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O pensamento de Nietzsche

Nietzsche em 1870
Em defesa da Cultura

Friedrich Nietzsche estava se recuperando em Basiléia, na Suíça, de uma doença que o


atacara na Guerra Franco-Prussiana de 1870 (ao prestar serviço de assistência aos
feridos do exército alemão), quando chegou-lhe uma terrível notícia. Em março de 1871
a população de Paris havia se rebelado contra o governo derrotado. Pior, os operários
estavam pondo fogo nos grandes prédios públicos e depredando as obras de arte
espalhadas pela capital francesa, entre elas a bela Coluna de Vendôme. Era a Comuna de
Paris que havia sido proclamada no dia 18 de março de 1871, que se tornaria um dos
mais violentos levantes populares da Europa do século XIX.

Foi um choque para ele. Ainda estonteado pelas informações que recebera, refugiou-se
na casa do historiador da cultura Jacob Burckhardt (1818-1897), o célebre helenista e
historiador da cultura, pesquisador da Itália renascentista, que igualmente estava
desconsolado. Acreditaram os dois amigos que toda a arte ocidental estava ameaçada.
Séculos de beleza estavam em vias de ser totalmente devastados pelo vandalismo das
massas parisienses revoltadas.

Os episódios da Comuna de Paris foram fundamentais para o acirramento das posições


políticas de Nietzsche. Onde Karl Marx viu um momento de bravura popular, Nietzsche
identificou o surgimento de uma nova barbárie que era preciso deter a qualquer custo. A
Comuna será, pois, o ponto de partida para uma série de escritos que ele desenvolveu ao
longo dos próximos vinte anos seguintes e que o colocaria ao lado dos antidemocratas,
dos anti-socialistas, e contra todo e qualquer tipo de pregação que visasse a igualdade,
tornando-o um apologista da distinção.

Nietzsche como Anticristo

O ataque direto que Nietzsche desencadeou contra o cristianismo radicalizou-se com o seu
"O Anticristo" (Der Antichrist), mas foi inicialmente exposto na A genealogia da moral (Zur
Genealogie der Moral), de 1887. Argumentou que a ética cristã era uma moral de escravos,
de gente fraca e vil que havia, através do cristianismo, desvirilizado o espírito senhorial e
dominante dos aristocratas. A origem desse processo, segundo Nietzsche, remontava à aos
tempos da Palestina ocupada pela raça romana, raça de senhores. Os judeus, impotentes em
poder livra-se deles, terminaram por aperfeiçoar a psicologia do ressentimento provocando
uma inversão dos valores. Tudo aquilo que era "débil", "humilde", "medíocre", eles
apresentaram como "bom", enquanto palavras tais como "nobreza', "honra", "valor", foram
vistas como "mal". O resultado desse trabalho de sapador, feito por séculos de pregação
cristã, foi o enfraquecimento das energias vivificantes da sociedade ocidental, especialmente
das suas elites, na medida em que o "doentio moralismo ensinou o homem a envergonhar-se
de todos os seus instintos".

A rebelião dos escravos

A rebelião dos escravos na moral se deu devido a sua impotência para destruir com a
escravidão (ou o seu avalista, o poder romano). A nova religião - o cristianismo -
tornou-se o instrumento deles para canalizar o seu ódio impotente, um "ódio que tinha a
contentar-se com uma vingança imaginária". O produto desse ressentimento foi fazer
com que os escravos, a "raça inferior e baixa", tornassem tudo aquilo que fosse digno e
nobre em algo pecaminoso. Transformaram a prostração e a pobreza em virtude, e a
abjeta covardia de dar o outro lado da face em caso de agressão, num ato sublime de
perdão.

Via, portanto, o cristianismo como uma doença maligna que havia atacado o Império
Romano, contribuindo para que ele sucumbisse vitimado por uma espécie de "febre das
catacumbas". E, pior, "a mentalidade aristocrática foi minada até o mais profundo de si
própria pela mentira da igualdade das almas; e se a crença na prerrogativa da maioria
faz e fará revolução - é ao cristianismo que devemos sua difusão. São os juízos de
valores cristãos que qualquer revolução vem transformar em sangue e crime. O
cristianismo é uma insurreição do que rasteja contra o que tem elevação: O Evangelho
dos pequenos tornado baixo".

Cristianismo, religião dos fracos (tela de Mantegna)


A volta às energias aristocráticas

Portanto, os nossos conceitos de bem e de mal eram estratagemas dos derrotados, que
fizeram a façanha de substituir os valores superiores da nobreza. Dessa forma retiraram
dela, enternecendo-a com rogos de piedade, a seiva necessária para aplicar uma política de
mão firme para conter esse moderno movimento neobárbaro, cuja carantonha havia
emergido na Comuna de Paris de 1871. O socialismo não passava de um "cristianismo
degenerado [...] o anarquista e o cristão vêm da mesma cepa [...]". Era preciso, pois,
primeiro, expurgar de si esta moral de gente covarde. Retornar às fontes de energia
aristocráticas, aplicar uma política da impiedade, onde somente o mais nobre e o mais viril
fosse tomado em consideração.

"Deus está morto!" Foi sua mais célebre proclamação. Como conseqüência, os homens
deveriam buscar valores que transcendessem a moral convencional divulgada pelo
cristianismo; um retorno "à ordem de castas, à ordem hierárquica [...] para a conservação
da sociedade, para que sejam possíveis tipos mais elevados, tipos superiores - a
desigualdade dos direitos é a condição necessária para que haja direitos". Concluiu dizendo:
"Quais são aqueles que mais odeio no meio da canalha dos nossos dias? A canalha socialista,
os apóstolos [...] mirando o instinto, o prazer, o contentamento do trabalhador no seu
pequeno mundo - que o tornam invejoso, que lhe ensinam a vingança [...] a injustiça nunca
reside na desigualdade dos direitos, ela está na reivindicação de direitos iguais".
Nietzsche e a História

Nietzsche rompeu também com a relação entre a Filosofia e a História que havia sido
estabelecida por Hegel, entendida esta última como uma crônica da racionalidade.
Considerava que "o excesso de história" parecia "hostil e perigoso à vida", limitador da ação
humana, inibindo-a. Devia-se ousar, avançar perigosamente para o ilimitado, porque a
racionalização histórica levava o homem a "perder-se ou destruir seu instinto fazendo com
que ele não ouse soltar o freio do 'animal divino' quando a sua inteligência vacila e o seu
caminho passa por desertos. O indivíduo torna-se então timorato e hesitante e perde a
confiança em si..." terminando por fazer com que "a extirpação dos instintos pela história
transforma os homens em outras tantas sombras e abstrações."
Instinto contra a Razão

Nietzsche recolocou claramente o confronto outrora posto pelos românticos quando opunham
os instintos - geralmente entendidos como uma manifestação da pureza e autenticidade
humana - à razão, símbolo do utilitarismo cinzento e materialista.

Opunha-se, como conseqüência, à idéia de que os acontecimentos históricos ensinavam os


homens a não repeti-los, defendendo a teoria do eterno retorno, de remota inspiração na
filosofia pitagórica e na física estóica, que compreendia a aceitação de periódicas destruições
do mundo pelo fogo e seu ressurgimento. Desta forma, não só tudo poderia acontecer
novamente como tudo poderia ser tentado outra vez.
Em busca do super-homem

A idéia da necessidade da formação de uma nova elite - não contaminada pelo


cristianismo e pelo liberalismo - e que ao mesmo tempo os transcendesse, acometeu
Nietzsche desde muito cedo. Pode-se dizer que já pensava assim nos seus tempo do
internato em Pforta. Já naquele tempo mostrou-se obcecado pela formação de uma
seleta falange intelectual responsável pela transmutação de todos os valores, cuja
obrigação e dever maior era a proteção de uma cultura superior ameaçada pela
vulgaridade democrática.

Desde jovem fascinou-se pela elite


O pensamento de Nietzsche
O culto ao gênio
A teoria do surgimento futuro de um novo indivíduo que conjugasse o abandono dos valores
do bem e do mal com um ateísmo engajado, foi, de certa forma, a evolução decorrente do
culto ao gênio professado pelos primeiros românticos. A teoria do gênio vai ser retomada por
Arthur Schopenhauer que irá expô-la num apêndice acrescentado ao seu O mundo como
vontade e representação, na reedição de 1844, onde, num certo momento associa o homem
genial à dimensão do Monte Blanc, que, do cimo das suas neves elevadas, contempla
olimpicamente o resto da humanidade, mantendo-se fiel apenas " ao fim objetivo" ... "uma
meta a ser atingida, mesmo que seja um equívoco, mesmo que seja um crime".

Thomas Carlyle, um reconhecido admirador do romantismo alemão, também se abeberou da


idéia do gênio, adotando-a na sua concepção da história como sendo o palco exclusivo da
ação do herói, do grande homem, que num só gesto ou ato altera o destino de milhões. Ela -
a história - não passaria, pois, de um grande gesto heróico, onde a personalidade magnífica
domina inteiramente o cenário da sua época. E, é claro, a figura do super-homem já estava
esboçada anteriormente em Novalis, Heine e Goethe e, mais remotamente ainda, num dos
diálogos de Platão.
A influência de Dostoievski

Dostoievski previu a revolução


niilista

Uma das influencias mais significativas que Nietzsche recebeu foi-lhe inspirada pela leitura
de Fédor Dostoievski (1821-1881). O escritor russo foi o primeiro, sob o enfoque cristão, a
detectar o perigo da emergência do homem - idéia, ou do homem-deus enaltecido pelos
românticos, desde os tempos de Fichte. A moderna sociedade liberal e progressista ao atacar
os valores religiosos , sem se dar conta do perigo, abria uma brecha nos valores
estabelecidos por onde aflorava o terrível homem-idéia, o indivíduo ateu e materialista que
devotava sua vida a favor de uma causa, normalmente de inspiração niilista. Ele era um
perigoso abnegado e um obcecado que rompia com os valores da sociedade, criando um
universo ético próprio, só dele, totalmente afastado do cristianismo.

Nos romances de Dostoievski ele, este indivíduo perigoso, aparecerá no personagem do


jovem estudante Raskolhnikov, em Crime e castigo; na do intelectual Ivan Karamazov de Os
irmãos Karamozovi; e no príncipe Stavroguin no romance Os demônios. Todos eles são
descritos como esses homens-idéia gerados pela modernidade que Dostoievski abominava e
a quem ele reservou, em todos as novelas citadas, um final infeliz, na medida em que os
considerava uns "perdidos de Deus".

Pois foi justamente este homem-idéia, esse ateu de novo tipo, que Dostoievski via com
angústia e apreensão, que se tornou o arquétipo do novo homem moderno, é que foi o herói
de Nietzsche. Ele, e somente ele, teria a coragem de doravante assumir a realidade de um
mundo onde Deus estava morto. Mas isso estava longe de significar uma vida sem sentido
como muitos moralistas e homens de fé acreditavam. Bem ao contrário! O terrível dito de
advertência de Dostoievski de que "se Deus esta morto, tudo é permitido", que o russo
entendia como uma chamamento à licença, à desordem e ao crime, Nietzsche entendeu
como uma liberação. A possibilidade do indivíduo construir o seu destino não mais tolhido
por qualquer regra, por qualquer impedimento, dilatava os horizontes para extensões
impensadas.
A liderança do super-homem

E era exatamente nisso que estava o significado inaudito dos tempos vindouros. Devia-se
aceitar na totalidade um mundo onde uma nova ordem deveria fatalmente imperar, na qual
as novas regras, acima do bem e do mal, seriam impostas por essa figura exponencial que
era o super-homem. (Übermensch), Este titã moderno, liberto de toda e qualquer ladainha
cristã-humanitária, desprezaria qualquer sentimento de arrependimento, varrendo de dentro
de si a fraqueza da piedade . Como Nietzsche deixou dito no "Humano, demasiado
humano"(Menschliches, Allzumenschliches): "Se o homem consegue adquirir a convicção
filosófica da necessidade absoluta de todas as ações e, ao mesmo tempo, da total
irresponsabilidade destas, se consegue converter essa convicção em carne e em sangue ,
então desaparecerá também este resto de remorso de consciência".
O manifesto de Zaratustra

A singularidade do pensamento ideológico e filosófico de Nietzsche é que foi


exposta por meio de um grande poema: Assim falou Zaratustra (Also spracht
Zarathustra), iniciado em 1883. Nele o filósofo-poeta se apresenta atrás da
roupagem do profeta iraniano Zaratustra ou Zoroastro (que viveu ao redor de
600 a.C. e que compôs o Zend-E-Avesta, dividido em cinco Gathas, ou
canções proféticas), anunciando a boa nova da chegada do super-homem
(após ter passar anos no alto de uma montanha, o profeta, exilado numa
caverna, para onde havia se retirado a fim de meditar, tinha como companhia
apenas uma águia e uma serpente).

Dali Zaratustra desce para vaticinar a vinda daquele que irá superar o
homem: o super-homem. "Que é o macaco para o homem?" - pergunta o
profeta àqueles a quem encontra na praça do mercado da cidade, e
responde: "Um motivo de riso e dolorosa vergonha. E é justamente isso que o
homem deverá ser para o super-homem: um motivo de riso ou de dolorosa
vergonha". E, mais adiante, diz ao povo que "o homem é uma corda O profeta iraniano
estendida entre o animal e o super-homem - uma corda sobre um abismo"... que inspirou
Nietzsche
o homem é ao mesmo tempo "uma transição e um ocaso". Uma nova era, de
superação de antigos tempos está para vir "... não existe Diabo, nem inferno", diz Zaratustra
"a tua alma estará morta ainda mais depressa do que o teu corpo; portanto não receies
nada!"
As metamorfoses do espírito

Os homens, segundo Zaratustra, teriam passado por três metamorfoses do espírito: foram
primeiramente camelos, por carregarem em si as culpas do mundo, o sentimento do pecado
ensinado pelos religiosos. Depois tornaram-se leões na medida em que se rebelaram contra
esse passado de fadigas e culpas ignominiosas, onde seus instintos puros eram condenados
como pecaminosos e, finalmente, assumiram a forma de crianças, na esperança de renascer
numa nova moralidade, distinta da anterior, livres dos preceitos estabelecidos pelo bem e
pelo mal.
O futuro é das águias

"Lembrem-se: Quanto mais alto planamos, menores vemos são as pessoas que não
conseguem voar". - Nietzsche

Mas esse devir radioso, liberto da moral passada, não é um lugar reservado a todos "[...]
Na árvore do futuro, construamos o nosso ninho; para nós os solitários, águias deverão
trazer alimento em seus bicos! E, como fortes ventos, queremos viver acima deles,
vizinhos das águias, vizinhos da neve, vizinhos do sol: assim vivem os ventos fortes. E
tal como o vento forte, quero algum dia, soprar no meio deles [da canalha] e, com o meu
espírito, tirar o respiro ao seu corpo: assim quer meu futuro". Zaratustra detesta "os
pregadores da igualdade" que, segundo ele, não passam de " tarântulas e bem ocultas
almas vingativas". Concluindo não querer "ser confundido com esse pregadores da
igualdade. Porque, a mim, assim falava a justiça: os homens não são iguais".
A morada do super-homem é nas alturas (cena dos Alpes)
O super-homem está no devir

O profeta não vê as características do super-homem entre os integrantes da antiga nobreza.


Eles também já foram contaminados pelo liberalismo ao fazerem concessões políticas ao
populacho (no caso, as primeiras leis sociais e de previdência aprovadas por Bismarck no IIº
Reich alemão). Portanto, o super-homem ainda está por nascer e será identificado por sua
integral e total devoção aos princípios exclusivista que defende, pelo seu caráter de aço!

Não se fará reconhecido por nenhum atributo genético, por nenhuma descendência
aristocrática, mas sim pela consciência e poder que irá naturalmente transbordar da sua
pétrea personalidade. A missão dele será partir "as velhas tábuas". Ele formará "uma nova
nobreza, que se oponha a toda a plebe e a toda a tirania e que escreverá novamente em
novas tábuas a palavra 'nobre".

Zaratustra esperançoso olha para a frente: "A minha águia está acordada e, como eu, presta
homenagem ao sol. Estende suas aduncas garras de águia para a nova luz. Sois os animais
certos para mim; eu vos amo. Mas faltam-me, ainda, os meus homens certos!"
Maquiavel e Nietzsche

Maquiavel, o teórico do amoralismo

Tal como Maquiavel encerrava O príncipe na expectativa de que surgisse na Itália dilacerada
do seu tempo uma figura magnífica, despida de preconceitos, que lançasse mão de
quaisquer recursos, mesmo que inescrupulosos, para unificar o país ameaçado pelos
bárbaros, Nietzsche-Zaratustra esperava o mesmo na emergência de um super-homem.

Só que os temores da época de Nietzsche eram outros. Os novos bárbaros que assustavam o
Ocidente que ele pretendia defender eram as idéias democráticas, o socialismo (que para ele
eram sinônimos) o feminismo, o mau gosto vulgar da nascente cultura de massas, que devia
ser exorcizado. Portanto, chegou mesmo a considerar - em nome da boa arte - a
necessidade da escravidão. Toda a beleza apolínea da arquitetura grega antiga e sua
imorredoura qualidade estética havia sido produto de uma sociedade escravista. O Pártenon
poderia dever muito à iniciativa de Péricles e ao gênio de Fídias, mas também à chibata do
feitor!

O programa do super-homem

O grande programa do super-homem, portanto, estava pronto. Tratava-se


de uma abrangente reforma que procurava dar um senso de propósito a
uma existência na terra abandonada pela deidade. Os interesses de poucos
deverão ter proeminência sobre todos os demais, a força do espírito
sobrepujará a fraqueza, a saúde do espírito sucederá qualquer tibiez, a
guerra dos espíritos substituirá a paz. Como conseqüência lógica disso, as
necessidades dos indivíduos excepcionais terão sempre precedência contra o
espírito nivelador estabelecido pela gravitação imposta pela mediocridade. O
César Borgia (1475-
mundo filisteu, dominado pela pasmaceira da vida rotineira deverá dar lugar 1507), o tirano
à audácia, à dança, e à destreza intelectual. A de viver-se perigosamente. exemplar
A revolta contra o tédio

A pregação de Zaratustra foi entendida por George Steiner como uma desconformidade,
entre tantas outras, com a vida tediosa da sociedade burguesa fin de siècle, onde o mundo
aventureiro e belicoso do aristocracia cedia espaço ao utilitarismo frio, prático e calculista, do
homem burguês ocidental. Uma época absolutamente banal na qual a sociedade científico-
positivista via-se crescentemente dominada pelo espírito liberal-igualitário, que impedia o
afloramento da individualidade singular, a emergência do grande homem, da personalidade
fora de série, que o profeta vinha pressagiar. Um estado de espírito que encontrou sua
melhor expressão no dito do poeta Théophile Gautier: "Prefiro a barbárie ao tédio!"

A vontade de poder

Se Schopenhauer, um pessimista assumido, desenvolveu a teoria de que a vida não tinha


nenhum sentido racional e que todos nós éramos apenas expressões da vontade, uma
vontade de viver instintiva, animal, cósmica, que estava entranhada na natureza e em
nós, Nietzsche irá atribuir à vontade uma outra dimensão. Influenciado pelas teses de
Charles Darwin (1809-1882), como a luta pela vida e a sobrevivência do mais apto, ele
considerou a vontade (Wille)como uma força positiva sobre o Homem, uma energia que
mobiliza-o, fazendo-o ultrapassar os obstáculos e vencer os desafios que se lhe
antepõem. Daí reduzir quase tudo na existência à luta pela vontade de poder (Wille zur
Macht).

A necessidade vital que o homem tem de sempre lançar-se compulsivamente sobre os


demais objetos da natureza e sobre o resto da sociedade visando o seu domínio, estaria
assentada na antiga premissa de que "cada um de nós deseja, no possível, ser o senhor
de todos os homens, e preferivelmente deus". Esta vontade de poder é vital e amoral,
independe de critérios éticos, é uma espécie de pulsão incontrolável que faz com que o
homem enfrente todas as vicissitudes para saciá-la (concepção que foi recentemente
reaproveitada por Michel Foucault na sua "microfísica poder", e com a visão de que a
sociedade é um conflito permanente entre poderes, que transcendem a simples luta
política partidária e ideológica, englobando as políticas clínicas, da saúde pública, dos
sanatórios e das prisões).
M.Foucault, influenciado por
Nietzsche

A política de domínio

Isto conduziu a que Nietzsche aceitasse e enaltecesse qualquer política de domínio,


acreditando-a inevitável. No Além do bem e do mal (Jenseits von Gut und Böse), concluída
em 1886, e que é de certa forma, a complementação final em prosa do Zaratustra, afirma
que "a vida mesma é essencialmente apropriação, ofensa, sujeição do estranho e mais fraco,
opressão, dureza, imposição de formas próprias, incorporação e, no mínimo e mais
comedido, exploração".

A vontade dos mais fortes

Evidentemente que esta manifestação de vontade de poder, em sua plenitude, só pode ser
exercida pelos mais fortes. Aos fracos cabe a obediência respeitosa ou aceitar o extermínio
silencioso. Esta figura vitoriosa, altaneira, que impõe sua vontade sobre tudo e todos, não
pode ser constrangida pela moral comum dos homens vulgares, dos preceitos seguidos pelas
maiorias, ou pelo imperativo categórico kantiano, que desejava tornar toda e qualquer ação
numa lei universal.

O mais forte faz suas próprias regras, estabelece para si qual é a melhor conduta e não
espera de forma nenhuma que os outros o sigam (é o "façam o que eu digo e não o que eu
faço" de Napoleão). Ele não deve estranhar se o consideram duro e insensível, quiçá até
desumano, pois estes são os atributos do super-homem, que trafega soberbo no seu Olimpo
particular e só tem gestos generosos para com os demais na medida em que isto o enaltece
ou satisfaz.

Despreza "o covarde, o medroso, o mesquinho o que pensa na estreita utilidade; assim como
o desconfiado, com seu olhar obstruído, o que rebaixa a si mesmo, a espécie canina de
homem, que se deixa maltratar, o adulador que mendiga, e sobretudo o mentiroso - é
crença básica de todos os aristocratas que o povo comum é mentiroso". Ao homem comum,
ao fraco em geral, só lhe resta a serventia de ser um degrau de apoio sobre o qual a figura
de escol deverá calcar em sua ascensão os cimos mais elevados de uma existência superior.
Uma contra-utopia

Nietzsche de certa forma esboçou, com sua prosa impressionista, o que poderíamos
considerar como uma contra-utopia ou uma utopia direitista. Na sociedade futura que
imaginou, a harmonia seria estabelecida apenas entre os que se consideravam iguais - a
nova nobreza formada pelos super-homens - que regeriam uma comunidade rigidamente
hierarquizada, despida da moral comum, dominada pela "besta loura" que exerceria sua
autoridade baseada numa impiedosa vontade de poder.

A obra de Nietzsche, sob o estrito ponto de vista político e ideológico, foi a mais profunda e
radical manifestação intelectual contra as grandes cartas e documentos que se posicionaram
pela e igualdade e liberdade que vieram à luz na cultura ocidental, desde a Declaração dos
direitos do homem e do cidadão da Revolução Francesa, passando pelo Manifesto comunista
de Marx e Engels, até as leis sociais da sua época.
"Eu sou dinamite!"

A rocha do Lago Silvanaplate, que inspirou Nietzsche

O próprio Nietzsche nunca deixou de ter consciência de que suas posições, assumidamente
radicais, teriam conseqüências terríveis nos anos vindouros. Que para ele seriam tomados
por uma reação contra-revolucionária de dimensões espantosas. No Ecce Homo, por
exemplo, a sua autobiografia publicada somente em 1908, oito anos após a sua morte,
reconhece: "Conheço a minha sorte. Alguma vez estará unido ao meu nome algo de
gigantesco - de uma crise como jamais haverá existido na terra, da mais profunda colisão de
consciência, de uma decisão tomada, mediante um conjuro, contra tudo o que até esse
momento se acreditou, exigiu, santificou. Eu não sou um homem, sou dinamite".

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