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J. BRIGHT ‘HISTORIA TSRAEL FICHA CATALOGRAFICA CIP-Brasil. Catalogagio-naFonte Camara Brasileira do Livro, SP Bright, John, 1908- B864h Histéria de Israel (traduziu Euclides Carneiro da ‘Silva; revisou José Carlos Fernandes), Sao Paulo, Ed. Paulinas, 1978, 692 pp. (Nova colegio biblica, 7) Bibliografia. 1. Judafsmo — Histéria 2. Judeus — Histéria — Até 703. Palestina — Histéria — Até 70 I. Titulo. CDD-933 77-1325 -296.09 Indice para catélogo sistematico: 1. Judaismo; Histéria 296.09 2. Jadeus: Histéria antiga 933 3. Palestina: Histéria antiga 933 NOVA COLECAO BIBLICA 1 As pardbolas de Jesus — J. Jeremias 2 Forma e exigéncias do N. T. — J. Schreiner-G, Dautzenberg (coords.) 3 Teologia do Novo Testamento (1 parte) — J. Jeremias 4 Interpretagdo do quarto Evangelho — C. H. Dood 3 Introdugao ao A. T. (vol. 1) — E. Sellin-G. Fohrer 6 Introdugéo ao A. T. (vol. 2) — E. Sellin-G, Fohrer 7 Hist6ria de Israel — John Bright 8 Palavra e mensagem — J. Schreiner (coord.) 9 As vrigens do Novo Testamento — C. F. D. Moule 9 A importancia da literatura apocaliptica H. H. Rowley 1 Introdugao aos livros apédcrifos e pseudepigrafos do Antigo Testamento e aos manuscritos de Qumra — L. Rost 12. O antincio de Cristo nos evangethos sindticos — W. Trilling 13° Introdugéo ao Novo Testamento — W. G. Kiimmel 14 Estruturas teoldgicas fundamentais do A. T. — G. Fohrer 15 Historia da religiao de Israel — G. Fohrer 16 Jerusalém no tempo de Jesus — } Jeremias 17 A comunidade do Discipulo Amado — R. E. Brown, S.J. JOHN BRIGHT HISTORIA DE ISRAEL 32 edigao EDIGGES PAULINAS Titulo original A History of Israel (2° edigdo, revista) © The Westminster Press, Philadelphia, 1972 Traduziu Prof. Euclides Carneiro da Silva Revisou José Carlos Fernandes @ EDIGOES PAULINAS Rua Dr. Pinto Ferraz, 183 04117 — Sao Paulo — SP (Brasil) End. telegr.: PAULINOS © EDICOES PAULINAS - SAO PAULO - 1985 ISBN 85-05-00309-8 (0.664-20935-1 - Estados Unidos) A MEMORIA DE WILLIAM FOXWELL ALBRIGHT em reconhecimento de uma divida de gratidao que jamais poderd ser paga PREFACIO A SEGUNDA EDICAO E desnecessdtio dizer que nos sentimos profundamente sa- tisfeitos com a aceitacio, de maneira geral favordvel, que recebeu a primeira edigio deste livro. Entretanto pareceu-me dbvio que a segunda edicio devia passar por uma revisio cuidadosa, a fim de que o livro con- tinuasse a ser ttil aos estudantes, para os quais fora original- mente escrito. Qualquer tratamento da histéria de Israel deverd inevitavelmente, mais cedo ou mais tarde, desatualizar-se, em virtude das novas descobertas que se fazem continuamente e das novas e relevantes luzes que tais descobertas lancam sobre diversos pontos, Sem esta reviso criteriosa que levasse em consideracao todas as aquisigdes modernas, o livro terminaria por ficar totalmente obsoleto. Foi o que aconteceu com este livro. O progresso das descobertas e pesquisas foi extraordinariamente répido desde que apareceu a primeira edicfo. E embora nfo tivesse sido descoberto: nada que me levasse a alterar meus pontos de vista e minhas apreciagdes, quanto & esséncia, todo esse material trou- xe novas informagdes que obrigam a corregdes e retificacdes num ponto ou noutro, Apareceram também novas luzes que nao me deixam mais completamente satisfeito com o que es- crevi em diversas partes. Por isso € que julguei imperativo fazer uma reviséo completa de todo o livro. A segunda edic&o segue totalmente o modelo e o padrao da primeira. Foram feitas, naturalmente, correcdes onde se exigiam maicres informacdes. Reescrevi completamente vdrias secdes e diversos pard- grafos & luz das discussdes recentes e de novos critérios que estas discussdes me fizeram aceitar. Além disso, embora o critério com relagio as notas per- maneca o mesmo, fiz todo o esforgo possivel para atualizé-las, de acordo com a literatura mais recente, 8 PREFACIO Mas como o leitor poderd notar, o esquema do livro ccntinua o mesmo e seus pontos de vista gerais permanecem fundamentalmente inalterados. Resisti, sobretudo, 4 tentacéo de aumentar o livro, intro- duzindo, por exemplo, debates técnicos em diversas partes. Poderia, igualmente, ter levado a histéria aos primeircs séculos do Cristianismo. Mas, se o fizesse, o lito ficaria inconvenien- temente volumoso, prejudicando assim a sua utilidade. O livro dirigia-se originalmente ao estudante de Teologia ainda nao formado, e a segunda edigio ateve-se rigorosamente a esta finalidade. Sinto-me na obrigacio de expressar meus sinceros agra- decimentos a vérios amigos, especialmente ao Prof. G. Ernest Wright, que me animou a empreender a revisfo e tanto me ajudou, com suas preciosas sugestdes para imelhorar este livro. Meus agradecimentos mais sincercs, uma vez mais, 4 Sra. F. S. Clark pela sua ajuda, desinteressada e eficiente como sempre, na preparacao dos originais. A sua colaboracdo tornou o meu trabalho muito menor e muito mais facil. Finalmente devo agradecer a minha esposa pela revisiéo das provas e pela preparac3o dos indices, e¢ em tolerar minha quase completa invisibilidade e md disposicfo durante todo o tempo em que se trabalhava nesta obra. J. B. Richmond, Virginia 18 de janeiro de 1971 PREFACIO A PRIMEIRA EDICAO Acho desnecessdrio justificar escrever a histéria de Istaéll Em virtude da maneira intima como a mensagem do Antigo Testamento estd relacionada com acontecimentos histdricos,. © conhecimento da histéria de Israel torna-se essencial para a sua devida compreensao. Quando comecei a escrever este livro, ha varios anos, nado. havia em lingua inglesa nenhuma histéria de Israel que se pudesse considerar satisfatéria. Era uma maneira padronizada de tratar o assunto j4 envelhecida de mais de vinte e cinco ancs. Os manuais mais recentes aptesentavam pontos de vista antiquados e eram insuficientemente compreensivos para .s4- tisfazer as exigéncias de um estudante mais sério da Biblia. Minha tnica intengo ao pér mfaos 4 obra era o desejo de satisfazer esta necessidade. O fato de neste entrementes aparecerem diversas obras em boas tradugdes (em particular o livro de Martin Noth) me levou mais de uma vez quase a desistir da empresa. Mas por- que o presente livro difere notavelmente, na sua maneira de tratar o assunto, da obra de Noth, e em muitissimos pontos, é que mantive a minha decisao. Embora o leitor veja logo pelas nctas quanto eu aprendi com Noth, ele notaré também, sobretudo no que se refere as tradicdes e a histéria de Israel primitivo, uma dessemelhanga fundamental entre o livro de Noth e este. A extensio deste livro foi determinada em parte por con- sideragdes de espago, e em parte pela natureza do assunto. A histéria de Israel € a histéria de um povo que comecou @ existir numa determinada época como uma liga de tribos unidas em alianca com Iahweh. Posteriormente, esta liga de ttibos Ppassou a existir como uma nagio, em seguida como duas nagdes, e finalmente como uma comunidade religicsa. Esta ccmunidade religiosa sempre se distinguiu no seu meio-ambiente como uma entidade cultural distinta. 10 PREFACIO O fator caracteristico que fez de Israel um fendmeno peculiar, que criou a sua sociedade e era um fator controla- dor de sua histéria foi naturalmente a religido. Por isso é que a historia de Israel € um assunto insepardvel da histéria da religido de Israel. Por esta raz%o procuramos, tanto quanto © espaco nos petmitia, atribuir aos fatores religiosos o seu devido lugar dentro dos acontecimentos politicos e paralela- mente a eles. Embora a histéria de Israel s6 comece propriamente com a formaco do povo israelita no século XIII, nés preferimos, diferentemente de Noth e por razdes aduzidas em outra parte, comegar a nossa histdria, a migracdo dos antepassados de Israel, alguns séculos antes. Isto porque geralmente se cré que a pré- -histéria de um povo, até onde puder ser reconstituida, faz de fato parte de sua historia. O Prélogo nfo é parte da histéria de Israel e sé 0 es- crevemos para fornecer ao estudante a perspectiva da qual, segundo minha expetiéncia, ele geralmente carece. As raz6es de terminar no perfodo final do Antigo Testa- mento serao explicadas longamente no Epilogo. Resolvi terminar af em parte pela preméncia de espaco, e em parte pelo fato de concluir aproximadamente quando a f€ de Israel estava assumindo a fotma da religiao conhecida como Judaismo. Como a histéria de Israel, depois desta época, se torna efetivamente a histéria dos judeus e como a histéria dos judeus continua até hoje, cremos que a transicio para o Judaismo forneca um ponto final ldgico. Espero gue este livro seja util a um amplo cfrculo de Jeitores inclusive a todos os estudantes sérios da Biblia, quer a estudem em particular, quer em grupos, quer em aulas, nas igrejas cu nas escolas. Além disso, este livro foi escrito, tendo em mente as necessidades particulares do estudante teoldgico ainda nao formado. Nao pressupomos nenhum conhecimento anterior particular nem detalhes da histéria biblica nem da histdria geral do antigo Oriente. A finalidade que nos propusemos foi setmos o mais claro possivel sem contudo cairmos numa_supersimplificagao. Mesmo assim, como € provavelmente inevitavel, procurando-se cobrir tanto dentro de limitagdes de espaco tdo severas, mais de uma vez fiquei preocupado, devendo tratar sumariamente assuntos que exigiam discusses mais demoradas. Num_ tra- PREFACIO 11 balho desta natureza acho que nao se pode evitar tais incon- venientes. Fizemos constantes referéncias biblicas no texto, na_espe- ranca de que o estudante consulte continuamente a sua Biblia. Uma histéria de Israel nado substitui em abscluto a lei- tura da Biblia, E um subsfdio para esta leitura. Escolhemos uma bibliografia somente em inglés para ajudar o estudante em estudos pesteriores. Com referéncia a obras em cutras linguas, o leitor deve reportar-se as notas no final de cada capitulo. Estas notas, é certo, nao pretendem ser uma documentacéo completa. Elas tém apenas a dupla finalidade de orientar o estudante mais adiantado com respeito a outras obras, e de indicar que obras, positiva ou negativamente, contribuiram para a formacéo do meu pensamento. O leitor notar4, sem dtivida, que fazemos muito mais re- feréncias as obras do Prof. W. F. Albright do que as obras de qualquer outro sdbio. E assim é que deveria ser. A nin- guém devo tanto quanto a ele, e a reccnheco de pubblico, esperando que nada do que escrevi aqui destoe dos ensina- mentos que recebi de t&o grande mestre. Supemos que o estudante possuir4 um atlas biblico e o usaré constantemente. Recomendo de modo especial o Aflas Histérico da Biblia de Westminster, Por isso € que omiti aqui a descricfo costumeira das terras biblicas, assim como a discussio deste ou daquele cendrio, a nao ser que julgue de vital necessidade para o ponto em causa. As citagées biblicas foram feitas pela Biblia Sagrada das Edigées Paulinas *. Nas notas, o ctitério seguido foi citar a obra por extenso quando ela aparece pela primeira vez em cada capitulo, mesmo se a obta em questo j4 tenha sido citada num capitulo anterior. A abreviatura o.c. sempre se refere a uma obra citada anteriormente no mesmo capitulo, exceto se for citada neste livro mais de uma obra do mesmo autor. Os nomes dos personagens biblicos so apresentados de acordo com a Biblia Sagrada das Edicdes Paulinas *. O mesmo se diga dos topénimos biblicos. Queto expressar aqui a minha profunda gratidao As pes- soas que me ajudaram durante a elaboracio desta obra. De * Adaptacio do tradutor. 12 PREFACIO medo todo especial os meus agtadecimentos ao Professor Al- bright, que leu grande parte de meus originais e fez judiciosas chservagdes de inestimavel valor. Acho que se nao fosse o seu interesse pela obra e se no fosse o seu estimulo, eu teria provavelmente desistido de tio momentesa tarefa. Desejo também externar a minha gratidio ao Prof. G. Ernest Wright e ao Dr, Thorir Thordarscn, que leram partes dos originais e me fizeram valiosas sugestdes. As falhas da obra s&o tcdas minhas. Se nao tivesse te- cebido a ajuda destas pessoas e de muitas outras, haveria muito mais falhas em todo o livro. Devo igualmente agradecer a Sra. F. S. Clark, cujo auxilio extraordinariamente eficiente de datilografia facilitou em extre- mo o trabalho da corregao das provas, uma vez que os otigi- nais foram datilografados com a maior perfeicio. Ela também me ajudcu na preparacao dos indices. Finalmente, meu muito obrigado 4 minha esposa, que conferiu todas as provas, ajudou na preparacao dos indices, e, sobretudo, foi de uma paciéncia a toda prova durante todo o tempo que durou a elaboracado desta obra. ANE Suppl. AOTS AP. ARI ASTI ATD AVAA BA BANE BAR BASOR BIRL BKAT BP BWANT BZAW CAH CBQ ET EvTh FRLANT FSAC GVI HAT ABREVIATURAS Anual of the American Schools of Oriental Research The Anchor Bible, W. F. Albright e D. N. Freedman, eds. (Doubleday & Company, Inc.) American Journal of Archaeology American Journal of Semitic Languages and Literatures J. B. Pritchard, ed., The Ancient Near East in Pictures J. B. Pritchard, ed., Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament J. B, Pritchard, ed., The Ancient Near Est: Supplementary Texts and Pictures Relating to the Old Testament D. Winton Thomas, ed., Archaeology and Old Testament Study W. F. Albright, The Archaeology of Palestine W. F. Albright, Archaeology and the Religion of Israel Annual of the’ Swedish Theological Institute Das Alte Testament Deutsch, V. Herntrich (+) © A. Weiser, eds. (Gottingen: Vandenhoeck & Ruprecht) A. Scharff e A. Moorteat, Agypten und Vorderasien im Altertum (Munique: F, Bruckmann, 1950) The Biblical Archaeologist G. E, Wright, ed., The Bible and the Ancient Near East G. E. Wright, Biblical Archaeology Bulletin of the American Schools of Oriental Research Bulletin of the Jobn Rylands Library Biblischer Kommentar, Altes Testoment, M. Noth (+) ¢ H. W. Wolff, eds. (Neukirchen-Vluyn: Neukirchener Ver- lag des Erziehungsvereins) W. F. Albright. The Biblical Period from Abraham to Ezra Beitrage zur Wissenschaft vom Alten und Neuen Testament (Stuttgart: W. Kohlhammer) Beihefie zur Zeitschrift fiir die alttestamentliche Wissen- schaft (Berlim: Walter de Gruyter & Co.) The Cambridge Ancient History, I. E. §. Edwards, C. J. Gadd, e N. G. L. Hammond, eds. The Catholic Biblical Quarterly The Expository Times Evangelische Theologie Forschungen xur Religion und Literatur des Alten und Neuen Testaments (Gottingen: Vandenhoeck & Ruprecht) W. F. Albright, From the Stone Age to Christianity R. Kittel, Geschichte des Volkes Israel (Stuttgart: W. Kohlhammer; Vol. I, 7? ed., 1932; Vol. II, 7* ed., 1925; Vol. III, 1? € 2% ed., 1927-1929) Handbuch zum Alte Testament, O. Eissfeldt, ed. (Tubinga: J. C. B. Mohr) 14 ABREVIATURAS HI M. Noth, The History of Israel HKAT Handkommentar zum Alte Testament, W. Nowack, ed. (Gottingen: Vandenhoeck & Ruprecht) HO Handbuch der Orientalisti, B. Spuler, ed. (Leiden: E. J. rill) HITR Harvard Theological Review HUCA, The Hebrew Union College Annual IB The saverpreter’s Bible, G. A. Butttick, ed. (Abingdon ress Icc The International_Critical Commentary (Edimburgo: T. & T. Clark; Nova Iorque: Charles Scribner’s Sons) IDB The Interpreter’s Dictionary of the Bible, G. A. Buttrick, ed. (Abingdon Press, 1962) IEJ Israel Exploration Journal JAOS Journal of the American Oriental Society JBL Tournal of Biblical . Literature JBR Journal of Bible and Religion JCS Journal of Cuneiform Studies JEA Journal of Egyptian Archaeology JNES Journal of Near Eastern Studies JPOS Journal of the Palestine Oriental Society JOR Jewish Quarterly Review JSS Journal of Semitic Studies JTS Journal of Theological Studies KS A. Alt, Kleine Schriften zur Geschichte des Volkes Israel (Munique: C. H, Beck’sche Verlagsbuchhandlung; Vols. 1 e Il, 1953; Vol. III, 1959) LOB Y. Aharoni, The Land of the Bible: A Historical Geography OTL The Old Testament Library, P. R. Ackroyd, J. Barr, G. E. Weight, J. Bright, eds. (Londres: SCM Press, Ltd.; Phi- ladelphia: The Westminster Press) OMTS H. H. Rowley, ed., The Old Testament and Modern Study PEQ Palestine Exploration Quarterly PIB Paldstinajabrbuch RA Revue d’Assyriologie RB Revue Biblique RHR Revue de Vhistoire des réligions ThLZ Theologische Literatur Zeitschrift ThZ Theologische Zeitschrift VT Vetus Testamentum WMANT —Wissenschaftliche Monographien zum Alten und Neuen Testament (Neukirchen-Viuyn: Neukitchener Verlag des Erziehungsvereins) YCG W. F. Albright, Yaweb and the Gods of Canaan ZAW Zeitschrift fiir die alttestamentliche Wissenschaft ZDMG Zeitschrift der Deutschen Morgenlandischen Gesellschaft ZDPV Zeitschrift des Deutschen Paldstina-Vereins ZNW Zeitschrift fiir die neutestamentliche Wissenschaft ZThK Zeitschrift fir Theologie und Kirche Nora: Os livros indicados nesta lista apenas pelo titulo encontram-se, com todos os dados, na bibliografia 4 pdgina 635ss. PROLOGO O ANTIGO ORIENTE ANTES DO ANO 2000 a.C., APROXIMADAMENTE DE ACORDO COM A BIBLIA, a histéria de Israel come- sou com a migracio dos patriarcas hebreus da Mesopotamia para a sua nova patria na Palestina. Este foi de fato o comego, se nao da histéria de Israel propriamente dita, pelo menos o foi da sua préhistéria. Com efeito, foi com esta migracao que os seus antepassados pisaram pela primeira vez o palco da histéria. A partir desta migracio, como veremos, numa época qualquer durante a primeira metade do segundo milénio a.C., é que propriamente tem inicio a nossa historia. Entretanto comecar com o ano 2000 a.C., como se nada tivesse acontecido antes desse tempo, seria insensatez. A Bi- blia sugere e as descobertas recentes o atestam: muitas coisas aconteceram antes. Embora nao faca parte do nosso assunto, e por isso nao nes € permitido entrar em maicres detalhes, é sumamente oportuno dizer algumas palavras sobre o curso da histéria humana antes daquele tempo. Isso nos possibilitaré armar o cenério de nossa histéria e ganhar a perspectiva necessdria, para nos precaver, assim o esperamos, contra nogdes erradas a respeito da idade das origens de Israel. A nés que vivemos hoje, o segundo milénio a.C. parece- -nos uma data realmente muito remota. Somos tentados a pensar que esta época se encontra na aurora do tempo, quando o homem, pela primeira vez surgiu da selvageria para a luz da histéria, e somos inclinados, por isso, a subestimar as suas realizagdes_culturais. Além disso, nos inclinamos também a imaginar os ante- passados hebreus, némades que viviam em tendas, como os mais primitivos dos némades, isolados pelo seu modo de vida de toda espécie de cultura, e cuja religio era a espécie mais 16 PROLOGO cruel de animismo ou polidemonismo. Era assim de fato que muitos antigos manuais cs pintavam. Esta é uma nogao errénea e um sintoma de falta de perspectiva. Mas aconteceu muito quando pouco se sabia em primeira mao sobre o antigo Oriente. Por isso agora & neces- sdrio que se focalize bem todo o quadro. Os horizontes se alargaram surpreendentemente na gera- cdo passada. O que quer que se diga sobre as crigens de Israel, deve ser dito com plena consciéncia de que estas ori- gens nfo se encontram em parte alguma perto do alvorecer da histéria. As inscrigdes decifréveis mais antigas, quer no Egito, quer na Mesopotamia, remontam aos primeiros séculos do terceito milénio a.C. — mil anos antes de Abraio, mil e quinhentos antes de Moisés. Ai comega a histéria propriamente dita. Além disso, no curso das tltimas décadas, descobertas em tedas as partes do mundo biblico, e além dele, revelaram uma sucessio de culturas mais remotas ainda, que ascendem ao quatto milénio, ao quinto, ao sexto, ao sétimo e, em alguns casos, ainda mais além. De fato, os hebreus chegaram tarde ao palco da histdria. Em todas as regides biblicas surgiram culturas, que assumiram forma classica e seguiram seu curso por centenas e até milhares de anos antes do nascimento de Abraao. Por mais dificil que seja para nés pensarmos, medeia realmente mais tempo entre os comecos de civilizagio no Oriente Préximo e as origens de Israel, do que entre estas e a nossa época! A. ANTES DA HISTORIA: FUNDAMENTOS DA CIVILIZACAO NO ANTIGO ORIENTE 1. Os mais antigos aldeamentos da Idade da Pedra Os mais antigos aldeamentos permanentes que conhece- mos, surgem por volta do fim da Idade da Pedra, no sétimo e até no oitavo milénio a.C. Antes, os homens viviam em cavernas. a. Transigao para a vida em aldeamentos. — Nao faz parte de nosso assunto a histéria do homem da Idade da O ANTIGO ORIENTE ANTES DO ANO 2000 a.C. 17 Pedra’. Baste-nos dizer que das planicies do vale do Nilo 4s montanhas do norte do Iraque, pedras caracteristicas ates- tam a presenca do homem desde os comegos da Idade Paleoli- tica, talvez (mas quem pede dizé-lo?) ha duzentos mil anos. Na era seguinte, mais ou menos no meio da Idade Paleo- litica (profusamente atestada por restos de esqueletos, especial- mente na Palestina) e nos fins da mesma Idade Paleolitica, encontramos o homem no seu longo periodo de habitaco nas cavernas. Ele vivia inteiramente de caca e pilhagem. Somente quan- do terminou a ultima idade do gelo (nos climas mais quentes, no ultimo perfodo pluvial), aproximadamente no nono milé- nio a.C., e os rigores do clima se atenuaram, foi que o homem se sentiu capaz de tentar os primeiros passos no sen- tido de uma economia de produgio de alimentos: entdo ele aprendeu que os graos do campo poderiam ser cultivados e os animais poderiam ser criados em rebanhos para lhe fornecer alimentagao. Esta transigio comegou na Idade Mesolitica (8000 anos a.C., aproximadamente). A cultura natufiana da Palestina (as- sim chamada em virtude das cavernas da regiao de Wadi en- -Natuf, cnde ela foi encontrada pela primeira vez) é uma ilusttagéo do que acabamos de afirmar. Aqui vemos ainda os homens morando nas cavernas, mas tendo j4 comecado a fazer uns aldeamentos rudes, para ocupa- Ges ccasionais ou até continuas. O aldeamento mais antigo € o de Jericé, que pertence a este perfodo, e deve ter comecado no ano 8000 a.C. apro- ximadamente, se nfo antes ainda”. 1 Sobre esta seg¢io e as seguintes, veja: G. E. Wricu, in BANE, pp. 73-88; R. W. Euricu, ed.,Chronologies in Old World Archeology, The University of Chicago Press, 1965; também, capitulos importantes in CAH, especialmente R. pe Vaux, “Palestine During the Neolithic and Chalcolithic Periods” (I: 9b, 1966); J. Mettaart, “The Earliest Settlements in Western Asia” (I: 7, patdgtafos 1-10 [1967]). Pata um tratamento mais popular do assunto: E, ANnatt, Palestine Before the Hebrews, Joathan Cape, Ltd., Londres, 1963; J. MELLAart, Earliest Civilization of the Near East, Thames and Hudson, Ltd., Londres, 1965). 2 Os testes de radiocarbono dao para Jericé natufiana as datas de 7800 a 9216 a.C. aproximadamente; cf. Parry Jo Watson, ed. 0.c., p. 84. Mas como Patty Jo Watson nota criteriosamenté, estas datas devem ser tomadas com a maior precaugao. 18 PROLOGO Embora o homem natufiano vivesse principalmente de caca, pilhagem e pesca, a presenga de foices de pedra e de outros instrumentos indica que ele tinha aprendido a colher 0 grao do campo e, quem sabe, até cultivar cereais, embora de maneira rudimentar, muito limitada. Parece que também comecou nesta €poca a demesticagio de certos animais. Semelhantes desenvolvimentos sao vistos em toda a parte, notavelmente nas montanhas do norte do Iraque, onde as cavetnas de Zarzi e Palegawra nos apresentam o ho- mem no fim deste estégio em que ele se ccupa scmente em recolher alimentos. Mas nos primitivos aldeamentos tempord- trios de Zawi Chemi e de outras partes vemos suas primeiras tentativas no sentido de uma economia de producSo de ali- mentos *. Todavia, foi sé no perfodo Neolitico que se completou a transigio da habitaco das cavernas para a vida sedentdria, e de uma economia de uma simples recolha de alimentos para uma economia de producao de alimentos. Foi também nesta €poca que comecaram a construir aldeamentos permanentes. E uma vez que nao pode haver civilizacio sem estes, podemos afirmar que foi nesta época que comegou a marcha da civilizagao. b. Jericé Neolitica*, — Dos mais antigos aldeamentos permanentes que conhecemos, o mais interessante para estu- dantes da Biblia é 0 encontrado nos niveis mais baixos da colina de Jericd. Como ja dissemos, Jericé foi colonizada pela primeira vez pelo menos no ano 8000 a.C., aproxima- damente. Mas durante muitos séculos pouco havia 14 a nfo ser insignificantes cabanas, que podem representar nado mais do que uma longa série de acampamentos ocasionais. Por fim, estes acampamentos cederam lugar a uma cidade permanente, que continuou por muitos niveis de edificagéo em duas fases distintas, representando talvez duas populagdes su- 3 Os testes de radiocarbono dao para a cultura zarziana as datas de 10050 e 8650 a.C. aproximadamente, e uma data de 8920 a.C, apro- ximadamente para o aldeamento tempordrio de Zawi Chemi; cf. Watson, ibid., para estas e outras datas. 4 (Cf. Karuteen M. Kenyon, Digging Up Jericho, Frederick A. Praeger, Inc. Publisher, 1957. O ANTIGO ORIENTE ANTES DO ANO 2000 a.C. 19 cessivas, e que revela uma cultura neolftica antes da inven¢gio da louga de barro. Da extrema profundidade de seus escombros (até apro- ximadamente 14 metros) € evidente que esta cultura perdu- rou durante séculos. Parece que ela teve o seu inicio pelo menos no fim do oitavo milénio aC. e que durou até o sexto®, E nfo podemos chamé-la de primitiva. Durante muito tempo de sua histéria, a cidade era pro- tegida por uma fortificagdo macica de pedra. As casas eram construidas de tijolos de barro de dois tipos distintcs, cor- respondendo as duas fases de ocupagdo mencionadas acima. Na primeira destas fases, os pisos das casas e as paredes eram estucados e polidos, e fregiientemente pintados. Encon- traram-se tracos de esteiras de junco que ccbriam os pisos. Algumas figurinhas de mulher feitas de argila e também de animais domésticos sugerem a pratica do culto da fertilidade. Estdtuas Unicas de argila em molduras de junco, descobertas hd alguns anos, sugerem que deuses montanheses eram adora- dos em Jericé neolitica. Em grupos de trés, provavelmente representassem a triade antiga, a divina familia: pai, mae e filho. Sao igualmente interessantes grupos de esqueletos huma- nes (os corpos eram sepultados em qualquer lugar, geral- mente debaixo do piso das casas) com feicdes modeladas em argila, e conchas no lugar dos olhos. Estes esqueletos serviam indubitavelmente para fins de culto (possivelmente alguma ferma de adoragéo dos antepassados), e certamente atestam uma habilidade artistica notdvel. Os ossos de ces, cabras, porcos, ovelhas e bois indicam que estes animais eram domesticados. Por outro lado, as foices, os moinhos de mao e os rebolos atestam o cultivo de Javouras de cereais. Pelo tamanho da cidade e pela escassez de terra natural- mente ardvel nos arredores, infere-se que havia um sistema de irtigagio j4 bem desenvolvido. A presenca de instrumentos de obsidiana (provavelmente da Anatdélia), de conchas turquesas (do Sinai); e cauris (do litoral) revelam intercAmbio comer- 5 Os primeiros testes de radiocarbono_realizados forneceram datas no sétimo e sexto milénios, cf. KENYON, Digging, p. 74, onde se dao as datas de 5850, 6250 e 6800 aproximadamente. Testes subseqiientes forneceram datas muito mais remotas; cf. Watson, in R. W. Eriricn, ed., o.c, pp. 85ss; De Vaux, loc. cit, pp. 14ss. em que se encontram 20 PROLOGO cial, quer direto quer indireto, abrangendo distancias consi- derdveis °. Jeticé neolitica é realmente surpreendente. Seus habitantes — quem quer que eles tenham sido — estavam bem na vanguarda da marcha para a civilizagio (serd que se poderia cter?) mais de cinco mil anos antes de Abraao! Este fenémeno notdvel chegou ultimamente ao fim e foi substituido, depois de um hiato consideravel, por uma cultura neclitica. Nesta cultura conhecia-se a ceramica. Este periodo foi provavelmente bem no comeco do quinto milénio. Mas esta cultura, segundo tudo indica, trazida por adventicios, re- presenta decididamente um retrocesso, c. Outras culturas neoliticas. — Embora Jericé neolitica seja realmente notdvel, nao se deve mais pensar que esta ci- dade era isolada, tinica, porque descobertas recentes revelaram que havia vilas e aldeias permanentes estabelecidas por todo o mundo biblico, j4 no sétimo milénio’?. Isso ocorreu, sem dtivida, porque nas vdrias partes da Asia ccidental comecou-se a dominar independentemente as técnicas da cultura de cereais e da domesticacio de animais, das quais depende a vida em habitacao fixa. Nas terras da Mesopotamia a transicfo para a vida agrdria € ilustrada admiravelmente pelos niveis infericres da monta- nha de Jarmo, nas terras montanhosas do norte do Iraque. Vemos novamente aqui uma cultura neolitica antes da invencio da ceramica. Os utensilios e os vasos eram de pedra. Entre- tanto, embora Jarmo fosse uma povoagao pobre e rudimentar, suas casas eram construidas de barro amassado, ela era contudo uma comunidade agricola permanente. as datas 7705, 7825, aproximadamente, e até mesmo 8230 e 8350 apro- ximadamente, Em virtude de tanta variagfo, deve-se ter muito cuidado nas afirmagées de datas. © Argumentou-se com certa plausibilidade que o comércio de. sal, enxofre ¢ betume (todos muito abundantes na drea do Mar Morto) foi realmente a base da economia de Jericd; cf. ANartt, 0.c. pp. 241-250; idem, in BASOR, 167 (1962), pp. 25-31; também, AvsricHt, in YGC, pp. 5iss. 7 Scbre este pardgrafo, veja as obras relacionadas na nota 1. Importantes datas de radiocarbono serao encontradas em varios artigos em R. W. Exics, ed. 0.c. Sobre descobertas recentes na Anatdlia, veja também J. MELLAART, Anatolia Before ca. 4000 B.C. (in CAH, I: 7, pardgrafos 11-14 [1964]). O ANTIGO ORIENTE ANTES DO ANO 2000 aC. 24 Testes de radiocarbono indicam que os niveis pré-ceramicos so exatamente tZo antigos como os correspondentes de Jericé. Na costa mediterranea, os testes de radiocarbono indicam igualmente que o mais antigo aldeamento, em Ras Shamra (no- vamente sem ceramica) remonta ao sétimo milénio. Também na Palestina, foram desccbertos em varias partes, aldeamentos neoliticos pré-ceramiccs. Um destes aldeamentos, pelo menos, (Beida na Transjordinia) deve ter existido nos comegcs do sétimo milénio, de acordo com os testes de ra- diocarbeno. Sem diivida alguma, as mais notaveis destas povoagdes mais antigas séo as descobertas em Hacilar e Catal Hiiyiik na Ana- tolia, drea geralmente considerada como um local cultural- mente atrasado. A Ultima destas localidades é 0 maior aldeamento neolftico até entZo conhecido no Oriente Préximo, muitas vezes maior do que Jericé e até econcmicamente mais adiantado. Os testes de radiocarbono (uns quatorze aproximadamente) indicam que ele foi ocupado no sétimo milénio e na primeira metade do sexto. A vida das aldeias continuava a desenvolver-se através do sexto milénio, entrando no quinto, quando vilas e cidades foram estabelecidas quase em toda a parte. Durante todo este tempo, comecou a introducéo da ceramica (ela j4 era conhe- cida em Catal Hiiytik na Anatdlia). Aldeias nas quais se co- nhecia a ceramica havia em varios lugares na costa mediter- ranea (Ras Shamra, Byblos), na Cilicia e no norte da Sifria (Mersin, Tell ej-Judeideh), em Chipre (Khircki aqui, a ccupagio mais antiga era a ceramica) e na Anatédlia. Na Mesopotamia floresceu a cultura Hassuna, chamada com este nome por causa da localidade (perto de Mosul) onde ela foi identificada pela primeira vez. Mas também foi encontrada esta cultura em varios lugares na regiao superior do Tigre (Ninive foi construfda pela primeira vez neste tempo). Neste entrementes, a vida sedentdria comeccu também no Egito. Os vestigios da presenca do homem no Egito remon- tam aos comecos da Era Paleolftica, quando o delta do Nilo estava abaixo do nivel do mar e seus vales eram um matagal pantanoso, habitado por animais selvagens. Podemos supor que os homens de entdo habitavam nos atredores dos vales e af pescavam e cacavam, vindo mais tarde a estabelecer-se nestas mesmas regides. 22 PROLOGO Por volta da Era Neolitica, quando a geografia do Egito assumiu toscamente a sua forma atual, pcdemos também in- ferir que as aldeias, primeiramente tempordrias, logo depois permanentes, comecatam a se formar. Entretanto, a transicao para a vida sedentdria no pode ser documentada no Egito, como o pode ser na Asia ocidental. As aldeias permanentes mais antigas provavelmente esto sob as camadas profundas da lama e do Iodo do Nilo. A cultura da aldeia mais antiga que conhecemos é a de Fayum (Fayum A), seguida por cutra descoberta um pouco mais tarde em Merimde no Delta ccidental, Estas sfo culturas neoliticas depois da invencdo da ceramica — ficando assim mais cu menos paralelas 4 ceramica neolitica da Asia cci- dental. Os testes de radiocarbono parecem colocar Fayum A na Ultima metade do quinto milénio*, Por este tempo, embora se comegasse a desenvolver a agricultura, podemcs estar certos de que o rio nao tinha ainda nenhum contrcle, e o vale era um amplo pantano com poucas aldeias, afastadas umas das cutras. Entretanto, esté claro que no Egito, como em toda parte, a civilizagio comegava a nascer — e isso uns dois mil e quinhentos anos antes de Abraio. 2. Desenvolvimento cultural na Mesopotamia Com a introducdo do metal termina a Era Neolitica e co- meca a assim chamada Era Calcolitica (Era da Pedra e do Cobre). Precisamente quando comecou esta transicgfo nao é assunto que merega discussaéo de nossa parte (ela ocorreu gra- dualmente). Mas na Mesopotamia todo este perfodo é atestado per uma série de culturas, que receberam os nomes das loca- lidades onde elas foram encontradas pela primeira vez. Isso nos leva, com poucos hiatos de alguma importancia, através do quinto e do quarto milénio, até acs umbrais da histéria, no terceiro®. Foi um perfodo de surpreendente floraco cultural. 8 As datas do radiocarbono estfo entre 4441 e 4154 a.C., aproxi- madamente. Mas se julga que os testes foram realizados com materiais contaminados e que as datas estéo muitissimo baixas; cf. HELENE J. Kantor in R. W. Enrrcu, ed., oc, p. 5; W. C. Hays, in JNES, XXL (1964), pp. 218, 229ss. 9 Para posterior leitura veja: ANN L. PerKins, The Comparative Archeology of Mesopotamia, The University of Chicago Press, 1949; A. O ANTIGO ORIENTE ANTES DO ANO 2000 a.C. 23 A agricultura, muito mais desenvolvida e expandida, veio possibilitar e melhorar a alimentagio e fazer face 4 densidade crescente de populacio. A maior parte das cidades que foram fundadas entio estavam destinadas a desempenhar um papel importante na histéria da Mesopotamia durante os milénios futuros. Levaram-se a efeito projetos de drenagem e irrigacéo. E a medida que estes projetos se tornavam mais elaborados e exi- giam uma manutencio e um controle continuos, e 4 medida que o comércio e a vida econémica se desenvolviam, surgiram as mais antigas cidades-estados. O progresso técnico e cultural era grande em todos os campos, incluindo a invengao da escrita. De fato, pelos fins do quarto milénio, a civilizagio da Mescpotémia assumia, nos seus pontos essenciais, a forma que iria caracteriz4-la por mi- Ihares de anos futuros. a. Culturas antigas de cerdmica pintada. — A floracao cultural comegcu cedo na Alta Mesopotamia, enquanto os vales inferiores dos rios eram ainda terras pantanosas sem populacao estabelecida, Jé no sexto milénio surgiu ai a cultura Hassuna, acima mencionada. Era uma cultura alded, baseada em pequena lavoura e criagio, mas com especializagio crescente de técnica, ficando assim como uma transicao do Neolitico para o Calcolitico. Embcra o metal fosse ainda desconhecido, j4 ccomecavam a aparecer certos tipos de ceramica pintada (marca distintiva do Calcolitico). Era de uma beleza especial a porcelana de Samarra — decorada com figuras humanas e de animais, geo- métricas e monocrémicas, de rara perfeicdo artistica. Esta por- celana comeca a aparecer na tiltima parte deste perfodo. A habilidade artistica alcanccu novo auge com a cultura Halaf seguinte (na ultima parte do quinto milénio). Esta Moorteat, Die Entstehung der sumerischen Hochkultur, J. C. Hin- tichs, Leipzig, 1945; A. Parrot, Archéologie mesopotamienne, Vol. Il, A. Michel, Paris, 1953. Mais tecentemente veja os relevantes artigos em R. W. Exricn, ed. o.c. e os importantes capitulos in CAH. Para estudos mais populares, cf. M. E. L. Mattowan, Early Mesopotamia and Iran, Themes and Hudson, Ltd., Londres, 1965; A. FALKENSTEIN in J, Borréro, E. Cassin, J. Vercourter, eds., The Near East: The Early Civilizations, trad. ingl.: George Weidenfeld & Nicolson, Ltd., Publishers, Londres, 1967, pp. 1-51. 24 PROLOGO cultura, que recebeu este nome por causa da regio no vale de Khabir, onde foi identificada pela primeira vez, tinha o seu centro ao longo do alto Tigre. Mas sua ceramica caracterfstica foi encontrada através de toda a Alta Mesopotamia até a costa Siro-ciciliana, ao norte até o Lago Van e ao sul até Kirkuk. Por este tempo os vales ribeirinhos da Alta Mesopotamia eram provavelmente densamente povoados. De acordo com os padrées de entio, as aldeias eram bem construidas, com casas retangulares de terra batida ou tijolo cru. Estruturas mais macicas circulares (tholoi) com teto baixo serviam para uma finalidade que nos é inteiramente desconhe- cida. Numerosas estatuetas de animais e de mulheres, estas Uiltimas freqiientemente em posic¢io de parto, revelam que se ptaticava ent#o o culto da deusa mae. E de modo especial digno de nota a imponente ceramica. Cozida em forno, mas feita manualmente, sem 0 uso de qualquer méquina, distingue- -se pelos desenhos florais geométricos policrémicos, de uma exceléncia artistica e de uma beleza raramente igualada. Quem era este povo nao sabemos. Nao existem textos que nos revelem que lingua falavam, porque ainda nao tinha sido inventada a escrita. Mas esta ceramica nos prova 4 evi- déncia que a civilizagdo j4 tinha feito grandes progressos na Alta Mesopotamia, h4 mais de dois mil anos antes de Abraio. b. Segtiéncia de culturas pré-dindsticas na Baixa Meso- potémia. — Mas foi na wltima parte do quarto milénio que 0 florescimento cultural da Mesopotamia alcancou o seu apogeu. A povoacio da Baixa Mesopotamia, a descoberta das grandes cidades na regio, e a organizacio das primeiras cidades-estados abriram o caminho para um progresso técnico e cultural admi- rvel. Uma série de culturas na Baixa Mesopotamia nos leva dos comegos do quinto milénio até a luz da histéria, no terceiro. Convencionalmente estas culturas sio conhecidas, em or- dem descendente, como a cultura de Obeid (de antes de 4000 até depois de 3500) a de Warka (no trigésimo primeiro século aproximadamente) e¢ a de Jemdet Nasr (aproximadamente do trigésimo primeiro ao vigésimo nono século), de acordo com os locais onde foram respectivamente identificadas pela primei- © ANTIGO ORIENTE ANTES DO ANO 2000 a.C. 25 ta vez. Mas provavelmente é melhor dividir a cultura Warka em aproximadamente o tempo da invengio da escrita (cerca do ano 3300?) e unir a Ultima parte dela 4 cultura Jemdet Nasr, sob o titulo de “Protoliterdria”, ou uma denominacao semelhante ”. A civilizagdo teve, assim, o seu inicio da Baixa Mesopota- mia relativamente tarde, depois de jd ter seguido seu curso por muitas centenas de anos na parte supericr do vale". As razdes sao faceis de ver. A Baixa Mesopotamia tem em geral chuvas insuficientes para manter uma agricultura vid- vel e tem de depender, no que se refere 4 dgua, dos grandes tics que correm através de seu solo para c Golfo Pérsico. Mas estes estavam sujeitos a enchentes periddicas e como cor- tiam sem nenhum controle humano, nao raro mudavam seu curso e espalhavam suas Aguas cheias de detritos sobre os terrenos planos ribeirinhos e formavam vastcs charcos e la- goas, onde nfo podia medrar nenhuma vegetacao util. Por isso a tetra nao podia receber um cultivo intensivo até que os homens dominassem uma técnica eficiente de irri- gacio, com a construgio de diques e canais. E com toda a certeza isso ndo foi obra de um dia. O trabalho de drenar e preparar a terra e de estabelecer as cidades deve ter-se prolongado durante séculos. Por outro lado, uma vez exploradas as terras de aluvido, extraordinaria- mente ricas, podemos presumir que a pcopulacéo aumentou rdpida e constantemente. Este processo de povoamento e de construcao jd estava em vigor no pericdo Obeid. 10 Ha controvérsia sobre o ponto no qual deve ser feita esta divisio e o nome do novo perfcdo resultante da diviséio. Cf. PERKrns, 0.c. pp. 97-161, que designa a tltima parte do antigo periodo Warka como o An- tigo Protoliterério (Protoliterério A-B), e 0 entigo Jamdet Nasr como o Tardio Protoliterério (Protoliterario CD); Parrot (0.c., pp. 272-278) prefere o termo “prédindstico”, e Moortcat (0.c., pp. 59-94), “Proto- -histérico”. Mas cf. M. E. L, Mariowan, in CAH, I: 8 (1967), parte I, pp. 3-6, que advoga tenazmente a terminologia tradicional. M Supée-se geralmente que a Baixa Mesopotamia tenha sido po- voada pela primeira vez na ultima parte do quinto milénio, Mas este fato pode ter ocorrido muito mais cedo e, por causa da depressio gradual da terra, as povoacdes mais antigas podem estar debaixo do nivel do lencol d’4gua. Cf. S. N. Kramer, The Sumerians, The University of Chicago Press, 1963, pp. 39ss e o artigo de G. M. Legs e N. L. Fatcon 1g citado (Geographical Journal, 118 [1952], pp. 24-39). De qualquer modo, 0 povoamento tinha comecado muito antes do petfodo Obeid.

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