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Mario de Andrade Capiruto I ‘MUSICA ELEMENTAR E comum afirmarem que a Musica é tio velha quanto o homem, porém talvez seja mais aceriado fa- lar que, como Arte, tenha sido ela, entre as artes, a que mais tardiamente se caracterizou. O nocionamento do valor decorativo de qual- quer criagio humana, seja o objeto, o gesto, a frase, 0 canto, muito provavelmente derivou do teenicamen- te mais bem feito. Um machado de pedra mais bem lascado, wma langa mais bem polida, o préprio gesto mais bem realizado, ao mesmo tempo que mais uteis e eficazes, tornam-se naturalmente mais agradaveis. Ja o canto, a mnisica, porém, para reunir & sua ma- nifestagZo o valor estético do agradavel, do decora- tivo, parece exigir mais que a ocasionalidade do ape- nas mais bem feito. Este valor estético do decorativo exige nela maior organizagio da técnica, sons fixos, determinagéo de escalas, ete. E pela sua propria fung&o mégico-social, a musica primitiva se via im- pedida de nocionar o agradavel sonoro. Com efeito, é muito sabido que os espiritos, os seres sobrenaturais concebidos pela mentalidade pri- mitiva, so mais ruins que bons. O deus bom é va- guissimamente nocionado e os primitives se desinte- ressam dele, exatamente porque bom, incapaz de os 12 MARIO DE ANDRADE prejudicar. Ao passo que os deménios, a prépria caga, 0 préprio vegetal alimentar sujeito, pra ser bom (itil), ao decorrer das estagdes, sao entidades mal- fazejas, mas, horriveis que ou é preciso afastar duma vez, amedrontando-as, ou tornd-las propicias, abran- dando-as. Desse principio derivam todas as magias e incipientes religides primitivas. Ora na fabricacio de idolos, de mascaras, na ideagao lirica dos mitos e lendas, na gesticulagao das dangas imitativas, por mais feios que fossem os de- ménios, os objetos e coreografias inventados, si tecni- camente mais bem feitos, eles se tornavam, sem que- rer, mais estéticos — o valor da beleza artistica in- dependendo enormemente (embora nZo completa- mente) da feiura do assunto. Ao passo que na mt- sica vocal ou instrumental, a procura do feio, do som assustador, sibilante, estrondante, da procura do mis- tério de: umano e antinatural, impedia 0 nociona- mento do valor sonoro estético, Quanto mais horri- vel o som, mais ele se tornava util, capaz de afastar ou de abrandar, por identidade, os deménios ('). E com efeito, si observarmos os povos primiti- vos atuais, somos forgados a reconhecer que, na gran- de maioria deles, a nvisica é a menos organizada en- tre as artes, e a menos rica de possibilidades estéticas. Nao a menos importante nem a menos estimada, mas a menos livre, a menos aproveitada em suas poten- cialidades técnicas e artisticas. As artes manufatu- radas e quase tanto como elas, a danga, atingem fre- qiientemente, entre os primitivos, uma verdadeira vir- (1) Veja a opiniéo de Curt Sachs, na nota (5) da p’: 24. PEQUENA HISTORIA DA MUSICA 13 tuosidade. As artes da palavra, na poesia das len- das e mitos, nas manifestagdes da oratéria, se apre- sentam ja bastante aproveitadas e tradicionalizadas como técnica. De tais manifestacdes j4 podemos, por nossa compreensao de civilizados 4 européia, dizer que sio artes legitimas porque sujeitas a normas téc- nicas cons cientemente definidas, e, embora sempre ri- tuais, j4 dotadas de valor decorativo incontestavel, que a nés, ja nos é possivel apreciar. Aspectos que a nnisica dos primitives apresenta em estado ainda muitissimo precario. O que a gente pode afirmar, com forga de cer- teza, é que os elementos formais da musica, o Som e o Ritmo, sao tao velhos como o homem, Este os possui em si mesmo, porque os movimentos do cora- cao, o ato de respirar ja sao elementos ritmicos, 0 pas- so jd organiza um ritmo, as mios percutindo j4 podem determinar todos os elementos do ritmo. E a voz produz o som, Desses dois elementos constitutivos da musica, 0 mais rapido a se desenvolver é 0 ritmo. Fazendo par- te, no sé da musica, mas da poesia e danya também, sendo mesmo a. entidade que une essas trés artes, e Ihes permite se manifestarem juntas numa arte s6, é perfeitamente compreensivel que ele se desenvolva em primeiro lugar. E foi, alias, pela observagéo da importancia primacial que tem o ritmo na organizagao da vida humana, tanto social como individual, que Hans de Buelow, parafraseando a Biblia, disse aquela sua espirituosa frase: “No principio era o Ritmo”... Os dois elementos constitutivos da musica séo en- contraveis em todos os povos primitivos atuais. E, 4 MARIO DE ANDRADE com efeito, o ritmo bastante desenvolvido, 0 som, no geral, em estado muito elementar. Entre os Vedas, do Ceilao, que nao possuem nenhum instrumento (co- mo, de resto os outros povos do ciclo cultural mais primério que se conhece), 0 préprio canto nao esta generalizado. Entre as poesias rituais colhidas dos indios do Brasil, algumas sio entoadas sobre um som so, de principio a fim, apesar de muitas vezes atra- vessarem a noite, Embora o ritmo esteja quase sem- pre bem desenvolvido e principalmente bastante com- plexo, como se pode ver do exemplo abaixo, penso que nao se pode ainda chamar uma coisa dessas de “pmisica”. Nao passa duma dicgfo, horizontalizada dentro de um valor sonore mais ou menos definido. voz: 4° BAPO: . gle. 2° RAPO: : ete. (A. Colbachini: “1 Bororos Orientali") O som se manifestou mais tardonho em seu de- senvolvimento. As misicas primitivas que possuimos so no geral pouco sonoras. Se observe, por exem- plo, esta dialogagao coral dos indios Bororos: PEQUENA HISTORIA DA MUSICA 15 ‘A.ro.e' [Dijpre to.t6! A.r0.e! Dijnre.to. td! (Karl von den Steinen: “Unter den Naturvoctker Zentral-Brasitions”) Observe agora a complexidade ritmica e a po- breza melédica deste canto feminino na danya Tucui, colhida entre os indios Macuxis e Vapichanas, do extremo-norte amazénic (, Koch-Gruenberg: “Vom Roreima Zum Orinoco") Eis ainda, pobre mas bonito, um Canto-de-Be- bida dos indios Coroados, tendo a curiosidade excep- 16 MARIO DE ANDRADE cional entre os documentos brasilicos, de apresentar vaga analogia com misicas do Peru incaico: Lento (Spix e Martius: ‘ “Reise in Brasilien”). Varias causas levam os chamados “primitivos” a essa musica pouco melodiosa e predominantemente ritmica. Em primeiro lugar vem a prépria circuns- tancia do ritmo ser mais dinamogénico que a melodia em si. Agindo com grande poder sobre a parte fi- sica do ser, ele provoca, mais que outro qualquer ele- mento estético, seja o som seja a cor, seja o volume, uma ativagao muito forte do ser bioldgico total, nao sé fisico, mas na complexidade maior do seu psiquismo também. , Os primitivos sao gente que se desenvolve em “estado natural”, por assim dizer. eles, eri tudo a manifestagao da inteligéncia légica (que é apenas uma das partes, a parte consciente do nosso psiquis- mo) tem menor importancia que a geral manifesta- Gao psico-fisiolégica, e por esta se deixa levar. Se a despreocupagio pela inteligéncia légica os priva de de uma concepgiio mais técnica, mais pratica da exis- téncia, por outro lado, o exercicio constante das ou- PEQUENA HISTORIA DA MUSICA 17 tras partes do ser, bem como a violenta luta pela vida, os leva a desenvolver extraordinariamente cer- tas faculdades do corpo, o faro, a tactilidade, os ins- tintos e pressentimentos. O corpo é, para os primi- tivos, uma espécie de primeira consciéncia, uma inte- ligéncia fisica de maravilhosa acuidade. Nada mais natural, pois, nada mais necessdrio mesmo, que o treino freqiiente dessa primeira consciéncia, desse corpo intuicionante, e a ativacao, o reavivamento das suas faculdades. Ora, o ritmo interessa muito mais ao. corpo que o som. O ritmo “mexe” com a gente. E si; por um la- do. eva portanto mais apto para agucar as faculdades do corpo, ainda pelos seus valores dinamogénicos pro- duzia a absorgao do individuo pela coletividade, so- cializando-o, Ihe determinando 0 movimento coletivo. Embora os primitivos nao atinjam grande variedade ritmica consciente, 0 certo é que, em suas manifesta- cdes musicais, dio predominancia enorme ao ritmo. Outra causa importante, que leva os povos em estado natural a desenvolverem muito pouco a sono- rizagéo da musica, é a dificuldade de criar instru- mentos melédicos deveras ricos. Espanta mesmo imaginar que sé dentro da Civilizagéo Crista, é que o homem conseguiu construir instrumentos como o érgéo, o violino, a flauta e o piano atuais. As pré- prias grandes civilizagdes da Antiguidade ou extra- européias, se utilizaram de instrumentos que, na maio- ria infinita dos casos, sio meras estilizagdes do ruido. Por mais-sonoros que sejam certos instrumentos chins, javaneses, indianos, assirios, egipcios, no geral se ba- seiam na percusséo. O principio desses instrumen- tos é qualquer espécie de golpe, que produz as vi- bragées irregulares do ruido ou ja regulares do som. Porém este som é incapaz de se sustentar, de se pro- 18 MARIO DE ANDRADE longar, de conservar a intensidade até o som seguinte e a este se ligar. De forma que a linha melédica existente importa menos, pois cada som, desligado do anterior e do seguinte, conserva a sensagio de um fenémeno isolado (7). $6 mesmo os instrumentos de sopro, sobretudo os se aproximando da gaita, é que se desenvolveram melodicamente com os primitivos. E ainda assim es- tayam longe de atingir as possibilidades melédicas da nossa flauta, do oboé, do saxofone. Entre os nos- sos indios, por exemplo, a gente encontra sempre muitas gaitas. Algumas dao um s6 som. Outras sao mais ricas, atingindo maior nimero de sons, quer as haseadas no principio de Sirinx quer as compostas de um sé tubo com orificios, que nem as flautas Zo- rateal6, Teiru e Zaolocé, dos indios Parecis, mencio- nadas por Roquette Pinto, na “Rondénia”. No geral os instrumentos dos primitivos sao mui- to pouco melédicos. D&o sonoridades bulhentas, ca- vernosas, roucas, ou produzem apenas ruidos. Os nossos indios fabricavam instrumentos com o que a natureza lhes proporcionava. Eram principalmente instrumentos de percusséo: tambores as vezes feitos com troncos de arvores, como o Curugu e o Va- tapi; cabagas esvaziadas, reenchidas com _pedri- nhas, semelhantes, coisas assim, como o Maraca tra- (2) Tanto mais que a gente nado pode conceber nem como to- nalidades, nem como modo, a bem dizer nem mesmo muitas vezes como escalas, as séries de sons usadas pelos povos naturais. Tais séries, além de no geral curtas e deficientes nao implicam uma hierarquia sonora organizada ¢ preestabelecida. A base natural dessas séries fica reduzida ao minimo elementar de um, dois sons, mais repetidos que os outros — sons predominantes que se pode explicar como apoios instintivos de memoria sonora. Nao sio ainda a Ténica, a Dominante — muito embora derive desse primario apoio mneménico, a fungio estrutural futura dos sons modais ¢ tonais. PEQUENA HISTORIA DA MUSICA 19 dicional, o Bapo e o Xuaté; unido de. dentes de animais, conchas, sementes em cordéis que amar- ravam no tornozelo, como o Butori, ou prendiam numa haste, como o Coteca. Entre os instrumentos de sopro havia ora simples gomos de bambus, as vezes soprados com o nariz, que nem o Tsin-Hali, dos Pa- recis, ora complicadas jungées de cabagas pequenas, como a Pana, dos Bororos; ora feitos com ossos de veados, ongas, etc., como o Uatoté, dos Macuxis, e até com ossos humanos de inimigos, como refere Gan- davo. E o bizios. Misica, pois, predominantemente ritmica, muito pouco melodiosa, socialistica e estreitamente interes- sada, no geral monétona e buscando favorecer, pela prépria monotonia depauperando a consciéncia. os efeitos magicos da encantagéo. Jamais nao se liber- tou da fung&o religiosa, magica e social. O explora- dor Felix Speiser nos da excelente prova disso quan- do conta que os indios Aparais eram incapazes de cantar por cantar, embora se divertissem com muito gosto quando qualquer homem da expedigio Speiser se punha cantando livremente. Frances Densmore faz essa mesma observagio a respeito dos indios da América do Norte, a generalizando a todos. O Dr. Herman Unger refere que os indigenas do estreito de Behring, embora se prestando a caniar seus cAnticos cerimoniais para que os exploradores os escutassem, se recusaram a fazer isso quanto aos cantos funebres, por nao haver nenhum defunto ali. E Hornbostel afirma categoricamente nao se dever chamar arte & musica dos primitivos, por ndo servir de elemento recreativo nem ser feita “para edificar esteticamente ° espirito”. Musica magico-ritual, transmitida sem- pre cuidadosamente de geragio em geracao e guar- 20 MARIO DE ANDRADE dada com zelo pelos feiticeiros da tribo. Até as ve- zes proibem as mulheres escutar 0 som de certos ins- trumentos sagrados e ver certas dangas. Magia, re- ligiosidade, rito propiciador de espiritos, defuntos e trabalhos coletivos. Fisiologicamente, ela se caracteriza por ser uma “expansio” impulsiva e instintiva do movimento so- noro, despreocupada de se organizar em constancias fisiolégicas, quer de emisséo do som, quer até mesmo das batidas do ritmo. Ora, como diz R. Lachmann muito bem: para o impulso sonoro vocal em si, nao interessa absolutamente a predefinigaéo de sons fixos; essa expansao impulsiva do ser vocal nfo implica sons fixos, nem graus escalares nem intervalos determina- dos, nao existe de forma alguma o preconceito de afi- nagio e desafinacgio — tudo é Som. E sé 0 som impor- ta. Da mesma forma o préprio ritmo é pura expansio impulsiva dos acidentes verbais da dicgaio e suas exi- géncias fisioldgicas da respiragao, da movimentagio coreografica do corpo, e do principio “arsis” e “the- sis”, movimento e repouso, nao acentuagéo e acen- tuacdo. E, pois, essa expansividade impulsiva e ins- tintiva do movimento sonoro, tanto melédico como ritmico e mesmo harménico, é de determinagio in- trinsecamente inconsciente, derivada apenas das exi- géncias e leis fisiolégicas, modificada apenas pela va- riabilidade antropogeografica das ragas, e condicio- nada apenas pelos ciclos culturais das tribos. E o corpo que se bota a cantar e se expande em voz. Nu- ma voz qualquer, puro movimento vital. Mas como qualquer movimento vital se diferencia entre um in- glés e um turco, entre um tuberculoso e um homem sio, entre um sacerdote e um pedreiro, entre uma crianga e um adulto: séo também as diferenciagdes PEQUENA HISTORIA DA MUSICA 21 fisico-raciais-sociais-culturais, que diferenciam esses cantos primitivos. Genericamente: a sua expansivi- dade impulsiva se manifesta por livre emissdo sono- ra, com maiores valores dinamicos no inicio do canto, e tendéncia para uma queda do agudo para o grave, determinada pelo cansago fisico. Se pode bem in- ferir dai que todas as nossas“ traducdes” em notacio musical européia, dessas misicas primitivas, nao séo apenas um abuso sempre abortado, mas uma defor- acio absurda, a mais deturpadora das convengé: Tecnicamente, a nrisica dos primitivos se definé pela repeti¢&o, em unissono geralmente coral, de mo- tivos ritmico-melédicos. No geral motivos bem cur- tos, ou se repetindo sempre, ou voltando periodica- anente, facilitando meniorizaga Xe convencendo pela irepeticao./ Muito raramente aparecem pequenas po- ifonias, no geral ‘movimentos paralelos de quartas ou de quintas, obrigando a estes intervalos a intuigio instintiva dos sons harménicos. E se aparecem tam- bém até intervalos harménicos de segundas: nem quartas, nem quintas, nem segundas derivam de qualquer intuicggo mesmo rudimentar de consonan- cias e dissonancias, mas simplesmente do fato do primitivo se expandir sonoramente, sem depender de afinagio ou desafinagio. Da mesma forma, si o ritmo é de grande complexidade as vezes, ele nao tem a menor liberdade musical, se baseia num e repete infindavelmente um valor unico de tempo, incapaz de ajuntar esse valor por grupos (nociona- mento do compasso), absolutameénte incapaz de qual- quer contrariacio consciente, desse valor, por meio de contratempos ou sincopagées. Tudo dependendo exclusivamente dos levantamentos e repousos de gestos e passos da danga, e principalmente das pala- vras dos textos cantados. Musica, em consciéncia 22 MARIO DE ANDRADE valendo unica e téo-somente por causa das palavras que esto nelas, e que muitas vezes nem os préprios primitivos e seus pajés entendem mais, de tao defor- madas através da tradigéo. Musica sempre com pa- lavra, rarissimo puramente instrumental. Musica que as mais das vezes nao chega a ser Arte, pois nao parece estar ja condicionada por qualquer interesse estético, qualquer nocionamento da beleza sonora. Nao permite nenhuma liberdade, nenhum lirismo, nenhuma evasio para os campos do prazer desinte- ressado (*). (3) Nao ha contradigéo nenhuma no constatar que os povos primaries produziram culturas orientadas pela parte fisiea do ho- mem, ¢ a afirmacio, que vird adiante, deles terem precisio de com- preender tudo, ¢ por isso esclarecerem sempre a sua mtsica por meio de textos. Sentiam 0 efeito fisiolégico das manifestagdes musicais que empregavam, porém, careciam de entender emconscién- cia essas manifestagées, para que elas tivessem uma razéo de ser* dentro da vida urgente que levavam. Dai unirem sempre pala- vras as miisicas, fazendo estas funcionarem como magia, religiio, rito social. Isso até foi mais um proceso para tornar profunda- mente contrariadora na manifestago artistica (procura do prazer desinteressado) a manifestagio musical deles... Capiruto II MUSICA DA ANTIGUIDADE O que distingue especialmente dos primitivos, a manifestagac musical das civilizagées antigas é... 0 descobrimento da nmisica. Si € verdade que certos cantos dos africanos, dos amerindios ztingem as vezes um grau legitimo musicalidade, 0 conceito de Arte Musical nio se tornou propriamente conscientea estes povos. Pode-se afirmar isso porque a musica é a nica das manifestagSes artisticas a que nao é pos- sivel encontrar, entre os primitivos, normalizada por uma técnica propriamente dita. Si é certo que eles realizam o som, nem mesmo este a gente pode afirmar que seja uma organizagao voluntaria deles. E’ antes uma conseqiiéncia dos ins- trumentos de sopro e do aparelho vocal. Porém mes- mo esse som raramente é puro. Vive anasalado, vive no falsete, pouco definido em suas entoagdes incertas e portamentos arrastados. Verifiquei processos as- sim entre os indios brasilicos, nos fonogramas exis- tentes no Museu Nacional; Roquette Pinto me con- firmou pessoalmente a freqiiéncia do som nasal entre os nossos indios; e Roberto Lach generaliza esses pro- “cessos aos primitivos em geral. E si é possivel em muitas nvisicas primitivas discernir o que ja se pode chamar escala, nfo s6 essas escalas chegam as vezes a variar de documento pra documento, sio nume- Diferengas entre 0s primitivos Consciéncia ea Antigui- dade. Consciéncia sonora. Consciéncia da escala, Técnica musical. Pratica musical. 24 MARIO DE ANDRADE rosas e irregularissimas (que nem as encontradas en- tre os indios do extremo-norte brasileiro), como pa- recem derivar dos instrumentos usados(*). Talvez seja mais acertado falar que os povos primitivos cons- troem instrumentos apenas com o fito de obterem som. Mas nem sempre sons predeterminados (°). Ora as civilizagdes da Antiguidade j4 organizam conscientemente 0s sons e os agrupam em escalas de terminadas teoricamente. Possuem o que se pode, em verdade, chamar de Arte Musical: uma criagio social, com fungio estética, dotada de elementos fi- xos, formas e regras —- uma técnica enfim. Parece mesmo que ficaram embebedados com o descobrimente da musica... De fato: fizeram es- banjamentos rastacueras de sons, por meio de coros populosos e orquestras provavelmente bulhentas a que, parece, preocupavam bem pouco as nogées de equilibrio sonoro e combinagéo de timbres. Os gregos é que vieram substituir essa estética de luxo e brilhag&o, por um ideal mais interior e despojado de efeitos faceis. (4) Também Hornbostel (584,7) em seus estudos sobre a nmi- sica negro-africana, chegou 4 conclusio de que nao se pode falar em escalas a respeite da melodia vocal dos primitivos. (5) Isto repete-se mesmo nas massas populares dos povos ci- vilizades. Num dos mais curiosos bailados populares do Brasil, o3 Cabocolinhos”. ainda subsistentes no Nordeste, o instrumento me- Iédico usado é uma gaita. Possuo duas gaitas feitas para executar as miusicas dos “Cabocolinhos”, do bairro de Cruz-de-Alma, em Joao Pessoa. Diterem totalmente na entonagio. © que quer dizer que a mesma execugio, realizada nas duas gaitas, dé mais melo- dias diferentes! Curt Sachs também observa que o instrumento como objeto de culto (e ja vimos que toda a musica dos povos na turais é essencialmente de fungio méagico-religiosa), exclui toda ¢ qualquer preocupagdo estética. Procuram obter som, nio exata- mente porém o som “estético”, 0 som verdadeiramente musical, porque a mtsica tem de agir, no caso, “nao como proporcionadora de gozos artisticos, mas com apelo as forcas conservativas, ou banidor das forcas destrutivas da vida”. PEQUENA HISTORIA DA MUSICA 25 Mas apesar dos povos antigos terem sistematiza- do a musica como arte, ainda nio a puderam conce- ber livremente. Entre eles a nmisica viveu normal- mente ligada 4 palavra e socializada. O homem na Antiguidade é um ser mais propriamente coletivo que individual. Todas as manifestagdes dele sio por isso muito mais sociais que individualistas, Intelectua- lizada pela palavra, a nvisica tomava parte direta nas manifestagées coletivas do povo. O canto coral: teve importAncia vasta, ao passo que a nmisica instrumental isolada, a bem dizer, nao existiu. Todos os povos da Antiguidade tiveram os sons organizados em escalas, tiveram formas e férmulas es- pecificamente sonoras de realizar musica. Sao mui complicadas e numerosas pra fazerem parte dum com- péndio geral que nem este. A Grécia que, em mi- sica, é a manifestagio mais conhecida e provavelmen- te mais perfeita da Antiguidade, ja nos interessa mais, porque influi na musica da Civilizagao Crista. Nés nao podemos penetrar integralmente na emo- lividade da misica helénica porque os processos gre- gos de execugao musical se perderam, as obras rema- nescentes sio poucos retalhos e a civilizagio grega foi diferente da nossa. Porém os documentos que restam sobre a Misica entre os gregos, provam que ela teve la uma construgso pelo menos tio perfeita ¢ ies estatuarla ou a poe; Do mesmo modo que as outras civilizagées da Antiguidade, os gregos acreditavam que a misica era um donativo especial das divindades. As origens da miisica grega se perdem na supersticéo. As tradigdes colocam deuses, semideuses e heréis miticos inven- tando instrumentos e obras musicais. A todo momento a gente percebe a participacao estrangeira da musica grega, chegando Estrabao a afir- Miisica socializada, Musica srega. Superstigho. Naciona- lismo. Teérica. Tetracorde. Géneros. 26 MARIO DE ANDRADE mar que esta deriva inteiramente dos tracios e da Asia Menor. Porém, desde o principio se manifes- tava nos gregos aquela forga de racialidade que a qualquer manifestago estranha deformava, desbas- tava, esclarecia, lhe dando caracteres originais. E as- sim criaram uma nwisica psicologicamente nacional, regida por uma teoria de realismo possante. Na base dela estava o Tetracorde que era o mais elementar “sistema”, isto é, escala. Tinha quatro sons. Os sons extremos do tetracorde eram fixos, os internos podiam variar de entoagao. Considerando as variagdes dos intervalos entre os quatro graus distinguiam-se trés géneros: Diaténico, Cromatico e Enarménico. No. diaténico nfo havia alteragio nenhuma. Porém si um dos graus centrais estava alterado de metade, ou quarto-de-tom, aparecia no primeiro caso o género cromatico, no segundo o enarménico. TETRACORDE DIATONICO: == TETRACORDE CROMATICO: es TETRACORDE ENARMONICO: 2]5= 6. (O sinal x indica que o Som esta elevado de quarto-de-tom). O tetracorde era um sistema deficiente por de- mais pra criar musica. Por isso desde muito cedo 08 gregos reuniram dois tetracordes consecutivos, ob- Notagio Quadrada — Pagina de abertura de um antifonério beneditino do séc. XIV Pagina do “Micrélogo” de Guido @Arezzo, com Exemplos de notacio alfabétiex e diastematica Guido d’Arezzo e Teobaldo (iluminura do séc. XII) — Biblioteca Nacional de Viena Et eonasio on apind ete To Ce pinta bi rsa ewe lewis ain Teeenaacigrenua potlt om quinqy verbs, ¥ ig Magihicenga/mumearaa mi, reitbosut fpreale vitehig wnferia Dyene Fomar (eS alerun) qumasorr? ides Potten fitr-omés © primeiro livro que trouxe notas impressas. “Collectorium super Magnificat”, Esslingen, 1473 Pelignas Orie fon abit il Orlando de Lassus — gravura em cobre de René Boyvin PEQUENA HISTORIA DA MUSICA 27 tendo sistemas ja eficientes de oito sons. A tais sistemas chamaram de Modos. Como davam nomes geograficos aos tetracordes, conforme a colocagao do semitom diaténico dentre deles, os Modos ficaram também designados geograficamente, conforme o te- tracorde de que derivam. Foram sete os Modos pri- mordiais que os gregos empregaram: o Dérico (Mi a Mi, descendente, sem alteragio, contendo 2 Tetra- cordes Déricos); 0 Frigio (Ré a Ré, sem alteragio, contendo 2 Tetracordes Frigios) ; 0 Lidio (Do a Do, sem alteragéo, contendo 2 Tetracordes Lidios); 0 Hipodérico (La a La, sem alterago); 0 Hipofrigio (Sol a Sol, sem alteragio); 0 Hipolidio (Fa a Fa, sem alteragio) ; 0 Mixolidio (Si a Si, sem alteragao). Os trés primeiros séo os tnicos originais, Os trés seguintes, caracterizados pelo prefixo “hipo”, eram obtidos pelo transporte uma oitava abaixo, do tetracorde mais agudo dos trés Modos originais, e redobramento da oitava no grave. O emprego do tetracorde sem semitom (Si-ld-sol-Fé) dava o Mixo- lidio que tinha varias explicagdes tedricas. A transposigio colocava todos os modos dentro da mesma oitava (FA a Fa) de forma a permitir a entoagio deles por todas as espécies de voz humana. Ora, como o ambito natural da voz humana é Ré a Ré, supée-se que o Diapasio grego era mais grave tom e meio que o atual. Do exposto podemos verificar varias diferengas importantes entre a musica grega e’a da gente. Na Grécia as escalas eram consideradas descendentes, ao passo que nés as consideramos ascedentemente. No entanto 0 senso sonoro dos gregos era igual ao nosso, pois que chamavam de Agudo ao que chamamos de Agudo também. © que podemos imaginar é que o Trans- Posigzo. Diferencas com a mi- sica crista. Senso dinamico. Modo e Tonalidade. Quarto-de- -Tom. Sistema Teleion. Ethos. Harmonia, \ tor da Acts 28 MARIO DE ANDRADE senso dindmico dos sistemas era neles 0 oposto do nosso. Colocavam o apoio tonal no agudo, ao passo que nés o colocamos no grave. E com efeito quando os Rapsodos cantavam, os sons do acompanhamento instrumental eram dados no agudo, acima da melo- dia entoada pelo cantor. : a enorme é que nés possuimos To- nalidades ¢ eles Modos. Estes variam na disposicao, dos intervalos, ao passo que nas Tonalidades o que varia é a elevagio do som, enquanto a disposigéo in- tervalar permanece a mesma. Os Modos sao monédicos, as harménicas. ‘onalidades sao Para enriquecimento da Monodia, os gregos pos- sufram o quarto-de-tom que foi abandonado muito cedo pela civilizagéo Crista e a nossa notagaéo cor- rente nem registra. O Modo que serviu de base as especulagées ted- ricas dos gregos foi o Dérico ou Doristi, considerado nacional por exceléncia. Pela unido de mais dois tetracordes déricos a ele, um no agudo outro no grave, e repetigéo no grave da nota mais aguda, obtiveram a série completa dos quinze sons diaténicos da Citara. A este Sistema de quinze sons, acrescido dum si be- mol central de fungéo modulante, chamaram de Sis- tema Teleion (Sistema Completo), e consideraram imutavel. Aos Modos, Géneros e Ritmos davam poderes morais diferentes. Uns eram virilizadores, outros sen- suais, outros enervantes, etc. Ghamavam de “Ethos” a esses caracteres morais da mnisica. Na teoria, os intervalos harménicos e: pecificados| desde PEQUENA HISTORIA DA MUSICA 29 dio fixou a relacéo proporcional entre os sons (°). Por meio de divisées proporcionais da corda vibrante, Pitdgoras obteve a série dos Sons Harménicos. Aos intervalos de oitava, quinta e quarta justas chamou de Sinfonias (Conson4ncias) e aos outros de Diafo- nias (Dissonancias). As Dissonancias eram interditas no acompanha- mento. A bem dizer os gregos ignoraram por com- pleto o que chamamos de Harmonia, muito embora numa ou noutra manifestagio, tenham possivelmente se utilizado de algum Contracanto. Mas desconhece- ram os Acordes, a concatenagao deles, a Triade To- nal. E mesmo o som principal dos modos jamais nio exerceu na monodia grega a tirania que a Té- nica até faz poueo exerceu na misica harmonizada & européia. Era uma musica exclusivamente monédi- ca, a que os instrumentos acompanhantes ajuntavam periodicamente sons de sustentacéo. Mas nessa mo- nodia variavam, satisfatoriamente para os gregos, a riqueza modal e os géneros. Outra coisa que enriquecia extraordinariamente a musica grega era o ritmo, Como a misica nao era uma arte isolada, estava sempre unida & poesia e a danga, 0 compositor grego era ao mesmo tempo can- tor, poeta e dangarino. As musicas continham texto e expressio coreografica. O que unia as trés artes era o ritmo. Pra isso estabeleceram para as trés artes uma 26 quantidade de tempo, chamada dé Tempo-Primeiro por Aristéxeno (IV sée. a. C.), grande teérico, O (6) A relagio proporcional de Oitava era “um para dois"; a de Quinta era 2-3; a de Quarta, 34, etc... O que significa que et quanto um som determinado’ di uma vibragio, a sua Oitava di duas vibragdes; enquanto dé duas vibragées, a sua Quinta dé trés, ete. Ritmo. Prética mu- sical. Os Rapsodos. Nomos. Instrumen- tos. 30 MARIO DE ANDRADE Tempo-Primeiro correspondia ao som mais curto da untisica, & silaba breve da poesia e ao gesto mais ra- pido da danga. O Tempo-Primeiro era insubdivisi- vel, mas tinha um miultiplo que valia o duplo dele. E por meio da jungio desses dois valores, construiam- -se os Pés que tinbam de trés a seis Tempos-Primeiros, divisiveis em partes iguais ou desiguais, uma (Arsis) correspondendo ao pé se erguendo para dangar, outra (Thesis) correspondendo ao pé firmando no chao. O que nao quer dizer propriamente acentuagéio ¢ nao- -acentuag4o, pois, a nfo ser em marchas, certas dan- gas, entradas e saidas corais nas tragédias, os gregos nao empregaram o Tempo Forte. Chegaram mes- mo, no periodo de apogeu, a eliminar da sua ritmica os acentos. Na pratica a musica foi apreciadissima e teve uma importincia social formidavel. De primeiro va- leram especialmente os Rapsodos, cantadores ambu- Jantes que acompanhando-se na lira de quatro cordas, louvavam a memoria dos deuses, dos herdis, dos feitos nacionais. Pelo carater conservador préprio dos ri- tuais religiosos, muito cedo principiaram se fixando certas melodias-tipo, inalterdveis, a que se atribuia influéncia magica, moral, ou simplemente eficiéncia ritual. Eram os Nomoi (singular: Nomos). O Nomos provinha de comunicacio divina e sé mesmo artista grande é que o podia... receber. Os Nomos eram designados pelo deus que louvavam (Nomos Pitico, dedicado a Apolo; Ditirambo, dedicado a Dionisio) ; ou pela ocasido social em que eram de preceito (0 Pean triunfal, o Treno lutuoso, o Himeneu nupcial). Sempre cantados, os Nomos tinham a participa- cao de instrumentos acompanhantes. Os dois instru- mentos principais eram: a Citara, desenvolvimento da PEQUENA HISTORIA DA MUSICA 31 Lira, tocada com o plectro manejado pela mao di- reita — dedicada a Apolo e tida como nacional por exceléncia; o Aulos, instrumento de sopro, de so- noridade intermediaria entre oboé e clarineta, cons- tituindo toda uma familia instrumental — estrangeiro, sensual, e dedicado a Dionisio. . Nas Citarédias e Aulédias, o Citarista ou o Auleta acompanhava o cantor. Nas Citaristicas e Auléticas o instrumen- tista executava solos, Ocasionalmente os gregos em: pregavam outros instrumentos. Os poucos documentos musicais que nos ficaram da Grécia esto grafados numa Notacao Alfabética que teve 14 os nomes de Krusis, mais antiga, diaté- nica e instrumental; Lexis, variante da outra, mais rica, e podendo registrar as sutilezas vocais. E costume distinguir pela poesia duas fases na pratica musical dos gregos: a Fase Lirica e a Tra- gica. Domina a manifestagao da Fase Lirica 0 fato de Terpandro (séc. VII a. C.) ter dado a organi- zacio definitiva do nomos. Tudo se desenvolve en- téo do nomos. Dele provém a lirica solista, 0 canto voral, o solo instrumental, e posteriormente a tra- gédia cantada. O Nomos mais fecundo foi o Ditirambo, coro dangado a que Pindaro (séc. V a. C.) deu forma fixa. E como o Ditirambo representava inicialmente passagens da vida de Dionisio, essa representagao, de primeiro apenas um cortejo, foi se desenvolvendo de progresso em progresso até dar na Tragédia. No tempo (sée. V a. C.) de Esquilo, Euripides e de Séfocles a wagédia chegou a ser inteiramente cantada, nos teatros ptiblicos, por quatro dias consecutivos, quando chegava a época das Grandes Dionisiacas. Notagiio. Fases musicais. Ditirambo. Decadéncia. 32 MARIO DE ANDRADE Depois desse apogeu lirico e tragico, fixavel no periodo que vai do VI.° ao IV.° século antes de Cristo, a nrisica grega progride sempre e descamba para a virtuosidade, ao mesmo tempo que perde aquela orientacdo religioso-social que engrandecera e nacionalizara. Um individualismo acu, uma dn- sia impaciente de festanga. teatro se abre em qualquer dia. Porém as tragédias j néo sio mais cantadas nao, e as artes se divorciam umas das outras. Aparecem os virtuosos interpretando obra alheia. Os cantores e instrumentistas se preocupam em fa- zer virtuosidade e chegam a ter templos erguidos em honra deles. Alexandria, na Africa, é entao, o paradeiro da sabenga grega. Atenas morre, escrava de Roma. E com ela os yerdadeiros gregos penin- sulares. E Roma, sob o ponto-de-vista musical, nao dara nada que interesse historicamente.

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