de Da- ran, 6 a designagio berber do monte Atlas, na vertente do qual se desenvolyeu esta raga, como observaram Strabao é Plinio. 0 nome de Twran considerado como designando uma regido da Africa privativa da raga branca a que se di o nome de Turaniana, 86 - péde ser admittido como uma simples modificagao de Dirana, o Pe 5 Duprat, op. cit., p. 70, nota. Prichard, Hist. nat. de Vv Homme, 1, 368. Duprat, op. cit., p. 83. Ibid. p. 85. : D'Arhois de Jubaiaville, Les premiers Habitants, p. 273. Qpiniio ainda hoje sustentada por Jubainville. 1.° Axxo. 5 oeseen eee 66 REVISTA DE ESTUDOS LIVRES monte Atlas. 0 nome de Twran dado pelos persas * ao ramo scy- thico dos Sakes, deve tambem referir-se aos povos dos montes Tawros, e este mesmo nome se conservou entre um povo scythico, os Tauros da Criméa. 0 exame das designagdes ethnicas do berber leva a corrigir as phantasias da tradigao dos Atlantes, e ao mesmo tempo, pela sua origem asiatica, a accentuar o valor ethnico de uma preciosa designagao injustamente desacreditada pelos linguistas, como 6 a da rata twraniana; os berberes do Daran differenciam-se dos berberes das planicies, da mesma sorte que os turanianos da Asia anterior em acads 6 sumirs, as divisdes typicas ou organicas desta grande raga que tambem na Europa :preparou os caminhos para as civilisagdes arica e semitica. (Contintia). : Trmopnito Braca. 1 Lé-se no Ean xiv do Yaena, est. 12: « Quando depois da derro- ta de Friamsa, o Tara, se estabeleceram os bons costumes entre as tribes” e 08 seus alliados, tu cereaste de tapumes os campos de Armaiti,..» E esta a primeira mengao do nome dos inimigos do Iran. 2 Les Getes, p. BA. 1 Q) THEATRO MODERNO EM PORTUGAL 0 Ange Homem, comedia em 4 actos, por Teiweira de Queiroz — Lisboa, 881 —e O Casamenro civit, comedia-drama em 4 actos, por Cypriano a ‘dim — Lisboa, 1882), Le théatre, par ses conditions d’existence, devait etre 1a dernidre conquete, la plus 1a Dorfeuse et Ta plus disputde dé Yeaprit de vorit Emr Zoua — Le Roman ecpéri- ‘mental, pag. 145. (Continuado da pag. 27) O Romantismo restaurou o nosso theatro. Cabe esta gloria a Garrett, que durante a emigracio assistiu de perto 4 profunda trans- formagao por que estavam passando as litteraturas europeas. Nos primeiros annos da sua vida litteraria seguira a corrente predomi- Nante no paiz, escrevendo tragedias, como o Catdo.e Merope; mas a0 voltar 4 patria com o exercito libertador trazia um novo ideal e a8 suas aspiragdes artisticas achavam-se influenciadas pelo movi- mento romantico. Almeida Garrett, genio brilhante e extraordina- rio, imprimiu esta direccao 4 literatura portugueza; depois de ter Jevantado o lyrismo nacional e dado ao romance historico a sua verdadeira forma, voltou as suas vistas para o theatro, onde fez uma nova revolugio com o Frei Lwiz de Sousa, a sua obra prima, com a Sobrinha do Marquez, 0 Auto de Gil Vicente, a Philippa de ‘Vilhena eo Alfageme de Saniarem. Mas, quem continuou os es- - forgos de Garrett? Este genio n&o deixou successores. A immensa avalange de dramaturgos, que surgiu ao lado do mestre e que cresceu nas ge- Tapdes successivas, era composta de nullidades e de impotentes, que arrastaram o theatro portuguez ao ullimo grau de decadencia. Herculano e o proprio Garrett notaram com tristeza a degeneracado do movimento. 0 theatro ficou um aborto monstruoso e desconfor- 68 REVISTA DE RSTUDOS LIVRES me; as mediocridades enfatuadas e insolentes cobriram-se de co- rdas e dé palmas, falsos ouropeis de gloria, proprios do palco que Thes servia de Capitolio; 0 talento, o merito real, desappareceu neste tripudiar infrene das insignificancias glorificadas, Ao drama romantico succedeu o dramalhao insulso, massador, estupidifican- te, um mundo inteiro de cartio’e de colla, tendo por personagens bonifrates movidos por cordeis e feitos de uma s6 pega, que decla- mavam grandes phrases rhetoricas de um sentimentalismo piegas, Daixo, ridiculo, A evolugdo do romantismo francez foi transplantada para Portugal, onde tomou uma feigao ainda mais falsa e mais me- diocre, desnorteando 0 bom gosto e o bom sénso das plateias. O snr. Mendes Leal, Ernesto Biester e tantos outros de egual valor fo- ram os agentes d’esta profunda e lamentavel decadencia, Nos ulti- Mos anos 0 theatro portuguez tem vivido quasi exclusivamente de plagios, de imitagdes, de traducgdes banaes e futeis. Nao havera por’ora symptomas de regeneragado? Ha, de facto, alguns. Nio mencionaremos senao os principaes. O snr. Pinheiro Chagas, sem romper inteiramente com os processos ultra-romanti- cos, levantou-se, no entanto, acima da maioria dos dramaturgos pelo seu talento e pelo seu ideal artistico, como se constata na Morgadinha de Valflor e no Drama do Povo; porém, os vicios de uma educagdo essencialmente rhetorica e sentimentalista manifes- tam-se a cada passo nos seus dramas; a linguagem, os sentimen- tos, Os personagens, as situagdes, tudo 6 convencional, tudo é fl- jho da imaginagdo pura; a realidade nao tem ahi que vér. O snr. Antonio Ennes afasta-se mais do mundo phantastico; segue Dumas na preoccupagdo das theses sociaes e nos lances de effeito; tem por vezes personagens que se aproximam da verdade e scenas felizes tiradas da vida real, mas a linguagem quasi sempre uniforme e re- quintada, cheia de imagens, de figuras e de rendas de eslylo, da aos seus dramas um caracter falso como se observa nos Lazaristas, nos Engeilados e no Saltimbanco. De todos os seus trabalhos dra- maticos 6 que nos pareceu menos rhetorico e que assenta talvez numa observagdéo mais verdadeira, foi o que o publico recebeu com alguns signaes de desagrado — a Lugenia Milton. & tempo de entrarmos na analyse das duas comedias a que © nos temos referido. av 0 Grande Homem, tendo por author o snr. Teixeira de Quei- roz, deveria ser uma comedia naturalista. Todos conhecem o pseu- donymo de Bento Moreno, com que o illustre escriptor firmou os seus primeiros trabalhos litterarios, contos simples, notas rapidas, CE ee eS ee ee eee O THEATRO MODERNO EM PORTUGAL 69 onde a cada phrase transparece o verdadeiro espirito de observa- gio e de exame. 0 analysta da Comedia do Campo revelou-se nos Noivos um romancista moderno, esmerado e consciente. Conhecedor dos novos processos artisticos, disciplinado por uma sa philosophia, tendo um curso de sciencias naturaes, Teixeira de Queiroz possue os elementos fundamentaes para tentar o renascimento do nosso theatro, como ja contribuiu para a introduccdo do romance natura- lista entre nds. 0 apparecimento de uma comedia sua fez-nos con- ceber esperancas de vér o naturalismo francamente implantado no palco nacional; o nome do author era para nds uma garantia. Cor- remos, portanto, apressurado 4 primeira representacao. Entramos No theatro, assistimos aos quatro actos do Grande Homem, applau- dimos mesmo o novel dramaturgo, mas 4 sahida traziamos mais uma desillusio. A comedia nao correspondia ao que tinhamos 0 di- Teito de esperar do author. Se a peca nio tinha, e ainda bem que nao, « bastantes unturas de Dumas, de Sardou, de Scribe e de La- biche» como affirmaram os criticos, tambem nao era o naturalismo posto no theatro, como Teixeira de Queiroz o mostrava comprehen- der na execugio "dos seus romances. 0 romancista moderno sacrifi- cava no palco a observagao rigorosa da verdade 4 imaginacio, ao espirito mordaz, 4 satyra dos costumes. Nao respeitara as conven- ges theatraes, — era este 0 principal merito da sua comedia; mas tambem nao Tespeitira a precisao dos factos —e era este 0 maior defeito do Grande Homem. ‘ No entanto, o author cré ter feito um trabalho naturalista, con- sidera-o mesmo «um capitulo da Comedia Burgueza, iniciada com © romance Os Noivos». Nao sabemos como explicar semelhante aberragio, Mas seria possivel que 0 erro fosse nosso e que a razao estivesse do lado do dramaturgo. § 0 que vamos vér pela analyse _da comedia. -. Antes de tudo, tracemos o assumpto em poucas linhas. 0 con- selheiro Mauricio Pontino 6 um pobre monomaniaco que se julga politico habil, estadista eminente e chefe de partido, sendo explo- rado por um *jornalista e adulado por varios pretendentes. Seu ir- mao Guilherme e as familias de ambos procuram dissuadil-o das suas estultas ambigdes, chegando algumas vezes a escarnecer da sua vangloria, mas elle 6 inabalavel; sacrifica tudo 4 ideia de obter ‘uma pasta de ministro, a ponto de querer obrigar Glara, sua filha, a desposar um velho, juiz do supremo tribunal de justiga e titular. Este, o visconde da Carregueira, 6 um ridiculo D, Juan, sempre Prompto a apaixonar-se por qualquer mulher, apesar da sua edade. ‘Clara, naturalmente, resiste as ordens de seu pai e vai para casa do tio Guilherme fazendo acreditar Aquelle que fugiu. Mauricio, imaginando um rapto, corre 4 policia, mas no caminho esquece-se 70 REVISTA DE ESTUDOS LIVRES da filha, conversando sobre politica e sonhando com a presidencia de uma futura republica. Nem a ideia do suicidio vence a sua mo- nomania; a noticia de uma queda ministerial 6 mais forte do que os lagos de sangue; e quando lhe apresentam um rapaz distincto, um engenheiro, como sendo o salvador de sua filha, agradece-lhe dizendo que nao foi sua filha que elle salvou, mas sim a viscondessa da Carregueira. E preciso que a familia prepare um lance para le- var o baboso visconde a fazer uma declaragao de amor 4 esposa de Mauricio, para entéo este desistir do projectado casamento. O mi- nisterio cahiu, o conselheiro espera ser chamado ao pago; quando de repente recebe a decepgado de vér subir ao poder 0 visconde da Carregueira, Assim termina a comedia. Como os leitores véem o enredo 6 simples; n&o tem a comple- xidade predilecta dos dramaturgos contemporaneos. Accusaram 0 au- thor por esta parcimonia da intriga; mas emquanto a nds, esta n’is- to a melhor qualidade da comedia do snr. Teixeira de Queiroz. Aproxima-se d’este modo, do que deve ser o theatro naturalista. O interesse do espectador nao se liga, portanto, 4s aventuras prodi- giosas que se desenrolam em quatro ou cinco actos de qualquer drama applaudido, ao trama embaragado e difficil que se asseme- Jha a uma partida de xadrez, 4s solugdes emmaranhadas de um problema moral ou social, que sensibilisa as plateias; nao, toda a attengdo se prende aos personagens, ou melhor ao protogonista da comedia, ao conselheiro Mauricio Pontino, 0 Grande Homem por excellencia. Esta pega 6, na verdade, a monographia de um caracter. Mas, sob este ponto de vista, sera o Grande Homem a repre- sentagdo verdadeira do que se passa na vida real? Sera um traba- lho naturalista? Os methodos artisticos modernos, a observagao ri- gorosa dos factos, a analyse precisa dos phenomenos, seriam em- pregados na execugao d’esta comedia tio completamente como o exige o naturalismo? Com inteira franqueza dizemos que nao, Pas- samos a proval-o, O que 6 um grande homem? Na sua accepgio natural, o gran- de homem 6 todo aquelle que se afasta do vulgo, elevando-se pelo seu talento, por um esforgo de vontade ou pela sciencia, de modo que dé um forte impulso 4 marcha da civilisag%o, augmente os pro- gressos humanos ou contribua para o maior esplendor intellectual da bumanidade. Sao, por exemplo, grandes homens Comte, Fulton e Goéthe, Nio 6, porém, esta a sua significagio mais commum. Por grande homem entende-se ordinariamente o estadista, 0 chefe de um partido politico que tem por algum tempo nas suas mos os destinos de um paiz, muito embora seja um mediocre, um insigni- ficante. Saiba elle equilibrar-se no poder, illudir com pallialivos as necessidades mais urgentes, prometter com liberalidade e cumprir O THRATRO MODERNO EM PORTUGAL i com calculada moderagao; e 6 logo proclamado aos quatro ventos politico insigne, eminente estadista, um grande homem emfim. Morny, Rouher e Ollivier durante o segundo imperio, em Franga, Thiers e Gambetta na terceira republica, Canovas del Castillo e Sa- gasta no paiz visinho, e entre nds o duque d’Avila e o snr. Fontes, siio exemplos acabados do grande homem na politica. 0 grande ho- mem tem raras vezes talento, uma intelligencia notavel ou um ca- racter firme; nao passa, com frequencia, de um homem astuto, ardiloso, sagaz; 6 mesmo, a maior parte das vezes, 6 um charla- tio, um pelotiqueiro habil, que deslumbra e engana o publico com o seu palavriado pomposo, com as suas cartas marcadas ou com a presteza de suas maos. Porém, nunca foi nem pdde ser um patela, um monomaniaco, que se deixa ludibriar e escarnecer como qualquer crianga. Ora o conselheiro Mauricio Pontino esté n’este caso, O snr. Teixeira de Queiroz, dando ao grande homem o sentido pejorativo, o unico que elle péde ter n’uma sociedade, como a nossa, chegada ao extremo da sua decadencia, pretendeu encarnar no protogonista da comedia a nullidade triumphante na politica por- tugueza. Mas nao o conseguiu. Mauricio Pontino néo tem a minima parecenga com os nossos estadistas. 0 author poz de parte os pro- cessos naturalistas, nado obrou como simples observador que cons- fata os factos da existencia humana, nao se baseou exclusivamente nos documentos fornecidos pelo methodo experimental. E este o de- feito principal da sua comedia. No romance, Zola e Daudet, quando quizeram tragar o typo do grande homem, estudaram-no. no seu meio, analysaram-no em todas as suas particularidades, nado crea- ram um personagem da sua imaginagao, Eugene Rougon e o du- que de Mora sao dois vultos completos que os famosos romancis- fas construiram com elementos reaes. O snr. Teixeira de Queiroz, que é um bom romancista moderno, devia tambem apresentar no seu Grande Homem um personagem vivo e verdadeiro que cara- ¢lerisasse bem o politico portuguez. : Mauricio Pontino nao o caracterisa; 6 um pobre pateta que pro- yoea o riso da plateia pela sua ingenuidade lorpa e pela sua estul- ficia vangloriosa. Em palestra politica com o jornalista Cerveira e dois correligionarios condemna as doutrinas de Proudhon e confes- sa com demasiada singeleza que nunca o leu, mas que tem ouvido fallar d’elle no Gremio. Que a maioria dos nossos politicos nao co- nhega os assumptos de que se occupa, que nao tenha lido muitos livros e muitos authores que combate, podemos’acredital-o; mas cré o snr, Teixeira de Queiroz que algum dos taes grandes homens tenha a franqueza de o confessar? Se o author nos apresentasse Mauricio Pontino como um hallucinado, como um cerebro enfermo, Sip 72 REVISTA DE ESTUDOS LIVRES atacado de monomania politica, nada tinhamos a dizer; era um ca- so de pathologia encephalica transportado para a scena, como le Malade imaginaire de Molitre. Mas, como o typo genuino dos es- tadistas portuguezes, nio o podemos aceitar. Os outros personagens da comedia estéo longe egualmente de serem filhos legitimos da observagio, por exemplo o jornalista Al- berto da Cerveira e 0 padre Theodosio, os quaes*pouco se asseme- lham aos escriptores publicos e aos ecclesiasticos que vivem entre nos das tricas politicas. 0 visconde da Carregueira esta eshogado com mais realidade; Guilherme Pontino, as senhoras que figuram na comedia e Sebastido de Figueiredo tém tambem alguns tragos~ felizes de observacao. Na linguagem, 0 Grande Homeni representa um sério progres- so sobre os dramas e as comedias dos escriptores contemporaneos. © snr. Teixeira de Queiroz poz de parte a rhetorica 6 emprestou aos seus personagens um dialogo simples e natural, proprio do meio em que se movem. Os applausos, que o publico lhe dispensou, provam que nao 6 indispensavel no theatro a lingua convencional, cheia de imagens e de flores, introduzida pelos romanticos. A phra- se corrente e facil, traduceao fiel dos pensamentos, accommodada ao caracter e 4s. qualidades essenciaes de cada personagem, deve ser a linguagem usada no palco pelos dramaturgos modernos. Esta 6 uma das principaes condigdes da evolugado naturalista. O estylo requintado dos romanticos tem de ceder o passo a linguagem ru- de e singela do povo, O snr. Teixeira de Queiroz vai n’esta direc- gio e ainda bem. Pena 6 que 0 Grande Homem, estudado na sua unidade artisti- ca, nao esteja 4 altura do romance Os Noivos, nem sequer da serie de contos que formam a Comedia do Campo. 0 naturalismo ainda nao entrou no theatro. A primeira tentativa feita em Portugal fa- lhou. O author, porém, nao deve desanimar. 0 Jitterato moderno, 0 dissidente em arte, tem de ser um luctador, tem de trabalhar muito, de fazer esforgos sobre esforgos para dar o triumpho a uma ideia. O snr. Teixeira de Queiroz esti n’este caso, Se quer implan- tar o naturalismo no theatro, como contribuiu para o propagar no romance, faga uma segunda tentativa, uma terceira e mais, até en- contrar a verdadeira forma e até a impdr ds nossas plateias pela superioridade da sua concepgao. Sio estes os nossos votos, v 0. Casamento civil do snr. Cypriano Jardim filia-se no genero de obras de propaganda anti-clerical, que se desenvolveu entre nds . : 0 THEATRO MODERNO EM PORTUGAL 723 desde-o apparecimento dos Lazaristas do snr. Antonio Ennes. Sob este ponto de vista, essencialmente critico e dissolvente, os quatro actos do Casamento civil merecem os applausos de todos quantos desejam apressar o esphacelamento do catholicismo para se entrar de vez na época posiliva. Mas, como se collige do titulo, o author feve em mente uma ideia reorganisadora. Comte formulou n’um dos seus escriptos 0 pensamento salular, que nada se deve destruir sem se substituir por outra cousa nova. O snr, Cypriano Jardim, adoptando este principio, quiz oppér 4s instituigdes, que combatia, outras mais apropriadas ao desenvolvimento intellectual das socie- dades modernas. D’ahi nasceu a ideia de uma these. Dumas filho tem a preoccupacao da these, do problema, cujas solugdes formam os enredos dos seus dramas; foi de certo d’elle que o dramaturgo portuguez recebeu esse principio, e nao directamente do positivismo. O snr. Cypriano Jardim nao é um escriptor naturalista, tambem nao 6 um romantico convicto; nao pertence a alguma escdla, nem advoga qualquer doutrina; visa sémente ao successo. E elle quem 0 confessa no seu prologo. Assim nio podemos ser muito exigen- te, néo o podemos censurar por nao ter escripto/um trabalho na- turalista. Limitar-nos-hemos a constatar se apresenta ou no sym- ptomas da moderna evolugao artistica e se resolyeu bem ou mal o problema que se propoz a defender, Antes de tudo, digamos em poucas palavras 0 oe D. Ja- cintha da Costa, por morte de seu irmao, ficou encarregada da edu- cagio de suas Sobrinhas Mathilde @ Luiza; vindo viver para Lisboa, apresentou-as na chamada melhor sociedade, arranjando a mais ve- “tha um casamento distincto, com um aristocrata, por intervengao do padre Petigrain. Mathilde, a esposa de D. Jodo da Cunha, viu em breve a sua legilima completamente espatifada, e a felicidade que esperaya gozar convertida em constantes amarguras pelos des- varios e infamias de seu marido. Luiza, a mais nova, ficando em companhia da tia, entregara-se ao estudo e apaixonara-se pelo me- dico da casa, Jorge de Sousa, um rapaz de ideias modernas. 0 meio, porém, em que viviam era muito diverso; todas as amigas de D, Jacintha pertenciam 4 elite do catholicismo aristocratico, como fre- quentadoras de S. Luiz ¢ devotas do padre Petigrain. Este santo mi- nistro de Deus de um lado, e do outro o fidalgo arruinado.e estroi- na cubigavam a fortuna de Luiza, mas esta, protegida pela irma, lucta contra as armadithas da camarilha clerical, @ resolve-se a ca- sar com Jorge de Sousa, depois de hesitar por longo tempo em vir- tude do medico querer casar civilmente. Sao innumeras as intrigas € as calumnias forjadas pelo padre Petigrain e por D. Jodo da Cu- nha, para conseguirem os seus fins e evilarem o casamento com Jorge de Sousa, mas os esforgos e a intelligencia de Mathilde con- 7h REVISTA DE ESTUDOS LIVRES. ’ seguem afinal destruir os obstaculos e desfazer todas as invengdes jesuiticas. 2 Bi este, a largos tragos, 0 assumpto do Casamento civil. Se pre- tendessemos, porém, dar uma ideia do enredo complicado, das aven- turas, das peripecias, das scenas de effeito, que bordam do primei- © Yo ao ultimo acto esta comedia-drama, seriamos obrigados a encher mais algumas folhas de papel. 0 snr; Gypriano Jardim, ao contrario do snr, Teixeira de Queiroz, tem bastantes unturas dos dramatur- gos francezes contemporaneos. Como Dumas filho, sacrifica a cada passo a realidade 4s exigencias scenicas, procura palavras bombas- ticas que atordoem o espectador, declama para convencer, como 0 orador sagrado no pulpito, em fim s6 tem em vista o successo. Mas a sua sympathia por Sardou ainda nos parece mais entranhada; a complexidade da intriga, a serie infinda de aventuras, aS solugdes inesperadas, 0 abuso no emprego de carlas, tudo denuncia que 0 author do Divorgons 6 0 mestre dramatico do snr. Cypriano Jardim. No ultimo acto do Casamento civil para preparar o desenlace da intriga figuram nada menos de quatro carlas! Se passarmos a analysar os personagens, veremos que em quasi todos se nota falta de observagao da vida real. Luiza, por exemplo, nao 6 um typo inteiramente verdadeiro. N’um meio corrupto e fa- natico, em que toda a religiao e toda a lei social 6 a vontade do padre Petigrain, como se explica a instrucgao liberal de uma meni- na de 2{ annos e a sua coragem e decisdéo para expulsar do seu oratorio o confessor da tia? como ousa aflirmar ao jornalista Pi- nheiro que Jorge de Sousa ha de ser seu marido, antes do medico lhe fazer qualquer declaragdo de amor? e como depois de tudo isto ainda hesila no casamento e acredita nos embustes propalados pelo padre e pela sucia que o rodeia? O caracter de Luiza 6, na reali- dade, incomprehensivel e vago, sem unidade de concepgao, sem co- herencia logica entre os effeitos e as causas. O author nao foi mais feliz com Jorge de Sousa, o declamador incorrigivel, que por duas vezes invade sem motivos plausiveis a habitagao particular do pa- dre Petigrain, a segunda para contar a sua historia, uma historia romantica e sentimentalista, que nada justifica. A firmeza de cara- cler, as conviccdes democraticas, que distinguem o medico, aliis sem nos serem explicadas no decurso da comedia, vergam-se dian- te do amor; o snr. Cypriano Jardim quiz fazer de Jorge de Sousa um personagem essencialmente humano, quiz dar-Ihe um sopro de vida real, tornando o sentimento mais possante do que os princi- pios, mas na execugao faltou-lhe o senso da verdade e apenas con- seguiu diminuir 0 seu heroe, sem comtudo fazer d’elle um homem. Jorge de Sousa 6 um dos typos mais falsos do Casamento civil. Mathilde, D. Jofo da Cunha, Pulcheria sio mais completos, um 0 THEATRO MODERNO EM PORTUGAL 78 tanto mais yerdadeiros; o padre Petigrain esté muito longe de ser, nao dizemos ja um jesuita 4 altura da sua missio, mas mesmo qualquer jesuita vulgar; a viscondessa de Souto, Pinheiro, D. Tho- maz, etc., tém tracos caracteristicos, individualistas, porém quasi sempre exagerados. 0 melhor typo, talvez, de toda a comedia, aquelle em» que ha evidentemente uma observagdo mais exacta, 0 mais humano, 6 D. Jacintha, a mulher inexperiente, devota, igno- rante, que pratica o male o bem sem consciencia, guiada ape- nas por influencias exteriores que actuam sobre o seu organismo passivo e fraco. Se pozermos de parte as declamagdes emphaticas, as phrases rhe- toricas, que o snr. Cypriano Jardim faz de vez em quando recitar aos principaes personagens da sua comedia, notamos no Casamento civil, considerado no seu todo, um progresso bastante accentuado na linguagem convencional do theatro e uma tendencia para se aproximar da simplicidade natural. Esta comedia-drama 6, de facto, menos rhetorica do que as pecas mais applaudidas dos nossos dra- maturgos contemporaneos. No dialogo facil ¢ corrente o snr. Cy- priano Jardim cinge-se frequentes vezes 4 realidade. Por isso mui- tas scenas, encaradas isoladamente, traduzem com extrema precisdo © que se passa no mundo real; e provam-nos que o author nos po- deria dar uma comedia naturalista, se fizesse um estudo aturado e procurasse disciplinar o seu cerebro com o methodo experimental e com uma doutrina philosophica e scientifica. Como vémos, ha no Cusamento civil claros symptomas da mo- derna evolugao litteraria, apesar dos seus innumeros defeitos e da preferencia dada pelo author 4 imaginagdo sobre a observagao. Fal- ta-nos agora considerar a solugdo da these. Passando & analyse “deste ponto, perguntamos: como apresenta o snr. Cypriano Jardim © problema e como advoga a superioridade do casamento civil so- bre 0 casamento religioso? Pelo assumpto geral da comedia, que atras deixamos esbogado, vé-se facilmente que toda a lucta se trava em volta e por causa da fortuna de Luiza, ¢ nao da formula como se ha de celebrar 0 acto matrimonial. A these, que da o titulo 4 pega, toma desde logo um lugar secundario. Mas, ainda assim, fica no vago, porque o author nao nos diz a razdo da incompatibilidade entre a consciencia de Jorge de Sousa e as praticas externas do culto catholico. A instruc- go scientifica ou as ideias democraticas do medico nao bastam para Justificar a sua intransigencia. O snr. Cypriano Jardim sabe téo bem como nds, que a maioria dos incredulos aceita sem grande repu- gnancia as formulas usuaes da religido. A hypocrisia de se acatar publicamente o que se ridicularisa em particular, 6 uma praxe se- Suida por quasi todos os individuos. Sdo raros os que nao transi- 76 REVISTA DE ESTUDOS LIVRES gem, @ esses so sempre movidos por qualquer razio superior, moral ou intellectual, que os eleva acima do vulgo. Ora, Jorge de Sousa nao esta n’este caso; pelo menos o author nao se digna di- zer-nos qual 0 movel dirigente dos seus actos. Depende tambem desta falta a fraqueza dos argumentos empregados pelo medico.na defeza do casamento civil. 0 snr. Cypriano Jardim nao se ergueu 4 yerdadeira comprehensdo da sua these, Teve por isso de lancar mao de sophismas, de contrastes capciosos, de differengas ficticias, que nado existem perante a lei. 0 codigo civil portuguez reconhece eguaes direitos aos conjuges unidos por qualquer das duas formu- las, civil ou religiosa; quer perante o parocho, quer perante 0 ad- ministrador, marido e mulher contrahem os mesmos deveres, as mesmas obrigagdes reciprocas. Se em Portugal ja estivesse decreta- do 0 registro civil obrigatorio para todos os cidadaos, e se em vez da separagio de bens e pessoas fosse admittido o divorcio, entao os argumentos do snr. Cypriano Jardim seriam validos-e positivos, posto que sempre secundarios. Os motivos mais sérios, as razdes definitivas © primarias, que militam a favor do casamento civil néo as conhece de certo 0 illustre escriptor; pelo menos assim o pro- vou calando-as na sua comedia. So de uma ordem superior e li- gam-se 4 dignidade humana e 4 evolugao historica e natural das sociedades. Era n’este vasto campo, principalmente debaixo do pon- to de vista moral, que o snr. Cypriano Jardim deveria colher os elementos essenciaes para sustentar a sua these. 0 Casamento civil nao corresponde, portanto, ao fim para que foi escripto, Porém, este defeito, em geral, 6 commum a todas as obras dramaticas que se propdem a solugao de um problema. Du- mas filho nfo tem maior felicidade nas suas theses, § mais uma prova de que a obra de arte nao se deve subordinar a um destino preconcebido. VI Por tudo quanto deixamos dito, podem os nossos leitores ava- liar o estado do theatro portuguez na actualidade. Desde Garrett ainda nfo encontrou um talento brilhante que Ihe désse vida, que o levantasse da miseria e da ruina, em que cahiu. A poesia e © romance surgiram da sua lethargia, ao mesmo tempo que a his- toria, a critica, e os estudos scientificos e philosophicos. 0 positi- vismo nos dominios da philosophia e o naturalismo nos dominios da arte deram um novo impulso 4 intelligencia humana. Portugal seguiu a corrente que dirigia os espiritos em toda a Ruropa. 0 theatro, porém, ficou atrazado, se nao estacionario. 0 Casamento civil e 0 Grande Homem, representam o grau actual da passagem © THEATRO MODERNO EM PORTUGAL, 77 da forma romantica para a forma realista nos palcos portuguezes. If preciso continuar, avancar mais alguns graus, entrar francamente no movimento naturalista. . Ponha-se de lado todo o velho scenario romantico, como ja se poz o scenario classico; abandonem-se as convengdes na lingua- gem, nos personagens, nas scenas, nos finaes de acto, nos enredos, _ em tudo emfim que faz parte como elemento indispensavel, da lit- teratura dramatica. Acabe-se de uma vez para sempre com todo 0 material gasto é phantastico dos dramas romanticos. Substituam-se 08 bonecos, os bonifrates, por homens de carne e osso, apanhados na vida real e escalpellisados com o maior rigor scientifico. Descre- -vam-se, pintem-se os meios que exercem accdo sobre os caracteres @ sobre as qualidades dos personagens. Desterre-se 0 symbolismo das virtudes e Mos vicios e em seu logar introduzam-se na scena do- cumentos humanos, copiados da existencia real. Liguem-se os fa- ‘clos @ os individuos de um modo logico e coherente, que faca de ‘todas as scenas é dos varios aclos uma serie determinada de cau- ‘sas ¢ éffeitos. Ter-se-ha assim 0 naturalismo no theatro. Teixema Basros. DO) METHOD) A SEGUIR NA APPLICAGAO DO REALISMO A ARTE (Continuado da pag. 40) O snr. Silva Pinto, com o bom senso que caracterisa a sua auctoridade de critico severo e justiceiro, disgrega em dois grupos os escriptores realistas — psychologistas que tém por principaes -Tepresentantes Balzac e Stendhall, precursores da nova formula, e physiologistas que se filiam em Flaubert e Zola. Depois, desenvol- vendo 0 seu trabalho consciencioso e erudito, exalta o methodo psychologico, attribuindo a inferioridade dos caracteres de Zola, em confronto com os typos colossaes do auctor da Comedia huma- na, 4 insufficiencia do methodo physiologico e nega 4 observacao exterior a forca indispensavel para attingir o fim da arte, que deve ser a interpretagao da verdade natural. Se bem nos recordamos, a mesma distinccio foi estabelecida por outro critico illustre, o snr. Alexandre da Conceigao, na classi- ficagao que fez de alguns escriptores realistas portuguezes. Acceitamos esta opinido, subentendendo-se que nenhum dos methodos, s6 de per si, 6 susceptivel de nos dar um conhecimento exacto e verdadeiro da alma e temos como profundamente verda- deira a distincedo, baseada nao na exclusiva applicagao de qualquer dos methodos, mas no predominio de um on de outro. E de facto parece que o abalisado critico se nado distanceia ~ APPLICAGXO DO REALISMO A ARTE 7” @este ponto de vista, quando, na apreciag&o do primeiro trabalho do iniciador do realismo em Portugal, encarece a poderosa allianga da observacao subjectiva e objectiva, pela filiagéo por um lado em Balzac e por outro pela assimilacfo em Flaubert da sciencia dos temperamentos. Mas, ao mesmo tempo, de todo este seu trabalho de lucida critica, a que nos vimos referindo, resalta uma manifesta predilecedo pela observacao introspectiva, considerada a observagao externa como secundaria e subsidiaria. Tambem nos quer parecer que uma exacta e verdadeira sciencia mental jamais podera ser fundada sem esta allianga. Para se comprehender a necessidade de que a introspeccao e a observagao exterior se apoiem mutuamente, basta considerar, por um lado, que a consciencia, que nem sequer nos revela a existen- cia do cerebro, accusa a séde de todas as sensagdes no exterior, quando a physiologia demonstra irrecusavelmente que toda a sen- sago se localisa no cerebro, em quanto que, por outro lado, se Teconhece que nunca poderiamos ter uma ideia exacta do que é um prazer ou uma dor sem alguma vez a termos sentido. Combi- nando, porém, as reyelagdes da consciencia com os processos phy- siologicos da sensibilidade, adquire-se esse conhecimento com rigo- Tosa exacgao. g : Mas a qual d’estes elementos de observagio cumpre dar prefe- Tencia para se langarem as bases de uma solida e verdadeira scien- cia do espirito? Francamente confessamos a nossa: hesitagao; mas, constituidos Ma necessidade de opgao, nao duvidariamos pronunciar-nos pela excellencia e superioridade do processo physiologico, quando atten- famos como o methodo inductivo e objectivo, triumphante na es- phera dos factos de ordem physica, alarga as suas conquistas na orbita dos phenomenos psychicos. A observacdo mais completa 6 a que parte do exterior para 0 interior; a contemplagao interna, entregue sé a si, fluctua no vago _ @ no especulativo; langa-se nos erros da melaphysica e, quando se considera quantas abusdes tém sido varridas dos horisontes da - Sciencia alargada, nao pela introspecgao individual, mas pela obser- vagio objectiva, o espirito inclina-se necessariamente 4 convicgéio da superioridade d’este ultimo methodo, © Seja exemplo de um dos maiores erros da metaphysica, e ao qual foram arrastados espiritos superiores como o de Descartes, a crenga de que a actividade cerebral nao cessava nunca. : A physiologia veio demonstrar nao s0 a espacejada inconscien- do espirito, mas alé a sua absoluta inactividade. E uma nao existencia pela falta de consciencia sem aniquilamento. Os maiores progressos da sciencia devem-se aos instrumentos SS aie REVISTA DE ESTUDOS LIVRES gue reforgaram os sentidos. A astronomia, uma das sciencias que Maiores conquistas tém alargado no campo incommensuravel do incognoscivel, deve os seus maiores progressos a instrumentos,.co- mo 0 telescopio e espectroscopio, que tanto augmentaram a acui- dade do apparelho visual. Se 0 espirito 6 a funcedo do orgio mais importante da vida — 0 cerebro, necessariamente o estudo scientifico dos processos psy- chicos deve ser precedido pelo estudo dos processos vilaes, que nao podem ser comprehendidos exclusivamente pela consciencia in- ‘dividual. : fi este 0 methodo mais racional—partir do simples para o complexo em uma serie ascendente de generalisagdes, que se ba- seiem em factos irrefutaveis, e 6 exactamente aquelle que nio péde ser praticado mediante a interrogacao exclusiva da consciencia. A contemplagao interna, sémente praticavel em um grau elevado de desenvolvimento mental, fixa-se nos phenomenos mais complexos da actividade psychica e, menosprezando os factos singelos e as phases inferiores e rudimentares do, espitito, sem as quaes sao in- comprehensiveis os phenomenos de ordem superior, esterilisa-se nas empiricas incertezas da metaphysica e briga com 0 methodo inductivo, universalmente adoptado e o mais conducente a seguras generalisagdes, A observagao psychologica s6 intervem efficazmente, quando o » esforgo do raciocinio incide sobre os elementos condensados pela observacado exacta da natureza e pela analyse experimental. A pro- pria psychologia tem reconhecido a importancia e a necessidade da physiologia, abandonando o seu methodo exclusivo de observagao especulativa e assimilando as descobertas physiologicas: mas ao mesmo tempo forceja sempre por sustentar a sua preeminencia nas divagacdes transcendentes, em vez de reconhecer a superioridade da physiologia, d’onde dimana toda a luz que esclarece as fancgdes do espirito. Para a investigacao scientifica 6 de capital interesse fixar 0 pre- dominio da physiologia, nao por mera banalidade de vaidosas pre- cedencias, mas porque se trata de uma revolugdo profunda de me- thodo, a qual visa principalmente 4 fundagao de um methodo unico pela allianga da observagio objectiva e subjectiva. Sob este ponto de vista a questao reflecte-se tambem no campo da arte: a arte, embora dentro de uma esphera de -acgdo independente da sciencia, recebe-lhe a influigao, como a natureza recebe a luz fecundante do sol. 0 que importa determinar 6 que o artista nao péde internar-se no labyrintho das emogdes que tém por séde o systema nervoso, coroado pelo cerebro, sem o auxilio fundamental da physiologia; APPLICAGAO. DO REALISMO A ARTE 8t que o homem interno nao pdde ser revelado sem a prévia disseca- ¢ao do homem exterior; que uma psychologia inductiva nao pode ser fundada com verdade e seguranga sem a primordial observagao objectiva. A sciencia dos caracteres tem por guarda avangada a sciencia dos temperamentos; os sentidos em accdo denunciam o homem interior. A analyse do homem 6 uma verdadeira dissecagao moral; surprehendendo-o em flagrante actividade sensoria, 0 artis- 4a apodera-se-Ihe da alma e comega entao a laboragao psycholo- gica. O artista estuda o seu personagem, heroe ou typo secundario que sirva para dar relevo as figuras principaes, nos seus habitos, Nos seus actos, nos seus gestos, nas suas palavras, nos tragos phy- sionomicos, em todas as suas relagdes exteriores com 0 meio am- biente, e 0 caracter, o temperamento, a alma, resaltam, como que n’uma intuigao luminosa, d’este conjuncto de circumstancias exter- E & objeceéo de que se logra tio sémente fazer uma mistura confusa, tentando-se crear uma unica sciencia pela aboligao da dis- tinegdo entre psychologia e physiologia, responde Maudsley, em cujos lucidos trabalhos nos apoiamos, que prefere estar em concor- dancia com a natureza, em vez de cingir-se 4s divisdes superflua- mente impostas pelo homem 4 natureza. Quando se acompanham com attento exame os trabalhos de Luys @ Maudsley, nado se péde contestar a importancia da physiologia na investigagao dos phenomenos psycho-intellectuacs. Justica 6 entao reconhecer, que os creadores de uma physiologia do espirito, resol- vendo satisfactoriamente os phenomenos da actividade mental e af- » fectiva, para explicar os quaés 6 manifesta a impotencia da sciencia especulativa, se apossam com yantagem do campo, onde se erguia 0 grandioso edificio da metaphysica, que arrojava aos espagos trans- cendentaes a sua architectura sem alicerces na terra. A observagao positiva e a experimentagio, symbolisadas em Comte e em Claude Bernard, sao os grandes utensilios do seculo. _ A sociedade tende a transformar-se sob a acc&o poderosa da sciencia Positiva, e.na arte, que 6 a expressdo da vida, ha de reflectir-se esta evolucgdo n’um movimento impulsivo para a interpretagao da natureza, Sempre que se descura o estudo da natureza, a arte decae. assim: que Taine explica a decadencia nao 86. das escdlas litterarias, tas tambem dos grandes artistas, como Miguel Angelo, que na ve- Ihice, sendo ainda superior a todos os outros, 6 inferior a si mesmo. Foi tambem assim que a arte se esterilisou, quando se afastou _ das fontes vivas da observagio natural, escravisando-se nos moldes- chatos e convencionaes do classicismo e 6 tambem pela mesma ra- 1° Axxo. 6 82 : REVISTA DE ESTUDOS LIVRES zio que o movimento litterario de 1830 ficaria incompleto sem o moderno triumpho do realismo. 0 realismo, invocando a verdade como fonte de toda a inspira- gao artistica, nado inventou certamente nada de novo. Somente a formula realista resolve de um modo efficaz e posi- tivo o problema do triumpho da verdade natural, quando outras escdlas, quicd com os mesmos intuitos, lograram apenas desfigu- ral-a_n’uma ridicula mascarada. : B este o seu melhor merecimento e indisputavel titulo de gloria. (Continia). Jutio LouRENGo Pinto. A QUISTAO DO ZAIRE O que vamos fazer hoje nao 6 por forma alguma a critica da questdo, 6 a sua exposicao apenas. Rigorosamente, expdl-a, 6 resolvel-a. Mas as solugdes mais faceis no campo da historia, do bom sen- 80 pratico, do direito conhecido e assente, encarrega-se, ds vezes, a diplomacia de as complicar extraordinariamente, de as tornar por largo tempo embaragosas @ asperas, quando as nao entrega, a © desastrada, ao «juizo de Deus » dos sabres e dos ca- \0eS. E nao 6 porque a sua missao seja esta, ou porque ella nao te- nha realmente a desempenhar no mundo moderno, mais e melhor do que no mundo antigo, uma grande e redemptora missao. Longe porém nos levariam estas consideragdes e nds propomo- nos apenas a expér summaria e rapidamente o que 6, e em que termos se acha a questéo do Zaire, que prende naturalmente ago- ra todas as nossas attengdes caseiras. Um pouco obedecendo ds condigdes ethnicas da nossa formagao nacional, um pouco impellidos pelas condigdes fataes e exteriores Wessa formagdo, langimo-nos —da nesga da terra em que fizera- mos 0 ninho d’uma das mais perfeitas nacionalidades da Europa moderna, aos « mares nunca d’antes navegados ». Cheios d’uma possante e original vitalidade que nao encontra- va jé, porque viera tarde, n’essa Europa, campo asado e livre em que podesse expandir-se, descobrimos metade do mundo 4 outra metade e alastramo-nos, permita-se-nos a expressdo, por climas € regides até entio inteiramente desconhecidas, umas, outras mal antevistas apenas nas brumas da tradigao e da lenda antiga. * : 4 } 8h REVISTA DE ESTUDOS LIVRES Alongando-nos pela costa d’Africa, devassamos 0 Zaire e estabe- lecemo-nos como senhores n’aquella parte da terra que a gcogra- phia d’entdo julgava defoza ao homem, e que o direito do tempo, que nao deixou de ser o de hoje, entregava 4 soberania politica do primeiro descobridor europeu. Estabelecemo-nos pacificamente n’uns pontos, por espontanea submissio dos indigenas; estabelecemo-nos, conquistando, n’outros, por direito de civilisagéo e de vida, Toda a costa africana foi devassada e explorada por nds; fixd- mo-nos n’ella; fundamos cidades e creamgs mercados; rompemos pelos sertées a dentro; entregdmos, emfim, a Africa equatorial, 4 civilisagiio européa, sob a nossa bandeira e 4 custa exclusivamente dos nossos esforgos e do nosso sangue. Enviado pelo rei de Portugal em 1484 a continuar a descober- ta africana « por servigo de Deus, augmentagio da nossa santa 6 e bem e acrescentamento de nossos reinos», segundo se exprime 0 diploma de 14 d’abril d'aquelle anno, que o nomeou, Diogo Cam, descobria o Zaire, fixava ahi o padrao de posse e soberania nacio- nal, a0 costume da época, e abria as primeiras relagdes européas com a que era entio a mais poderosa potencia africana do lado do occidente, a nossa actual vassallagem do Congo, que se estendia, ao norte, até ao Loango. . Bm 29 de marco de 1491 desembarcava no Zaire uma expedi- ¢Go portugueza que se internava até a nbanza do potentado, e@ parte da qual ia pouco depois em tom de guerra, auxiliar a sub- missao da gente revolta do Macoco, aquelle phantasiado imperio da nao menos phantasiada descoberta do moderno explorador italiano ao servico da Franga, 0 snr. Savorgnan de Brazza. I necessario dizer ainda que 0 Macoco 6 um nosso velho conhe- cido, antigo vassallo do Congo, com o qual os portuguezes « ordi- nariamente commerciavam » nos seculos xvi @ Xvi, na phrase con- temporanea de Garcia Mendes Castello Branco? Foi rapido o estabelecimento da nossa suzerania no Congo. Puzemos alli determinadas authoridades ; introduzimos os nossos usos ¢ a nossa justica, e acabamos por fundar na nbanzo capital, que crismamos em §. Salvador, a séde de um novo bispado do padroado portuguez. Monopolisavamos e regulamentavamos o commercio do nosso novo dominio, ao uso © direito do tempo, e 0 rei portuguez assu- mia 4 face do mundo e sem contestagio de ninguem o titulo, que nao representava entio uma simples ostentagao honorifica, de se- nhor da Guiné. ‘Ao norte, a nossa occupagio era representada por feitorias reaes. Arrendavamos 0 commercio da costa, e defendiamol-a dos aventu- A QUESTO DO ZAIRE 85 reiros estranhos que tentayam abordal-a ou fixar-se n’ella, sem permissio do governo portuguez. Do lado do sul, tendo-se mallogrado o intento d’um estabeleci- mento pacifico, iniciavamos valentemente a conquista dos territorios que hoje completam d’este lado a nossa provincia d’Angola, sub- mettendo successivamente 4 nossa soberania culta os potentados e povos indigenas, Nao 6 agora occasiao de nos demorarmos na historia alids tao tristemente viciada por uns, e tao deploravelmente ignorada por outros, da formagdéo do nosso vasto dominio continental ao sul do equador e do lado do occidente. Faltaram infelizmente a essa his- toria os grandes chronistas que transmittiram 4 posteridade a epo- péa da India. Ao terminar 0 seculo xvi, 0 que podemos chamar a capitania dAngola, tinha ja por limite norte 0 Loango, cuja feiloria real fora desannexada dos resgates de S. Thomé, e poucos annos depois, pela fundagdo de Benguella, em 1617, aproximava-se do seu actual li- mite sul. Veio porém a grande desgraga nacional d’aquella uniao iberica dos Philippes, em que o nosso grande imperio colonial esteve a pi- ‘que de desapparecer inteiramente. Recuperada a independencia portugueza e reconquistada Loanda aos hollandezes que nado haviam conseguido destruir 0 nosso domi- nio, nem radicar 0 seu, a nossa vasta provincia africana foi rapida e vigorosamente reconstruid f verdadeiramente prodigiosa esta como, que resurreigio da ve- Tha energia e do valoroso egpirito da gente portugueza: — pagina das mais brilhantes da nossa historia, infelizmente escondida ainda no fundo dos archivos, ou mal revelada apenas em succintas nar- rages superiiciaes. i Parece que d’aquelle pobre e abatido presidio de Massangano, se despegam em todas as direcgdes verdadeiras avalanches que le- vam até ao fundo dos sertdes o castigo da perfidia indigena e da intriga hollandeza. Os invasores e os aventureiros europeus sao expulsos do Zaire @ da costa até ao Loango. ‘ 0 Congo, a Nginga, o Golungo, o Libollo, a Quigama, abrem- se de novo ao prestigio e 4 soberania portugueza. Todos sabem porém como sahimos enfraquecidos, desnorteados € pobres da dominagao philippina e da longa e terrivel lucta, néo 80 bellicosa, mas diplomatica, que nos custou a victoria. Gara a pa- gamos a adversarios, e o que 6 mais triste, a amigos e alliados tambem. Reconstituido o nosso dominio angolense tivemos de concen- 86 REVISTA DE ESTUDOS LIVRES trar as poucas forgas cangadas e gastas que nos restavam, e nao estabelecemos uma occupagao effectiva e permanente no Zaire @ a costa adjacente ao sul e ao norte, sem que por isso, comtudo, surgisse de qualquer parte a idéa d’um abandono de direitos sobe- anos, que até muito depois nio foram contestados, Muito ao contrario. Ainda em 1723 expulsayamos de Cabinda os aventureiros in- glezes que alli haviam contruido um forte, e pensavamos em cons- truir um posto fortificado no Gabao. Rm 1752 propunha-se que fortificassemos Loango, Molembo @ Cabinda. Em 1779 ordenava-se a construgao de pequenas fortalezas em Cabinda, Molembo, margens do Zaire e Ambriz, e finalmente em 1783 fundavamos uma n’aquelle primeiro ponto. Nenhuma objecgao surgia; nenhuma reclamacao se fazia ou- vir, Todos reconheciam a soberania portugueza n’aquelles territo- rios, Foi em 1784, quando faziamos o forte de Cabinda, que essa soberania, ao norte do Zaire, se achou, n&o positivamente contes- tada, nao discutida sequer, mas surprehendida e affrontada violen- ta. abusivamente por uma nagdo amiga, ou o que é mais exacto, por um delegado d’essa nagao. ‘i Referimo-nos ao acto de Bernard de Marigny, intimando 4 nos- sa guarnig&o, toda ella enferma, o abandono do seu posto, sob a ameaga das baterias de duas fragatas francezas. Nao precisamos refazer a historia d’este facto inaudito, porque elle foi invalidado e annullado pela briosa satisfago que a Franca nos deu na convengao de Madrid, em 1786. 0 que porém convém recordar 6 que n’esta convenc%o, depois que 0 representante francez nos assegurou em nome do seu sobe- rano que o acto de Marigny nao tivera por fim contestar ou dimi- nuir os direitos soberanos que Portugal se attribuia n’aquella cos- ta, € que a Franea nao poria o menor embarago, de qualquer na- tureza ou por qualquer modo, «a essa soberania e ao seu exerci- cio », —o ministro portuguez declarou que o seu governo conce- dia de boa mente a liberdade do trafico ao norte do Zaire, recu- sando-a porém_n’este rio e ao sul d’elle, 4 Franca, como a qual- quer outra nagao, porque d’esse lado a colonisagio e 0 commercio nacional sé achavam estabelecidos e organisados por uma forma re- gular e continua, — querendo significar evidentemente que nao po- dia permittir que pelos portos do sul e por aquelle rio, os estran- geiros levassem para as suas colonias os bragos de que muito ca- feciamos nas nossas. A QUESTAO DO ZAIRE 87 Tanto a Franca reconhecia sinceramente a nossa soberania na costa do norte e no grande rio africano, que exactamente declarou aceitar esta concessio e conformar-se com a defeza do trafico, pa- ra 08 seus subditos, ao sul do rio, visto que essa defeza era exten- siva aos outros estados. claro que esta situag%o particular caducou de ha muito com a liberdade de communicacio e de commercio estrangeiro, — fixa- da pelo uso, ou estabelecida pela lei, em toda a nossa costa e por- tos d’Angola. 0 que nao caducou porém 6 0 principio fundamental da convenc&o, o que lhe deu origem, 0 que a explica e o que ella teve por fim definir isto 6, que a Franga nao contesta nem pre- tende diminuir os direitos soberanos de Portugal na costa do norte, e nenhum embarago e nenhuma objecgdo poe «a essa soberania e a0 SeU EXEFCIClO ». Vejamos agora quem tem objectado, e porque, nao tanto o nos- 80 direito, como o seu regular exercicio. B esta rigorosamente a questao do Zaire, sob o seu aspecto diplomatico de occasiao. Contimta), LucIANO GORDEIRO. TRADICDES POPULARES E DIALECTO DA EXTREMADURA HISPANHOLA Fundou-se ha pouco no vizinho reino mais uma revista para © estudo das tradigdes e dialectos populares, —o Folklore freanen- Se, orgdo da. sociedade do mesmo nome, constituida o anno passado em Fregenal de la Sierra (Badajoz), sob a presidencia do illustrado jornalista o snr. D, Luiz Romero y Espinosa, O 1.° numero, que tenho 4 vista, correspondente a Janeiro-Abril de 1883, traz uma grande variedade ‘de materiaes folkloricos e glot- tologicos, que séo muito bem vindos para os que se occupam de taes_estudos. Vou passar em revista alguns d’esses materiaes. Los tres claveles 6 um conto popular recolhido com muita cir- cumspeceao pelo snr. Sergio Hernandez, que, por esta simples amos- tra, se me afigura ter uma exacta comprehensao do folklore. Como collector diz na not. de pag. 24, 0 conto dos tres claveles apre- senta analogias com outros contos conhecidos. A circumstancia da penna da ave molhada curar a vista pdde identificar-se com uma lenda christa das provincias bascas de Hispanha, publicada in Mé- lusine, col. 554. El paso de la santa cruz 6 uma representagao religiosa inte- ressante ; mas nao posso deixar de extranhar a maneira pouco scien- tifica por que o collector, o snr, M. R. M., termina o artigo. Sob 0 titulo de Miscellanea incluem-se varios factos tanto em ae, como em prosa. Na arithmetica popular ha uma cangao po- pular Al rebej he de contar Las piedras de tu coluna, ete., TRADIQOES POPULARES 89 a proposito da qual o collector remette o leitor para os Cant. pop. esp. de R. Marin, onde vem composigdes analogas. Nas minhas Trad. popul. de Port., pag. 32, publiquei uma cangio muito seme- Ihante. Nos Cant. pop. venez. de Bernoni, 1, 84, vem tambem um canto sé de numeros (apud Romania, m, 368, onde se citam mais exemplos), Effectivamente o canto dos numeros 6 vulgar. Nas ali- cantinas vem umas rimas Una hora duerme el santo, Dos el que no es tanto, ete. que se podem comparar com umas que publiquei no meu opusculo O dialecto mirandez, Cfr. mais estas que ouvi a um meu condis- cipulo e que se dizem nos serdes 4s pessoas que tem somno: Tres horas dorme o santo, Té quatro nao sera tanto, Cinco 0 estudante, Seis o andante, Sete o eaminhante, Oito o porco, Nove o que teve desgosto, E daqui p’ra cima Dorme 0 morto. (S. Vicente pr Sousa). Na Bibliographia 0 meu amigo o snr. Romero y Espinosa inse- re um bom numero de dictados topicos hispanhoes a proposito dos portuguezes que eu publiquei em opusculo em 1882, e ensaia por fim uma classificagdo provisoria que facilita realmente o estudo d’el- les, com quanto as secedes indeterminados e determinados fiquem melhor reunidas numa, porque tao determinado é 0 dictado Al andaluz Hazle Ja cruz que o A. inclue nos indeierminados, como est’outro Medicos de Valencia, Luengas haldas Y poea ciencia 1, 2 Aproveito a occasiao para dizer que na collecgdo Philosophia popu- lar de proverbios, n.° 48 da Bibliotheca do phvo e das escélas de Lisboa, acho tainbem ‘Medteos do Valonga, Grandes faldas, Pouca scloncia, REVISTA DE ESTUDOS LIVRES que o A. inclue nos determinados. Acaso Andaluzia e Valencia nao sao dois pontos bem determinados? Se Valencia, por ser uma loca- lidade, 6 determinada com relagao 4 Andaluzia, que 6 uma pro- vincia, tambem a Andaluzia, que o A, inclue nos indeterminados, se pdde considerar determinada em relagio 4 Hispanha toda, e as- sim por deante +, Direi agora duas palavras da linguagem vulgar extremenha, fundado nos textos da revista, e com especialidade nos dois artigos Caractéres prosddicos del lenguaje vulgar freanense por Luiz Ro- mero y Espinosa, e Lenguaje vulgar extremeio por M. R. M. A re- vista do Folklore freenense veiu confirmar o que eu ja tinha sus- peitado, i. 6, que entre a linguagem da Extremadura ¢ a da Anda- luzia havia intimas relagdes. Um dos caracteres distinctivos da lin- guagem extremenha parece ser a aspiracdo, cuja escala o snr. Es- pinosa gradua assim: 7, s, 2, h. Or final, 0 s tambem final antes de palavra cuja consonancia inicial seja s ou h mudo, e 0 2 egual- mente final aspiram-se. A regra da aspiragao do h é esta: succeder a um f original; comtudo muitas vezes a analogia e outras causas podem trazer excepgdes 4 regra. Ii por isso que se diz sem aspira- g&o, por ex.: hombre (lat. hominem), hoy (lat. hodie), haber (lat. habere), hospede (lat. hospitem), e com aspiragao, por ex. jigo (lat. ficus), jorno (lat. furnus), jue (fue), etc. No seu importante es- tudo Dw C dans les langues romanes (16.° fasc. da Biblioth. de Vécole des hautes études, Paris 1874) diz Ch. Joret: «On sait que cette transformation de fen h est un procédé habituel de Ja Jan- gue espagnole; ex. hado (fatum), hierro.(ferrwm), etc. Mais I’h qui en résulte est muette, du moins dans l'état actuel de la langue». (Ob. cit., pag. 19, not. 4). Em vista da pronuncia extremenha (e andaluza) a affirmagao de Joret fica um pouco restricta. Esta aspi- ragaio vem ja de longe, porque a lingua archaica conheceu-a, como se pode vér em Fr. Diez, Gramm. des l. rom., 1, 347 sqq. Nao sera sem interesse, pelo menos para alguns leitores, transcrever 0s seguintes periodos das Mélanges etymologiques de J, Storm a re- speito do h aspirado andalua: «C’est & cause de cette aspiration que les Castillans disent par plaisanterie Jdndalo pour el habla anda- tus. Cette prononciation se trouve aussi chez les paysans de Puer- to-Rico. Pajeken dans son excéllente Grammatik der spanischen Sprache, 2.* ed. Bréme 1868, dit p. 160: «C'est parmi les pay- «sans dits Jibaros, de l’'ile de Puerto-Rico, lesquels sont des des- . 2 Posteriormente 4 publicagio da revista sahiu no n.° 474 de El Eco de Fregenal um extenso art. assignado por Micréfilo sobre Dictados tdpicos hispanhoes. TRADIGOES POPULARES mw «cendants pur sang des premiers conquérants du pays que 1’an- «cien espagnol s’est probablement maintenu le plus longtemps, «Chez eux je trouvais d’usage journalier des mots comme ainsi, «agora, qui ont vieilli partout ailleurs, et le 4 des mots hambre, «hembra, hablar (hombre), etc. aussi fortement aspiré que dans «Vallemand haben, Hand, Hund». L’exemple hombre est probable- ment erroné — » (in Romania, vy, 179). Nao 6 este o unico caso dea lingua que os colonos levaram para Jonge da metropole con- servar até hoje antigas particularidades ; da-se tambem com 0 por- tuguez, e, como em breve veremos, com o castelhano n’outras lo- calidades. —O h antes de we soa como g. Sobre este ponto cfr. o meu Dialecto mirandez, pag. 39.— Outro phenomeno caracteristi- co 6 a passagem de JI (! molhado) para y, como: Castiya (Castilla), eabayo (cavallo). Este facto 6 commum 4 lingua de Bogota * e de Buenos-Ayres *; mas, assim como em Higuera-la-Real (Hespanha) se di o inverso, por uma analogia natural, e se diz Werba (yerba), buelles (bueyes), tambem em varios pontos do dominio geographi- co do hespanhol na America (Nova Granada, Guatemala) se ouve oll (hoy), Popallan (Popayan) *.—A mudanga de / em r 6 muito frequente na Extremadura hispanhola. Bscreve o snr. Espinosa: «No percibimos todavia la ley que rige a este fendmeno; pero pa- rece que pudiera ser formulada, en lo tocante 4 los ejemplos pre- sentados, diciendo que la / se convierte en * cuando va precedida de la vocal a y seguida de m 6 d» (pag. 36). Comtudo a revista traz er (el). A lei geral parece ser que, semelhantemente ao que se d4 no nosso Minho, o / se muda em r quando termina syllaba. — Em tamié (= tambien) ha um phenomeno de assimilagaio, analogo ao que se di em portuguez nas palavras vulgares t¢mem (= tam- bem), iméra (= embora), amos de dois (= ambos de dois). No Elucidario de Viterbo vem ji nds amos (=nds ambos). 0 mesmo ‘se da no port. mod. agamarcar (ant. agambarcar, que vem em Viterbo, s. v). Creio ser ainda 0 mesmo phenomeno 0 que nos re- Vela 0 extremenho hispanhol en’a (= en la);‘como se sabe, o port. moderno no, na corresponde a em lo, em la, em virtude dos se- guintes intermedios, que se encontram nos nossos doc. ant.: em 70, em na (e &no, éna), eno, ena *. 1 Apuntaciones criticas sobre el lenguage bogotano por Rufino José Cuervo. Bogota, 1876 (apud A. Morel-Fatio, in Romania, vu, 624). # G. Maspero: Sur eee singularités phonétiques de Pespagnol par- 4& dans la campagne de Buenos-Ayres et de Montevideo (in Mémoires de la Société de linguistique de Paris, tom. u, pag: 64). 8 Romania, vi, 622. 4 0 Elucidario de Viterbo offerece as formas cono, conos dos sec. XIL 92 REVISTA DE ESTUDOS LIVRES No extremenho po la mano ha egualmente uma assimilagio la). No dialogo de pag. 40 do Folklore freanense vem ogaiio cor- respondente a este ao; aquella forma, que corresponde ao port. f- do sec, xiv (apud Viterbo) ogano, 6 evidentemente o lat. hoc an: F- no. Bm entiej ha tambem uma correspondencia exacta ao lat. ante A quéda do d 6 um phenomeno vulgar, néo sé na Hispanha, © onde ja 6 conhecido ha muito (no andaluz; vid Romania, 1v, 16 6 not.), mas em Bogota (Romania, vu1, 622) e em Buenos-Ayres (Maspero, loc. cit., pag. 61). A forma toito 6 um deminutivo de to- do, como Perico 0 6 de Pedro. Em naina ha o mesmo deminutivo de nada? (Cfr. port. nadinha). : A correspondencia de r a d da-se tambem nas localidades cita- as. A palavra seviora esta traduzida em extremenho por jefiora e sofia (clr. creolo sitd); qual 6 a distincgio? Dos exemplos juntos na revista parece-me que sefid se junta a um substantivo (send mayordoma, pag. 26; sefid Jwaquina, pag. 40), e que jefora se arbres! como simples vocativo independente (No, jefiora, pag. 40) 4. 3 Na mesma pag. 40, a phrase extremenha tio Perico esta tradu- zida por smr. Pedro: tambem na Extremadura hispanhola, como em Portugal, 6 costume tratar por tios e tias as pessoas de certo respeito *? Um facto curioso de syntaxe 6 0 emprego do infinitivo pelo im- perativo (pag. 23, elc.), emprego que tambem 4s vezes se dé em portuguez, Seria muito interessante: reunir as formas vulgares dos nomes proprios, ja de homens, ja de localidades; de homens a revista of- — ferece aqui e além Frajco (Francisco), Bajlian (Sebastido), Perico, (Pedro); etc. Tambem recommendo aos snrs. Espinosa e M. R. M. a @ xIv em vez de com 0, com os ; houve evidentemente os mesmos interme- dios com no, com nos (cd no, cd nos), que nao posso agora dizer se se en- contram nos nossos doc. antigos, ¢ com lo, com los. A assimilagio que exis- te em com no, ete. a respeito de com lo, ete. deu-se de um modo semelhan- te no ant. dialeoto leonez conno, enno (Ctr. Romania, 1v, 39). Dio-se factos analogos em portuguez. Ouve-se muitas vezes uma -pessoa dirigindo-se a outra do sexo masculino: sim, senkora; mas nunca s6 ouve senhora fulano em vez de senhor fulano. Diz-se por ex., conforme as localidades, num quero, n@ quero, mas quando a negacgao vem s6 diz-se nom ou ndo. Cf. 0 meu Dialecto mirandez, not. 46. 2 Cfr. as minhas Trad. populares de Portugal, not. 142. Os romanos empregayam is vezes pater em sentido analogo. TRADIGOES POPULARES =~ 93 indicagao exacta nao sé das localidades onde ‘ha variedades diale- ctaes, mas d’aquellas em que se dio os phenomenos caracteristicos ' do dialecto. Apesar de quasi todos os termos extremenhos virem _ acompanhados da respectiva significagao, far-se-ha um bom servico publicando no fim do vol. da revista um glossario (com a referen- cia as pag. dos textos) dos termos empregados, para assim se fa- cilitar 0 estudo d’esses termos. Os dois artigos do snr. M. R. M. e Espinosa. podiam com van- tagem ter sido fundidos num 86, para evitar repetigdes, e para 03 factos da mesma categoria ficarem juntos. Uma comparagao do ex- tremenho com o andaluz e os outros dialectos hispanhoes intra- é extra-europeus fora tarefa apreciavel. No artigo do snr. M. R. M. nao posso deixar de notar a phrase: « Sin duda el catalan y el gal- lego son dos dialectos del mismo castellano, 4 pesar de sus marca- das diferencias con él, especialmente el primero, muy influido de raices provenzales y francesas » (pag. 39). Nao se escreva tao fa- cilmente um sin duda; o que 6 sin duda 6 ter o A. feito uma af- _ firmagdo completamente falsa: 0 catalfo e o gallego s&o dois dia- lectos n&éo s6 independentes entre si, mas entre elles e o castelha- no. 0 A. péde vér isso explanado ja em actores nacionaes, ji em ' extrangeiros, como Diez ¢ outros. Tambem no dialogo apresentado pelo snr. M. R. M. a traduccao castelhana devia ser mais literal do que 6. His agora, para dar aos leitores uma amostra mais clara do dia- lecio extremawro 1, um pequeno conto popular que vem a pag. 57 da revista: «Una vehj cogié Nuehjtro Seid 4 tohj lohj malohj qu’habia en ’a groria y lohj até con una cuerda, y lohj puso recorgando der cielo. Cuando ehjtaban ataohj toitohj le dijo 4 San Pedro que cogiera la cuerda y se ehjtubiera asina jata qu’ er le dijera que sortar’ aqueya gente. Pohj ® seid, que se puso er Seid 4 deci misa, y cuando ba . Ydice: Surswn [i. 6, sursum] corda, y que s'iba figurao San Pe- dro? Pens6 qu’er Seid I’ iba dicho: swerta la cwerda, y la sorté, y toitohj lohj malobj cayeron abajo. A unohj se le rompid un bra- 20, 4 otrohj se le sarté un ojo, 4 otro se l’alestima una pielna, y er resurtao de toito jué qu’ er mundo se yend de gente lisia. Por 1 Da.not. 5 a pag. 57 da revista parece concluir-se que 9 nome vulgar de eatremenho 6 extremauro. i 2 Péhj send (i. 6, pues sevior) 6 um estribilho vulgar nos contos popul. hispanhoes. A proposito, diz 0 collector que pohj e pos sio contracetes de pues: ereio que nao, mas que represontam uma phase intermédia entre ésta ultima forma e 0 lat. post.> : : oh REVISTA DE ESTUDOS LIVRES” eso tohj lohj malohj tienen argun defeto; porqu’ ehjtan cahjtigaohj po la mano ’e Diohj ». Dou a seguinte traducgio em castelhano, tanto 4 letra quanto me 6 possivel : «Una vez cogié Nuestro Seiior 4 todos los malos que habia en Ja gloria y los até con una cuerda, y los puso colgando del cielo. Cuando estaban atados todos le dijo 4 San Pedro que cogiera la | cuerda y se estubiera asin hasta que el le dijera que soltara aquella gente. Pues sefior, que se puso el Sefior 4 decir misa, y cuando va y dice: Swrswm corda... y que se habia figurado San Pedro? Pens6 que el Seiior le habia dicho: suelta la cwerda, y la solt6, & todos los malos cayeron abajo, A unos se. le rompié un brazo, 4 otros se le salté un ojo, 4 otro se le lastima una pierna, y el resul- tado de todo fue que el mundo se llen6 de gente lisiada. Por eso todos los malos tienen algun defecto, porque estén castigados por Ja mano de Dios ». Terminando, cumpre-me felicitar os propagadores do Folklore frexnense pela actividade que estado dispendendo a bem da sciencia e da patria. g Porto, Fevereiro, 1889, J. Lerre pg VasconcELuos, BIBLIOGRAPHIA © Dialecto Mirandez— Contribuigdo para 0 estudo da dialectologia romani« ca no. dominio. glortologico hispano-Iusitano, —por J. LEITE DE VASCONCELLOS, alu- mno da Escéla medica do Porto.— Porto, Livraria Portuense de Clavel & C.*— Editores. 119, rua do Almada, 123—1882— Prego 900 reis. 40 pag. in-8.° O nosso estimado collaborador, snr. Leite de Vasconcellos, muito co- nhecido ¢ apreciado j4 pelos seus estudos ethnographicos, dedica-se tambem 4 investigagio scientifiea no campo da glottologia, como acaba de o provar com a publicagio d’este trabalho cerca do Dialecto Mirandez. uma inte- ressante monographia em que o auctor analysa uma lingua popular fallada nos arredores de Miranda do Douro, em Traz-os-Montes; a0 lado d’este dia~ lecto vive, porém, 0 «portuguez como lingua official e empregada pelas classes illustradas ou ainda pelas populares, quando estas se querem tornar intelligiveis ante as pessoas que desconhecom o dialecto». (Pag. 9). O dia- lecto mirandez tem incontestavelmente grande importancia sob o ponto de vista glottologico, © o snr. Leite de Vasconcelos presta um grande servigo colligindo materiaes e estudando tudo quanto possa augmentar os nossos ¢o- nhecimentos scientificos n’este ramo das sciencias sociaes; parece-nos, po- rém, que exagera bastante o valor sociologico do dialecto mirandoz quando advoga a sua conservagiio, comparando-o ds linguas da Irlanda, da Escocia, da Proyenga, da Catalunha, da Galliza, da Sicilia, etc. etc. A droa om que predomina. este dialecto é muito limitada e nio tem as tradigbes historicas uum passado de independencia, como as vastas regides, onde se fallam os differentes dialectos de Hospanha, Franga, Italia ou Inglaterra. trabalho glottologico do snr. Leite de Vasconcellos comprehende, além da introduegio, uma parte phonetica, outra morphologica um tanto desenyolvida, syntaxe, textos e materiaes para um yocabulario mirandez. Na conclusio fixa‘o auctor o logar. spite ae dialecto mirandez «ao lado — do asturiano-leones, entre este sub-; grupo eo sab-grupe ee q (Pag. 88). O nosso amigo Leite ae Vasconcellos mre wWeste novo estado ¢ 08 seus muitos conhecimentos philologicos, o que nos faz esperar na promettida. oe portuguesa um dos seus trabalhos cen ee a E _ Perxera Basros.

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