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a questao criminal no brasil contemporaneo a questao criminal no brasil contemporaneo’ vera malaguti batista A questio criminal tem ocupado uma centralidade absoluta no cenArio politico brasileiro. A expansiio exacerbada do sistema penal, sem paralelo em nossa historia, implica em que essa centralidade niio seja apenas politica mas também social e econdmica. Pretendemos recorrer primeiramente a histéria para que tenhamos uma visio em perspectiva que pode nos ajudar a desnaturalizar 0 contexto em que vivemos, conjuntura que talvez fique conhecida no futuro como 0 Grande Encarceramento. Para encararmos essa questo precisamos primeiro, entender a questdo criminal a partir da hist6ria, do “curso dos discursos sobre a questiio criminal” como nos ensina Ratil Zaffaroni'. A histéria da configuragéio do poder punitivo para a neutralizacgio da conflitividade social estaria associada a formagiio do Estado e ao processo de acumulaciio de capital. O crime e seus tratamentos nio constituem categorias ontolégicas, morais ou “da natureza”. O sistema penal aparece entdo como constructo ou dispositive, relacionado A realidade econdmica e social e as relagoes de forga presentes no modo de produgdo capitalista. Zaffaroni, a partir de Foucault, localiza no século XIII o primeiro diseurso integrado entre politica criminal, direito penal e criminologia, através do aparecimento da estrutura da Inquisig&io. As mudangas nas relagdes de poder confiscariam as vitimas 0 conflito criminalizado, que passa a ser administrado de forma centralizada entre a Igreja e as primeiras formas de Estado, para gerir a conflitividade e a violéncia e garantir uma determinada idéia de ordem. Surge ento uma nova atitude para determinar a verdade: a busca da verdade * Comunicacdo apresentada no 2° Férum 1. ZAFFARONI, Eugenio Rail. El curso de la Nacional de Alternatives Penais: "Audiéncias _Criminologia. In: Revista de Derecho Penal y do Custédia oa Desconstrucao da Cultura Criminologia, n. 69. Madrid: UNED, 2002. do Encarceramento em Massa’, realizado entre os dias 24 @ 27 de fevereiro de 2016 - Salvador/BA. “eriminosa” era 0 método da Inquisicdo. Institui-se entio uma averiguagdo realizada pelo que exerce o poder sobre o objeto estudado, a partir de uma posigdo privilegiada, sem didlogo com “o outro”. Os discursos sobre a questio criminal, ou a criminologia, se ancoraram nesse saber/poder e se intensificaram com as crescentes possibilidades técnicas de dominio da natureza, transladada nas relagdes com “os outros’, como aponta Marildo Menegat2, Na segunda metade do século XX dois livros produziram rupturas no eurso desses discursos: Punigdo e Estrutura Social e Vigiar e Punir. O primeiro, escrito em 1939 no contexto da Escola de Frankfurt por Georg Rusche, perdeu- se na Europa conturbada daquele momento e veio a ser atualizado por Otto Kirchheimer e publicado nos Estados Unidos dos anos sessenta. Rusche é 0 primeiro a analisar historicamente as relagdes entre condigdes sociais, mercado de trabalho ¢ sistemas penais. O poder punitivo oscilaria entao entre um direito penal de execugdes, mutilagées, agoitamento ¢ encerramento e discursos mais liberais, de acordo com a abundancia ou falta de mao-de-obra. Esse movimento pendular vai do século XV ao XIX, quando a Revolugio Industrial consolida a prisio como a principal pena do Ocidente, completamente associada a fabrica. Os trabalhadores que nfo estivessem sendo explorados sem limites nas fabricas, estariam exercendo suas penas através do trabalho forcado, lucrativo e funcional a ordem capitalista industrial. Na mesma década quente em Paris, Michel Foucault escreve Vigiar e Punir, a partir da obra de Rusche. Ele avanga na anilise do simbolismo do poder punitivo, suas fungdes juridieo-politicas no cerimonial de reconstituigao da soberania lesada no absolutismo. Os rituais organizados, o suplicio como técnica 2. MENEGAT, Marildo. Depois do fim do 3. RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. mundi: a crise da modemnidade a barbarie. —_-Punigao e Estrutura Social. 2. ed. Rio de Rio de Janeiro: Faperi/Relume Dumard, 2003. — Janairo: Instituto Carioca de Criminologia/ Revan, 2004. para impor as marcas do poder no corpo, estariam traduzindo relagées de forga e nfo de justiga. Ele mostra como, a partir do século XVII, essas ceriménias se tornam perigosas nos embates entre as classes empobrecidas e o poder absolutista‘, E a partir dos medos das elites do momento que a Reforma das Luzes aparece como nova estratégia politica; punir e nfo vingar. A punicao e a repressfio passam a ser fungGes regulares através de uma nova economia e uma nova tecnologia. Junto com as demais “disciplinas”, essas formulas gerais de dominagio irdo produzir uma tecnologia minuciosa ¢ calculada de sujeicéo e controle dos corpos déceis. A critica da prisio, que é contempordinea a sua consolidagio, demonstra que o aparente e crénico fracasso dos objetivos do sistema penal esconde a sua prineipal funcio: realizar o controle diferencial seletivo das ilegalidades populares, neutralizar as resisténcias a uma nova ordem que se impunha contra 0 novo sujeito politico do século XVIII, a multidio. Cabe a nés, que pensamos a questo criminal contemporanea, entender as novas fungdes da prisdo e do poder punitivo no neoliberalismo, ou capitalismo de barbirie. Acesse respeito, Loic Wacquant propée a idéia do paradigma norte-americano de incremento do Estado Penal em contraposigio a dissolugio do Estado Previdencidrio: a nova gestio da miséria se daria pela criminalizagio da pobreza, nos discursos e nas priticas®. A hegemonia deste modelo produziu 0 que Wacquant denominou de onda punitiva, produzindo um processo de encarceramento em larga escala nunca visto na historia da humanidade, hoje ja questionado pela esquerda e até pela direita estadunidense. ‘Trabalhando a histéria ideolégica do controle social no Brasil de hoje, Neder aponta o arbitrio das fantasias absolutistas de controle social policial 4, FOUCAULT, Michel. Vigiar @ Punir: 0 gestao da miséria nos Estados Unidos. Rio nascimento da prisao. Petropolis: Vozes, 1977. de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia/ 5. WACQUANT, Loic. Punir as Pobras: anova evan, 2003, absoluto no imaginario brasileiro, a partir das suas matrizes (no sentido de uma permanéncia cultural) ibéricas. ‘A partir da reforma pombalina da segunda metade do século XVIII em Portugal, instaura-se um processo de modernizagéio que conjuga a incorporaco de novos pressupostos tedricos e ideoldgicos cuidando de que a base de sustentago da hierarquizagio nao fosse afetada, Esta ambigiiidade revela-se no desdobramento deste processo para o Brasil. A discussio em torno da redagio do cédigo penal de 18g0 articulava o liberalismo de Beccaria com as formas de controle e punigao da escravidio. No Rio de Janeiro do século XIX, o chefe de policia Eusébio de Queiroz apontava a escravidio como limite A adogio de politicas mais modernas de policiamento urbano. Propée ento 0 confinamento dos escravos nas fazendas e o rigido controle de seus deslocamentos®, Para Neder, nem o fim da eseravidio e nem a Repiblica romperam com o legado da fantasia absolutista do controle social, da obediéncia cadavérica. A atuagio da policia nas favelas brasileiras nos dias de hoje é a prova viva deste legado. 0 periodo pés-emaneipagaio no Brasil é marcado por profundas inquietagées. ‘A independéneia inspirava varios projetos para a nagdo que lutavam por hegemonia. A principal questo a ser administrada, ideol6gica e politicamente, era a convivéncia do liberalismo com o sistema escravista. Para entender esta conjuntura, os problemas do liberalismo no Brasil’, gostarfamos de refletir sobre o que Gizlene Neder denominou “iluminismo jurfdico-penal luso brasileiro”, A autora trabalha as transformaces do Brasil 6. Ci. NEDER, Gizlene. Absolutismo & iéias fora do lugar”. punigao. In: Discursos Sediciosos - Crime, 8. NEDER, Gizlene. lluminismo jusidico-penal Direito @ Sociedade, ano 1, n° 1. Rio de luso-brasileire: abediéncia @ submissao. Rio Janeiro: Relume Dumard, 1996, p. 132. de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia/ 7. Robert Schwarz analisando Machado de Freitas Bastos, 2000. Assis trabalha 0 liberalismo no Brasil como as colénia em Império Luso-Brasileiro, a partir das Reformas Pombalinas em Portugal na passagem do século XVIII para o XIX. Compreendendo que os atores no poder eram bacharéis, ela trabalha a influéncia da reforma de Coimbra em 1772 ea criagiio dos cursos juridicos no Brasil em 1827. A idéia central de sua tese est baseada nas permanéncias histérico- culturais de uma maneira de incorporar o liberalismo europeu sem rupturas com 0 tomismo, o militarismo e a religiosidade de nossas matrizes ibérieas. Assim, busca-se sempre uma formula juridica-ideolégica que assimile uma hierarquizacdo absolutista, que preserve as estratégias de suspeigiio e culpa do direito candnico e que mantenha vivos o arbitrio e as fantasias absolutistas de controle total. A heranga juridico-penal da inquisigo ibérica 6 uma das marcas de um modelo de Estado que vinea a hist6ria do Brasil até os dias de hoje. “O discurso do direito penal, que tem a pretensio de exercer-se como locugiio legitima, numa lingua oficial, est permanentemente produzindo sentidos que viabilizem a expansio do sistema penal, expansio que também se orienta na diregdio das mentalidades e da vida privada”. Nesta heranga, o dogmatismo legal se contrapée ao pluralismo jurfdico, o diferente ¢ criminalizado, hd uma coercitividade do consenso e uma manipulacdo dos sentimentos ativados pelo epis6dio judicial®, Para Batista, esses mecanismos sobrevivem e se agudizam em determinadas conjunturas politicas, reproduzindo o tratamento dispensado ao herege: o principio da oposi¢fo entre uma ordem juridica virtuosa eo caos infracional; a matriz do combate ao crime é feita como cruzada, com o exterminio como método contra 0 9. BATISTA, Nilo. Os sistemas penais 10. BATISTA, Nilo. Matrizes ibéricas do brasileiros. Aula inaugural dos cursos da sistema penal brasileiro - vol. J, Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes, proferida em Instituto Carioca de Criminologia/Freitas 12 de margo de 2001, Rio de Janeiro. Bastos, 2000. injusto que ameaga; ¢ produzido um direito penal de intervengiio moral baseado na confissiio e no dogma da pena. Essa ordem juridica intolerante e autoritaria nao suporta limites, transforma-se num sistema penal sem fronteiras, com a tortura como principio, 0 elogio da delacio e a execucdo como espetaculo. No processo que intitulam de histéria da programagéo criminalizante no Brasil, Batista e Zaffaroni mostram como os usos punitivos do mercantilismo praticados no corpo do suspeito ou condenado no ambito privado vio dando sinais de anacronismo depois da independéncia e na constituigio do capitalismo no Brasil. As permanéneias, no entanto, séio muitas: “a algada criminal abrangia a pena de morte natural inclusive em escravos, gentios e pedes homens livres, sem apelagao nem agravo, salvo quanto as pessoas de mor qualidade, quando se restringiria a degredo por dez. anos e multa até cem eruzados”". Do ponto de vista juridico, do império das leis, as Ordenagées Filipinas, que constituiram o eixo da programagao criminalizante do Brasil-colénia, regeram o direito penal até a promulgagio do eédigo criminal de 1830. E importante frisar que no direito privado varias disposigdes das Ordenagées Filipinas regeram até 1917!'? As demandas por ferocidade penal, a seletividade da clientela do sistema penal sio permanéncias histéricas. Mas, a partir das contradigdes que surgem entre o sistema colonial-mercantilista e 0 capitalismo industrial que se configurava ja na segunda metade do século XVII, vai-se esbogando uma outra conjuntura. No bojo da Independéncia, a Constituigdio de 1824 produz algumas rupturas, ma non troppo, que fazem parte do universso liberal no conjunto das idéias fora do lugar da modernizagio A brasileira. Surgem as 11. Cf. BATISTA, Nilo e ZAFFARONI, Eugenio 12, Cf. BATISTA, Nilo © ZAFFARONI, Eugenio Ratil. Direito Penal Brasileiro - |. Rio de Rail. Op. cit Janeiro: Revan, 2003. garantias individuais: “liberdade de manifestacao do pensamento, proscri¢éo de perseguigdes religiosas, liberdade de locomogao, inviolabilidade do domicilio e da correspondéncia, as formalidades exigidas para a prisio, a reserva legal, 0 devido proceso, a abolig&o das penas cruéis e da tortura, a intransmissibilidade das penas, o direito de peticao, a abolig&o de privilégios e foro privilegiado”®. £ légico que tudo isto nao poderia colidir com o “direito de propriedade em toda a sua plenitude” que, mantendo a escravidao sem uma sé letra da lei, instituiria a cilada da cidadania no Brasil, digamos a ciladania, que pontua até hoje os discursos do liberalismo no Brasil. Como assinalou Machado Neto a cidadania no Brasil nasce restrita aos homens brancos e proprietarios"*. Essa nossa hist6ria faz, com que nosso sistema penal ¢ nossa maneira de pensar ¢ sentir a questo criminal sejam mareados por praticas de exterminio, aniquilacdo e desqualificacao juridica do povo brasileiro advindas da predagao colonial contra os povos origindrios e os afrodescendentes. Pensando ento, na longa duragdo do autoritarismo no Brasil, nos demos conta de que a “democracia” é um intervalo da nossa historia; na verdade, essa maneira de pensar e sentir a questo criminal é a grande permanéneia que atravessa o sentido do nosso sistema juridico-penal. Para pensarmos nossa “torturante contemporaneidade” nos remetemos ao momento de transi¢aio da ditadura civil-militar quando estava disseminada uma resisténcia as praticas do Estado de excecii comecaram a esculpir cotidianamente o novo inimigo ptblico, aquele que vai cio . Foi naquele momento histérico que os meios de comunii ensejar desejos de exterminio: 0 traficante. Quero dizer com isso que a politica criminal de drogas que nos é imposta no auge da ditadura pelos estadunidenses seria o grande vetor de exterminio e encarceramento no periodo democritico. 13, BATISTA, Nilo @ ZAFFARONI, Eugenio @ Estrutura Social: comentario sociolégico a0 Ratil. Op. cit. p. 39, Cédigo Criminal de 1830. Sao Paulo: Edusp/ 14, MACHADO NETO, Zahidé. Dirsito Penal ‘Saraiva, 1977. 10 Na geopolitica das drogas a América Latina foi transformada em campo de batalha. Produtora de maconha e cocaina, abalada por uma crise econdmica que produziu, nos oitenta e nos noventa, multidées de camponeses sem terra e trabalhadores urbanos informais ou desempregados, nossa parte da América inscreveu-se duplamente no mundo: através de nossa insergio na divisio internacional do trabalho e no estereétipo pejorativo que acompanha a expressio “traficante”, Para enfrentar esta politica criminal em forma de guerra, temos que desconstrué-la e para isso devemos romper com o discurso moral. Como disse Massimo Pavarini, mais moralidade como mais penalidade ¢ 0 trigico equivoco de todas as campanhas punitivas'®. As eruzadas contra as drogas, essa combinagiio de elementos morais, religiosos e de confronto, produziram, em muitos paises da América Latina, um direito penal sem fronteiras, forjando em certas prisdes federais algo que aspira a ser muito parecido com as imagens sinistras dos prisioneiros de Guantanamo. ‘A ditadura, com suas campanhas de lei ordem e sua politica de seguranca nacional, construiu assim o estere6tipo politico criminal do novo inimigo interno: o traficante. A guerra contra as drogas péde assim garantir a permanéncia do aparato repressivo, aprofundando seu carter autoritario e assegurando investimentos crescentes para 0 controle social e a seguranga piiblica. Nao foi sé. infraestrutura que se manteve apés 0 periodo militar: 0 novo inimigo propiciou também a renovacao dos argumentos exterminadores, 0 aumento explosivo das execugdes policiais e a naturalizaco da tortura. Tudo é normal se o alvo é o traficante nas favelas. Tivemos no Rio de Janeiro um projeto de ocupagéio militar nas areas de pobreza em nome dessa guerra. 15. PAVARINI, Massimo. O instrutivo caso crime, direito e sociedade, n° 2. Rio de italiano. In: Revista Discursos Sediciosos: Janeiro: ICC, 1996. pp. 67-76. Podemos, através dessa reflexiio, pensar que talvez essa economia de guerra seja o principal sentido da Guerra as Drogas, j4 que todos os seus objetivos explicit configuram um retumbante fracasso. A produgiio, a comercializagiio e o consumo daquelas substancias aleangadas pelo proibicionismo s6 aumentaram junto com as maiores taxas de encarceramento da historia da humanidade e a violéncia disseminada pelas cidades e campos. Salo de Carvalho, na mais atual e completa obra sobre a questi das drogas no Brasil, critica “aquelas ideologias ocultadas pelos Aparelhos de Estado que inviabilizam a otimizagdo dos Direitos Humanos, demonstrando a diafonia existente entre o discurso oficial e a funcionabilidade do sistema de drogas fundados em legislagdes penais do terror™®. Salo critica historicamente a legislaciio penal sobre drogas no Brasil com if dispositivos vagos e indeterminados e uso abusivo de normas penais em branco, que “acabaram por legitimar sistemas de total violagao das garantias individuais"”, O autor demonstra também o alinhamento legal do Brasil a politica estadunidense, a partir dos anos setenta, através da absorgio do discurso central em que o inimigo interno seria o produtor eo traficante. Para ele o dpice do modelo juridico-politico ocorre ao final da década de setenta e inicio da década de oitenta, “com a total incorporagio dos postulados da Doutrina de Seguranga Nacional na concepgao de seguridade publica”, dentro das categorias desenvolvidas pelos teéricos da ditadura militar (geopolitica, bipolaridade, guerra total e inimigo interno). Esta conjuntura produziu o que denominei de adesdo subjetiva 4 barbarie que constitui a crescente demanda coletiva por castigo e punicgao'® Nas sendas 16. CARVALHO, Salo de. A Politica Criminal _ neoliberal. Rio de Janeiro: Revan, 2012 de Drogas no Brasil. Rio de Janeiro. Ed. 18. Cf. BATISTA, Vera Malaguti, Adesdo Luam, 1996, p. 10. Subjetiva & barbéria. In: Love Wacquant © a 17. Op. cit,, p. 27.18. Cf. BATISTA, Vera questao penal no capitalismo neoliberal. Rio Malaguti. Adesao Subjetiva 4 barbérie. In: Loic de Janeiro: Revan, 2012 Wacquant 6 a questao penal no capitalismo 12 de Foucault, Edson Lopes nos demonstra as afinidades entre os assujeitamentos ea subjetividade imposta pela cultura punitiva, que tem na figura da vitima seu principal dispositivo, e no medo sua mais potente metodologia. No proprio campo do marxismo, Melossi j4 anunciara o deslocamento entre 0 poder punitivo e as condigdes objetivas, através da constituigao dessa colossal demanda por pena. Na virada do século XX o neoliberalismo produziu uma perda geral de intensidade do trabalho: o capital é agora video-financeiro™. A nova demanda por ordem vai exigir o controle do tempo livre. A prisio nao é mais lucrativa pelo trabalho dos presos, mas pela sua gestio, a ser terceirizada e privatizada, pela sua simbiose com as periferias urbanas e pelo seu capital simbiélico. A indiistria do controle do crime vai gerar uma nova economia, com seus medos, suas blindagens, suas cAmeras, suas vigilancias, sua arquitetura. A seguranga privada vai substituir a construgio civil como grande absorvedora de mao de obra desqualificada, Nesta nova configuragio, a prisio nao s6 no desapareceu como se expandiu como nunca. Expandiu-se e articulou-se para fora dos seus limites com dispositivos de vigildncia, com as medidas fora da prisio, e também com 0 controle pela medicagio. Neste cendrio surgem as penas alternativas, numa perspectiva de alternativas A pena, como a partir de Radbruch diria Alessandro Baratta, Pensadas como estratégias de desafogamento da justiga penal, elas podem acabar por impor um controle social mais capilarizado, mais minucioso, que vai estender os tentaculos do poder punitivo aos pequenos conflitos do cotidiano, bem no espirito da devassa inquisitorial que o fundou. A juridicizagao do cotidiano vai eriar um 19. VASCONCELLOS, Gilberto Felisberto. O Principe da Moeda, Rio de Janeiro: Espaco @ Tempo, 1997; 6 As Ruinas do Pés-Real. Rio de Janeiro: Espaco @ Tempo, 1995. conjunto de dispositivos biopoliticos: o controle dos conflitos privados vai demandar juristas e demais especialistas para se tornar o centro da vida politica. ‘As estratégias de mediagiio e restauracéio aparecem como alternativas & pena na conjuntura dos anos setenta e oitenta. Seu maior risco 6, ao invés de desjudicializar os procedimentos, expandir a mentalidade judicial para os “novos operadores”. Observemos o caso do juiri, dispositivo juridico nascido historicamente da pretensio politica de ser o sujeito julgado por seus pares, por seus iguais. Na tradicdio brasileira, as sentengas populares costumavam ser mais generosas do que aquelas geradas pelo saber dogmatico penal. Hoje da-se © contrario: 0 senso comum criminolégico punitivo inculcado pela grande midia produziu uma ferocidade crescente na mentalidade dos jurados brasileiros. A s tradic&o garantista do pensamento juridico, antes considerada conservadora, vai ser lembrada saudosamente e vai tornar-se vanguarda se comparada A sanha punitiva alimentada pelas coberturas mididticas espetaculares. Pensemos também em alguns fatos noticiados, nos quais os Conselhos Tutelares, coneebidos para democratizar a justiga dirigida a criangas e adolescentes, transformam-se em dispositivos policialescos, prontos a penalizar ¢ criminalizar as relagdes familiares, principalmente as dos pobres. 0 principal poder decantado desse conjunto de movimentos punitivos vai ser a legitimagio da intervenco moral, da invasividade do Estado penal nas relagdes familiares e de vizinhanca. Quanto maior a conflitividade social decorrente da devastagao promovida pelo capital, maior deve ser a legitimidade da pena. O que vai articular essa nova economia politica ¢ a constituigao de uma cultura punitiva. A inddstria cultural e a grande midia vao tratar de inculear diariamente o dogma da pena e o respectivo modeliio penal jé decadente nos Estados Unidos: das bugigangas eletrdnicas 4 prisdo supermax privatizada. O importante é punir mais, melhor e por muito tempo: o negécio dos carceres precisa de muitos héspedes e de longas estadias... 6 aquele processo que 14 ‘Wacquant chama de remasculinizagdo do Estado, que produz um giro do social para o penal e que terd efeitos tanto nos or¢amentos piblicos como na prioridade discursiva, colonizando a assisténcia social pela “Igica punitiva e panéptica caracteristica da burocracia penal pésreabilitagio"™. O livro de Vera Andrade, A Ilusdo de Seguranca Juridica, traz. uma profunda reflexiio sobre as promessas nao cumpridas do sistema penal e seu afastamento de analises empiricas sobre seu real funcionamento”’, Afinal, o Direito Penal surge na Europa revoluciondria do século XVIII para conter a barbarie do poder punitivo do absolutismo. Se o positivismo surge na Europa na ambiéneia dos medos pés- revolucionarios, suas verdades cientificas ajudaram a desqualificar as utopias de igualdade, demonstrando uma hierarquia de ragas que legitimava o colonialismo em curso. Quando falamos do positivismo como cultura e sua recepeo nas colénias queremos afirmar que essa cultura, de longa durago, produzin nfo s6 uma maneira de pensar a questao criminal, mas principalmente uma maneira de senti-la: afetividades punitivas que naturalizam a truculéncia e cultuam a pena como solugiio magica e restauradora de todos os contflitos. Ao comegar a escrever uma historia da criminologia na América Latina, Rosa del Olmo estudou a importagdo de saberes e pautas vindos do Hemisfério Norte produzindo uma verdadeira ocupagio estratégica que tomava corpo em cétedras, seminarios e publicagdes. Na virada do XIX para o XX (transigao da escravidio e da Repiiblica) o positivismo se torna o saber/poder hegeménico na compreensio da complexa questo criminal. Nessa conjuntura o positivismo criminolégico ajudava a neutralizar a poténcia dos desejos de nagio “mestigos” e “degenerados”. 20. WACQUANT, Loic. Loic Wacquant @ a 21, ANDRADE, Vora Regina Pereira do. A uestao penal no capitalism neoliberal. Vera__ilusdo da seguranga juridica: do controle da Malaguti Batista (organizadora). Rio de Janeiro: —_violéncia a violéncia do controle penal. Porto Revan, 2072 Alegre: Livraria do Advogado, 2016. A auto-patologizagio aprofundava os fossos construidos entre os homens brancos e proprietirios e o resto do nosso povo. ‘Tendo como objetivo maior a manutengao da ordem social projetada da escravidiio para a Repiiblica, o positivismo criminol6gico se travestia de técnica, encobrindo com o fetiche criminal sua natureza politica. F Nilo Batista quem nos assevera dessa fungao encobridora dos conflitos sociais que é 0 dispositivo crime. No Brasil republicano o desenvolvimento das instituigdes policiais estario participando dos deslizamentos de sentidos da medicina legal para medieina social, muito mais abrangente. Flaminio Fivero afirma que “..a medicina legal deve agir, de preferéncia na elaboragéo e execugdo de certas leis que demandam conhecimentos de ordem biolégica a fim de que a ordem social permaneca’?. is Aquele paradoxo da introdugdo do cartesianismo em Portugal acompanha essa nova estratégia de dotar a fé na ciéncia de uma reedig&o racional do salvacionismo. Mas o positivismo nfo foi apenas uma maneira de pensar, profundamente enraizada na intelligentzia ¢ nas priticas sociais e politicas brasileiras, ele foi principalmente uma maneira de sentir o povo, sempre inferiorizado, patologizado, discriminado e por fim, criminalizado. Funcionou, e funciona, como um grande catalizador da violéncia e da desigualdade caracteristicas do processo de incorporagiio da nossa margem ao capitalismo central. Descolonizar nossa elaboraciio da questo criminal impée uma ruptura radical com aquela objetificaco e hierarquizacio das nossas matrizes inquisitoriais. A consolidagao da mentalidade obsidional europeia produziu uma maquina de classificagao e seletividade para lidar com o seu grande Outro. Na atual conjuntura esse quadro se apresenta de maneira dramatica. Como diz Zaffaroni, nascemos como um continente que ¢ instituigdo de sequestro e na 22. Correa, Mariza, (1998). As llusces da Liberdade, Braganca Paulista: Edusf, p. 224 16 atualidade essa vocagio se aprimorou. Milhdes de latino-americanos apodrecem em prisdes abaixo de todos os padrdes de dignidade. A intensidade dos conflitos sociais e sua leitura penal positivista produziu o maior encarceramento da nossa histéria, ea politica criminal de drogas prestou grande contribuigio neste processo, Quanto mais prendemos ¢ matamos pior ficamos ¢ os meios de comunicagiio vio produzindo um discurso tautologico que gera adesio subjetiva A barbirie: demanda por mais pena e mais severidade penal. pensamento criminologico em nossa margem precisa mergulhar na nossa histéria. Nem os povos origindrios do Brasil e nem os afrieanos que nos povoaram tinham a necessidade de policia ou de sistema penal para resolver seus conflitos. A justiga de transigo da Africa do Sul contempordnea é um exemplo disso. Hé alguns meses atras, no Brasil, uma nagiio indigena nao aceitou o resultado de um jiri considerando aquela cerimOnia como brutal. Nos, que naturalizamos as violencias eo carater genocida de nosso sistema penal, estamos numa encruzilhada ética e civilizacional: ou aprofundamos radicalmente nossa critica ao poder punitivo ou estaremos eternizando ad infinitum nossa auto- colonizagao. E esse o sentido de estarmos discutindo aqui alternativas penais, elaborando coletivamente, a partir da nossa realidade, novos caminhos para a administragio de nossa conflitividade social. #Publicacéo comissionade pela #Publication commissioned by Fundagdo Bienal de So Paulo Fundacdo Bienal de Sao Paulo on em ocasiéio da 32a Bienel de S20 the accasion of the 32a Bienal of Paulo - Incerteza Viva S80 Paulo - Incerteza Viva oficina imaginagao politica lugar de agéncia e afetos entre modos de fazer, aprender e cuidar interveneao nos sistemas de {re-)producdo e invencao de mundos implicagao ética nas contradigoes e paradoxos das coletividades OIP é uma iniciativa que se manifesta por meio de grupos de pesquisa, leituras piblicas, apresentacdes, oficinas, interveng6es, instalagdes, escrita, tradugao © praducao de publicagdes como esta. no contexto da 32a bienel de S80, paulo: incerteza viva, a oficina se constitui pela colaboragao entre jota mombaga, rita natélio, thiago de paula, valentina desideri, diego ribeiro © amilcar packer. CU tte FONTES NEUZEIT S, GEORGIA E UNIVERS Vera Malaguti Batista € Professora Adjunta de Criminologia da do Rio de Janeiro e Secretaria-Geral do Instituto Carioca de Criminologia.

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