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right © 1992 by. Aiftedo Bost Gpe Ettore Bottini sobre fom de Meareen Bisiliar Prepare: res Copole Revisor Cormen Sims de Corte NS To Aids Dal oa AnH. — So Palo Edivor Schvare Leda, a Topi, 522 01233 — Sto Paulb “elelone: (Oi!) 8254182 Fre (QM) 825-5523, 5 ,P0 ANTIGO ESTADO A MAQUINA MERCANTE APWG tina cadi fica a eepiriedade « 4 disiolee Mans, Fundamentes de crtieg economia politica Comeso pelo estudo do soneto de Gregorio de Matos, “A Ba. “escrito no diltimo quartel do seule xvi: Fite Babia! 6 gute dessemelbanre Bills ¢ eston do rosso antigo enc Pobre te veo at, tu a mi ‘xbenbadb, Nia te Wi eu jo tu a oni aban A 8 tocou-te 6 miguine meranys Kiam M4 targa barra tem entra, A mins foi-me trocande # jenn trocado Tinto negocio « tanto negoctonne Bete OP Aes tanto apicar excslense Pela: drogas inatei, gue abel Sinples accitas do sages Bricker Od se guiiera Deus ane de repente Um dis amacheconas 120 risa Que fore de abgodio 0 ten caperel Uma primeita aproximacao a Contra dois movimentos de sex; catta em simpatia com o zz, 2 tada. Pelo scgundo, vem 4 de a He: © 2, agora juiz, invece umn exc go para o outre, chamande a intervencio de uma terceita Pessoa, 94 Deus, mediador poderoso e capaz de executar a pena merecida. A ptimeira onda de significasao move os quartetos, 2 segunda, os terectos, Coma se const16i estilisticamente o efeito inicial de empatia en- tre Gregétio ¢ a sua cidade? De vatias maneiras, comegando pelo acorde que abre 0 soneto: Triste Babial. A expressio é nominal e é exclama. tiva. O nome proprio, quando ilhado, carente de qualquer relagio Frasica direta, tende a concentrar em si mesmo todo 0 pathos investi- do pelo sujeito que o profere. Sabemos a arcana derivacao indo- curopéia: de mzenzen, women. Assi nomeia-se a Bahia, 0 espago de vida, no como alheio ou estranho 2 voz do poeta, mes imantado pe- Ta forca das suas paixécs; nfo 0 nome em si, mengo abstrata, mas © nome-para-o-eul, 0 nome soffido, 0 nome a que o tom exclametivo da graus de canto, o nome qualificado, site. Ambiguo, alias, este adjetivo: denota estado de alma depressivo e melancélico; mas tam- bém conota — se posto no contexco inteiro do soneto — a idéia de infelicidade, que partilha com outros nomes da nossa lingua, como desgracado © miserével sobre 0s quais paira igualmente uma sombra de culpa. A Bahia nio est s6 magoads; também é um exermplo lasti- mavel de mudanca para situacio pior, de cuja sesponsabilidade nao pode isentar-se. Tiiste como quem perdeu 0 antigo estado, sim, mas ttiste também como a crianca geniosa ¢ de maus costumes com quem a mac ralha em desabafo: “Mas € sriste esse menino!””, O sentido ple no 86 se apreende quando finda a leitura. ‘A mesma aura aflita circunda o periodo que desdobra a mensa- gem contida na apéstrofe inicial: “[..] 6 quo dessemelhante/ Estas € estou do nosso antigo estado!” Selando o contraste, que separa o passado eo presente, vemopre- dicado central: qudo dessemethante. A diferenca esta radicada no exo do tempo: houve um antigo estado, cuja perda é 0 motivo gerador de todo 0 discusso, Neste primeiro quarteto, importa assinalar quea mu- danga arrastou consigo a Bahia e Gregétio, o fx € 0 en. E sobre essa identificacio profunda de sujeito ¢ objeto que assenta 2 liricidade do texto: as contradicées da histSria social falam aqui pela voz do individua O senso de empatia do poeta com 2 sua terra avulta pela énfase nas reiterasSes: ests, estou, estado; sintag nas a que se confiou 0 pa pel de instituir a semelhance mantida ne curso das transformacdes. O mesmo dos sexes tem de enfrentar 0 outro dos tempes; 0 que provoca 0 jogo quidstico e barroco do miituo espelhamento: 95 Pome abundante O poeta vé a cidade; a cidade vé 0 poeta — no presente —, as- sim como ambos jé se reconhecetam no passado: eu vejo a ti, tm a mim; te vi eu ja, ta mim. A qualidade do ser, refletida nos olhos de cada um, € 0 que madou com 0 passar dos anos: da antiga tiqueza cain-se a2 pobreza de hoje.! Da lamentagao centrada no par ew-tu, fortemente atado nos qua- 10 primeiros versos, 0 pocta move-se para o ato de acusar as for que os arrancaram, a ele e 3 Bahia, da grata abundancia em que bos viviam outiora. O segundo quarteto é obsessivo na denéncia agente responsivel pelo desastre comum. As palavras que o desig cercam um universo de referentes bem determinado, ¢ que a expr sho maquina mercante enkeixa soberbamente. Q que vera a ser esta méquina mercante? Ao pé da letra, so 05 navios do comércio, muitos deles bit | cos, franceses e batavos, que traziam mercadorias de luxo, princips | mente da fndiae de Europa. Aportavam na barra de Todos os Sant | aqui, nao sem escitnio, dita large, jogando 0 pocta com o duplo scx | tido fisico e moral do termo € insinuando a liberalidade perigasa c que o potto se rendia aos tratantes de fora. Figuradamente: “‘maquina mercante”’ soa, aos nossos ouvi de hoje, como uma atguta metonimia do sistema inteiro, o mere: lismo. Deixo para 0 momento da interpretacio histérica a disc desta segunda possibilidade Mas que fax a maquina mercante? Gregério conjuga pl mente, em varias tempos e aspectos, o verbo que melhor condiz « a.sua aco prozeiforme: frocar. A maquina trocou, foi tocando e tf trocado, porque ela nio s6 agiu em um passado remoto € j4 de 96 Hmbém continuou operando 20 longo do tempo, ¢o Eplicados por “‘tanto negécio ¢ tanto negociante”, mo tivos no presente. O mercad ar comum do bulici im pode pesmaneccr quicto sob pena de cair fora da sua Be. Trocar tem, nesse passo, 0 significado preciso, ¢ hoje um tan- = com regencia de objeto direto: a ransformou a cidade da Bahia ¢ 08 seus Se-viu qual foi o vetor dessa metamorfose: a Bahia € 0 poeta, Bsperos que er: aram endividados. (Um paréntese para Bcré no amavio subliminar dos sons: 0 grupo consonantal, /tr/, issemina em tani wras deste segundo quarte as de trocar-e no verbo entrar, € 0 mesmo que abre a pal: @ qual, por sua vez, é cabeca do poem ¢ signo do seu pathos anos0, a Coi qui se dé 2 passagem atitice encrespado. A simpatia Be-sc; ¢ 0 olho, moralista, volta-se, agora juiz severo, contra a pr6 4 temissa ¢ descuidada “‘senhora Dona Bahia" de outro poema icnos famoso. No trato com o negociante, no soube a cidade com siso 0 seu ouro branco em ouro em po: Deste em dar tanto acit Poperacio de barganha foi lesiva, colonialmente lesiva, 20 pro- de mercancia tropical. Do lado de I s ouropéis @xo funesto. A Coldnia foi simpl6ria; a0 passo que o merc E>, © Brichore (depreciativo de British, 4 portaguest?), foi sages s esto vincadas com 0 estilete dos atributos: excelente in estaria apenas na ingp- mas na sua cutiosida sa € fatil, que o epiteto a traduz comicemente. Sem contar 0 Wavo doce de mel que mado de abe/ba comporta... a vitima torna-se ré, A uiiste Bahia deve ser da € canonicamente reduzida a penitente. Que passe de abe- @ sisuda, de fatua a recolhida, de pr6diga a austera. A conver- Eri scu penhor no trajo, signo visivel de modéstia ou de vaidade nas mulheres. Que 2 Bahia deine de envergar sedas € veludos ¢ se con tente com um simples capote de algodio, esse pano barato que escravos tecem € 56 05 mais pobres vestem: Oh se quisera Deus que de repente Une dia areanbeceras 10 visuda Que fora de algoddo 0 ten capote! GREGORIO EM SITUAGAO: ESTAMENTO, RAGA, SEXO Greg6rio lastima tio desconsoladamente a mudanga que cabe= ria perguntar aos historiadores da sociedade colonial 0 que se d entender por esse Antigo Estado que a Bahia teria vivido, © que = Maquina Mercante atalhou brutalmente. ‘As fluewacées mercantis do s€culo XVI! slo relativamente bem 6 nhecidas. Depois dos eseudos de Roberto Simonsen, Magalhdes Go- dinho e Fréderic Mauro? sobre 0 auge ¢ a decadéncia da economi no Nordeste colonial sabemos que a crise do preco do agticar se agea- es ee concorrer vantajostmente com os mecanismos poreugueses dc comer: cializagio]Segundo Mauro, "em Lisboa os precos passa de 3000 ri ‘aarroba, em 1650, 2 2400 em 1688". Greg6rio, observador #7 Jon diz melhor: O Agitcar 7 se acabou? Baixou, Eo dinherro se extingutu? Subin. Logo 4 convalescen? Morren. A Babia aconteceu 0 que 2 um doente acontece, cai na cama, 0 mal the cresce, baicou, subin e morren.”” (“Jutzo anatémico dos achaques que padece 0 po da Repiiblica, cm todos os membros ¢ intei definigo do que em todos os tempos €a Bahia’) ‘A primeira metade do século xv (que corcesponde ao temy de inféncia do poeta) viu crescerem os engenhos ¢ consolidar-se u pequena nobreza luso-baiana. Esta beneficiava-se do franco ampat das leis metropolitanas, que chegavam até mesmo 2 sustat 2 exec 98 dividas quando os empenhados fossem produtores de acticar. Era ‘ahores de engenho, tudo!”’ Mas a politica protecionista declinou depressa 2 segunda meta- da centiria a medida que 2 econom: iguesa entrava na érbi- da Inglaterta e perdia a sua indepe contra a qual iria alpe de mestre o ‘Itatado de Methuen em Manchester: Poriu- sally England's vassal A passagem do Antigo Estado 8 Maquina Mercante € acusada fetiva da barra de Salvador a navios estrangeiros, =pois de passado mais de meio século em q portugueses Leis taxativas de d. jue tinham proibido a descida 3 1 mengos, ingleses e franceses as da Colénia, foram relaxadas J 2 nois da RestautacZo de 1640. A politica anti- Erelhana deste éltimo convertia-se, de fato, em politica de alianca m a Gra-Bretanha, Gregétio de Matos viveu por dentro os efeitos da viragem. A sua lia, de antiga fidalguia lusa, e senhora de um engenho de tama- o RecOncavo, perdeu, como tantas outras, o sustento off inrestrito que a escudara nos primeiros decénios do século. Com Iqucda fulminante dos pregos do acticar 2 nova situacio passou 2 precer trés grupos econdmicos: as companhia ciras, em pri iguas latifundiarios de maior calibre que con- Fayaria (provavelmente, a nobez mo © sStiro a cham tido); enfim, ¢ parcialmente, a sélida dassc des intetmedirios, ores da Bahia ¢ clusivo colonial necessariamente protegia.’ Como intelectual ¢ clare, Gregério icuava estritamente Jugar social da produgao ou da circulaglo de bens materiais, Cabia- relho administrativo, no caso a burocracia co. de fato, franquearam-Ihe carteira decorosa 0 m, os ticulos obtidos em Coimbra de doucor iv gute jure além do brilho do literato consumado, foi vigatio-geral Sé da Bahia ¢ seu tesoureiro-mor a partir de 1681 quando ainda gava do valimento de dom Gaspar Barata, primeiro titular daque diocese livres ¢ a lingus ferina causaram-Ihe em- A crer no que refere 0 seu primeiro bidgrafo, 0 eenciatlo Manuel Pereira Barrcto, 0 poeta perdeu os dois cargos, vi yeu algum tempo como advogade, esperdicando afinal as mancheias 9 patrimOnio familiar: ““Vendeu ja necessitado por trés mil cruzados uma sorte de terra, ¢ recebendo em um saco aquele dinheiro o man. dou vazarem 2 um canto da casa, donde se distribuia para gastos, sera regra nem vigilincia’”s . O berco fidalgo e 0 exercicio de profissio liberal prestigiada con- conreram paca formar em Gregorio um ponto de vista bastante pecu- liar que, porém, nao o subtrai de todo 2 figura do intelectual tradi- Gonel desenhada por Antonio Gramsci.’ © pensador marxista italiano descreveu os dois grupos ideol6gi- os fundamentais que coexistem em sociedades onde o modo de pensat capitalista ¢ burgués ainda ese lucando, palmo a palmo, com insti. tuigoes ¢ valores herdados 20 antigo regime. Nessas formagoes hist6 Ficas, o intelectual eclesigstico (em contraste com 0 organico, rente ao sistema produtivo) resiste, culeural ¢ passionalmente, aos valores do mescamilismo ¢ da impessoalidade funcional, apegando-se aos ve. Ihos direitos do sangue e do nome c 3s honras ¢ 20s privilégios de ordens estamentais fechadas como a Nobreza, a Igreja, o: Tribunais, as Armas, a Inquisi¢ao ¢ a Universidade, ‘adéncia do letrado tradicional é, na époce barroca, a de uma divisto existencial: a relagio com a estrutura social fica cindida entre 2 auto-identificacdo com um tipo humano considerado ideal (0 779- bre, o chevalier, o gentleman, o honnéte homme, 0 hidaleo, 0 discre- 10, 0 cortigiano ou galantuormo, 0 nosso colonial honzem hum) ¢ 4 repulsa ao vil cotidiano dos outros homens cujas necessidades ¢ inte- resses se descrevem com o mais cru naturalismo confinante quase sem- pre com a batbatic. Olhando de fora e de cima 0 jogo da competigao venal, 0 ho- mem culto assentado nos varios degraus hierirquicos se constitui ideal menteasimesmo, £ a autoposizione gramsciana, que ixenta da guerra ja do lucto e aparta todo um grupo social da mercancia e do tabs. tho manual, atividades ambas desprezadas pelo fidalgo dos Seiscen. tos A esse desdém, de natureza estamental, soma-se 0 corcelato pre- jnizo racial contra o judeu; c, na Coldnia, contra o mestico. Um & mercador, 0 outro tem sangue de eseravo, 100 ito fica inextricavel quando a desigualdade pro- io social sc combina com discriminagoes de raca ou sicdo. Na Colénia, ambos, 0 opre: oprimido, receberam 0 de uma dupla determinaca § Gramsci vinculava a pretensio de autonomia do « de grupos tradicionais ainda prestigiados ¢ favorecidos no in- Br do Estado. Tiado indica que, no caso do Brasil sciscentista, € #0 se csircitou nos momentos de depressdo da economia agio- Srcantil. Eatio, 2 s para um herdeiso letrado se procu a burocracia ou na esfera do clero, firmemente atado 4 Cotoa Blo regime do padroado, Azaripe Jt, que observou Gregério por uma lente tainiana, sem- 2 procura da faculdade dominante do escritor, viu com nitidez fundo ressentimento para com as desordes da Bahia dos fins seculo, mas atribuiu-o a singularidades de cardter. A interpr Bor ser difusa e psicolo, di conta inteira do sistema ¢ depreende analisando os estratos atingidos wa de um rancor cego, de uma at B projetada, a orto € a direito, contra pessoas entre si diversas. $6 s pela pena do satiro nada tinham em Seum: de favo, o que aproximatia, a primeira vista, o magano es Ageiro ¢ 0 vigirio mulato do Passé? Ou o senhor de terras cioso 4o-novo enticado em curto pra- Stegorio aparecem, 20 leitor distan- apenas como individuos dispersos cujos vicios atrafram os remo do seu sarcasmo c accraram as Haminas do seu verso. Daf, a ten- ® forte de recair no registto moral de Aratipe Jr; ou cntio, emi ormalismo yoltado para as estrututas do discurso sa- B tomado em si mesmo, ¢ para qual os tipes de escazmentados Pocta sctiam antes /opo de uma longa tradicZo literiria do que ociais circunscritas no espaco ¢ no tempo. , € 0 conhecimento hist6tico do ponto de vista do es. sue nos vai impedir de entrar no labirinto de hipbteses arbitra- 10 fitho d'algo em apuros nio tolera 0 comerciante forineo nem Seavolto mercador cristao-aovo.JO que esté em jogo no é uma Ba itrtada de consciéncia nacionalista ou baiana, mas uma rija opo- Sestrurural entre a nobrezz, que desce, e a mercancia, que sobe. intagonismo vem dc 0, que ja langara as pechas de 101 rigo a consis- ¢ frafente conta © homem de negécios ¢ 0 onzenciro, mas acirrase € toma corpo dontrinario nos Seiscentes, quando ja vai acesa a longa batalha que levard a aristocracia de roldzo, Mais do que nunca, no- breza e burguesia disputam 0 poder politico; mais do que nunca, a tradicao crispa-se ¢ aftonta a modernidade. Dizia frei Amador Ar- rais, carmelita descalgo ¢ anti-scmita, morto cm 1600: ‘Nao deve ser © Principe mercador, porque é baixeza de mau cheiro’# Seo soncwo ‘A Bahia” acusa o sagaz brichote, a glosa ao mote ““Bfeicos sf0 do comera’”” nfo poupara ‘“o Holandés muito ufanc"* ‘em '‘os Franchinotes’” que nos invadem “com engano sorcatciro/ para aos levar dinheito! a toco de assoviotes””. De outro lado, vém grimpando pelos interstitios do sistema co- lonial os acambarcadores do porto (a Arte de furtar ja fala om “‘acra- vessadores”) € os migrados de sangue suspeito, que souberam pou- par ¢ investi, ¢ agora detém nas mios a isca do crédito ¢ da moeda corrente, nesta cidade onde a baixa do ouro doce multiplicou dividas e empenhos: Estupendas usuras nos mercados: Todos of que mio furtam, muito pobres: Eis aqui a cidade da Bai (“‘Aos Sts. Governadores do Mundo...”) ‘A ascensio rapida de um “sota-tendeito de um cristio novo"” est contada nas quadras de ‘'A cidade da Bahia’. Ai natra-se a his- t6ria de um pobre mas ousado vendedor de chitas que, ajudado pe- los pareates, mas sobretudo pelo proprio desejo de ganho, ‘entra pela bara dentro” (outra-ve7 enlace do zudaz intruso com a zemissa Ba- hia), salta em terra, monta loja e armazém, engana, despista, casa-se com rica herdeira e acaba vereador do pelouro, ‘que € notivel dig- Jé temos 0 Canasteiro que inds fede aos seus beirames, Metamorfosis em homem grande: eis agud 0 personagem. =P que machuca os brios de Greg6rio €, acima de wdo, vera pre- tensio do vendsiro (afinal realizada) de ocupar aqueles postos de ca- raver honorifico secularmente reservados aos “homens bons’’. Entao, 102 acabatam-se as diferengas de bergo? Tudo o dinheiro ha de alcangar; tudo, comprar? Adeus, Povo da Bahia; digo, canalba infernal: e nao falo na Nobreva, ‘ibula em que se nao di. Porque 0 Nabre, enfim, é nobre: quem bonra tem, bonra dé: picaros, dio picardias © ainda thes fea que dar No Brasil, 2 Fidalguia no bom sangue munca e:té nem no bom procediments: pois logo em qué pode estar? Consiste om muito dinbetro, € consiste em 0 guardar: cada um o guarde bem para ter que gastar mal. (“Despede-se 0 Autor da Cidade da Bahia na oca- silo em que ia degredado para Angola de potén. cia, pelo Governador D. Joto de Alencastre’”,) Que 2 oposicao sobredeterminante em Greg6rio seja o par no Lrelign6bil (e niko: brasileisolestrangeite) resulta claro de sitira hila Tiante que dirige contra 0 “Fidalgo da terra”, 0 ““Adzo de massapé"’ simbolo daquela pequena mas poderosa classe de senhores baianos nos quais ja era consideravella dase de sangue indigena. )A estes, que viriam a ser a fucura classe dirigente nacional, cujos interesses iriam com 0 tempo aparti-los dos reindis, 0 poeta no perdoa justamente 05 fumos de prosépia que a riqueza e as vit6rias contra os holandeses estavam alimentando. Séo exemplos notiveis: “A fidalguia do Bra- sil”, que se fecha com 0 decassilabo em forpe idioma “Cobé pa, ari- cobé, cobé, pei’; ‘A fidalguia ou eafidalgados do Brasil”, além do soneto “‘A Cosme Moura Rolim insigne mordaz contra os filhos de Portugal” O tema nfo varia: 0 antigo bugre, ““alarve sem razio, bruto sem fé"", arroga-se o direito de exibir titulos; e do contraste entre a altura 103 €2 madeza do seu tronco, exposta no nfvel da bizar- ia Texica, € que Gregorio extrai 0 efeito cémico imediato, Mais delicada, se no espinhosa, € a questao do negro ¢, dentro dessa, 2 questo do mulato. A ojeriza que 0 tiltimo inspira a Gregé- tio faz entrever uma sociedade onde 0 grau de mesticagem eta j4 0 bastante alto para que se destacasse do conjunto da populaczo um gtupo de pardos livres preconceito de cor e de raga ierompe, crucl, quando suige al- gum cisco de concorréncia na luta pelo dinheiro ¢ pelo prestigio. O que era latente e difaso tomna-se patente c localizado, Eni noso poe- %, 0 punctum dolens @ sempre a questao da honra, privilégio que, no cédigo do antigo regime, 36 pode ser compartilhado por pares de linhagem, Ora, a diferenca decor éo sinal mais ostensivo ¢ mais “na tural’’ da desigualdade que rcina entte os homens; e, na estratura colonial-escravista, cla € um traco inerente 3 separacio dos estratos ¢ das fungdes sociais, Para o estamento em crise, de onde provinha Gregétio, mundo ja fora posto as ayessas pelos brichotes, pelos jus deus ¢ pelos news de Caramuru quando passaram 3 frente de ho- mens de velha cepa surgida a0 tempo das cruzadas. Mas 0 cGmulo do absurdo acontecia nessa triste cidade onde mesticos forros, agre- gando-se a familias ebonadas, ou conquistando postos no Forum ¢ na Sé, recebiam afinal deferéncias que a ele, branco, nobre e douto, eram recusadas! Nio sei para que & nascer neste Brasil empestado um homem branco e honrado sem outra raca, Terre tao grosseira e crassa, que a ninguém se tem respeito, salvo quem mostre aleum jeito de ser Nadlato, Aqui 0 cto amasha 0 gato, do por ser mais valentio mas porque sempre a unt cto ousros acoder. 106 Sxtuintes sio particularmence ferozes, pois investem E20, isto ¢, = tribunals de justica que multas, 0 sea ovo chamado “ Porque acods + Relugao sempre faminta. SS mais humana 2 saudade d. Stisagem, sangue semita tudo o que nao € “no- de um e: al nos B9 tiltimmo capitulo de Casa-grande (Sessa terrivel ambivaléncia; c, embora jam otimiscas, oa afirma 2 existén- impulsos erdticos. Reescreve, para tanto, formulas de tradigio alta, que vém dos provencais, do “‘stilnovwo”” com a suz visio da “donna ange- lo” ede Petrarca, até se cristalizar em Cam@es ¢ amancirar-se nos ¢s- panhéis dos Seiscentos que Greg6rio secunda com seu virtuosismo. ‘As Aguas no se misturam. De um lado, as amadas distantes, merecedoras de ‘finezas mil”, damas “rigorosas"* ¢ “‘tiranas"’, “‘ccuéis"’, que trazem nomes aureo- lados por séculos de poesia palaciana: dona Angela, ‘‘anjo no nome, angélica na cara”; dona Teresa, “‘astro do prado, estrela nacarada”’: dona Victtia, ‘‘rosa encarnada’’; dona Francelina, “‘enigma escon- dido’’, “milagre composto de neve incendida em sangue”’; dona Maria dos Povos, sua futura esposa, ‘‘discreta ¢ formosfssimna Matia’’, cfigia- da como Silvia depois das ntipeias ‘por razio de honestidade’”.., sem contar as donzelas de apelidos arcades, as Cloris, as Filis, as Marfidas, que saltam das éclogas de Guarini para habitar os versos Hinguidos do nosso baiano. £ a vigéncia de um ‘‘antigo estada”’ no reino da convengii lirico-amorosa. Para dizer as ““migoas ¢ as “'penas’’, os “*pesates"’ ¢ os “‘tor- mentos”” desses amores, tanto mais belos quanto mais ingratos, Gre- g6tio dispde de uma ret6rica flexivel que joga com os recursos da coin- Gidentia op positoram. Valores dispaces atraem-se mutuamente em ex- presses acopladas produzindo o efeito de sitbitas transformacées “Horas de inferno, instantes de alegtia’’; '“o gosto corre, a dor ape nas passa”; “‘penszmentos ligeiros 2 esperanca,/ a0 mal constantes””; “que € morte a cor do meu comtentamento’”, “amoroso desdém, ze- losa pena’’; “‘despojo sou de quem triunfo hei sido”... Presidida pelo nume da distancia fisica, essa € uma poesia da perdae nfo da posse, da rentincia, nao do gozo: “‘Essas luzes de amor ticas € belas,/ Vé-las basta uma vez, para admira-las,/ Que vé-las ou- ta vez, seti ofendé-las””. E do outro lado? Ti desfilam as negras¢ as mulates que a carta de alforria lancara a0 meretricio havia muito incubado na senzala. Estas so: a Maria Vie- a5, a quem 0 pocta descompde ¢ decompie em décimas grotescas intituladas “Anatomia hortorosa que faz de uma negra chamada Maria Vicgas’’; a Babu, a Macotinha, a Indcia, a Antonica, a Luisa Capata, “mullata esfaimada”’ a Chica, ‘desengracada crioula"’, a Vivencia e tants outtas que se confundem em uma galeria de fantasmas Iibri- 108 cos onde nJo se conseguem yer restos de mulher, mas to-s6 exibi- goes escatoldgicas de partes genitais ¢ anais. Como interpreter essas figuragbes contririas ¢ extremas? Certamente no basta, no caso dos versos obsceaos, remontar a uma linhagem de naturalismo cru, na esteira do que fez 0 grande fi 6logo russo Mikhail Bakhtin com Rabelais, decifrado a luz das fontes populares da Idade Média e do Renascimento.1” A critica latino- vyezes, abusado, isto €, usado mecanicamente, do conceito de “catnavalizacao”” que aqucle cstudioso propis dentro de uum sistema de relagSes hem firmes entre texto ¢ contexto. Em Grege- tio de Matos, o discuiso nobie € 0 impropério chulo ngo so duas fe- ces da mesma moeda, no so o lado sério e o lado jocoso do mesmo fenémeno erotico. Represeatam duas ordens opostas de inseacionali- dade, porque opostes so os seus objetos. 'A dignificacio ou o aviltamento da mulher tem cor ¢ tem classe neste poeta arraigado em nossa vida colonial ¢ escravista. O uso de tetmos considerados vulgares faz-se precisamente em situacoes nas quais a mulher petteace igucla ‘‘geatalha’’, aquela “‘canalha” social ¢ racialmente depreciada, Ou entio, no caso que demanda uma pes- quisa hist6rica singular, pertence 20 mundo, hoje estranho pata n6s, das mogas encerradas 3 forca em conventos, obrigadas pelos pais a to- marem hébito para ocultar algum ‘mau passo", cnfim banidas de casa por itmaos cobicosos da sua parte na heranca Ha, portanto, uma desclassificaczo objetiva da mulher gue nun: ca se tomatia por espoia, situacio que 2 cor negra potencia, ¢ 2 qual cortesponde uma violencia impar de tom, de léxico, em suma, de estilo. M. Bakhtin descreye em termos topogtificos certos processas de desmistificacdo peculiares ao groteso € correntes na linguagem de Gar- gantus, Rabelais inverte posigdes, destrona 0 alto ¢ p6e-no de cabeca para baixo. O sublime decai a peca de escarnio. Trata-se de um jogo de perspectivas evs torno do mesmo objeto, 0 ditcito ¢ 0 avesso esté- tico e moral de personagens em geral subtraidas 3 critica pela censura politica ou clerical. Os nomes proibidos do corpe c os termes que de: signam as fangées vitais servem a Rabelais. como serviam aos bufoes das cortes medievais, de valvulas de escape para investit contra o pe- sado ritual das conveniéncias. Nio € assim em Gregorio, que opera um nftido corte entre dois campos de experiéncia ¢ de significagao. O registro chulo ago é um 109 fator congenial a toda a obra do poeta baiano (divcrsamente do que corre em Rabelais), mas apenas um moda setorial de usar a lingua- gem para marcer a ferro ¢ fogo aqueles que caem ca mira da sua inristo, As fontes de Greg6rio so outras, remotas como texto, mas pr6- ximas ¢ familiares até hoje no uso coloquial.|O recurso ao turpilé- quio com intengio de ultraje sempre foi empregado nos chamados génetos cémicos de “‘estilo baixo’’; o que, para além do Medievo, ja vem atestado desde a Antiguidade] Um crudito cstudioso dos rituais hierogamicos e dos himeneus licenciosos da Grécia arcaica, o fil6logo Armando Plebe, demonstrou, em La nascita del comico, como 0s poves mediterr2neos passaram do gesto franco dos cortejos flicos, aus- piciadores de sementciras fecundas, 40 riso malicioso dos ritos nup- Cais sectetos, para, enfim, explodir em motejos desbocados nzs in- vectivas que pontuam a satira e a comedia na polis classica ¢ alexan- drina. Os drgios ¢ atos da vida sexual tornam-se, quando nomeados, simbolos de agressividade. Nem tudo, porém, sdo extremos. E € cutioso descobrir, no meio do cancioneiro lascivo de Greg6rio, certos passos em que aquela opo- sigio sem matizes entre mulher branca e mulher negra cede a uma hesitante ambigitidade que cava no texto um momento feliz de auto- anilise. Lembro as redondilhas de '‘A mesma Cust6dia mostra a dife- rena entre amar € querer’”. Custodia era uma “graciosa mulata” apai- xonada pelo filho de Gregério, o jovem Gongalo de Matos. Dividido entre a cobica ¢ 0 respeito por uma mulher que pretendia ser antes sua nora que amésia, 0 trovador compée um arrazoado stil tentando rovar 4 mora e a si mesmo que experimenta por ela um afeto mais puro ¢ mais alto do que 0 vil desejo de possuf-la. O gosto das distin- Bes conceituais marcadas em termos de anilise moral dos movimen- tos da alma € vivo na litica barroca, teadendo quase sempre ao espe- cioso. Nem devemos esquecer que a ossatura l6gica desse pensamen- to € ainda o formalismo classificador da velha escoléstica que a educacto contra-reformista reentronizou nas letras ibéricas Armor generoso tem 0 amor por alvo melhor, sem cobiga 20 que € favor, sem temor ao que é desdém. 10 Amor ama, amor padece sem primio algum pretender € anelando a merecer nio he lembra o que merece. CustOdia, se ex considero que 0 querer & desefar 2 amor é perfeito ansen eH 105 amo, no 05 quero, (I, 700-3) Tudo bem definido com elegdncia na diceZo e justeza nas predi- cages. Amor aqui, desejo la, ‘eu vosamo’’, “nao vos quero”. A cons- ciéncia moral parece assegurada, assim como a limpa vireude do poe ta, Mas, na vigésima ¢ derradeira quadra, os conceitos claros e distin- tos se misturam, e 0 que resta éa projesdo de uma turva cocxisténcia: Porée jé vox acabando or ads ficar de fora digo que quem vos adora, 105 pode estar desefando. Compate-se este ditbio resultado obtido pela mulata Custédia com o ciclo de poemas escritos para abrandar os rigores de Brites, da- ma nivea e soberba que afinal o enjeitaria por um pretendente mais mogo c de melhores costumes. Nestas décimas o topos volta a ser bus- cado na tradigao provencal. O trovador tecc loas 20 Amor, que € tan- ‘o mais perfeito quanto menos correspondido: Todo amznte que procura Ser em seu amor ditoso, tem ambicao ao formoro, no amor @ formouera: quem: idolatra a luez burs da beleza rigorosa, com finexa generosa ama sempre desprezeda, Porque 0 ser en deseracado io 105 tira 0 ser formosa, Um veio platonizante cruza o pocama consumando a cisio de Eros €m corpo e alma. Ou ardor sensual, ou adoracio. Dois pesos e duas 11 medidas, portanto. A libido, torrente selvagem que poderia igs ce mulher, come aqui pelos meandros de um sujeito mentalmente Pres experiéncia da colonizag .€ que vive, aré 0 fundo da cana os preconceitos tatuados na pele da mulher: um sujo eum patola, porque se gasto ¢ DEUS BIFRO! Oteor dap sente de uma diviséo interna: a consciéncia moralista ¢ a via mis preponderando aquela sobre esta A m: dos m: é enconira-se na confissao de uma desobediéncia prati Ser superior transgressio que se codifica em pecac damentos biblicos. Um prcccitudrio moral, rigorista nas aparéad ¢ na classificag versos, reifica as relagdes entre 05 AO ‘mens e dentro do homem, correndo 0 risco de engessar a vida intesigey do fiel que se aperta entre a culpa objetivada e 2 ‘A expetiéncia catartica do amor a um deus feito came, que arcjae € dé liberdade a grande litica religiosa, inibe- Ia quando to= recai sobfe 0 negror da acio j4 cumprida: 1a € a pritica manifesta da absolvigao confes= que o Gs ‘Trento encarecera ¢ ritualizara. ‘© medo da morte cterna, aliviado ¢, de algum modo, controla= mecanismo eclesifstico da expiacao formalizada, revela o funda sou todo 0 barroco jesuftico. A Colé= 12 nia nfo teve um Pascal que ironizasse,.em nome de uma relacio homem-Deus mais livte € pessoal, a casufstica manhosa gerada pelo carter externo do triplice liame: pecador, pecado, peniténcia Uma intersecyao viva de sdtira social cédigo moral contra- reformista, que faria as delicias de um historiador das mentalidades, €0 longo romance intitulado ‘Queixa-se a Bahia por seu bastance procurador, confessando que as culpas, que Ihe increpam, nao sio 22s, ‘mas sim dos viciosos moradozes que em si alberga"’, poema que se expande pela seriagio dos dez mandamentos da lei mosaica. Cada pe- cadlo € coisificado em um ou mais fos, dispostos no espaco € no tem po da sua Bahia: os calundus e os feitigos, esperanga do povo, pecam por idolatria contra 0 primeiro mandamento; as falsas juras, contra 0 segundo; os gestos desleixados dos homens durante a missa ¢ os ador- nos vistosos das mulheres, contra o terceiro; os maus habitos dos fi- los, contra o quarto; as linguas ferinas, contra © quinto; os bailes € toques lascivos, contra o sexto; os furtos dos novos-ricos, contra 0 sétimo; ¢ assim por diante. Em contabilidade tZo mitida cada falta do pecador Ihe acresce © agrava cumulativamente o débito; pare resgaté-lo € necessério im: pettar uma graca infiniva, ou entio conjuri-la com uma prece no fundo mais aliciante que piedosa: Eu sou, Senhora ovelba desgarvada Cobrai a, e ndo queirais, Pastor divino, Perder na voisa ovelha a vosta gléria A cemissio depende agui de uma permuta pela qual o gesto de perdoar, que deveria serum ato de dar absolutamente (per-donare), converte-se em um ganho para Deus, ao passo que o ao de condenar cesultaria em perda da sua gloria. Pede-se a Deus, em suma, que nio faca umn mau negécio... A mesma idéia, embora mais tica de matizes, jf estd em Quevedo, que assim fecha 0 Salmo XIU da série Las tres reuses Confieso que he ofendido al Dios de los ejércitos de suerte que en otro que El no hallara le venganza igual le secompensa con mi mucrie; ero, considerando que he nacido espero en su piedad cuando me a:uerdo que pierde Dios su parte si me pierdo. 13 Mas sob a superficie das transagies ¢ dos jogos de consciéncia, aprendidos nos tratados romanos de Casos Morais, avulta a sombra da danacio, patente nas imagens terriveis do Juizo Final, de amplitt- de cosmica, ¢ na certeza bartoca do destino humano desfeito “‘em terra, em fumo, em pé, em sombra, em nada”. A porsia apocaliptica recebe em Gregorio o tom dos sermonistas do tempo quando desen- volviam 0 tema ameagador dos “‘novissimos” (isto €, tltimos) esté- gies do destino humano, morte, juizo, inferno on paratso. O terceto € 0 soncto abaixo transcritos apelam para aquelas duas fontes do imagindrio bartoco, o memento homo ¢ 0 dies irae: Todo olenho mortal, baixel bumano, Se busca a salvacio, tome hofe terra Que a tera de hoje & porto soberano, (No dia da quarta-feira de cinzas””) O alegre dia entristecido, O silencio da noise perturbado, O resplendor do sol todo eclipiado, Eo lexente da luc desmentide. Rompa todos 0 eriado em um gemnido Que é de ti, mundo? onde tens parado? Se tudo neste instante esti acabado, Tanto importa 0 nao ser, como haver sido. Soa a trombeta de maior altara, A que vivos ¢ mortos traz 0 aviso Da desventura de uns, de outros ventura. Acabe 0 mundo, poraue é ja precivo, Exga-se 0 morto, dete a sepultura, Porque é chegado o dia do ju (“Ao dia do Juiza"”) O céloulo dos métitos e deméritos ¢ a tentativa de aplacat o juiz ndo consegucm sufocar o terror renascente da morte ¢ do castigo ui 20 contratio, deixam ver o subsolo friavel da moral tradiciona- lista dos Seiscentos, que vive uma hora de sombras ¢ angistias extre- mas, “'porque € chegado 0 dia do juizo”. 14 Mas convém perguntar, para sair das grandes abstracbes meta- hist6ricas, que mundo € ese que deve acabar em catistrofe? O homem de letras criado na forma mentis da Contra-Reforma enfrenta a maré mercantil internacional que ascende, embora ainda se ache longe do seu pico s6 conquistado pela burguesia entre os sé- culos XVill € XIX. ‘A visio de um corpo social bem-ordenado,¥ que os estamentos ibéricos ensinam 20 Greg6rio estudante de leis ¢ cénones em Coim- bra, nao se ajusta harmoniosamente 2 rapide brutal com que se dao na inculta coldnia as mudangas de fortuna c de estado. Até mesmo a.oposicdo “natural” de branco e preto borra-se na Bahia mestica onde fazem carreira clerical mulatos deseavoltos c apaniguados. Enfim, 0 corte dréstico entre Honma e Negécio perde o gume sempre que in- veste, sOftega, a maquina mercante. E 0 que sobrou do patriménio erodido e malgasto do filho d’algo em crise vai cair nas garras do unha- te. Como resistir se o mal penetrou nas juntas do sistema ¢ nas entea- nhas do sujeito? ‘O modo tinico de resistir € maldizer, € moralizar, é repetir a ca da um que é p6, ¢ a pé revertera, € convocar para o aqui-e-agora 0 dia do julgamento. Morte, jutzo, inferno ou pataiso. Nesse momento tremendo em que todo o cosmos se comoveri, se falharem os senti- mentos de perfeiza contriglo, salve-se © pecador ao menos pela im- perfeita atrigao, que € um arrependimento morido no tanto por amor 2 Deus quanto por medo as penas do inferno, mas ainda assim, no dizer caviloso dos casuistas, suficiente para lograr o divino perdio. Ora, desde que o temorao castigo mais forte do que a vontade do Bem, bloqueia-se a via amorosa mistica, ¢ $6 resta 0 moralismo ‘ouo terror. O cédigo de preceitos se cnrijece com vistas & transgres- sfo cujo fantasma tonda obsedante 2 alma do pecadot Dens me chama co's perdi por auxilios e conselbos, eu ponho-me de foelbos ¢ mostro-me arrependido; mas como tudo € fingido, nio me valem apatelhos. Sempre que tou confessar-me, digo que deixo 0 pecado, borém iorno 20 mau estado, em que é certo 0 condenar-me us sas li esté quem 4 pago do proceder: pagarei nue de tormentos repetidos m me deu o ser negado ¢ a repressao infeliz, frustres ¢ ressentido: 6 esperam a hora cm que o corpo vivo passe a cadaver enquante ctiagZo se rompe em gemidos de agonia: be 0 mundo, porque & ja prect Contudo, se 0 tom entre Icgalista ¢ catastréfico, dominante 505) poemas sacros, fosse exclusiva, nfo se daria aquela cisio apontada aa comeco do t6pico, Pois existe, felizmente, um outro modo de poctas “a lo divino”, que j vinos em . bem diverso na lirica espa nhola de Anchieta. Em Gregorio essa maneira campouco € original ¢ trai cutiosamente o glosador capaz dos mais surpreendentes exerci cios de osmose. Transpassa na vor feminina que ditou o longo sutil “Solildquio de madre Violante do Céu a0 Divintssimo Sacramenta: glosado p -1 para testemunho de sua devogio, ¢ crédito da Vew nerivel Religiosa’”. Desta vez 0 centro inspirador do texto nao est na angtistia da falha reiterada nem no medo a pena eterna, mas na meméria da Pat- xao de Cristo, recriada no sacramento por forga de um ato gratuito de amore sem telacio alguma com o grau de mérito do fiel. Greg6- aneo Baltasar Gracin, suspend, ainda que por breve tempo, 0 cio da sitira pessimista para entregar-se 3 certeza mis- assim expressa no Corsulgaiorio daquele ardido prosador barro- No hay hotior donde hay amor'’. No “‘Soliléquio”, gratuidade e espontaneidade humanizam 0 nomeno feligioso, mudam o teor dos sentimentos, liberam as ima- gens. As metiforas, mOrbidas ¢ tetro calipricos, azem-se nitidas ¢ alegres, misturando ar ¢ Juz em expressbes leves mo “artebol”, “‘edndido Oriente”, “‘céndidos litios’’, “fonte cla- 116 11”, “‘epiciclos de neve", ‘‘sol nascente”, “cristal puro e fino”, “‘di- vina neve", “‘gala"’ e “‘bizarria”’ Nao por acaso um dos esquemas de légica poética mais fortes do texto € 0 que contrapse a escuridao dos céus sobrevinda A morte de Jesus & luminosidade do Sol que o pao da Eucatistia recobre. A luz esti no sacramento como encertada em um invélucro material, em si opaco, que se declara em linguzgem cultista um “‘emblema” eum “enigma”. E supasto 0 pensemento se pasma do escuro enigma, mais 0 meistirio sublines vendo-vos no Sacramento: ali meu entendimento conhecendo-vos tao claro, melbor esforga 0 reparo de que estais tio luxide, quando melhor compreendido Enigma de anor mais raro. Que no Sacramento estais todo, ¢ toda a divindade, conbero com realidede, suposto que o disfargats: para que vor ocultais nnesse mistério £40 raro, se a masavilba reparo, penetrando-vos atento, mats claro ao entendimento, que sendo & vista to claro? (Texto 3 — Glosa} (vel. 1, pp. 84-5) Para figurar tio radiosa interioridade (que o sudétio ‘‘sanguino- samente escuro’’ escondera), as metiiforas pregnantes sfo as de ‘*fogo ativo’” € ‘‘infinito ardor’’, imagens misticas ¢ ci6ticas por exceléncia aqui trazidas 20 foco do sujeito ¢ do seu corpo, o ‘‘peito amante Arde mex peito em calor se bere estou anelando, quando estou abrasando em tanio fogo de amon que ura peiio amante verbera, uz ‘de santo carinbo ao r0g0, $0 2 chamas de ativo fogo nunca vos nega esfera? (lexto 8 — Glosa) (1, 94-5) Vinde a mex peito, Seuhor fareis do divine bumano ¢ dor timbre de poder fareis do humano divino. (Texto 19 — Glosa) (1, 94-5) A transcendéncia calada na imanéncia, 0 Deus-Homem que “'g cada um tansformou/ ‘Passando o divino a humano”, € 0. Pressupos- to do primeiro conceit de fraernidade universal na medida em gue postula que todos os homens foram eriados ¢ remides pelo mesno Mas esse movimento ideal para dignificar a pessoa em si mesma Po conseguiu transpor os versos da lita sacra para Penetrar a sitira de um cotidiano colonial feito de senhotes, tratantes € esctavos.

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