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38 Etnomatematica, curiculo ¢ formagdo de professores REGNIER, Nadja Maria Acioly. A logica matemadtica do jogo do bicho: ‘compreensio ou tilizacio de regras? Recife: UFPE, 1985. (Mestrado). Orientador: Prof. Dr’. Analicia D. Schliemann, REGNIER, Nadja Maria Acioly. A justa medida: um estudo das com- peténcias matematicas de trabalhadores da cana-de-agiicar do nor- deste do Brasil no dominio da medida, Paris: Université Rene Descar- tes~ Pais V, 1994. (Doutorado). Orientador: Prof. Dr. Gerard Vergnau. ROOS, Liane Teresinha Wendling. Historias de vida © saberes construidos no cotidiano de fumicultores: um estudo etnomatemitico. jul: UNIJUI, 2000. (Mestrado) . Orientador: Prof. Francisco Egger. ‘SCANDIUZZI, Pedro Paulo. A dindmiea da contagem de Lahatua Otomo «suas implicagdes educacionais: uma pesquisa em etnomatemitica, ‘Campinas: UNICAMB. 1997. (Mestrado), Faculdade de Educagio, Orientador: Prof, Dr. Joao Frederico C. A. Meyer, SCANDIUZZI, Pedro Paulo. Educagdo Indigena x Edueagao Escolar Indigena: uma relagio etnocida em uma pesquisa ctnomatemstica. Marilia: UNESP, 2000. (Doutorado). Orientador: Prof. Dr’, Claude Lépine. SCHMITZ, Carmen Cecflia, Caracterizandoa matemdtica escolar: um estudo na Escola Bom Fim. Sao Leopoldo: UNISINOS, 2002 (Mestrado). Orientador: Prof’. DP, Gelsa Knijnik SOUZA, Angela Calazans. Edueagdo matemdtica na alfabetizagdo de ‘adultos ¢ adolescentes segundo a proposta pedagégica de Paulo Freire. Vitoria: UFES, 1989. (Mestrado), Faculdade de Educagao, Orientador: Prof. Dr. ArmandoSerafim de Oliveira VIANNA, Marcio de Albuquerque. A escola da Matematica ea escola do samba: um estudoetnomatematico pela valorizagao da cultura popu- larno ato cognitivo, Rio de Janeiro: Universidade Santa Ursula, 2001 (Mestrado). Orientador: Prof. Dr. Eduardo Sebastiani Ferreira Prof’ Dr. Sonia Borges. WANDERER, Femanda. Educagao de Jovens ¢ Adultos e produtos da midia: possiblidades de um processo pedagogico etnomatemitico. ‘Sao Leopoldo UNISINOS, 2001. (Mestrado). Orientador: Prof*. Dr’, Gelsa Knijnik. 39 ETNOMATEMATICA E EDUCAGAO™ Ubiratan D'Ambrosio" Introdugio: ‘Ao abordar o conhecimento matemstico ¢ tomar como re‘e- réncia a cigncia académica, estamos focalizando uma determinada regio ¢ um momento na evolugdo da humanidade. De fato, a0 nos referimos a Matematica, estamos identificando o conhecimento que se originou nas regides banhadas pelo Mar Mediterrineo, Mesmo reconhecendo que outras culturas tiveram influéneia na evolugio dessa forma de conhecimento, sua organizacio intelectual e social € devida aos povos dessas regides.' Por razdes varias, ainda pouco explicadas, acivilizagao ocidental, que resultou dessas culturas, veio ase impor a todo o planeta? Com essa hegemonia, a Matemitica, Testo publieado anteriormente na Revista Reflerdo¢ Agdo do Departamexto de Edcagio da Universidade de Santa Cruz do Sul ~ UNISC. V0, m1 (an! jun.2002) ~ Santa Cruz do Sul: EDUNISC,2002. Transcrito aqui com 2 ‘autorizagdo do autor Doutor em Matematica pela Bscola de Engenharia de S40 Carlos da Univer: sidade de Sto Paulo, Professor emérito da Universidade Estadual de Campi nas -UNICAMP. Esmail:ubi@usp.br \ O grau de participagio de outras culturas na elaboragao do pensamento igrego ¢ uma questo muito controvetida, com importantes conotagbes 20- Titicas,Particularmente controversa€ a presenga de intelectuas afticanos 32s, jeademias e no cotidiano ateniense, dando origem ao chamado ’Mrocentrismo”, que privlegis 2 participagao africana na construgio do cconhecimento grego. Este tema é 2 razio de ser do liveo de Martin Bernal Black Athena: The Afroasiate Roots of Classical Civilization, Rutgers University Press, New Brunswik, 1987. Um artigo representativo desse movimento € de Beatrice Lumpkin: Africa, Cradle of Mathematics, Ganita-Bharati, vol19, nos. 14 (1997), p. I-10. Uma colegdo de artigos que mostram muito ber 2 intensidade desss dacussBes €0 lio Black Athena Revisited, ed. by Mary R Lefkowitz and Guy MacLean Rogers, The University of North Carolina Press, Chapel Hill, 1996, Muito interestante a diseussio das razdes de sucesso da cvlizaglo europea feita por Gale Stokes: Why the West. The ubsetted question of Europe's ascendancy, Linguafranca, November 2001, p. 30-38, ve 40 Etnomatemdtica, cureulo € formagio de professores ‘cuja origem remonta as civilizagdes mediterraneas, particularmente 4 Grécia antiga, também se impos a todo o mundo. Uma afirmacio muito freqiiente € que a Matemtica é uma s6, 6 universal. Essa ques- to é muito bem abordada pelo historiador Oswald Spengler, em 1918, ‘num certo sentido preconizando a Etnomatemitica ao dizer que no hi uma escultura, uma pintura, uma matemitica, fisica, mas muitas, ada uma diferente das outrasna sua profunda esséncia, eada qual limitada em duragio ¢ auto- suficente? Aoatentar nos modos como o processo de evolugio da huma- nidade é descrito, analisado, interpretado e usado nas virias maneiras dese organizar 0 conhecimento histérico, surgem algumas questies ‘que discutitei a seguir. Mesmo adotando uma postura holistica, vou dar maior atengio a histéria do conhecimento cientifico, em parti- cular matemético, Ahistoria da ciéncia Acincia modema nascen enquanto o chamado Velho Mundo deslumbrava-se com a nova realidade que representou o Novo Mun- doa pattir de entio sua evolugao se fez.com a necessaria participa- co de todos. Ao reconhecermos uma contribuigo mais intensa de cientistas do Velho Mundo na construgao da sociedade modema, & importante lembrar que o cendrio natural, cultural e social do Novo Mundo foi fundamental para 0 imagindrio que serviu de base para ssa mesma construgio e que, até os dias de hoje, a natureza ca cultura exuberantes do hemisfério conquistado ainda ativam esse en xpresenga das Américas na laborato do pensamento cient fico e cultural da Europa cresce em importincia desde o primeiro * século do encontto até 0s dias de hoje. Um notavel esforco de conci- Tiago faz. com que episédios que néo podem ser classificados de outra maneira que genocidio humano ¢ cultural, perpetrados nos anos dificeis da época colonial e durante a independéncia crioula, sejam *Orwald Spengler: The Decline of the West. Volume I: Form and Actuality, trans. Charles Francis Atkinson (origed.1918), Alfred A. Knopf Publisher, New York, 1926; p. 21 Btnomatemstica ¢ educagao 41 hoje superados sem rancor e cedam lugar busca de novos rumos para a humanidade, com a finalidade maior de sobrevivencia do planeta e da civilizagao, No que se refere ao Novo Mundo, particularmente i América Latina, cabe aos historiadores das ciéncias a recuperagio de conheci- ‘mentos, valores atitudes que poderdo ser decisivos na busca desses novos rumos, mas que foram relegados a plano inferior, ignorados e, 8, ‘eves, até reprimidos ¢ eliminados. Cabe reconhecer que somos uma cul amerindias, e que isso tem um impacto permanente em nosso quoti- iano latino-americano. Bstio nesse caso em especial as culturas ati- ceanas,cuja complexidade e incorporacio no saber e fazer brasileiro tem sido pouco estudados.* A Historia da Matemitica, que se firmou como uma eiéneia, somente no século passado, tem como grande preocupagio o rigorda identificagao de fontes que permitem identificar as ctapas desse avan- 0. Isso afeta nao s6 a histéria da matematica nas nagdes e popula- ses periféricas, mas igualmente causa distorgdes na visio de prieri- dades cientificas das nagdes dominantes. Creio que € hora de adotarmos novas propostas, historiograficas e epistemoldgicas que permitem lidar com a dificil tatefa de recuperar, na histéria das ciéncias e da tecnologia, o equili- brio triangular que deve resultar da mescla de tradigdes indgenas, ‘européias eafricanas na cultura latino-americana.S ‘Abusca de alternativas historiograficas que conduzam a uma histéria que nao vera embebida de um determinismo eurocéntrico, favorecendo a manutengao do status quo e desencorajando a supera- do da desvantagem atual, € essencial neste momento de uestionamento da atual ordem internacional a triangular, resultado das tradigBes européias, africanas © Panorama di educagéo atual Estamos vivendo um periodo em que os meios de captarin- formagio ¢ 0 processamento da informagio de cada individuo en- + Muito interessante, com importantes referéncias, & o attigo recente de Mi- vio Gomes: Do outro lado da Floresta. Terra © meméria dos macambos do Gurupi, Cigneia Hoje, v 30, n, 179, jnciroffevereio de 2002; pp.27-31 | figura do equilfrio triangular devo 2 Arnaldo Momiglano, “The Fault of the Greeks", Daedalus, Spring 1975; p. 9-19, 2 Etnomatemstica, curiculo ¢ formagio de professores contram nas comunicagdes e na informatica instrumentos auxiliares de aleance inimaginavel em outros tempos, A interagio entre indivi- duos também encontra na teleinformatica, um grande potencial ainda dificil de se aquilata, de gerar agbes comuns. Nota-se em alguns ca- 08 0 predominio de uma forma sobre outra, algumas vezes a subst tuigio de uma forma por outra e mesmo a supressio ea eliminagio total de alguma forma, mas na maioria dos casos o resultado € a geragdo de novas formas culturais,identificadas com a modernidade. ‘Anda dominadas pelas tenses emocionais, a relagdes entre indivi dluos de uma mesma cultura (intraculturais) ¢, sobretudo, as rlagées entre individuos de cultura distintas (interculturais)representam 0 potencialeriativo da espécie. Assim como a biodiversidade represen- ta o caminho para o surgimento de novas espécies, na diversidade cultural reside o potencialcriativo da humanidade. As conseqiiéncias dlessas mudangas ma formagio de novas geragOes exigereconceituara educagio* ‘A pluralidace dos meios le comunicagio de massa facitada pelos transportes, evou as rlacées interculturais a dimensbes verda- deiramente planetirias. Incia-se assim uma nova era, que abre enor- ‘mes possbilidades de comportamento e de conhecimento planetiri- 6s, com resultados em precedentes para o entendimentoe harmonia de toda a humanidade. ‘Tem havide o reconhecimento da importéncia das relagbes interculturais, Maslamentavelmente ainda hé relutincia no reconhe- cimento das relagdesintraculturais na edueagio. Ainda se insiste em colocat eriangas em séres de acordo com idade, em oferecer o mesmo curiculo numa mesma série, chegando a0 absurdo de se propor curti- culos nacionais. Finda maior absurdo de se avaliar grupos de indivi- duos com testes padronizados. Trata-e efetivamente de uma tenta- tiva de pasteurizaras novas geragdes! Nio se pretende a homogeneizacio biol6gica ou cultural da cespéeie, mas sim a convivéncia harmoniosa dos diferentes, através de ‘uma ética de respeito miituo, solidariedade ¢ cooperacio. Ver Ubiratan D'Ambrosio: Bducagdo para uma Sociedade em Transeo, Faito- 1a Papirus, Campinas, 1999, Etnomatemitica e educagio 8 A questio do conhecimento e a Educagio Multicultural Naturalmente, sempre existiram maneiras diferentes de expli- car e de entender, de lidar e conviver com a realidade. Agora, gracas ‘40s novos meios de comunicagao ¢ transporte, essas diferengas serdo notadas com maior evidéncia, criando a necessidade de um compor- tamento que transcenda mesmo as novas formas culturais. Eventual- mente, 0 tio desejado livre arbitrio, proprio de ser [verbo] humano, poderd se manifestar num modelo de transculturalidade que permtti- 4 que cada ser [substantivo] humano atinja a sua plenitude. Um modelo adequado para se facilitar esse novo estgio na cevolugdo da nossa espécie €a chamada Educacio Multicultural, que ‘vem se impondo nos sistemas edueacionais de todo o mundo. Sabemos que no momento ha mais de 200 estados e aproxi- ‘madamente 6,000 nagées indigenas no mundo, com uma populagio totalizando entre 10%-15% da populagio total do mundo, Embora nnio seja 0 meu objetivo discutir Educagio Indigena, os aportes de especialistas na rea tém sido muito importantes para se alertar sobre 6s perigos de uma educagio que se tome um instrumento de reforgo dos mecanismos de exelusio social entre os varios questionamentos que levam a preservagiode identidades nacionais, muitas se referem ao conceito de conheci- mento e as priticas associadas a ele. Talvez a mais importante a se destacar seja a percepcio de uma dicotomia entre saber e fazer, ps pria dos paradigmas da ciéneia moderna iniciada por Galileu, Descar- tes, Newton e outros, e que prevalece no mundo chamado “civiliza- do”. ‘A ciéncia modema surgiu, praticamente, ao mesmo tempo «em que se deram as grandes navegagdes, que resultaram na conquista enacolonizacao, ena imposigio do cristianismo a todo o planeta, A ciéncia modema, originada das culturas mediterraneas e substratoda eficiente e fascinante tecnologia moderna, foi logo identificada como protétipo de uma forma de conhecimento racional. Definiramsc, assim, a partir das nagdes centrais, conceituagdes estruturadas ¢ a dicotomia do saber {conhecimento] e do fazer fhabilidades}. E importante lembrar que praticamente todos os pafses ado- tatam a Declaragio de Nova Delhi (16 de dezembro de 1993), que é explicita ao reconhecer que “4 Etnomatemtica, curticulo ¢ formagdo de professores a educago é 0 instrumento preeminente da promogio dos valores humanos universas, da qualidade dos recursos hu- manose do respeit pea dversidadecultural(2.2) eque ‘oscontetidos emétodos de educagio precsam ser desenvol- vidos pra serir as necesidades bisicas de aprendizagem dos individuose das sociedades, proporcionando-hes o poder de cenfeensar seus problemas mai urgentes — eowibate & por brezs, sumento da produtividade, melhora da eondighes de vid ¢protegio ao meio ambiente —e permitindo que assu- ‘mam seu papel por dieito na construgto de sociedades de- tmocritica eno enrquecimento de sua heranga cultual(2.4). Nada poderia ser mais claro nesta declaragio que o reconheci- mento da subordinagao dos conteiidos programaticos a diversidade { cultural. Igualmente, oreconhecimento de uma variedade de estilos de aprendizagem es:4 implicito no apelo ao desenvolvimento de no- vas metodologias, Essencialmente, essas consideragdes determina uma enor- me flexibilidade :anto na selecdo de contetidos quanto na metodologia, © Programa Etnomatemstica Programa Etnomatemstica teve suit origem na busca de entender o fazer e 0 saber matematico de culturas marginalizadas. Intrinseca a ele hé uma proposta historiogrfiea que remete & dinami- cada evolugao de fazeres e saberes que resultam da exposicdo mitua de culturas. Em todos os tempos, a cultura do conquistador e do colonizador evolui a partir da dinamica do encontro, Mesmo livros clementares reconheceram, muito antes do polémico afrocentrismo, jd mencionado na Introdugio, que: {Acigncia helénica]teve su nascimento na tera dos Faraés de onde os flésofos, que al iam se instruircom os sacerdotes egipcios trouxeram os prineipios elementares.” * Boyer: Histoire des Mathématiques, GauthierVillars, Pais, 1900; p. 9 Etnomatemstics ¢ educagio 5 Ocncontro cultural assim reconhecido, que é essencial na evor lugio do conhecimento, nZo estava subordinado a prioridades colo- niais como aquelas que se estabeleceram posteriormente. Programa Etnomatemitica nao se esgota no entender 0 conhecimento [saber e fazer] matematico das culturas periférieas Procura entender o ciclo da geragio, organizagio intelectual, orgar zagio social edifusao desse conhecimento. Naturalmente, no encon- tro de culturas ha uma importante dinamica de adaptagio ¢, reformulacdo acompanhando todo esse cielo, inclusive a dinamics cultural de encontros {de individuos e de grupos) * Por que Etnomatemitica? Poderiamos falar em Etnociéncis, ‘um campo muito intenso ¢ fértl de estudos, ou mesmo Etnofilosofia? ‘A melhor explicacao para adotaro Programa Etnomatemstica como central para tum enfoque mais abrangente aos estudos de histé- tia e filosofia esta na propria construgio do termo. Embora haja uma vertente da etnomatemtica que busca identificar manifestagées mateméticas nas culturas periféricas tomando como referéncia a ‘matemética ocidental, o Programa Etnomatemstica tem como refe- téncias eategorias proprias de cada cultura, reeonhecendo que é pré- prio da espécie humana a satisfagio de pulsdes de sobrevivéneia e transcendéncia, absolutamente integrados, como numa relagao de simbiose. A satisfagao da pulsdo integrada de sobrevivéncia ¢ transcendéncia leva o ser humano a desenvolver modos, mancira: estilos de explicar, de entender e aprender, ¢ de lidar com a realidade perceptivel. Um abuso etimoldgico levou-me a utilizar, respectiva- mente, tica [de techn], matema e etno para essas ages e compor 1 palavra etno-matemactica. pensamento abstrato, proprio de cada individuo, é uma claborago de representagdes da tealidade e € compartilhado gragas 1 comunicacio, dando origem ao que chamamos cultura, Os instru ‘mentos [materiais e intelectuais] essenciais para essa elaboragiio in- cluem, dentre outros, sistemas de quantificagio, comparagio, classi- ficagio, ordenagao e linguagem. O Programa Etnomatemstica tem * Para uma diseussio mais claborada desse programa, ver Ubiratan D’Ambrosic: Etnomatemdtica. Ate ou Téenica de Explcar ¢ Conhecer, Editora Atcs, Siv Paulo, 1990, * 0 termo foi utilizado, com muita propriedade, por Gary Urton: The Social Life of Numbers. A Quechua Ontology of Numbers and Philosophy of Arithmetic University of Texas Press, Austin, 1997, \ 46 Etnomatemstica, euriculo ¢ formagio de professores ‘como objetivo entender o ciclo do conhecimento em distintos am- bientes. ‘A.exposigio scima sintetiza a motivagao tedrica que serve de base a um programa de pesquisa sobre a geragio, organizacao intelee- tual, organizagao social e difusio do conhecimento, Na linguagem académica, poder-se-ia dizer que se trata de um programa interdisciplinar, abarcando 0 que constitui o dominio das chamadas cigncias da cognicio, da epistemologia, da histéria, da sociologia ¢ da difusio."” Metodologicamente esse programa reconhece que na suaaven- tura enquanto espécie planetdria, o homem (espécie homo sapiens sapiens), bem comoas demais espécies que a precederam, os varios hominideos reconhecidos desde ha 4.5 milhdes de anos antes do presente, tem seu comportamento alimentado pela aquisigao de co- nnhecimento, de fazer(es) ede saber(es) que lhes permitem sobreviver «etranscender através de maneiras, de modos, de téenicas ou mesmo de ates {techné ou tic] de explicar, de conhecer, de entender, de lidar com, de conviver ccm [matema] a realidade natural e sociocultural [etno] na qual ele, homem, estéinserido. Ao utilizar, num verdadeiro abuso etimologico, as raizes tiea, matema e etno, dei origem & minha conceituagio de etnomatemitica Naturalmente, em todas as culturas ¢ em todos os tempos, 0 conhecimento, que é gerado pela necessidade de uma resposta a pro- blemas c situagées distintas, est subordinado a um contextonatu- ral, social e cultural. Individuos ¢ povos tém, ao longo de suas existéncias e 20 longo da historia, ciado e desenvolvido técnicas de reflexao, de ob- servagio, ¢ habilidades (artes, téenicas, techné, ticas) para explicar, ‘entender, conhecer, aprender para saber e fazer como resposta a ne- (cessidades de sobrevivéncia'e de transcendéncia (matema), ern ambi- tentes naturais(sociais¢ culturais (etnos) 0s mais diversos, Desenvol- veu, simultaneamente, os instrumentos te6ricos associados a essas técnicas ¢ habilidadss. Dai chamarmos o exposto acima de Programa Etnomatemtica Onome sugere o corpus de conhecimento reconhecido acade- rmicamente como Matematica, De fato, em todasas culturas encon- ‘ramos manifestagées relacionadas e mesmo identificadas com 0 que WW Esse enfoque abrangente ¢ estudado no livro de Ubiratan D'Ambrosio Etwomatemdtica. EB entre at tradigbes ¢ a moderidade. Editora Auténtica, Belo Horizonte, 2001 Etnomatemdtica ¢ educagio 7 a7 hoje se chama Matematica (processos de organizacio, classificagio, contagem, medicio, inferéncia), geralmente mescladas ou dificilmen- te distinguiveis de outras formas de conhecimento, hoje identificadas como Arte, Religio, Misica, Técnicas, Ciéncias. Em todos os tem- pos eem todas as culturas, Matematica, Artes, Religiao, Miisica, Téc- nnieas, Ciéncias foram desenvolvidas coma finalidade de explicar, de conhecer, de aprender, de sabeifazer e de predizer (artes divinatorias) 6 futuro. Todas essas formas de conhecimento, que aparecem num primeiro estagio da histéria da humanidade e da vida de cada um de 16s, sio indistinguiveis, na verdade mescladas. A Matemstica no Programa Etnomatemitica A abordagem a distintas formas de conhecer éa esséncia do Programa Etnomatemitiea. Na verdade, diferentemente do que su- sere o nome, Etnomatemitica nao é apenas o estudo de “matemati- cas das diversas etnias”. Repetindo o que disse acima, para compora palavra Etno-matema-tica, utilizei as raizes tica, matema e etno com finalidade de enfatizar que h varias maneiras,técnicas, habilidades (ticas) de explicar, de entender, de lidare de conviver com (matema) distintos contextos naturas e s6cio-econémicos da realidade (etn). A disciplina denominada Matemstica é, na verdade, uma Etnomatemética que se originou e se desenvolveu na Europa, tendo recebido importantes contribuigées das civilizagdes do Oriente da Africa, e que chegou a forma atual nos séculos XVI e XVII. A partir de centdo, nessa forma estruturada, foi levada e imposta a fodo o mundo, Hoje, essa matemitica adquire um cariter de universalidade, sobre tudo devido ao predominio da ciéncia ¢ tecnologia modernas, que foram desenvolvidas a partir do século XVII na Europa Essa universalizagdo é um exemplo do processo de globalizagio que estamos testemunhando em todas as atividades e reas de co nhecimento, Falava-se muito das multinacionais, Hoje, as rmultinacionais sao, na verdade, empresas globais, para as quais nio é possivelidentificar ume naglo ou grupo nacional dominante, Essa idéia de globalizagao jd comega ase revelar no inicio do cristianismo e do islamismo, Diferentemente do judaismo, do qual essas religides se originaram, bem como de inimeras outras erengas nas quais hum povo cleito, ocristianismo co islamismo sio essen- cialmente religides de conversto de toda humanidade & mesma £6, 48 Etnomatemitia, curiculo ¢ formagio de professores com 0 ideal de subordinar todos os povos a uma mesma autoridade religiosa, sso fica evidente nos processos de expansio do Império Romano cristianizado e na expansio do Isla0. processo de globalizagio da f€ crista se aproxima do seu ideal com as grandes navegagoes. O catecismo, elemento fundamen tal da conversio, élevado a todo o mundo. Assim como o cristianis- ‘mo € um produto do Império Romano, levado a um cariter de univer~ salidade com 0 colonialismo, também o sio a matemitica, a ciéncia eatecnologia. 'No processo de expansio, o crstianismo foi se modificando, absorvendo elementos da cultura subordinada e produzindo varian- tes notiveis do erstianismo original do colonizador. Esperar-se- ue, gualmente, as formas de explicar,conhecer, lidar, conviver coma realidade s6cio-cul-ural e natural, obviamente distintas de regito para regio, ¢ que sao as razdes de ser da Matematica, das ciéncias © da tecnologia, também passassem por esse processo de “aclimatacao”, resultado de uma dinamica cultural. No entanto, isso nao se deu ¢ no se dé e esses amos do conhecimento adquiritam um cariter de absoluto universal. Nao admitem variagdes ou qualquer tipo de telativismo. [sso sc incorporou até no dito popular “tio certo quanto dois mais dois sio quatro”. Nao se discute o fato, mas sua contextualizagao ra forma de uma construgao simbélica que €anco- rada em todo um passado cultural ‘A Matematica tem sido conceituada como a ciéneia dos nt- rmetos e das formas das relagées e das medidas, das inferéncias, suas caracteristicas apontam para precisio, rigor, exatidao. Os grandes herdis da Matematica, sto €, aqueles individuoshistoricamente apon- tados como responsiveis pelo avango e consolidagio dessa ciéncia, sii identificados na Antigitidade grega e, posteriormente, na Idade “Moderna, nos paises centrais da Europa, sobretudo Inglaterra, Franca, Itélia, Alemanha, Os nomes mais lembrados sao Descartes, Galileu, Newton, Leibniz, Hilbert, Einstein, Hawkings. Sao idéias e homens originarios de nagées ao Norte do Meditertineo. Portanto, felar-dessa Matematica em ambientes culturais di- versificados; sobretudo em se tratando de nativos ou afro-america- hos ou outros néio-europeus, de trabalhadores oprimidos ¢ de classes marginalizadas,-aiém de avivar a lembranga do conquistador, do escravista, enfim do dominador, também se refere a uma forma de conhecimento que foi construido por ele, dominador, eda qual cle se serviu ese serve para exercer seu dominio, Etnomatemitiea © edueagio : 49 Muitos dirdo que isso também se passa com caleas “jeans”, aque se mescla com as vestes tradicionais, ou com a “Coca-Cola”, que aparece como uma opeao para o guarané, ainda preferido por muitos, (ou com o rap, que esta se popularizand e, junto com o samba, produ Zindo um novo ritmo. As formas tradicionais [do dominado] perma necem ¢, naturalmente, se modificam pela presenga das novas (do dominador]. Mas também as formas novas, do dominador, sio modi- ficadas no encontro com as formas tradicionais, do dominado.. religido a lingua do dominador se modificaram ao incorporar as tradigées dodominado. Masa Matemitica, com seu cariter de infalibilidade, de rigor, de precisio e de ser um instrumento essencial e poderoso no munds modemo, teve sua presenga firmada excluindo autras formas de pen- samento. Na verdade, ser racional ¢identificado com dominara Ma- temética. A Matematica se apresenta.como um deus mais sabio, mais milagroso e mais poderoso que as divindades tradicionais ¢ outras tradigoes culturais ‘Uma teflexio sobre a Educagéo Indigena Isto.éevidenciado, de maneira trégica, na Educagio Indigena indio passa pelo processo educacional e nao é mais indio’.. mas tampouco branco, A elevada ocorréncia de suicidios entre as popula- es indigenas esti, sem diivida, associada a isso. Ora, isso se passa da mesmissima maneira com as classes populares, mesmo ndo-indi 0, Exatamente isso se dé com uma crianga, com um adoleseente ¢ ‘mesmo com um adulto ao se aproximar de uma escola, Se 0s indios praticam suicidio, o que nas suas relagdes intraculturais nao é impe- dido, a forma de suicidio praticada nas outras camadas da populace é uma atitude de descrenga, de alienacio, e mesmo niilismo, tao bem mostrado nos filmes recentes Kids e Beleza Americana. ‘Uma pergunta natural depois dessas observagées pode ocor- rer: seria melhor, entao, nao ensinar matematica aos nativos ¢ as po: pulacdes marginalizadas? Essa pergunta se aplica a todas as categori- as de saber/fazer préprios da cultura do dominador, com relagio a todos 0s povos que mostram uma identidade cultural [Nao se questiona a conveniéncia e mesmo a necessidade de censinar aos dominados alingua, a matemitiea, a medicina, as leis do dominador, sejam esses indios € brancos, pobres ¢ ricos, criangas ¢ 50 Etnomatematica, curriculo ¢ formagio de professores adultos. Chegamos a uma estrutura de sociedade e a conceitos de cultura, de nagao ede soberania que impoem essa necessidade. O que se questiona 6 agressio a dignidade e&identidade cultural do domi- nado que se di nesse ensino, ‘A responsabilidade maior dos teéricos da educagao ¢ alertar para os danos irreversiveis que se pode causar a uma cultura, a um povo e a um individuo se o processo for conduzido levianamente, "muitas vezes até com uma ingénua boa intengio, E.ao mesmo tempo que se far esse alerta, Farer propostas para minimizar esses danos. _Muitos educadores nao se dio conta disso, A dimensio politica do Programa Etnomatem: Naturalmeate, ha um importante componente politico nes- sas reflexes. Apesir de muitos dizerem que isso ¢jargio ultrapassado de esquerda, 6 claro que continuam a existir as classes dominantes © subordinadas, tanto nos pafses centrais e quanto nos periféricos. Faz sentido, portanto, falarmos de uma “matemtica domi- nnante”, que é um instrumento desenvolvido nos paises centrais € ruitas vezes utilizado como instrumento de dominagao, Essa mate- ‘mitica ¢ 0s que a dominam se apresentam com postura de superiori~ dade, com o poder de deslocar ¢ mesmo eliminar a “matemitica do dia-a-dia”. O mesmo se dé com outras formas culturais. Particular ‘mente interessantes sio os estudos de Basil Bernstein sobre alingua- ‘gem. Sio conhecidas intimeras situagées ligadas ao comportamento, A medicina, & arte. a religido. Todas essas manifestagoes so referi- das como cultura popular. ‘Acultura popular, emborasefa viva e praticada, é muitas vezes ignorada, menosprezada, rejeitada, reprimida e, certamente, diminu- fda, Isto tem como efeito desencorajar e até eliminar o povo como produtor e mesmo como entidade cultural. Isso no é menos verdade com a Matemitica. Em particular nna Geometria e na Aritmética se notam violentas contradigdes. Por cexemplo, a geometria do povo, dos baldes e dos papagaios, é colori Ageometria te6rica, desde sua origem grega, climinow a cor. Muitos leitores a essa altura estardo confusos. Estarao dizendo: mas 0 que isso tem a ver com Matematica? Papagaios ¢ baldes? Cores? ‘Tem tudo a ver, pois so justamente essas as primeiras e mais, notaveis experiéneias geométricas. E, todos concordam, que a Etnomatemitics © educagio . 51 reaproximagio de Arte e Geometria ¢ facilitada pelo mediador cot Isso também se dé com a Aritmética, na qual o atributo do némero, zna quantificagio, €esseneial. Duas laranjas ¢ dois cavalos sio "dois" distintos. Chegar ao “dois” sem qualificativo, abstrato, assim como & Geometria sem cores, € ponto crticona elaboragao de uma Mate- matica abstrata O euidado com a passagem do concreto para o abstrato é fun- damental na Educagio. A Matemitica talvez tenha a melhor justifi- cativa para sua inclusto nos programas educacionais por ser um gran de vefculo para essa passagem. Trabalhar adequadamente esse mo- mento talvez sintetize tudo que ha de importante nos programas de Matematica Elementar. O restante do que constitui os programas siio técnicas que pouco a pouco vio se tomando interessantes ¢ ne- cessétias para uns, e menos interessantes e necessérias para outros. que justifica 0 papel central das idéias matematicas em todas as civilizagdes é o fato de elas fornecerem os instrumentes intelectuais [etnomatemiticas] para lidar com situagdes novas e de- finir estratégias de ago. Portanto a etnomatematica do indigen serve, éeficiente ¢ adequada para as coisas daquele contexto cultural, naquela sociedade, Nao.h4 porque substitui-la. A etnomatemitict do branco serve para outras coisas, igualmente muito importantes, ;propostas pela sociedade modema. Nao ha como ignori-la. Pretender que uma seja mais eficiente, mais rigorosa, enfim, melhor que a ou- tra, 6uma questio falsae falsificadora, © dominio de duas etnomatemiticas, possivelmente d= outras, oferece maiores possibilidades de explicagées, de entendi- ‘mentos, de manejo de situagdes novas, de resolucao de problemas. £ cexatamente assim que se faz boa pesquisa matemitiea —e na verda- de pesquisa em qualquer outro campo do conhecimento. O acesso 1 uum maior niimero de instrumentos ¢ de técnicas intelectuais dé, quando devidamente contextualizado, muito maior capacidade enfrentar situagGes e problemas novos, de modelar adequadament uma situagio real para, com esses instrumentos, chegara uma possi- vel solugio ou curso de acio Isto é aprendizagem por excelénecia, isto é, a capacidade de cexplicar, de apreender e compreender, de enfrentar,criticamente, si- tuagdes novas, Aprender nao é 0 mero dominio de téenicas, habilida- des e nem a memorizagiio de algumas explicagdes e teorias ‘A adogio de uma nova postura educacional é a busca de um, novo paradigma de educagio que substitua o ji desgastado 52 Etnomatemitiea, curriculo © formagio de professores ensino?aprendizagem, que é baseado numa relagio obsoleta de causa?efeito. Procura-se uma educagdo que estimule o desenvolvimento de criatividade desinibida, conduzindo a novas formas de relagées interculturais ¢ intraculturais. Essas relagoes caracterizam a educa «20 de massa € proporcionam o espago adequado para preservar a diversidade e eliminar a desigualdade discriminatéria, dando origem a uma nova orginizagéo da sociedade. Fazer da Matematica-uma disciplina-que preserve a-diversidade-¢ elimine a desigualdade. discriminatéria é@ proposta maior de uma Matematica Humanistica. Programa Etnomatemitica tem esse objetivo maior DA UNIVERSALIDADE, Chateaubriand Nunes Amancio! “De onde vem as idéias matematicas? Como sao organiza- das? Como avanca 0 conhecimento matematico? Tém estas idéa algo a ver com o entomo em seu conjunto, socio-cultural ou natural?” (D'AMBROSIO, 19%4a, p. 454). Essas questdes abordadas por um “enfoque epistemolégico altemativo associado a uma histografia mais ampla” (D'AMBROSIO, 1993, p.6) estabelecem uma dinamica com otras éreas que focam 0 conhecimento enquanto resultado de rela- des entre sujeitos, de relagdes entre grupos e de relagoes entre rea- goes. Anecessidade desse enfoque toma-se evidente diante da con- cepeao dambrosiana de Etnomatemitica enquanto um programa de pesquisa que consiste em “investigar holisticamente a geragii [cognigdo}, a organizacao intelectual {epistemologia] e social {hisid- ria] € a difusio [educagdo] do conhecimento matematico” (D'AMBROSIO, 1996, p. 9, grfo do autor) O Programa Etnomatematica intrinsecamente traz. uma ati- tude transdisciplinar, decorrente de outra visio de natureza e de rea- lidade, e que, a0 partir da confrontagao de disciplinas, “faz aparecer dados novos engendrando uma nova inter-fundamentagio destasdis- ciplinas” (D'AMBROSIO, 1994, p. 31-2) Além disso, o programa propde uma atitude historiogréfica que objetiva a recuperagio da presenga de idéias matematicas nas atividades humanas, partindo do principio de que “em todos os mo- ‘mentos da histéria ¢ em todas as civilizagoes, as idéias matematicas estio presentes em todas as formas de fazer e de saber”. Essa propos- ta, diz D'Ambrosio (1999, p. 111), “temete, sobretudo, & dindmica da evolugio desses fazeres e saberes, resultantes da exposigiio a ou trasculturas”, Para o autor, A abordagem a distintas formas de conhecer 6 esséncia do Programa Etmomatemstica. Na verdade, diferentemente do T Doutorando PGEM/UnespiRio Claa/SP, ail: chateau@re-unesp br

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