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Cad. Est. Ling., Campinas, (20): 9-16, JanJJun. 1991 VARIAGAO E MUDANGA LINGUISTICA: FLUXOS E CONTRAFLUXOS NA COMUNIDADE DE FALA ANTHONY J. NARO MARIA MARTA PEREIRA SCHERRE Universidade Federal do Rio de Janeiro E comum os lingGistas considerarem que a mudanga diacré 2, @ conseqdentemente a variago sincrénica, caminha em uma dada dire ‘s40 ao longo do eixo do tempo na comunidade de fala. Entéo, uma forma Pode ser vista como “entrando na lingua” ou “‘caminhando para a extin- 80". O quadro geral & 0 de pontos finais categéricos mediados por esté- gios intermediérios sucessivos de variagéo que impulsionam os processos ‘em uma diregao Unica através da comunidade. Vamos demonstrar @ seguir que em alguns casos este quadro ndo ocqgsesporque a comunidade de fala pode estar caminhando em diver- ses deh no sentido quo sigue grupos de flonten pocem ext nar processo de aquisig8o da forma enquanto outros esto, ao mesmo tempo, perdendo a forma. Alguns grupos podem estar ainda estéveis, mostrando Padrdes tipicos de variagdo estével, de tal forma que para eles néo hé, Portanto, proceso de mudanca em curso. Todavia, @ diversidade de dire- ses nao ¢ refletida por qualquer tipo de separagao social entre os grupos, que estéo em interacéo face-a-face e continuam a participar da variagso, \gUlstica corrente. De fato, um dos problemas mais diflceis & precisamen- te identificar as dimensées sociais que definem os grupos independente- mente dos fatos lingUfsticos puros. A primeira anélise deste tipo pare a comunidade de fala carioca foi a de Naro (1981) através da varidvel “orientagéo social”. Ele sugeriu ‘que no caso da regra de concordancia sujeito/verbo hé dois grupos distin- tos numa amostra de 20 falantes semi-analfabetos estudados. Todos estes falantes freqientavam, na época, 0 MOBRAL - curso de alfabetizagéo de adultos do governo brasileiro. Tendo em vista @ variével em questéo, foi Possivel verificar que um dos grupos evidenciava uma mudanga lenta em diregdo @ um sistema no marcado enquanto o outro resistia & mudanga, restaurando este mesmo sistema. A base desta anélise foi a mera observa- go emplrica de que alguns falantes apresentavam taxas de concordancia acime da média da comunidade na qual eles viviam ou haviam crescido. Embora eles se assemelhassem aos outros de sua comunidade com relagao 2 todos os aspectos materials, eles evidenciavam uma viséo cultural ampla @ eram capazes de interagir bem com os lingdistas de classe média que os entrevistaram. Variévels tradicionais tals como sexo, faixa etéria e origem rural ou urbana se mostraram irrelevantes na delimitagéo dos dois grupos. Todavia, quando eles foram separados um apresentava uma taxa global de concordancia de aproximadamente 65%, enquanto 0 outro se aproximava de 40%, O critério social usado para definir os grupos independentemente de suas taxas de concordéncia foi a sua reacdo as novelas de televiséo. E de dominio publico que estes programas so predominantemente direcio- nados & classe média e so exclusivamente baseados nos valores da classe média, sendo completamente irrelevantes para a cultura e 0 estilo de vida da classe baixa. Isto 6 80 claro que 2 meioria dos falantes com taxas, mais altas de concordéncia eram 0s que assitiam as novelas e demonstra- vam entender realmente as cenas, enquanto os do outro grupo declaravam que néo viam novelas e que nBo eram capazes de perceber qualquer coe- réncia entre as cenas. £ importante enfatizar que 0 habito do falante de ver novelas foi usado apenas como um critério independente do compor- tamento lingilstico para a constituigo dos dois grupos. Néo foi estabele- cida nenhuma relago causativa entre o tipo de linguagem usade nas no- velas e @ linguagem usada pelos falantes que assistem a este tipo de pro- grama uma vez que ambos os grupos s80 igualmente expostos & lingua- gem padrBo dos programas de rédio, dos filmes ¢ de vérios outros pro- gramas de televisbo. Na pesquisa original, feita em 1981, 08 padrées lingafsticos dos dois grupos sociais descritos acima nao foram analisados separadamente. Era entéo impossivel determinar em que aspectos eles poderiam tre si. Além disso, como somente dois grupos etérios foram considerados, 2 gradagéo etéria ndo pode ser vista de forma mais detalhada. Todavi quando todas as varidveis eram considerades conjuntamente, através do uso de métodos computacionais tais como VARBRUL (SANKOFF, 1975; NARO & VOTRE, 1980) ou ANOVA (NIE et alii, 1975}, foi possivel perceber uma forte gradagéo etéria, com falantes mais velhos usendo formas com concordancia mais freqdentemente do que falantes mais jovens. Agora, ‘quando analisamos os grupos sociais separadamente através do programa de regra varidvel 0s resultados das restrigdes estruturais se mostram mui to semelhantes para os dois grupos, mas 0 mesmo no ocorre com as res- trig6es sociais convencionais. Com 0 objetivo de ver com mais clareza a 10 curva do tempo aparente, estabelecernos trés grupos etérios: (1) menos de 19 anos, (2) 19-39 anos e (3) acima de 40 anos. Este foi o Unico fator, ao lado da variével orientacao cultural, que foi estatisticamente significative para a amostra como um todo. O padréo etério geral 6 tipico de uma forma que esté desaparecendo da lingua, com pessoas jovens usando menos concordancia do que pessoas de meia idade, que, por sua vez, usam menos concordancia do que pessoas mais velhas, como pode ser visto na Tabela 1 a seguir. Variével social significativa: faixe etéria Freqaéncia Peso relative <19anos ——_840/1685=50% 0,39 19/39 anos 1084/2403=45% 0,48 >39.anos — 1078/2221=49% 0.63 Tabela 1 - Amostra MOBRAL completa Concordéncia verbo/sujeito As razées para a falta de concordancia entre as freqiiéncias 08 pesos relativos (probabilidades) s8o as mesmas que as explicadas em detalhes em Naro (1981). Analisando separadamente os dados das pessoas que assistem 4 novelas, obtivemos os seguintes resultados para a faixa etéria: Veriével social significativa: faixa etéria Freqiéncia Peso relative <19.anos ——«613/1131=56% 0,36 19/39 anos 421/523=81% 0.68 >39 anos 96/141 =68% 0,46 Tabela 2'- Amostra MOBRAL: Telespectadores de novela: Concordancia verbo/sujeito E importante relembrar que era este o grupo que originalmente parecia estar restaurando a regra de concordancia. Diferentemente, os no- vos resultados da Tabela 2 sugerem que este grupo apresenta um padrao tipico de variagéo estavel, com um aumento no uso da concordéncia apés a adolescéncis e com um décrescimo na faixa etéria mais velha. restante da amostra MOBRAL, mostra um padrao etério, pro- 1" vavelmente tipico da maioria dos analfabetos, que pode ser visto através dos resultados da Tabela 3 a seguir. Variével social significativa: faixa etéria <19 anos ——209/5544=38% 0,49 19/39 anos 663/1880=35% 0,39 >39anos ——-982/2080=47% 0,62 Tabela 3 - Amostra MOBRAL: Nao telespectadores de novelas Concordancia verbo/sujeito Aqui encontramos novamente o padréo dos falantes mais v Ihos usando mais a regra do que os falantes mais jovens, embora 0 padréo do seja to claro por causa de um leve abaixamento no peso relativo as- sociado ao grupo do meio. De forma geral, a andlise da mostra MOBRAL sugere que um ‘grupo de falantes mostra um padréo de variagdo estével enquanto o outro evidencia um padréo tipico de eliminagdo da forma. Isto confirma a idéia que os grupos se movem em diferentes direcdes na amostra de analfebetos de falantes carioces. No caso da concordancia entre os elementos do sintagma no- minal, Scherre (1988) encontrou uma ampla gama de taxas de concordan- ‘exatamente como Naro (1981) para a concordéncia sujeito/verbo. Mesrro entre os falantes com somente a educagéo priméria, por exemplo, taxa de marcas (excluindo os determinantes) varia de 7% 8 90%. Todavia, a ‘amostra com a qual Scherre estava trabalhando era mais diversa do que 2 de Naro, consistindo de 48 falantes estratificados em fungo do sexo, faixe etéria © anos de escolarizago (analfabetos e universitérios nao fazem par- te da amostra). Os resultados para variveis sociais do tipo faixa etéria se mostraram instéveis no sentido que 0 agrupamento de falantes levemente diferentes ou a inclusso de varidveis diferentes na anélise provocou resul- tados significativamente diferentes. Naturalmente, isto leva & concluséo de que deve haver grupos diferentes se movendo em direcdes opostas dentro da amostra, Todavia, o padréo dominante para a faixa etéria, consideran- do tods 8 amostra, se mostrava curvilinear, tipico da variagéo estével, no qual os mais jovens e os mais velhos mostravam freqiéncias de concor- dancia mais baixas enquanto o grupo da faixa intermedisria mostrava nf- veis de concordancia mais altos. Com o objetivo de inferir fluxos @ contrafluxos na concordancia 2 entre os elementos do sintagma nominal, a amostra de 48 falantes foi sub- ividida conforme as mesmas observacdes empfricas que motivaram o rea- grupamento de falantes no caso de concordancia sujeito/verbo: alguns fa- lantes tinham médias de concordancia divergentes da média de seu grupo social ou do ambiente no qual eles cresceram. Considerando que esta amostra 6 socialmente variada, englobando profi de classe média e trabalhadores pobres, foi primeiro necessério dividir os falantes em fun- G80 de sua origem social. Trés categorias ad hoc foram usadas: niveis so- cioeconémicos bsixo, alto e intermedigrio, dentro dos limites de amostra. Os critérios usados foram estritamente informais, embora baseados nas observacées de uma das entrevistadoras e de ums socidloga que leu as en- trevistas. A idéia central era agrupar aqueles falantes de origens “sim- ples” (através de indices do tipo vizinhos de classe baixa, falta de utens!- ios modernos, moradia inadequada, alimentacao fora dos padrées, difi- culdade de acesso a transporte, etc.) em oposigéo aos falantes que viveram sob condigées tipicas de classe mé Dentro de cada nivel socioecondmico, as taxas de concordancia foram ordenadas da mais alta para a mais baixa ¢ um ponto divisério natu- ral foi encontrado. Como resultado, obtivemos grupos de freqiéncia de concordancia alta e baixa em cada nivel. O nimero de falantes do nivel mais alto com taxas de concordancia baixa foi muito pequeno e bastante enviezado com relag80 a outras varisveis sociais, no permitindo um estu- do quantitativo adequado. Os grupos intermediérios foram eliminados porque eles incluiam falantes que nao foram classificados de forma clara or causa de falta de informacao. Denominamos “crioulizado” 0 grupo com a taxa de concordan- cia mais baixa no nivel socioeconémico mais baixo por causa da linha tra- dicional de raciocinio na filologia brasileira (SILVA NETO, 1976; GUY, 1981) que defende que muitas mudangas lingdfsticas no portugues brasi- leiro so devidas a um estégio de crioulizaco da lingua entre africanos & descendentes atricanos durante o periodo da escravidao, estégio este no atestado até o presente momento. Seguramente, se uma real crioulizaco existiu no Brasil, este 6 0 grupo que pode apresentar indices de sua so- brevivéncia. Por razées semelhantes, nds usamos o rétulo “descriouliza- 40" para aqueles falantes de nivel socloeconémico baixo que apresenta- vam uma taxa alta de concordancia. Os falantes do grupo socioeconémico mais alto ndo apresentam status claro de crioulizagéo na literatura perti- nente. Embora certamente néo descendentes de escravos africanos, alguns estudiosos afirmam que a lingua dos grupos de nivel socioeconémico bai- x0, ou que a de seus ancestrais, era significativamente influenciada pela crioulizagao. De qualquer forma, nés usamos estas trés categorias com ré- 8 tulos tradicionais sem qualquer aceitagao de seu contetido. Os dados da concordancia entre os elementos do sintagma no- minal para 0s grupos descritos acima foram analisados, através do pro- grama de regra varlével, com todas as varidveis estruturais relevantes bem como com as variéveis sociais convencionais tais como faixa et6ria, anos de escolarizagio @ sexo. O programe utilizado apresentou a selegao das variveis que eram estatisticamente relevantes no nivel de 0,05 ou menos, Para o nivel socioeconémico mais alto, a unica variével social selecionada pelo programa como significativa foi a faixa etéria. Os seus resultados, apresentados na tabela 4, mostram um padrio tipico bem defi- nido de variacéo estével. Variével social significativa: faixa etéria Frequéncia Peso relative 15/25 anos. 681/804=85% 0.88 26/49 anos 934/1010=92% 0,64 50/71 anos 789/924=85% 0,41 Tabela 4 - Nivel socioeconémico alto Concordancia no sintagma nominal © grupo da faixa etéria intermediéria mostra um aumento sig- nificative na freqdéncia da concordancia, provavelmente resultado de press6es sociais do mercado de trabalho sofridas por este grupo na sua vida profissional. No nivel socioecondmico mais baixo, a faixa etdria foi também ica varidvel social escolhida como estatisticamente relevante para o grupo com freqiéneia de concordancia mais baixa. Relembramos que este grupo 6 o que esté mais préximo do que temos hoje para apresentar evi- dencias da lingua supostamente crioulizada no passado. Variével social significativa: faixe eté Frequéncia Peso relative 16/25 anos 276/581 =47% 0,38 26/49 anos ——-295/5460=54% 0,59 50/71 anos 427/812=53% 0.53 Tabela 5-- Nivel socioeconémico baixo Taxas mais baixas de marcas (crioulizado) Concordancia no sintagma nominal “ Aqui podemos ver um decréscimo na freqiéncia para os falan- tes mais jovens, enquanto os outros dois grupos mostram uma taxa mais alta. Embora a gradagdo etéria néo seja forte, n8o mostrando diferencas significativas entre os dois grupos mais velhos, podemos considerar estes resultados como indicativos do padrao de perda da concordancia ao longo do tempo. Para os falantes do mesmo nivel socioeconémico com as taxas de concordancia mais altas, 0 grupo presumivelmente descrioulizado, so- mente o nivel educacional foi escolhido como significante, Varidvel social significativa: anos de escolarizagso Frequéncia Peso relativo 1/4 anos 398/529=75% 0,33 5/8 anos 460/569=81% 047 9/11 anos 361/381 =92% 0,70 Tabela 6 - Nivel socioecondmico baixo Taxas mais balxas de marcas (descrioulizado) Concordancia no sintagma nominal Estes resultados sugerem exatamente por onde a descriouliza- 40 pode vir. Surpreendentemente, o sistema educacional parece funcio- nar, mas 6 melhor ter em mente que nossos resultados mostram to so- ‘mente uma correlagao e ndo necessariamente uma causa. Acreditamos que os resultados apresentados sugerem fort mente que é fécil encontrar fluxos e contrafluxos envolvendo a variago mudanga na comunidade de fala carioca. O que est8 mudando para algu- mas pessoas pode ogee para outras pessoas © 0 que esté aumen- tando para alguns pé¥lestar diminuindo para outros, Para algumas pes- soas 0 mercado de trabalho pode ter efeito, enquanto o sistema escolar pode influenciar outras. Finalmente, podemos reafirmar que os fluxos @ contrafluxos s6 parecem emergir com agrupamentos de individuos de for- ‘ma no convencional. No futuro, esperamos ser capazes de avaliar este ponto em mais detathes. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS GUY, Gregory A. Linguistic variation in Brazilian Portuguese: aspects of the phonology, syntax, and language history: PH.D. Dissertation, University of Pennsylvania, 1981. 391p. mimeo. ARO, Antony J, The social and structural dimensions of a syntactic change. Language. LSA, 57(1):63-98, 1981. NNARO, Antony J. & VOTRE; Sebastiéo J. SWAVA: Sistema SWAMINCIVARBRUL (Manual do Usuério). Rio de Janeiro, UFRJ, 1980. mimeo. NIE, Norman H. et alii. SPSS: Statistical package for the social sciences. 2* ed. New York, McGraw-Hill. jd. VARBRUL Version 2. Centre de Récherches Mathématiques, dde Montréal, 1976. mimeo. SANKOF! ul 0 SCHERRE, Maria Marta Pereira, Reanslise da concordincia nominal em portugués. TTese de Doutorado, Rio de Janeiro, UFRJ, 1988. Em dois volumes, com 554p. SILVA NETO, Serafim da, Introdugo 90 estudo da lingua portuguesa no Brasil 3.¢d. Rio de Janeiro, Presenca, 1976, 16

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