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8 APML ASPECTOS DA GENESE DE DEUS E 0 DIABO NA TERRA DO SOL Josette M. A. Souza Monzani Doutoranda da PUC/SP RESUMO - 0 texto trata, primeiramente, de aspectos relativos a reuniao e¢ ordenagdo dos roteiros manuscritos do filme Deus e 0 Diabo na Terra do Sol de Glauber Rocha. Em segundo lugar, a discussdo aponta para o processo de elaboracao das personagens nos diferentes roteiros em seus niveis diversos. ABSTRACT - The text presents, first, some aspects related to the gathering and organization of the different versions of Glauber Rocha’s screenplay for his film Deus e 0 Diabo na Terra do Sol. \t discusses, also, the development of the characters of this narrative in its different levels. RESUME - Le texte traite, em premier lieu, d’aspects concernant la réunion et la mise en ordre des scénarios manuscrits du film Le Dieu Noir e le Diable Blond. Il indique ensuite les processus d’élaboration des personnages de cette oeuvre dans ses différents scénarios. Manuscritica 9 Levando-se em conta que a realizagdo do roteiro constitui o primeiro momento da criagao cinemato- grafica, resolvemos dai iniciar 0 nosso estudo de Deus e o Diabo na Terra do Sol de Glauber Rocha, que resultou em uma dissertag&o de mestrado!, da qual trataremos um pouco aqui. Conseguimos reunir sete roteiros de Deus e o Diabo, cuja ubicagdo principal é a Cinemateca Brasileira, SP: trés deles fazem parte do arquivo Glauber Rocha, 1a depositado, e dois encontram-se na biblioteca desta mesma instituigdo. Os dois restantes foram publicados no livro Deus e 0 Diabo na Terra do Sol (Rocha, Glauber, Rio, Civilizagdo Brasileira, 1965) e consistem em um roteiro completo e em suas notas de rodapé que compéem um texto independente daquele. Nosso trabalho foi constituido pela busca, ordenagao e analise destes manuscritos. Tinhamos conhecimento de dois roteiros que se encontravam editados” e descobrimos os dois outros em posse da biblioteca da Cinemateca. Ao sabermos que parte do arquivo de Glauber Rocha pertencia a esta entidade, resolvemos tomar conhecimento de seu contetido que, nesse momento, ainda nao havia sido organizado. Consultado esse material, descobrimos mais trés importantes roteiros, além de valiosos documentos relativos as fontes do autor em questio?. Foi um processo trabalhoso, até podermos chegar a ordenagao dos roteiros. Na medida em que apenas dois manuscritos estavam datados, tivemos que cavar informagdes em jornais, revistas e livros que nos 10 APML permitissem cruzar os comentarios externos com o contetdo que tinhamos em mios. A pesquisa, sempre atualizada por varias leituras dos roteiros, nos propiciou a percepg4o do caminho construtivo narrativo - estilistico de Glauber Rocha, e levou-nos ao estabalecimento de uma ordem, que ficou assim constituida: Versio #1 - A Ira de Deus (Corisco). Texto e dese- nhos*; arquivo Glauber Rocha®. # 2- A Ira de Deus (Coirana). Texto; bibliote- ca. # 3 - Deus & Diabo na Terra do Sol. Texto; bi- blioteca. (ou O Filho da Terra) # 4 - (No final do texto, indicagao de legenda:) Viva a Terra. (nos letreiros:} Deus e 0 Diabo na Terra do Sol. Texto e desenhos®; arquivo Glauber Rocha # 6 - Deus e o Diabo na Terra do Sol. Texto publicado.” #7 - Notas de rodapé da versio # 6. Texto pu- blicado. Vejamos um pouco desta trajetéria, a titulo de exemplo, j4 que n&o podemos reproduzir nossa analise integralmente, dada sua extensao A que acreditamos ser a primeira das versées esta datada de 22 a 31 de julho de 59. A ultima encontrada (v. #5), data de junho de 63, excluidas as duas versdes pubilicadas, por razdes que ja Manuscritica W expusemos. Isto delimita, num periodo de 4 anos, .a escritura das outras trés. Glauber parte da historia de Corisco, como lider do cangago apés a morte de Lampiao, e do vaqueiro que se tornou cangaceiro deste bando, juntamente com sua mulher. Ensaia colocar Lampiao como centro da trama, em lugar de Corisco, e chega a historia de Coirana - do bando de Jesuino Brilhante - com o vaqueiro (v. #2). Nestes 2 roteiros, o Beato aparece no meio da trama, tendo uma apari¢do curta e secundaria. Mais tarde (v. #3), opta por centralizar a historia no Beato, colocando o vaqueiro e o cangaceiro como seus seguidores. Esta mudanga representa uma reviravolta no enfoque do enredo. Em seguida (v. #4), volta para a vida do vaqueiro e de sua mulher, agora parte ao lado de Corisco e parte com o Beato, 0 que da uma nova dimens&o a trama, que se torna mais bem distribuida em termos de cangago e pietismo. Esta se mantera praticamente igual na v. #5, sendo apenas mais bem trabalhada, em termos de orientagao para as filmagens. As versdes #4 e #5 tém ainda, com relagéo as demais, a diferenca de conterem um terceiro episodio sobre a questo da terra. Glauber explicita um pouco o seu _percurso, confirmando nossa ordenag&o, que ainda encontra apoio em fatos sobre a criagdo, dos quais citaremos alguns. Diz ele, no debate sobre o filme: "As reportagens sobre Corisco, que li em jornal, me interessaram, e entao eu fiz um primeiro roteiro, que se chamava A Ira de Deus e que era sé sobre o Corisco; e contava a estoria de Manuel e Rosa, que era a estoria de um 12 APML vaqueiro e sua mulher que entravam num bando de cangago (...). Isso foi em 1958 para 1959. Nessa estoria, aparecia o Beato, mas s6é no meio do filme"® Pela trama e pela data aproximada, pode-se concluir estar ele referindo-se a versio # 1 de Deus e 0 Diabo. Algumas reportagens sobre Corisco achavam-se no arquivo Glauber Rocha: Didrio de Noticias de 8 de maio de 59 - 11* de uma série - e Estado da Bahia de 23 de janeiro de 50 - capitulo VI. Por terem sido guardadas por Glauber e pelas datas (anteriores a da realizagaéo do roteiro # 1) podem se tratar das reportagens mencionadas pelo diretor no debate. Ainda, muito do seu contetido foi por ele utilizado na v. #1, 0 que apdia a nominag&o desta versio como a 1* da série. Apenas para nao deixarmos em branco nossa colocagéo, e nao nos estendermos demasiadamente, citaremos dois excertos das reportagens que estio reproduzidas na verséo em questéo: "Aprendeu (Corisco) bem as ligdes de Lampiao e, apos a chacina de Angicos, em que Virgulino perdeu a vida, ele prosseguiu com outro bando, sé parando quando bem quis. Para seu azar, porém, no dia que deixou de ser cangaceiro, foi morto pelas balas da volante". (Didrio). Na versio # 1, paginas 40 a 44: Corisco confessa-se (ao decidir largar © cangago), ap6s um periodo de lutas chefiando o antigo grupo de Lampiao, abandona as armas para lego em seguida ser morto por uma tropa. Ainda no Didrio de Noticias: “Depois da morte de Lampiado pela tropa do Tenente Bezerra, (Corisco) enfureceu-se e, com o seu bando, passou a cagar quem Manuscritica 13 tivesse Bezerra no nome (...)". Diz Corisco, a pag. 6 da verséo # 1, apés a morte de Lampiao: "Agora acabou a festa. Quero que todo mundo fique sabendo que vou acabar com tudo que tenha Bezerra no nome GC." Seguindo, nossa hipdtese de trabalho é a de que A Ira de Deus (Coirana) - versao # 2 - é posterior a A Ira de Deus (Corisco) pois, na sequéncia 10 (pagina 36) - verséo # 2 - pode-se ver que estava escrito Corisco e que este nome foi substituido por Coirana; ainda, nas seqiiéncias 13 (pagina 36) e 14 (pagina 41) esta datilografado por engano Corisco em lugar de Coirana. Isto indica que Glauber havia pensado nessa possibilidade - Corisco - anteriormente. Além disso, o Beato chama Coirana de Cristino (sequéncia 14 - pagina 41), nome verdadeiro de Corisco, o que demonstra ser ele o paradigma de Coirana. A propésito da proximidade entre estas duas versées, gostariamos de remeter o leitor ao levantamento das intmeras alteragdes entre elas encontradas, reveladoras do quanto o trabalho com a versio # 2 esta calcado e é afim da versio # 1, executado em nossa dissertagfo de mestrado e nao reproduzido integralmente aqui dadas as limitagdes deste texto®. Apenas como ilustragao, dois pequenos exemplos: Na versio # 2, néo aparece Lampiaio e sim Jesuino Brilhante, mas a cena de sua morte (no prologo) praticamente reproduz a de Lampiao cortada na versao # 1. Outra relacg&o entre esses dois roteiros é a presenga dos nomes manuscritos "Katarana" ou 14 APML "Coria, Cora...", em lugar de Satanas (versio # 1 - pagina 8), que demonstra ou que o nome Coirana ha algum tempo vinha sendo buscado por Glauber, ou que, ao fazer o segundo roteiro, ele voltou a burilar o primeiro!® O parentesco entre esses dois roteiros vai além. Ambos sao os mais proximos dos hinos Pedra Bonita e Cangaceiros, de José Lins do Rego. A influéncia deste autor sobre Deus e 0 Diabo nao se perde, ou seja, chega até o filme (como bem apontou Raquel Gerber!!), mas este traco é mais marcante nas duas versées iniciais. Notem-se a presenga, como caracteristicas fundantes, do Beato como executor de rituais primitivos, como o de protegfo e o de purificagaéo pelo sangue, da dimensao dada ao cangaceiro, inspirado em Aparicio ("a ira de Deus"!? ), que é figura de destaque dos romances e a relagdo estabelecida entre o Beato e o Chefe-cangaceiro, idéntica no livro e nos roteiros!3. Sobre a verséo # 3 fala seu autor: "(...) o filme nasceu de uma série de reportagens que andei fazendo por volta de 1959 - 1960, algumas publicadas (outras nao) num jornal de Salvador (...). Nesta época os rascunhos de Deus e 0 Diabo chamavam-se A Ira de Deus e tratavam apenas de Corisco, o herdeiro das ruinas de Lampiaio. Apos a crise de Barravento', filme que recuso quase totalmente, fiz novas andangas por Monte Santo e Canudos e escrevi um outro roteiro que se chama O Filho da Terra, e que tratava do nascimento, paixdo e morte de um mistico. (...)"!5. No arquivo Glauber Rocha foram encontradas algumas reportagens sobre cangago e pietismo Manuscritica Is publicadas por ele em 21/22 de fevereiro de 60'%, e que provavelmente sao algumas daquelas por ele mencionadas. Parece-nos que, gragas a estas andangas por Monte Santo e Canudos, e também ao conhecimento de Os Sertées, Glauber ampliou o perfil do Beato, tornando-o fisica e espiritualmente mais proximo do Conselheiro. Ainda, motivos outros a parte, 0 eontato com a realidade do Conselheiro, e também do beato Pedro Batista de Santa Brigida (apontado em uma das reportagens citadas), devem ter feito Glauber dilatar a importancia por ele atribuida ao pietismo, ao ponto de fazé-lo centrar a historia na personagem do Beato Afirma Glauber Rocha: “O primeiro roteiro que escrevi com 0 titulo de Deus e o Diabo na Terra do Sol nao tinha duas partes; era uma estoria s0: os cangaceiros também iam para Monte Santo e seguiam os beatos. Mas, ai, negécio se enrolava demais, ficava muito complicado, e eu o simplifiquei e dividi para que ficasse mais objetivo" .!7 Parece-nos, ent&o, que a v. # 3, acima titulada a primeira versio de Deus e o Diabo na Terra do Sol, é a mesma verséo em outro momento chamada de O Filho da Terra. Ainda, é apés o conhecimento de José Rufino, o verdadeiro matador de Corisco, por Glauber Rocha - acontecido também nas andangas de 60 - que nasce a personagem de Antonio das Mortes, nitidamente inspirado na figura desse matador. E, nesta verséo, vai ganhar forga a questéo agraria. E sempre retomada a promessa do Beato de 16 APML terra com fartura e justiga a todos os seus seguidores e estes vdo em busca da Ilha - que seria esse paraiso Também merece destaque o enriquecimento da escritura glauberiana nesta verséo, em termos técnicos, fato que atribuimos a realizagdo de Barravento, ou seja, a sua maior vivéncia com a realizagao cinematografica. Continuando, diz Glauber, possivelmente sobre as versoes # 4 e # 5, roteiros nos quais é notavel mais uma mudanga qualitativa com relagao aos anteriores. "(...) Uma viagem na Europa em 1962, nova visio do Brasil, origem polémica do "cinema-novo", revisdo do cinema destruiram os argumentos passados, mas da dissolugao nasceu Deus e o Diabo na Terra do Sol, espectro que conseguiu forma em 1963, reescrito trés vezes com paciéncia da qual me julgava incapaz"!® Ha, a salientar, a melhor distribuigao do espago no enredo entre o Beato e 0 cangaceiro e a definigao do vaqueiro e de sua mulher como os condutores da trama, que constituem modificagées substanciais. Ja bastante trabalhados os personagens, 0 som, 0 enredo, Glauber agora parece ter tempo para a montagem (muitissimo interessante e bem elaborada neste momento) e os detalhes como as indicagdes de locais para locagdes (como o Monte Santo) e as pegas de vestuario e aderegos cénicos. Estamos proximos da reta final, do momento da filmagem, da concretizagao das imagens. Surgem novas formas de enfatizacgao da quest&o agraria. Influéncia ainda dos romances de Zé Lins (os do ciclo da cana) e de Jorge Amado (do ciclo do cacau), e do poeta Florisvaldo Matos com seu poema Manuscritica 17 Reverdor, como apontam o proprio Glauber e Raquel Gerber 197 Como dissemos anteriormente, as duas versédes apresentam um terceiro episddio, que, felizmente, foram cortados na versao final, pois representavam uma exacerbagdo redundante e desnecessaria, posto que empobrecedora da dramaticidade final. Os encerramentos diferem um do outro: na v. # 4, Manuel e Rosa, condutores da ago, aparecem transformados em bdias-frias. Glauber destaca a exploragéo e manipulagéo destes pelos lideres politicos locais (que sao os donos das terras),; na verséo # 5, a terceira parte, escrita por Paulo Gil Soares, mostra a organizagao de uma revolta de camponeses contra o latifindio. Manuel e Rosa aparecem como pano de fundo, caracterizando um periodo miseravel e sem saida. Além do apontado, na verséo # 5 parece ter havido essencialmente, com relagio a # 4, uma melhor, mais longa e trabalhada planificagao. Estabelecida a ordenac&o, procuramos analisar os roteiros de forma mais detalhada. Ou seja, apds estabelecermos uma '"sintese operacional" dos mesmos e uma listagem das semelhangas e diferengas entre eles encontradas, buscamos em cada roteiro examinar os seguintes topicos, comparando cada versdo com as suas antecessoras: a) Narrativa. b) Personagens. c) Paradigmatica. 18 APML d) Som. e) Escritura glauberiana. A fim de exemplificar 0 tipo de analise feita nesses varios momentos e mostrar como essa analise proporcionou vislumbrar 0 processo de construgao glauberiano, citaremos resumidamente a interpretagdo dada 4 personagem do vaqueiro que, a partir da versao #3, se chama Manuel. A Trajetoria do vaqueiro O vaqueiro é humano, terreno, nao é um herdi, desde a verséo # 1. Sua historia é marcada por uma narrativa linear, que corre paralelamente a de Corisco, construida aos saltos, por "flashes" aparentemente auténomos. Apenas em dois momentos as duas se entrecruzam: é quando o vaqueiro passa a integrar o bando de Corisco ‘Vejamos um pequeno resumo da sua histdéria: 0 vaqueiro vive em paz na sua fazenda. Essa tranqiiilidade é rompida pelo assassinato de seu pai pelos soldados. Resolve partir (mistico que era, abengoado pela mae) e torna-se cangaceiro, a fim de poder vingar o pai. Mata o tenente responsavel por aquele homicidio e, por respeitar a opinido paterna que condenava o cangaco, torna-se beato. Apés as mortes de seu filho e do lider-Beato provocadas, como anteriormente, por uma forga volante, volta a ser cangaceiro para vinga-los. Apesar de afirmar querer continuar como cangaceiro, sente melancolia Manuscritica 19 ao se lembrar de sua vida passada. Pressente a morte e é realmente morto em seguida por uma volante. Nas duas vezes que recorre ao cangago 0 vaqueiro tem como acionadoras de seu édio as mortes de seu pai, e depois de seu filho e do Beato. Temos, em ambos os casos, motivagées particulares para o desejo de vinganga e que geraram critérios de justiga arbitrarios: ele passou a extravasar 0 seu 6dio contra qualquer individuo indiscriminadamente, matando inocentes e deflorando jovens a seu _bel-prazer. Podemos caracteriza-lo, entéo, por uma impetuosidade desbragada, que é acompanhada por um misticismo que foi sempre parte do seu ser, ou, melhor dizendo, uma vocagado que nao pode ser exercitada, dado o insucesso do grupo do Beato. Na versio # 2 todos, inclusive 0 cangaceiro-chefe Coirana, sao humanos, donos de grandeza e de desacertos, e animados por motivos concretos, terrenos, para a luta contra a opressfo e a miséria. Ao lado disto, o mais ressaltado, neste roteiro, é a cadeia ciclica 4 qual 0 vaqueiro se integra. Aqui, aponta-se que o velho vai cedendo lugar ao novo, ao cheio de energia, na ordem ciclica. Sao contrapostas a velhice, o cansaco, a sensatez, a honradez e a cautela dos mais velhos a energia, valentia, nao-criteriosidade e temeridade tipica dos jovens. A leseira do Capito Jesuino Brilhante e, mais tarde, a de Coirana, opdem-se a garra e o destemor do Coirana jovem e de Satanas (codinome do vaqueiro). Sua historia e caracteristicas pessoais sao relatadas e sdo bastante semelhantes 4 da versdo # 1, mas 0 acento delas recai na quest&o de sua integracao 20 APML e coeréncia no ciclo do cangago. O vaqueiro, intempestivo, vai sendo preparado para ser o sucessor justo e honrado de Coirana, assim como. ocorreu com este ultimo. Acompanhamos a vivéncia do vaqueiro no bando e fora dele (com os beatos). Suas qualidades como a coragem e a gatra na luta vao sendo premiadas, assim como suas fraquezas, tais como seu individualismo, temeridade e impulsividade, recebem repreensdes e geram conflitos. Ao final, apés a morte do chefe, ao assumir o comando do bando, ele esta preparado: adquiriu consciéncia de que é preciso continuar a luta, a guerra, enquanto as bases da sociedade nordestina permanecerem inalteradas (seca; latifandio; desmandos, arbitrariedade e opressaéo por parte dos poderosos), e aprendeu a ser lider, resumindo, internalizou a lucidez. Depois dele, ainda, avisa a cang4o, virao outros, como Corisco e Lampiao. Se temos apresentada, no caso dos cangaceiros, uma cadeia ciclica, de direito infinita, temos personagens (e assim, 0 vaqueiro) saltando da esfera do particular, do individual, para a esfera abstrata do universal como tipos. Vistos numa_ escala microscépica sao individuos, simultaneamente, a distancia, em cadeia, geram um conceito, 0 que representa uma diferenga com relagdo a versdo # 1 onde o vaqueiro representava o individual, e Corisco o lendario. Se nas versdes # 1 e # 2 o pietismo é tratado como uma alternativa fraca para aquela sociedade, na versao #3 ocorrera 0 oposto. Manuscritica 21 O Beato e o pietismo tornam-se o centro da trama, de narrativa unica, e agora o vaqueiro passa a ser preparado para ser o sucessor do Beato na lideranga espiritual do grupo. Manuel continua humano, marcado por dividas e conflitos, como as ocorridas entre a vida asceta e a marital e entre as praticas da vivéncia espiritual e da luta armada, como formas de sobrevivéncia naquela realidade. Vejamos isso um pouco melhor. O vaqueiro mudou e cresceu enquanto personagem nesta versdo. Pela mudanga do motivo que o leva a partir - assassinatos da sua primeira mulher e do patrao, em vez do assassinato do seu pai pela volante - ele ja se torna diferente e mais instigante. E um individuo justo, honesto, que nao aceita a opresséo, o abuso, a semelhanga das versdes anteriores, porém, o fato de ele ter matado o patrao ea exposic¢ao das razées que o levaram a tal atitude, colocam em pauta a complicada _ relagao empregador-empregado na zona rural, em vez de apontar o conflito fazendeiro / volantes como antes. O primeiro acontecimento mostra alguns dos graves problemas que tem a enfrentar a classe trabalhadora no campo e o outro coloca a questao a nivel dos proprietarios, parte da classe dominadora. Acreditamos ter sido a diferenga inicial fundamental para a definigao de Manuel. E esse cidadéo pobre e explorado, que nem ao menos recebera apoio e respeito de sua mulher, que parte em busca de uma solugao. 22 APML Ao encontrar o Santo vé nele a encarnagao de suas esperancas: ele fala na Ilha, num mundo justo e de fartura. Crente de que a coragem (que ele possui) e a peniténcia fisica (a que ele ja estava acostumado) o levarao a esse mundo melhor, entrega-se ao Beato de corpo e alma. E a chance de realizar sua vocagdo religiosa e penitente, parte de sua natureza desde a versio # 1, mas que supde levar uma vida asceta, o que vai gerar o primeiro conflito de Manuel, casado pela segunda vez e feliz. Outra fonte de tens&o advira de sua convivéncia com os cangaceiros. Manuel, dono de uma fé imensuravel na orientagéo do Santo (que sd o sofrimento e a coragem levarao a Ilha), que acabara de presenciar 0 que para ele havia sido um "milagre" da transformagao de pedra em agua e comida, se vé de repente frente a uma mudanga radical no discurso do Beato, que passa a aceitar a realizagdo do saque de um vilarejo pelos cangaceiros. Ao mesmo tempo em que fica chocado com a tolerancia do Beato, ele é obrigado a ter consciéncia da real necessidade de providéncia de alimentos, e de que os "milagres" talvez no ocorram todos os dias (do que o Beato deve ter conhecimento, por estar aceitando a solucdo de Coirana). Provavelmente, entdo, a partir de suas experiéncias passadas e do contato proximo com Coirana e os outros cangaceiros (pobres e oprimidos que também haviam optado por lutar contra os opressores (saqueando e matando-os) e enfrentar o revide destes), com o Beato (com quem ele aprende o Manuscritica 23 que é a abnegacdo, a determinagdo e o respeito, mas que Ihe mostra que apenas os bons principios nao conseguem resolver os problemas _ concretos, imediatos, como comida, agua, casa, emprego, etc.) e com Bento (oprimido por ser pobre e negro), é que se vai formando nele uma consciéncia do conceito de justica e das formas pelas quais ela é utilizada naquele mundo: quem determina e manipula a justiga, quem é o submetido a ela; quem domina, quem é dominado. O fato de Manuel ter se unido a personagens com vivéncias tao diversificadas mas igualmente vitimas do sistema, deve ter feito com que os contrastes e semelhangas entre eles existentes brotassem. Nas vers6es anteriores, o vaqueiro se depara com os mesmos problemas: a volante, 0 cangago, o pietismo e novamente o cangago, porém, desta forma, em linha reta, em sucessdo e nao em conjunto (0 que agudizou as diferengas e gerou inc6modo devido as igualdades que também apareceram). Esta tensao, em nosso entender, sera uma das desencadeadoras da tomada de consciéncia dessa personagem no final da trama deste ultimo roteiro, que o fara optar pelo caminho do cangago de Lampiao - talvez carregando ainda parte de sua religiosidade - como dono consciente de seu destino. Se o caminho escolhido por Manuel ao final vai funcionar, é a solugdo, 0 roteiro nao diz. O importante é o individuo ter compreendido o funcionamento daquela sociedade e estar buscando uma via para altera-la. Pela primeira vez nos roteiros é dado um salto qualitativo por um individuo que escolhe mudar de 24 APML condigaéo por vé-la como um instrumento da modificagdo e transformagéo do mundo. Tudo indica que o cangaco agora é uma forma de luta, tendo por finalidade construir um novo mundo, e n4éo mais uma forma de ajuste de contas pessoal, como acontecia com Corisco na versio # 1, Coirana e Satands na versdo # 2 e Coirana na versdo # 3. A versio # 3 trabalha bastante também a vida particular de Manuel: apresenta sua mae e irm&o e 0 seu relacionamento com suas duas esposas: Rosa e Nice. Este lado ja era tratado nas versdes anteriores, mas aqui parece-nos dilatado. A verséo # 4 € fundamentalmente marcada pela colocagéo de Manuel e de sua mulher Rosa como condutores da agdo. Em sintese, a histéria deles: Manuel, vaqueiro, casado com Rosa, ao ser roubado pelo fazendeiro seu patrao na partilha dos novilhos, revolta-se contra a exploracéo sofrida e mata-o. Parte com sua mulher em busca da protegao de Beato Sebastiao, cujas idéias o haviam entusiasmado Adere ao pietismo, afasta-se de Rosa que termina por matar o Beato, por desespero e descrenga, antes do ataque de Antdnio das Mortes ao acampamento, ao qual sobrevivem Apos um periodo de peregrinagao pelas feiras na companhia de um cego cantador, juntam-se ao cangaceiro Corisco. Rosa aceita as praticas do cangaco; Manuel, apesar de executa-las, nado esta convicto de sua jJusteza. Manuscritica 25 Anténio das Mortes reaparece para realizar seu juramento de matar Corisco. Cinco anos depois da morte do cangaceiro, Manuel e Rosa sao vistos num entreposto rodoviario como pedintes. Tornam-se béias-frias, explorados pelos capangas do proprietario das terras. Mais uma vez escaparam de morrer quando os outros empregados s&o assassinados, a mando do Coronel e patrao, no término da colheita. Manuel, desesperado, clama aos céus 0 envio de um justiceiro para por fim aquela desgraca. E pela aco deciséria de Manuel que a situacdo inicialmente se modifica, Nao se trata mais de sofrer a acao da volante. Mas, é o impulso guiando-o, a raiva pela opressdo sofrida movendo-o, como nas versdes # 1,#2e#3. Manuel, ent&o, opta por se tornar um beato para, depois, ser levado ao cangago. Os dois ele experimentara, porém, desde 0 momento em que se torna completamente crente, pelo trabalho de ensinamento e subjugacao do lider pietista, até o choque final (do massacre dos trabalhadores rurais ) ele permanecera inalterado, alienado no misticismo, sem tentar modificagdes. Aqui, a tendéncia a religiosidade de Manuel é expandida as suas ultimas conseqiiéncias. A sua imutabilidade, desde o seu ingresso no pietismo, faz dele um tipo, para além de um individuo personalizado. E que “tipo" é esse? Manuel nao é herdi, é um tipo mistico e alienado, em consonancia com seus papéis nas versdes anteriores. Rosa, sempre 26 APML contrapondo-se a Manuel, age, constituindo, intervindo no enredo - é 0 tipo pratico. E isto eles conseguem sem perder suas caracteristicas pessoais; sua histéria enquanto individuos é diferenciada, individualizada. O tipo utépico de Manuel faz com que ele se entregue, por um ritual de uniao, ao Beato e a Corisco. Enquanto ele participa deste como que outro mundo - onde imperam ora a religiosidade, ora a luta armada - Rosa fica na realidade do cotidiano. O jogo entre o pessoal e o universal, buscado por Glauber desde a versio # 1, parece-nos aqui bem solucionado, rico e complexo, através da unidade / diversidade de Manuel e Rosa. Temos, aqui, ent&o, dois seres humanos, um mais realista, outro mais utdpico, como faces complementares de uma mesma moeda; uma camponesa e um vaqueiro, dois seres do campo, com suas duvidas, crenga e impulsos, conduzindo a ago, e é essa sua natureza humana que faz com que nos identifiquemos com eles e sejamos cooptados a participar do projeto em evolugao Por intermédio deles, com eles, nds somos levados a perceber a estrutura imutavel e desumana da sociedade nordestina. Eles se desesperam, como no final da trama, néo se desalienam. Rosa conduz ao questionamento do pietismo, assim como as atitudes de Satanas (Manuel no cangago), nos fazem questionar essa outra pratica. Ao final da trama, estao mais pobres e alienados do que inicialmente. Manuel clama por um vingador divino, deixando ver as marcas do pietismo ainda nele Manuscritica 27 presentes. Ele nao alcanga consciéncia. da sua realidade, como sucedia na versao # 3. Na versio # 5, de novidade, Manuel teve acrescida 4 sua personalizacao a rudimentariedade, expressa na sua relagéo amorosa com Rosa e nos precarios e arcaicos métodos de trabalho por ele exercidos. Aparte isto, nas versdes # 4 e # 5 ele tem basicamente a mesma representacao. Apenas teve, na # 5, seu perfil radicalizado: sua dissintonia com a luta cangaceira é mais evidenciada e o faz querer matar Corisco, assim como sua participagéo em prol do pietismo (no episddio correspondente) é intensificada. Esta radicalizagaéo manteve o carater de tipo universal, tido por Manuel na versdo # 4, lado a lado com o carater individual, pessoal da personagem, e Glauber ainda conseguiu, gragas a este recurso, simplificar ainda mais a transmissdo da sua idéia. Também, o novo trecho final continua mostrando um Manuel Miseravel e alienado, como na versio # 4, somente que, agora, com pouco destaque para esta personagem menos esperan¢osa que anteriormente. Esta é, entaéo, uma pequena mostra de como pode ser operada a analise destes diferentes roteiros, em seus diferentes niveis. Notas e Referéncias Bibliograficas 1. Génese de Deus e 0 Diabo na Terra do Sol, SP, PUC, 92. Roteiros de Glauber Rocha e Analise dos textos. 28 APML 2. Estes foram excluidos de nosso estudo inicial por terem sido publicados em periodo posterior a filmagem, tendo dela recebido interferéncia. Eles serdo bastante utilizados na segunda fase de nosso projeto — que compreende a filmagem ¢ a montagem desta obra — em desenvolvimento neste momento, como tese de doutorado. 3. Nao nos deteremos nas fontes de Glauber Rocha por nao serem estas nosso objeto de estudo aqui. 4. Estes desenhos, vistos no segundo semestre de 1983, nao mais se encontram no arquivo Glauber Rocha. 5. Enquanto realizavamos nossa pesquisa, este roteiro foi publicado na edig&o Roteiros do Terceyro Mundo, organizada por Orlando Senna (Rio, Embra / Alhambra, 85), por sinal com varios enganos, com relag&o ao tratamento a ser dado a um manuscrito, e empobrecimento da escritura, que serao em outro ensaio por nés comentados. 6. Os desenhos, por estarem relacionados com as filma- gens, niio foram abordados por nds na primeira fase de trabalho 7. Faz parte também do volume Roteiros do Terceyro Mundo um roteiro simplificado, extraido do filme. Por este motivo, nao foi objeto de nossa anilise. 8. Debate patrocinado pela Federagdo dos Clubes de Cine- ma do Brasil ¢ pelo Grupo de Estudos Cinematograficos da Unio Metropolitana de Estudantes (UME), realizado no dia 24 de marco de 64 no Rio. Esta publicado em Rocha, G., Deus e 0 Diabo na Terra do Sol, paginas 115 a 150. Neste caso, ver pagina 126. 9. Consultar paginas 104 a 126. 10. Atentar para o parentesco scnoro - semintico existente entre "Katarana / Coirana" (do Tupi "Kiirana": semelhante a Manuscritica 29 pimenta, segundo Aurélio B. Holanda), e “Tatarana" (do tupi “Tata’rana": semelhante a fogo; lagarta de fogo; taturana, ainda segundo Aurélio B. Holanda), que é codinome de Riobaldo, heréi de Grande Sertao: Veredas de Guimaraes Rosa. Glauber acaba optando por "Satanas" (inclusive na versio final), nome que guarda semelhanga sem4ntica com "Tatarana", e utiliza “Coirana" na versio # 2 e, posteriormente, em O Dragao da Maldade. LL. Gerber, Raquel. O Mito da Civilizagdo Atlantica, Rio, Paze Terra, 82, paginas 49 a 55. 12. Eis aqui quatro trechos do romance que nos parecem ter inspirado 0 titulo A Ira de Deus dado as verses # 1 e #2. De Cangaceiros (Rego, J. L. Ficgdo Completa, Rio, Nova Aguilar, 76, Vol. II, paginas 899 a 1160): * (© cangaceiro) “Aparicio vinha das iras do povo do pai, do av6 que matava inocentes, das raivas de Deus e de seus santos. (...) Outra vez Aparicio dentro de casa, o castigo de Deus". (Pagina 935) © (mie de Aparicio falando): "(...) eu pari um castigo de Deus". (Pagina 941). * “Os brutos (cangaceiros) saciavam as suas cames imundas e se iam, sem que nada deixassem de tao miseravel como aquilo que ela levava nas entranhas, a desgraga de ter parido um castigo de Deus. Ela concebera ¢ parira um monstro de Deus". (Pagina 942). © (mie e Aparicio falando de sua familia): "Raga de cobra, raga de gente Caipora, perseguida pelas iras de Deus". (Pagina 1123). 13. Ver, a propésito, a resenha destes romances feita por Glauber Rocha, republicada no livro de R. Gerber, ob. cit., as paginas 199 a 201. 30 APML 14. Inicio de 1960. 15. Revista Claudia, agosto de 64. 16. Diario de Noticias, Salvador. 17. Deus e 0 Diabo na Terra do Sol - ob. cit., pagina 126. 18. Na revista Claudia, de agosto de 64 (grifo nosso). Glauber esteve na Europa em junho /julho/ agosto de 62. Ele telegrafa contando que Barravento ganhara o prémio de melhor diregdo em Karlov-Vary ¢ a noticia é publicada no Didrio de Noticias, de Salvador, de 28 de junho de 62. Ainda, 0 mesmo jornal noticia a volta de Glauber ao Rio de Janeiro em 19/20 de agosto de 62 (terceiro caderno, pagina 3). 19. Gerber, R., ob. cit., paginas 49 a 55. Rocha, G. Revolugao do Cinema Novo. Rio, Embra/Alhambra, 81, paginas 280 e 450/451

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