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FACULDADE DE ECONOMIA DA UNIVERSIDADE DO PORTO Prova escrita de Lingua Portuguesa Ano de 2014 Duragdo: 2 horas Texto Eu, easuialmente, conheci Pacheco. Tenho presente, como num resumo, a sua figura e a sua Vida. Pacheco no deu ao seu pats nem uma obra, nem uma fundagao, nem um livro, nem uma ideia. Pacheco era, entre nés, superior e ilustre unicamente porque tinha um imenso talento. TTodavia, meu caro St, Mollinet, este talento que duas geragles tdo soberbamente aclamaram nunca deu, da sua forca, uma manifestacdo positiva, expressa, visivell O talento imenso de Pacheco ficou sempre calado, recolhido, nas profundidades de Pacheco! Constantemente ele atravessou a vida por sobre eminéncias socials: Deputado, Diretor Geral, Ministro, Governador de Bancos, Conselheiro de Estado, Par, Presidente do Conselho - Pacheco tudo fol, tudo teve, neste pals que, de longe e 2 seus pés, 0 contemplava, assombrado do seu imenso talento. Mas nunca, nestas situacSes, por proveito ou urgéncia do Estado, Pacheco teve necessidade de deixar sair, para se afirmar ¢ operar fora, aquele imenso talento que Id dentro o sufocava. Quando os amigos, (05 partidos, os Jornais, as repartigbes, os corpos coletivos, a massa compacta da nagdo, ‘murmurando em redor de Pacheco "que imenso talento", o convidavam a alargar 0 seu dominio e a sua fortuna - Pacheco sorria, baixando os olhos sérios por trés dos éculos dourados, e seguia, sempre para mais ato, através das instituigbes, com o seu imenso talento aferrolhado dentro do crénio como no cofre dum avaro. E esta reserva, este sorrr, este lampejar dos éculos, bastavam 20 pais, que neles sentia e saboreava a resplandecente evidéncia do talento de Pacheco. Este talento nasceu em Coimbra, na aula de direito natural, na manha em que Pacheco, desdenhando a Sebenta, assegurou que "o século XIK era um século de progresso e de luz". 0 curso comecou logo a pressentir e a afirmar, nos cafés da Feira, que havia muito talento em Pacheco: @ esta admiragio cada dia crescente do curso, comunicando-se, como todos os movimentos religiosos, das multid&es impressiondveis as classes raciocinadoras, dos rapazes aos lentes, levou facilmente Pacheco a um prémio no fim de ano. A fama desse talento alastrou entio por toda a academia Pacheco estava maduro para a representa¢o nacional. Velo 20 seu seio, trazido por um governo (nao recordo quel) que conseguira, com dispéndios e manhas, apoderar-se do precioso talento de Pacheco. Logo na estrelada noite de dezembro em que ele, em Lisboa, foi a0 Martinho tomar cha e torradas, se sussurrou pelas mesas, com curiosidade: -"é 0 Pacheco, rapaz de imenso talento!” E desde que as Cémaras se constituiram, todos os olhares, os do governo e os da oposigio, se comesaram a voltar com insisténcia, quase com ansiedade, para Pacheco, que, na ponta duma bancada, conservava a sua atitude de pensador recluso, os bra¢os cruzados sobre 0 colete de veludo, a fronte vergada para o lado como sob 0 peso das riquezas interiores, e os culos a faiscar... Finalmente, uma tarde, na discusséo da Coroa, Pacheco teve um movimento como para atalhar um padre zarolho, que arengava sobre a “liberdade". O sacerdote Imediatamente estacou com deferéncia; 0s taquigrafos apuraram vorazmente a orelha; e toda a ‘camara cessou o seu desafogado sussurro, para que, num siléncio condignamente majestoso, se pudesse pela vez primeira produzir 0 imenso talento de Pacheco. No entanto, Pacheco no prodigalizou desde logo 0s seus tesouros. De pé, com o dedo espetado (gesto que fol sempre muito seu), Pacheco afirmou, num tom que trae a seguranga do pensar e do saber intimo, “que a0 lado da liberdade devia sempre coexistr a autoridadel” Era pouco, decerto - mas a cémara ‘compreendeu bem que, sob aquele curte resumo, havia um mundo, todo um formidavel mundo, de ideias sélidas. No volveu a falar durante meses - mas 0 seu talento inspirava tanto mais respeito, quanto mais invsivele inacessivel se conservava ld dentro, no fundo do seu ser. Nas cadelras do governo, Pacheco rarissimamente surgia do seu siléncio repleto e fecundo. As vezes, porém, quando @ oposicdo se tornava clamorosa, Pacheco descerrava 0 brago, tomava com lentido uma nota a lépis - e esta nota, tragada com saber e madurissimo pensar, bastava para perturbar, acuar a oposigdo. E que 0 imenso talento de Pacheco terminara por inspirar, ns cmaras, nas comissBes, nos centros, um terror dsciplinarl Al desse sobre quem viesse a desabar com célera aquele talento imenso! Certa the seria a humilhacSo irresgatdvell Assim, dolorosissimamente o experimentou o pedagogista que um dia se arrojou a acusar 0 Sr. Ministro do Reino (Pacheco dirgia entao 0 Reino) de descurar a Instrucio do Pais! Nenhuma incriminago poderia ser mais sensivel aquele imenso espirito que, na sua frase lapidria e suculenta, ensinara | 15 20 25 30 35, 45 50 "que um povo, sem o curso dos liceus, € um povo incompleto". Espetando o dedo (elto sempre seu) Pacheco esborrachou o homem temerério com esta coisa tremienda: - "Ao ilustre deputado que me censura, sé tenho a dizer que, enquanto S. Exa., af nessas bancadas, faz berreiro, eu, aqui | 55 nesta cadeira, faso luz!" ~ Eu estava lf, nesse espléndido momento, na galeria. E ndio me recordo de ter jamais ouvido, numa assembleia humana, uma to apaixonada e fervente rajada de ‘aclamagbes! Creio que foi dat a dias que Pacheco recebeu a gr3-cruz da Ordem de So Tiago, (..) Rebentou; quero dizer, S. Exa. morreu quase repentinamente, sem sofrimento, no comeco deste duro inverno. la ser justamente criado marqués de Pacheco. Toda a nago 0 chorou com | 60 Infinita dor. Jaz no alto de Séo Jodo, sob um mausoléu, onde, por sugesto do Sr. Conselheiro Acdcio (em carta ao Dirio de Noticias), foi esculpida uma figura de Portugal chorando o Génio. (a Ega de Queirés, Correspondéncia de Fradique Mendes N= Questionstio 1. Depois de uma leftura atenta do texto, esboce uma caracterizacdo sintétice, mas completa, da figura rele retratada [2 val) 2. Identifique aquela que pode ser considerada a palavra-chave na caracterizagdo de Pacheco. Mostre de que modo tal termo ¢ nuclear no desenho da personagem. (1,5 val} 3. Por que razio é tdo aguardada a primeira intervengo parlamentar de Pacheco? Esté ela & altura das expetativas? Justifique. 15vald 4. Pode afirmar-se que todo o texto esté repleto de Ironia. Mostre, com os exemplos adequados, como 6 eficaz 0 uso deste recurso. (2 val] 5. Retire do texto um exemplo de: [aval] a) Comparagio b) Andfora 6. Na frase -... um padre zarolho, que arengava sobre a “liberdade” (L. 34] ~ substitua a forma verbal arengava por outra semanticamente equivalente. [1vat) 7, Atente na frase: Nas cadeiras do governo, Pacheco rarissimamente surgia do seu silencio repleto e ecundo {L. 44]. Explicite 0 valor expressivo do uso do advérbio e da adjetivagSo. (1,5 val) 8. Indique as oragdes subordinadas nas frases a seguir transcritas e classifique-as: 11,5 val] @) O curso comecou logo a pressentir ea afirmar que havia muito talento em Pacheco. »b) Toda « cémara cessou 0 seu desafogado sussurro, para que se pudesse pela primelra vez produzir 0 Imenso talento de Pacheco. Ml Composigao Comente, no minimo, em uma pigina e, no maximo, em duas o seguinte texto: (aval Ensinar com seriedade é lidar com o que existe de mais vital no ser humano. € procurar 0 acesso a0 émago da integridade de uma crianga ou de um adulto. Um Mestre invade e pode devastar de modo @ purificar € @ reconstruir. 0 mau ensino, @ rotina pedagégica, esse tipo de instructio que, conscientemente ou ndo, & cinico nos seus objetivos puramente utilitérios, € rvinoso. Arranca a esperanga pela raiz. 0 mau ensino é, quase literclmente, criminoso ¢, metaforicamente, um pecado. Diminui 0 aluno, reduz a uma inanidade cinzenta a matéria apresentada, Derrama sobre a sensibilidade da crianga ou do aduito 0 mais corrosive dos dcidos, 0 tédo (.... Para milhbes de pessoas, a matemética, a poesia, o pensamento Iégico foram destruidos por um ensino inane, pela ‘mediocridade, talvez subconscientemente vingativa, de pedagogos frustrados. George Steiner, As licdes dos Mestres, Lisboa, Gradiva, 2005: 25.

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