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Loucura, Género Feminino: As Mulheres do Juquery na Sao Paulo do Inicio do Século XX RESUMO A partir do estudo das mulheres internadas no Hospicio do Juquery, em Sao Paulo, no inicio do séeulo XX, este artigo pretende sugerir algumas indicagdes para ona histéria social das mulheres no Brasil. Seu objetivo essencial & perceber como, por trds dos enunciados genéricos da Psiquiairia (mas ndo apenas dela) sobre a mulher enquanto figura normalizada ¢ higiénica, podem ser detectadas diferencas sociais que remetem a formas distintas de subordinagdo no interior da Maria Clementina Pereira Cunha” ABSTRACT On the basis of the study of women interned in the Juquery asylum in Sao Paulo during the early twentieth century, this article seeks to offer some suggestions for a social history of women in Brazil. The primary objective is to understand how we can detect social differences referring to distinct forms of subordination within the “female condition" behind the generic pronouncements of Psychiatry (though not alone) on women as standardized and ygienic figures: “condicdo feminina”. Niio deixa de ser curioso que, apesar de sua obra vigorosa ¢ original, as primeiras credenciais com que a escultora francesa Camille Claudel (1864- 1943) € geralmente apresentada ao piblico sejam precisamente aquelas que dizem respeito aos homens ilustres com os quais ela manteve diferentes tipos de relagdo ao longo de sua vida: Paul Claudel, seu irmao; Auguste Rodin, de quem foi amante ¢ companheira de trabalho por muitos anos; Claude Debussy, com quem manteve uma convivéncia amiga ¢ afetuosa!. O * Depto. Histéria — UNICAMP. TBleni, Varikas, “L'approche biographique dans T'histoire des femmes", mimeo., 1986, ‘observa que — niio apenas com relagio a Camille Claudel — as biografins de mulheres recorrem em geral as suas condigdes de mie, amante, filha etc., como via de identificagao da personagem e de constr sua hist6ria pessoal. Certamente este dado 6 significativo, no apenas de uma leitura miségina, mas da propria imponancia social destes papéis para a existéncia das personagens femininas. Veja-se, p. ex., a colegio de biografias de mulheres editada na Prange pela “Presses de Ia Renaissance”, que esté sendo publicada em portugues pela Editora Maniins Fontes, na qual te inclui um volume sobre Camille Clandel, e onde este tipo de “referencial” figura nos critérios de escolha das personagens e nas capas dos volumes. Ver Anne Delbée, Camille Claudel, wma mulher, Sao Paulo, Martins Fontes, 1988. [Rev Bras de Hise] 'S.Paulo Tv.9nei8 Tp. 121-144” Tago, 89/s01.89 ] dado de que tenha enlouquecido é também tomado como importante e significativo, tornando-a uma personagem “maldita” e fascinante. Efetivamente, Camille foi internada em 1913 e morreu 30 anos depois no Hospital Psiquidtrico de Montdevergues sem jamais ter voltado ao convivio social, sem jamais voltar a trabalhar por recusar-se a fazé-lo em situago de internamento, ¢ sem deixar de reivindicar seu direito a uma vida fora do conforme seus préprios desejos e concepgdes.? A experiencia, levada as (iltimas conseqiéncias, de uma vida A margem do padrao aceito socialmente como “bom” para as mulheres de sua condig¢a0 social naquele periodo — eis o que Camile Claudel nos oferece como material Para reflexao. Decidida ¢ apaixonada, ela langou-se com toda a sua energia a uma empreitada 4rdua para qualquer mulher que vivesse no final do século XIX ¢ inicio do XX: dedicar-se a uma atividade essencialmente “masculina”, como a escultura, e construir para si um espaco auténomo de existéncia Profissional e pessoal. Oriunda de uma tranqijila familia de classe média apoiada nos rigidos padrées morais do periodo, Camille ndo hesitou em concretizar suas escolhas profissionais nem em vivenciar plenamente sua paixdo amorosa por Rodin, seu principal mestre no oficio, incentivador de seu talento profissional e também seu primeiro amante, numa relacZo tempestuosa e semiclandestina entre uma jovem escultora principiante e um homem maduro ¢ estabclecido. A histéria de Camille Claudel é a da dificuldade, compartithada por muilas mulheres em diferentes situag6es, de vivenciar com sucesso escolhas que se caracterizavam pela tansgressdo As normas socialmente definidas. O rompimento de sua ligacdo com Rodin — que durou quase vinte anos ~ agravou um quadro de problemas decorrentes desta escolha, embora assinale também um periodo em que sua produgdo como artista atingia seu ponto mais elevado. Reconhecida por uma parcela significativa da critica — embora provocasse certas desconfian¢as em outras —, Camille teve uma crescente dificuldade em obter o apoio necessario ao desenvolvimento pleno de seu trabalho (do qual fez a prépria razdo de sua existéncia): faltava-lhe dinhciro, sempre escasso para uma alividade dispendiosa como a escultura, que exigia materiais como 0 bronze, o marmore, oficina ¢ artesdos — além da forga fisica que a tornava uma atividade “para homens”; faltou-lhe reconhecimento e confianga em sua capacidade enquanto artista, indispensdveis para conseguir encomendas, patrocinios, etc. que viabilizassem seu trabalho; faltavam-lhe amigos, pois tanto sua inusitada escolha profissional quanto sua relagao 2CF. Anne Delbée, op. cit., que constr6i uma biografin comovente ¢ empenhada, embora se trate mais de uma obra literdria que de investigacio historica. Ver também Jacques Cassar, Dossier Camille Claudel, Paris, Librairie Séguier/Archimbaud, 1987, cuja pesquisa serve de fandamentacéo tanto ao livro de A. Delbée quanto a outras obras sobre Camille Claudel. 122 amorosa com Rodin suscitavam suspeita ¢ desconforto, mesmo no ambiente cultivado e intelectualizado com o qual ela conviveu na Paris da belle époque, Mesmo entre seus admiradores e amigos, como Octave Mirbeau, a lens&o representada por uma mulher como Camille era visivel: diante de uma de suas obras ele comentou, com intengdo t4o elogiosa quanto possivel, que se estava em presenga de uma “chose unique, une révolte de la nature: la femme de génie”>. “Revolta da natureza”: Camille abdicara do casamento ¢ da maternidade, do conforto burgués e do recato feminino para viver intensamente um papel diferente do que lhe estava destinado. Em 1906 comegaram a se manifestar os comportamentos que a levariam ao hospicio: as fugas, 0 isolamento crescente tanto quanto, paradoxal ¢ simbolicamente, a destruic¢fo de suas préprias obras. Aos 49 anos, pobre, sozinha e ressentida, Camille foi internada por sua familia com um quadro clinico marcado pela depressio pelo delfrio persecutério. “Censuram-me (oh, crime espantoso) por haver vivido completamente sozinha” — ironiza a propria Camille em carta escrita no asilo -, “por passar minha vida com os gatos, por ter mania de perse- guicdo”*. Os ténues limites entre a loucura e a consciéncia manifestavam-se ai de forma contundente. No asilo, onde passou os tiltimos trinta anos de sua vida, ela teve finalmente o destino de todos os “loucos”: o esquecimento € 0 abandono, que marcam no apenas sua pessoa, mas também sua obra. Trés anos antes do internamento de Camille, em S40 Paulo, uma longinqua cidade que ela, com seus parametros parisienses, teria certamente achado provinciana e acanhada, Eunice, uma professora de 30 anos, foi internada no Hospicio do Juquery’. $40 Paulo, no inicio deste século, apenas comegava a assumir os contornos de uma grande cidade. As fabricas, o.crescimento dos negécios, a explosio populacional alimentada por levas de imigrantes recém-chegados, as agitagGes operdrias, a concentracSo da pobreza sustentavam a construgao de uma imagem da cidade como o local das multidées ameacadoras, capazes de esconder o crime, o vicio, a imoralidade, a doenga. O esforco “civilizador” acentuou-se com a proclamagdo da Repiiblica, como forma de enfrentamento das novas condi¢des que a cidade oferecia: multiplicaram-se as iniciativas, as especializacGes e as instituigdes destinadas a superar as “mazelas do progresso” através da implantagao e do 3octave Mirbeau, “G4 et 18", Le Journal, 12-05-1895. Apud Jacques Cassar, op. cit, p. 35. 4casta do asilo, de 1917. CE. Jacques Cassar, op. cit., p. 272, SCf. Maria Clementina Pereira Cunha, O espetho do mundo. Juquery, a histéria de um asilo, ‘Sto Paulo, Paz e Terra, 1986, pp. 151-152. Ao longo deste antigo, sero utilizados casos clinicos jf mencionados naquela obre, como outros que nfo figuram no livro citado, Os segundos serio indicados pelos dados do prontuirio existente no Arquivo do Hospital do Juquery; quanto aos primeiros, serio referides de acordo com sua citagae no livro publicado, 123 refinamento dos mecanismos de controle social. A forma por exceléncia através da qual se buscava garantir um crescimento ordenado, gerando disciplinas capazes de aproximar a°cidade da imagem de um imenso aglomerado humano laborioso e pacificado, foi certamente a difusio e intervengdo dos saberes cRancelados como “ciéncia”: mudaram-se concepgdes € praticas de satide, modificou-se a nogdo e a abrangéncia da criminalidade e do sistema penal, criaram-se instimicOes de “corregao” e de “assisténcia”, enfatizaram-se e redefiniram-se as instituig6es educacionais, num amplo processo de disciplinarizacao. Os diferentes “desvios” eram crescentemente separados e classificados — e para cada um deles desenvolven-se uma forma propria de enfrentamento, respaldada nos saberes ¢ na crenga na ciéncia como. fundamento do progresso®, Qual a rela¢ao disso com o caso de Eunice ¢ das tantas outras mutheres internadas neste periodo em Sao Paulo? Sem diivida, o Juquery representou uma das iniciativas mais importantes ~ ¢ também uma das primeiras — nesta direg4o. Ele veio substituir o antigo Hospicio de Sao Paulo, de pequena escala ¢ diregdo leiga, onde apenas os loucos de maior visibilidade (i.e, os aceitos como tal pela senso comum) eram encerrados. O Juquery significou a criagdo tanto de um “asilamento cientifico” quanto de um campo de especialidade no interior do saber médico, ao mesmo tempo capaz de ampliar a escala do internamento e a nogao de loucura, incluindo nela categorias invisiveis aos olhos leigos, mas respaldadas em nogGes de normalidade condizentes com os papéis sociais adequados aos padroes de disciplina que se pretendia impor e difundir & populagdio urbana. Assim, dificilmente Eunice teria sido internada como louca antes que uma instituigéo como o Juquery houvesse sido implantada e que seus diferentes significados pudessem ter sido aceitos socialmente (o que nao significa que ela n&o poderia ter sido submetida a alguma outra forma de punic&o...). Assim como para Camille Claudel, ¢ guardadas as distancias, podemos ter af um outro caso exemplar de loucura feminina, embora Eunice no nos tenha legado qualquer obra que tome possivel cham4-la, como Mirbeau, de uma “femme de génie”. De qualquer forma, sua histdéria tem muitos pontos de semelhanca com a de Camille, inclusive o rétulo que a classifica no interior da nosografia psiquidtrica; loucura maniaco-depressiva. O caso é bem simples — sem personagens célebres, sem discussdes estéticas, sem qualquer brilho que permita resgaté-la do anonimato a que ficou implacavelmente reduzida, Segunda as anotages do alienista em seu prontudrio clinico, Eunice, “habituada a mimos e caricias excessivas” desde a infancia, por ser a filha mais nova de uma familia amorosa e bem SCf, Maria Clementina Pereira Cunha, op. cit. No cabe aqui desenvolver em detalhes este Processo, que esté tratado sobretudo no primeiro capitulo da obra citada, 124 estruturada, havia revelado uma precoce e estranha vivacidade intelectual. “Muito inteligente”, destacara-se na Escola Normal onde estudou em Sao Paulo, e os constantes elogios de professores ¢ colegas a teriam tormado (afirma o psiquiatra) “orgulhosa”. Talvez, num certo sentido, com algum fundamento, pois apenas trés anos apds sua formatura ela ja dirigia um grupo escolar piiblico cm Santos, para onde se mudara, passando a viver s6¢ por sua propria conta ¢ onde, segundo o alienista responsdvel pelo diagnéstico, “sempre se distinguiu” entre seus colegas ¢ companheiros de wabalho. A partir de ent3o, Eunice comegou a multiplicar suas atividades, “trabalhando demais”. O alienista anota que, desde este periodo, ela havia comegado a ter estranhos comportamentos: escrever livros escolares, fundar escolas noturnas para alfabetizago de adultos, comprar “livros € livros para ler...” Pior que isto, comegava a revelar-se “completamente independente”, no admitindo a intervengdo de pais ou irmao em suas escolhas pessoais. O alienista nao deixa, é claro, de agregar outros elementos na construgdo de seu. diagnéstico: tal “hiperexcitagAo intelectual” € expressamente relacionada com © fato de que, aos 30 anos, Eunice permanecia solteira, tendo rompido anteriormente 2 ou 3 “noivados” apesar dos conselhos paternos, O desfecho da hist6ria foi rotineiro. Apés cinco meses de internamento, praticas terapéuticas e disciplina asilar, Eunice finalmente cedeu, aceitando voltar & casa paterna para viver o papel socialmente destinado a uma mulher com 0 seu perfil. Triste papel, o de uma “solteirona” amarga, ressentida, dependente e frdgil, ao qual ela parece ter-se adaptado de alguma forma, j4 que no h4 qualquer anotag4o de retorno em seu prontudrio. O que pode haver em comum entre as trajetérias de uma brilhante artista que conviveu com 0 “grand-monde” intelectual e artistico de Paris ¢ um obscura professora prim4ria paulistana — além da dor, da “loucura” e da proximidade das datas de intcrnamento? A despeito das diferengas entre as duas personagens, sio os mesmos os critérios a partir dos quais os psiquiatras — tanto quanto os demais agentes envolvidos nos dois episédios — Iéem os “sintomas” de loucura nestas duas mulheres: a independéncia em suas escolhas pessoais, 0 excesso de trabalho ou a dedicagSo imoderada as suas Carreiras profissionais, postas a frente das “inclinagGes naturais” das mulheres, a “hiperexcitago intelectual”, o “orgulho”, o celibato. A excecao do tiltimo elemento — que nao consta de prontu4rios masculinos como “sintoma”, a ndo ser como uma espécie de “prova circunstancial” para homossexuais -—, todos os outros seriam antes tomados como qualidades positivas (ou pelo menos “circunstancias atenuantes”) se identificados em um paciente do sexo masculino. Basta passar os olhos pelos prontudrios masculinos do Juquery para perceber que seriam precisamente a auséncia destes atributos, ou o seu 125 inverso — a dependéncia, a falta de disposi¢ao ou aptidao para o trabalho, a excessiva modéstia, a incapacidade intelectual — os argumentos arrolados pelos alienistas do periodo para delinear o perfil “patolégico” ¢ justificar 0 internamento da maioria dos homens levados ao hospicio. Parametros diferentes orientam a construcéo da “loucura” - e, portanto, da “normalidade” — para cada um dos sexos, remetidos a um desenho idealizado dos papéis sexuais ¢ dos diferentes atributos de género. Assim, cabia ao homem “normal” a tarefa de provedor da familia, de trabalhador dedicado e disciplinado voltado para o sustento da mulher ¢ a educago dos filhos, tanto quanto o “exemplo” de uma vida morigerada ¢ livre dos vicios ¢ dos “excessos”. A mulher, restavam as tarefas estratégicas da reprodugao ¢ da conservago da familia e do lar, de “ser-para-os-outros”” conforme exigiriam sua prépria determinaco bioldgica e as inclinagdes naturais do seu espirito, Evidentemente, uma concepgao subordinada da natureza feminina esti implicita nesta definigdo de papéis sexuais e sociais em que se igualam todas as mulheres. Em qualquer situagao social (e também na escala do internamento) elas serao sempre inferiorizadas quando confrontadas aos homens com os quais convivem. Alguns exemplos podem ilustrar esta afirmagéo que talvez, por sua obviedade, dispense maior esforgo comprobatério. Assim, Franco da Rocha, considerado pelos apologistas da medicina asilar como uma espécie de “Pinel brasileiro” ¢ fundador do primeiro “asilo cientifico” paulista, o Juquery, referindo-se as formas da loucura entre os negros, observa que “... das observagdes que temos sob os olhos, um fato se destaca imediatamente: 0 miimero de dementes do sexo feminino € superior aquele do sexo masculino. £ 0 contririo do que se observa entre os brancos. Nio hé nada de estranho nisto. A mulher branca & menos exposta que 0 homem as contingéncias da vida; sua existéncia € menos atormentada que do homem em nosso meio social. Isto nko acontece para a mulher negra; esta se expe nfo somente aos trabalhos como aos desvios de conduta © as extravagincias de toda espécie. O alcoolismo, por exemplo, € mais freqiiente ‘entre as negras que entre os negros (ao menos nas minhas 285 observagiex); entre os brancos, 40 contrério, este ditimo € mais freqiente entre os homens"®, Em outras palavras, mesmo entre os setores sociais considerados mais “primitivos”, brutos, inferiores na escala social ¢ na escala da “civilizagio”, as mulheres revelam-se menos aptas que os homens a enfrentar as “contin- géncias da vida” — e portanto enlouquecem mais quando submetidas ao tipo ‘TPranca Basaglia Ongaro, “Mulheres ¢ loucura” in Gradiva, Rio, nov-dez. de 1983, p. 14. SFranco da Roche, “Contribuitions a Tétude de la folie dans la race noire” in Annales medico-psychologiques, série, tomo XIV, ano 69, Paris, 1911, p. 375. 126

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