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Call Me By Your Name - André Aciman

Nota: Traduzido pelo Kokoro Lovers de fã para fãs, não temos a intenção
de infringir os direitos autorais. Apoie o escritor e compre sua cópia do
livro através do site: https://www.amazon.com.br/Call-Your-Name-Andre-
Aciman/dp/031242678X
Parte 01 – Se não mais tarde, quando?

“Até mais”. A expressão, a voz, a atitude.


Eu nunca havia escutado alguém usar “até mais” para se despedir. Soava curto,
direto, desdenhoso, dito com a indiferença das pessoas que não se importam de ver ou
ouvir de você outra vez. Hoje é a primeira coisa que me vem à cabeça quando penso nele,
e ainda posso ouvi-lo. Até mais.
Fecho meus olhos, repito a frase, e estou de volta à Itália, muitos anos atrás,
andando pela entrada arborizada da garagem e vendo-o descer do táxi, usando uns óculos
de sol, chapéu de palha, e sua ondulada camiseta azul de colarinho aberto que deixava
bastante pele à mostra. Em um segundo, ele estava apertando minha mão, me alcançando
sua mochila, tirando a mala da viagem do carro, perguntando se meu pai está em casa.
Deve ter começado ali: a camisa, as mangas dobradas, seus redondos calcanhares
entrando e saindo das gastas alpargatas, ansioso para experimentar o quente e pedregoso
caminho que ia até minha casa, perguntando a cada passo “para qual lado fica a praia? ”.
O hóspede deste verão. Outro chato.
E então, quase sem pensar, com suas costas viradas para o táxi, ele balançou as
costas da mão que estava livre e disse, sem parecer se importar, um “até mais” para outro
passageiro dentro do carro, com quem deve ter dividido a corrida. Nenhum nome dito,
nenhum gesto para amenizar a desordenada despedida. A palavra havia sido enviada:
rápida, ousada, insensível – faça sua escolha, para ele não importava qual fosse.
Veja, eu pensei, é assim que ele vai se despedir de nós, com um rude e descuidado “até
mais”.
Enquanto isso, teríamos de aguentá-lo por seis longas semanas.
Eu me senti intimidado. Ele era do tipo inacessível.
Podia vir a gostar daquele rapaz, da cabeça aos pés, e então, em poucos dias, teria
aprendido a odiá-lo. Ele mesmo, de quem a foto no formulário de inscrição havia, meses
antes, subitamente ensejado afinidade imediata.
Acolher hóspedes durante o verão era o jeito dos meus pais de ajudar jovens
acadêmicos a revisar um manuscrito antes de ser publicado. Durante seis semanas de cada
verão, eu tinha que desocupar meu quarto e mudar-me para um muito menor, no fim do
corredor, que havia pertencido ao meu avô. Durante os meses de inverno, quando estamos
na cidade, tornava-se um quarto para guardar ferramentas, um depósito, onde especulava-
se que meu avô, meu homônimo, ainda batia os dentes enquanto dormia eternamente. Os
convidados de verão não pagavam nada, tinham total acesso a caso e podiam fazer,
basicamente, o que quisessem, contanto que, durante mais ou menos uma hora por dia,
ajudassem meu pai com a correspondência e a papelada. Tornavam-se parte da casa e,
depois de quinze anos fazendo isso, nos acostumamos a uma chuva de cartões postais e
presentes que chegavam, não só no natal, mas durante o ano todo, de pessoas que agora
eram devotas de nossa família e desviaram de seu caminho quando estivessem na Europa
para passar um dia ou dois em B., com seus familiares, nos visitando e revivendo passeios
nostálgicos.
Durante as refeições era frequente recebermos uns poucos convidados, de vez em
quando vizinhos ou parentes, em outras eram colegas, advogados, doutores, ricos e
famosos que estavam de passagem e paravam para ver meu pai no caminho para suas
casas de veraneio. De tempos em tempos acolhíamos, em nossa sala de jantar, os
ocasionais casais de turistas que haviam ouvido da antiga vila e tinham vindo apenas para
dar uma olhada e acabavam encantando-se pelo nosso convite para ficar até mais tarde e
contar um pouco sobre si mesmos, enquanto Mafalda, informada no último minuto, servia
a comida de sempre. Meu pai, Meu pai que é particularmente reservado e tímido, adorava
ter um especialista precoce em ascensão na área conversando em poucas línguas durante
o sol quente de verão e, depois de alguns copos de rosatello, inaugurava-se o inevitável
torpor da tarde. Nós chamamos a tarefa de ”árduo jantar”– e após um período, nossos
convidados de seis semanas também o faziam.
Talvez tenha começado logo após sua chegada, em um desses almoços tediosos
quando ele se sentou perto de mim e pude perceber que, apesar de seu leve bronzeado
adquirido durante sua estadia na Sicília durante o início do verão, a cor da palma de suas
mãos era pálida igual a pele macia de suas solas, sua garganta e do lado debaixo de seu
antebraço que não havia sido exposto ao sol. Um tom de rosa claro, tão brilhante e liso
quanto a parte inferior da barriga de um lagarto. Reservado, puro, cru, como um rubor no
rosto de um atleta ou uma instância da madrugada em uma noite de tempestade. Me disse
coisas sobre ele que eu nunca iria perguntar.
Pode ter começado durante aquelas intermináveis horas após o almoço, quando as
pessoas relaxavam em seus trajes de banho, dentro e fora da casa, corpos jogados por aí,
matando tempo até alguém sugerir que atravessássemos as rochas para um mergulho.
Parentes, primos, vizinhos, amigos, amigos de amigos, colegas, ou qualquer um que
batesse ao nosso portão perguntando se podiam usar a quadra de tênis – todos eram bem-
vindos para descansar, nadar e comer, e, se ficassem até tarde, usar a casa de visitas.
Ou começou na praia. Ou na quadra de tênis. Ou durante nossa primeira
caminhada juntos, no primeiro dia dele, quando me ofereci para lhe mostrar a casa e as
proximidades e, uma coisa levando a outra, pude levá-lo ao antigo portão de ferro, tão
longe quanto se podia ver ao horizonte, passando pelos já aposentados trilhos do trem que
costumavam ligar B. e N. “Tem alguma estação de trem abandonada por aqui? ”, ele
perguntou, olhando através das árvores, debaixo de um sol escaldante, provavelmente
tentando achar a pergunta certa a se fazer pro filho do dono. “Não, nunca existiu uma
estação. O trem parava quando pediam para parar”. Ele estava curioso sobre o trem; o
trilho parecia tão estreito. Lhe expliquei que eram só dois vagões, com o brasão real. Os
ciganos viviam lá agora. Eles vivem lá desde que minha mãe passava o verão aqui quando
criança. Haviam rebocado os vagões para a terra. Perguntei se ele queria ver. “Mais tarde,
talvez.”. Educada indiferença, como se ele tivesse notado o entusiasmo com que o tratei
e então empurrou para longe. Mas acabou me magoando.
Ao invés disso, afirmou que queria ir a um dos bancos em B. e abrir uma conta, e
depois fazer uma visita ao seu tradutor italiano, que seu editor italiano havia contratado
para o livro.
Decidi ir com ele até lá de bicicleta.
A conversa sobre as rodas não foi melhor do que aquela da caminhada. No
caminho, paramos para beber alguma coisa. O bartabaccheria¹ estava escuro e vazio. O
dono esfregava o chão com uma concentrada solução de amônia. Fomos para o lado de
fora assim que tivemos a chance. Um pássaro negro, sentado em um pinheiro do
mediterrâneo, que cantava umas notas foi expulso de lá quando as cigarras começaram a
matracar.
Tomei um longo gole de água mineral, lhe alcancei a garrafa, e depois bebi de
novo. Derramei um pouco na minha mão e molhei o rosto, passando os dedos molhados
pelo cabelo. A água não estava gelada, sem muito gás, deixando uma sensação de sede
na boca.
- O que as pessoas fazem por aqui?
- Nada. Esperam o verão acabar.
- Então... o que elas fazem no inverno?
Eu ri da resposta que estava prestes a dar. Ele pegou a ideia e falou “não me diga:
esperam o verão chegar, certo? ”.
Eu gostei de ter meus pensamentos lidos. Haveria de entender o “árduo jantar”
mais rápido do que aqueles que vieram antes dele.
“Na verdade, durante o inverno tudo aqui fica cinza e escuro. A gente vem durante
o natal. No resto do ano é uma cidade fantasma”.
“E o que mais você faz aqui no natal além de comer castanha e beber gemada? ”.
Ele estava provocando. Eu ofereci o mesmo sorriso de antes. O rapaz entendeu,
não disse nada, e nós rimos.
Me perguntou o que eu costumava fazer. Jogar tênis, nadar, sair durante a noite,
correr, transcrever música, ler. Ele afirmou que também corria, de manhã cedo. “Onde se
pode correr por aqui? ” No passeio público, geralmente. Eu podia mostrar depois.
E então fui acertado outra vez, justo quando começava a gostar dele outra vez.
“Talvez mais tarde”.
Eu havia colocado ler em último lugar na minha lista intencionalmente, pensado
que, a julgar por sua atitude até agora, também estaria em último para ele. Algumas horas
depois, quando me lembrei que o livro sobre Heráclito era o motivo dele estar ali, é que
me dei conta que ler devia ser uma parte importante da vida que ele vivia. Percebi que
precisava desfazer o mal-entendido e fazê-lo perceber que os seus e os meus interesses
eram parecidos. Mas, o que me incomodava não era o incessante trabalho necessário para
me redimir, eram as dúvidas que surgiam em mim, ali e durante nossa conversa nos trilhos
do trem, de que eu tinha, mesmo sem perceber, mesmo sem admitir, tentado – e falhado!
– em conquistar sua amizade.
Quando me ofereci – pois todos os visitantes amavam a ideia – para levá-lo até
San Giacomo e caminhar até o alto da torre do sino apelidada de “to-die-for”, devia ter
pensado melhor do que apenas dizer para ficarmos lá parados. Achei que o aproximaria
se simplesmente o levasse ao topo para ver a cidade, o mar, a eternidade. Mas não. “Mais
tarde”.
Mas pode ter começado bem mais tarde sem que eu tenha notado. Quando você
olha para alguém, mas não o vê realmente, a pessoa só está ali. Ou você o percebe, mas
não sente nada, e antes que você se dê conta de que há alguma coisa lhe importunando, o
período que lhe foi dado está quase acabando e ele está indo, ou próximo disso, e você
está lutando com algo que, sem perceber, esteve crescendo bem debaixo do seu nariz por
semanas, e apresenta todos os sintomas daquilo que você é obrigado a chamar de desejo.
Como eu pude não perceber? Eu reconheço o desejo quando o sinto – e ainda assim, dessa
vez, passou-me despercebido. Me ocupava com aquele sorriso esquivo que iluminava seu
rosto sempre que ele conseguia acertar o que estava em meus pensamentos, quando tudo
que eu queria era sua pele, apenas a pele.
Durante o jantar da terceira noite, senti que ele estava me encarando enquanto eu
explicava Seven Last Words of Christ, do Haynd, que estive traduzindo. Aos 17 anos,
sendo o mais jovem na mesa e, portanto, o menos improvável de ser ouvido, desenvolvi
o hábito de dar a maior quantidade de informações com o menor número de frases
possível e, por falar rápido, dava a impressão de que eu estava sempre nervoso, abafando
minhas palavras. Depois que terminei minha explanação, percebi um olhar pairando sobre
mim, vindo da esquerda. Senti-me lisonjeado, pois aquele jovem estava interessado no
que havia sido dito – ele gostava de mim. Não havia sido tão difícil. Mas, depois de ter
esperado um pouco, quando virei o rosto para olhar sua face, encontrei uma expressão
fria, petrifica e dotado de certa hostilidade, beirando a crueldade.
Aquilo acabou comigo. O que eu havia feito para merecer este olhar? Eu esperava
certa gentileza da parte dele, que risse comigo como havia feito poucos dias antes, nos
trilhos do trem, ou quando expliquei, naquela mesma tarde, que B. era a única cidade na
Itália em que o carriera, o ônibus metropolitano, carregando Cristo, passava batido, sem
nunca parar. Isto fez com que um sorriso abrisse em seu rosto, e ele reconheceu a
referência ao livro de Carlo Levi. Eu gostava de como nossas mentes pareciam viajar em
paralelo, como instantaneamente inferíamos com quais palavras o outro estava brincando.
Ele seria um hóspede difícil. Cheguei à conclusão de que era melhor manter certa
distância. E pensar que quase me deixei levar pela tez de suas mãos, seu peito, seus pés
que nunca haviam tocado uma superfície áspera durante toda sua vida – e os olhos, que
quando gentilmente pousados sobre mim, evocavam-me o milagre da Ressureição. Nunca
era possível encarar aquele olhar por muito tempo, e ainda assim era necessário o fazer,
para descobrir por que não o podia.
Devo tê-lo encarado com a mesma frieza, e, após esse episódio, durante dois dias
a conversa não fluiu.
Na varanda que era compartilhada por nossos quartos, evasão total: um olá
improvisado, um bom dia, o tempo está bom, apenas um raso bate-papo.
E então, sem nenhuma explicação, ele retomou nossa conversa.
Se eu quero ir correr esta manhã? Na verdade, não. Podemos nadar, então.
Hoje, a dor, a ansiedade, a emoção de alguém novo, a promessa de alegria
circulando sentida até na ponta dos dedos, o desabafo com as pessoas que não queria
julgar mal e perder, e deveria colocar em segundo lugar, a astúcia com que persuadi todo
mundo que eu queria e o anseio por ser desejado, as várias barreiras que construí entre
mim e o mundo, diversas camadas de portas deslizantes feitas de papel-arroz, a urgência
de codificar e descodificar o que nunca havia sido encriptado – tudo isso começou durante
o verão que Oliver passou na nossa casa. Tudo isso está encravado nas músicas que foram
hits naquelas semanas, nos livros que li durante e após sua estadia, em qualquer coisa
que envolvesse o cheiro de alecrim e o tremido barulho das cigarras durante o anoitecer
– cheiros e sons aos quais eu estava acostumado, e conhecia há vários anos, mas que
subitamente ganharam novas cores e significados depois dos eventos daquele verão
Tudo pode ter começado, afinal, depois da primeira semana, quando estava
ansioso para saber se ele ainda lembrava quem eu era, que não havia sido ignorado e,
além do mais, se eu poderia me dar ao luxo de cruzar seu caminho durante minha ida ao
jardim sem ter que fingir que não o havia visto. Saímos para correr cedo no primeiro dia,
todo o caminho até B., ida e volta. No dia seguinte, fomos nadar. No outro, corremos
novamente. Eu gostava de percorrer o caminho da van de leite enquanto ele fazia seu
percurso, ou da mercearia até o padeiro enquanto eles estavam abrindo suas lojas; gostava
de correr pela costa, no caminho próximo ao mar, quando o lugar estava completamente
vazio e nossa casa parecia uma miragem distante. Eu gostava quando nossos passos
estavam alinhados, pé esquerdo com pé esquerdo, tocavam o chão no mesmo instante,
deixando pegadas na areia da praia, onde eu, em segredo, gostaria e pousar meu pé onde
o dele havia pisado.
Alternar os dias entre nadar e correr era sua rotina durante a graduação. Também
nos sábados guardados ao Senhor? Brinquei. Ele sempre se exercitava, até quando estava
doente. Faria os exercícios na cama, se fosse necessário. Mesmo que tenha dormido com
alguém novo na noite passada, disse, ainda iria acordar e sair para correr cedinho. A única
vez que não praticou exercício nenhum, foi quando tiveram de operá-lo. Quando o
perguntei o motivo da cirurgia, senti a resposta que eu havia prometido nunca incitar
saltando para mim como uma paulada. “Depois”. Podia ser que ele estava sem respiração
e não quisesse conversar muito, ou só queria concentrar-se em nadar e correr. Ou talvez
fosse o jeito dele de me incentivar a fazer o mesmo – totalmente inofensivo.
Mas havia certa frieza e desconforto na forma com que uma certa distância se
abria abruptamente entre nós em momentos inesperados, quase como se fizesse de
propósito. Era como se aos poucos alimentava minha proximidade, mais e mais, e depois
empurrava para longe qualquer sinal de amizade.
Ele sempre voltava a me encarar com aquele olhar. Um dia, enquanto praticava
tocar violão no que havia se tornando “minha mesa”, um lugar no pátio atrás da casa,
perto da piscina, e Oliver estava deitado na grama, reconheci o jeito que seus olhos
apontavam para mim enquanto eu focava minha atenção na palheta. Subitamente levantei
minha cabeça para ver se a música lhe agradava, e lá estava: cortante, cruel, como uma
lâmina reluzente retraiu-se no momento em que a vítima tomou consciência de sua
presença. Um sorriso fingido surgiu em seu rosto, como que dizendo não há porque
esconder agora.
Fique longe dele.
Ele deve ter percebido que aquilo mexeu comigo e, na tentativa de consertar tudo,
começou a perguntar sobre o violão. Acabei ficando na defensiva e não o respondi
adequadamente. Ouvir-me esquivar das respostas deve tê-lo feito desconfiar que eu estava
mais incomodado do que demonstrava. “Não precisa falar nada. Só entoa a melodia outra
vez”.
“Mas eu pensei que você tivesse odiado”.
“Odiado? O que te passou essa impressão? ”.
Argumentamos sem sair do lugar.
“Só toca, pode ser? ”
“A mesma música? ”
“A mesma”.
Levantei e fui até a sala de estar. Deixei o janelão francês aberto para que,
enquanto eu tocava piano, o som o alcançasse. Ele me seguiu durante uma parte do
caminho e, apoiado na madeira da janela, ouviu-me tocar.
“Não é a mesma música. Por que você não tocou a mesma? “.
“Estou tocando como Liszt tocaria se estivesse relaxado”.
“Só faz como antes. Por favor! “.
Gostei de como ele fingia exasperação, então resolvi voltar à música.
Depois de um tempo: “Não acredito que você não está tocando como eu pedi”.
“Bom, não mudei tanto assim. Esse é o jeito que Busoni teria tocado se ele
alterasse a versão do Liszt”.
“Pode executar a versão do Bach do jeito que Bach escreveu? “.
“Mas Bach nunca escreveu essa música para violão. Nem pro piano. Na verdade,
nem temos certeza que ele a escreveu”.
“Deixa pra lá”.
“Ei, não precisa ficar tão tenso”, falei. Era minha vez de fingir aquiescer
rancorosamente. “Esta é a versão de Bach adaptada por mim, sem Busoni e Liszt. Uma
versão jovem de Bach dedicada ao seu irmão”.
Sabia exatamente qual parte devia tê-lo deixado mexido na primeira vez e, a cada
vez que era tocada, eu a enviava para Oliver como um pequeno presente, porque era de
fato dedicada a ele, como um símbolo de algo em mim que, não precisava ser nenhum
gênio para descobrir, levou-me a tocar com gestos bem compassados.
Nós estávamos – e ele deve ter percebido antes de mim – flertando.
Depois, naquele final de tarde, escrevi em meu diário: Eu estava exagerando
quando disse pensar que você havia odiado a peça. O que eu queria ter dito era: Achei
que você me odiava. Esperava que me convencesse do contrário, e o fez por um breve
período. Por que não acredito que o fará de novo amanhã de manhã?
Então este é quem ele também é, disse para mim após ver como ele havia ido de
frio à atencioso.
Eu podia muito bem ter perguntado: meus humores vão e vem desse mesmo jeito?
Ps: nós não somos escritos apenas para um instrumento. Nem eu, nem você.
Eu tinha estado disposto a rotulá-lo como difícil e inacessível e desistir de me
aproximar. Duas palavras vindas dele e a apatia alimentada por mim havia mudado para
“tocarei qualquer coisa que me pedir, até que me peça para parar, até a hora do almoço,
até que a pele dos meus dedos comece a descascar e descascar, por que eu gosto de fazer
coisas por ti, farei qualquer coisa por ti, apenas diga o que quer. Gosto de você desde o
primeiro dia, até mesmo quando respondeu com gelo às minhas repetidas ofertas de
amizade”. Nunca esquecerei esta conversa que aconteceu entre nós, e de que há formas
prazerosas de trazer o verão de volta durante a nevasca.
O que não lembrei de ressaltar é que a frieza e apatia sempre encontravam jeitos
de retornar instantaneamente durante as tréguas e resoluções dos momentos ensolarados.
E então veio aquela tarde de domingo, em julho, quando nossa casa esvaziou
subitamente, nós éramos os únicos lá, e o fogo cruzou meu estômago – fogo, pois foi a
primeira e mais simples palavra que encontrei para descrever o jeito que me senti,
enquanto escrevia em meu diário ao anoitecer. Eu esperei, e esperei em meu quarto,
agarrado à minha cama, em uma espécie de estado de transe causado por medo e
antecipação. Não era um fogo de paixão, nem prejudicial, mas paralisante, como o estouro
de uma bomba que suga todo o oxigênio disponível e o deixa sem ar, pois te acertou no
estômago e um vácuo rasgou seus pulmões e deixou-o com a boca seca, e você espera
que ninguém converse, pois não consegue falar, e espera que ninguém te peça para se
mover, porque seu coração está bloqueado por algo e bate tão rápido que ele cuspiria os
estilhaços de vidro antes de deixar qualquer coisa passar entre seus limitados
compartimentos. Fogo como medo, fogo como pânico, como “mais um minuto disso e
morrerei se ele não bater à minha porta, mas preferiria que Oliver nunca viesse do que vir
agora”. Havia aprendido a deixar a janela entreaberta, e me deitar apenas com meu traje
de banho, com meu corpo todo pegando fogo. Fogo como um suplício que diz “por favor,
por favor, me diga que estou errado, me diga que eu imaginei tudo, pois nada disso pode
ser real para você também e, se o for, és o mais cruel entre todos os homens vivos”.
Naquela tarde de julho, na tarde em que ele finalmente entrou sem bater, como se minhas
orações tivessem o invocado, e perguntou por que motivo eu não estava na praia com os
outros, e tudo que eu pude pensar, mesmo não podendo juntar forças para dizer-lhe, foi
“para estar contigo”. Para estar contigo, Oliver. Com ou sem meu traje de banho. Para
estar com você na minha cama, na sua cama, que é minha durante os outros meses do ano.
Faça comigo o que quiser. Possua-me. Apenas me pergunte se eu quero, e veja a resposta
que conseguirá, apenas não me deixe dizer não.
Me diga que eu não estava sonhando na noite que ouvi um barulho à minha porta
e de súbito percebi que havia alguém no meu quarto. Alguém estava sentado ao pé da
cama, pensando, pensando e pensando, e finalmente se levantou, movendo-se em minha
direção, e deitou-se, não próximo, mas por cima de mim, sobre minhas costas, e apreciei
tanto aquilo, e ao invés de mostrar que eu estava acordado ou deixá-lo mudar de ideia e
ir embora, fingi estar dormindo, pensando “isto não é, não pode ser, é melhor que não
seja um sonho” pois as palavras que me vieram, enquanto eu deixava meus olhos bem
fechados, eram “é como voltar para o lar, chegar em casa após muitos anos entre traidores
e canibais, como voltar a um lugar em que todos são como você, onde as pessoas sabem,
apenas sabem – como voltar a um lugar em que tudo se encaixa, e então percebe que
durante dezessete anos havia investido sem interesse na combinação errada. E então
decidi expressar, sem me mover, que eu havia concordado em dar-me por vencido se você
quisesse seguir com aquilo, eu já estava derrotado, era seu, todo seu, mas de repente tu já
tinhas ido e, mesmo parecendo muito real para não o ser, decidi que daquela noite em
diante, tudo que eu queria era que repetisse o que havia feito em meu sonho.
No dia seguinte nós estávamos jogando em duplas, e durante uma pausa, enquanto
bebíamos a limonada que Mafalda tinha preparado, ele passou o braço livre pelo meu
ombro e gentilmente apertou com seu dedão e indicador, em uma imitação de um
amigável abraço – tudo muito carinhoso. Mas fiquei tão encantado que rapidamente me
livrei de sua mão, pois mais um momento ali e eu havia de me desmanchar como um
daqueles bonequinhos de madeira que quando tocados desmontam-se em diversos
pedaços. Ele foi surpreendido, se desculpou e perguntou “se havia pressionado um nervo,
ou alguma coisa do tipo” – não tivera a intenção de me machucar. Teria se sentindo
péssimo se suspeitasse que havia me machucado ou tocado de um jeito inapropriado. A
última coisa que eu queria era desencorajá-lo. Ainda assim, murmurei um “não doeu” e
teria encerrado o assunto ali mesmo, mas percebi que, se não era dor a causa da minha
reação, o que poderia ter-me feito afastá-lo tão bruscamente na frente dos meus amigos?
Tentei imitar a expressão de alguém tentando, e falhando, disfarçar a dor que sentia.
Nunca me passou pela cabeça que o pânico que senti ao ser tocado por ele, era exatamente
a surpresa sentida pelos virgens quando apalpados a primeira vez pela pessoa que
desejam: atiçava nervos que, antes daquele momento, não sabiam existir e despertava um
prazer muito, muito maior do que suas existências virginais tinham conhecido quando
tocavam a si mesmo.
Ele ainda parecia surpreso com minha reação, mas pareceu ter acreditado em
minha resposta. Era o jeito dele de deixar para lá e fingir que não estava nenhum pouco
atento às nuances de minha reação. Sabendo, como mais tarde eu viria a descobrir, quão
severa era sua habilidade de perceber sinais contraditórios, não teria dúvidas de que ele
já tinha suspeitado de alguma coisa.
“Aqui, deixa eu cuidar isso”. Estava me testando e iniciou uma massagem no meu
ombro. “Relaxa”, disse, na frente dos outros. “Mas estou relaxado”, respondi. “Você está
mais duro que esse banco. Sente isso”. Ele falou para Marzia, uma das meninas mais
próximas da gente. “Quantos nós”. Senti as mãos dela nas minhas costas. “Aqui”, Oliver
disse, e pegou a lisonjeira mão da garota, pressionando-a contra milha coluna. “Sentiu?
Ele deveria relaxar mais”, murmurou. “Você devia relaxar mais”, ela repetiu.
Talvez nessa situação, e em todas as outras, como eu não sabia falar em código,
eu não sabia o que dizer. Me sentia um surdo idiota que nem consegue usar linguagem de
sinais. Gaguejei todo tipo de coisa para não falar o que passava pela minha cabeça. Era o
alcance do meu código. Enquanto eu respirasse para falar, poderia continuar com aquilo.
Do contrário, o silêncio entre nós provavelmente me entregaria, que era o motivo pelo
qual qualquer som, até mesmo palavras sem sentido, era preferível ao silêncio – este,
poderia me expor. Mas, o que com certeza iria revelar-me ali, era minha dificuldade em
lidar com aquela situação na frente dos outros.
O cuidado destinado a mim deve ter feito com que eu parecesse estar entre a
impaciência e uma raiva tácita. Ele achar que estes sentimentos o tinham como alvo,
nunca passou pela minha cabeça.
Talvez vez fosse por razões parecidas com estas que eu desviava o rosto quando
nossos olhares se cruzavam, para esconder a tensão causada por minha timidez. Mas que
isso fosse considerado ofensivo por ele, e retalhasse com relances hostis não passou pela
minha cabeça também.
O que eu esperava ter passado despercebido na forma que reagi à firmeza de seu
toque foi outra coisa. Havia quase cedido a sua mão e me acalentado nela, próximo de
dizer – como os adultos muito comumente diziam quando alguém massageava seus
ombros por trás deles – não pare. Ele havia percebido que eu estava pronto não apenas
para ceder, mas moldar meu corpo ao dele?
Este foi o sentimento que anotei em meu diário aquela noite: descrevi como
“volúpia”. Por que havia sentido essa voluptuosidade? E isso aconteceu tão facilmente –
sentir seu toque faria com que eu perdesse minha força e vontades? Era isso que as pessoas
chamavam de manteiga derretida? E por que eu não o mostrava como eu havia me
derretido? Medo do que poderia acontecer a partir dali? Ou de que ele risse de mim,
espalhasse para todos, ou ignorasse tudo isso com o pretexto de que eu era muito novo
para o que estava fazendo? Ou era por que ele suspeitava de tudo isso e – como qualquer
outro, para suspeitar, teria de estar na mesma situação – planejava agir com base nisso?
Eu queria que ele agisse? Ou preferia uma situação em que mantínhamos por muito tempo
esse jogo de ping-pong: não sabendo, não-não sabendo, não-não-não sabendo? Apenas
fique quieto, não diga nada, e se não puder dizer sim, não diga “não”, diga “depois”. É
por isso que as pessoas falam “talvez” quando querem dizer “sim”, mas esperam que você
pense que é um “não”, quando o que desejam afirmar de verdade é Por favor, me pergunte
apenas mais uma vez, e então mais outra vez.
Olho para aquela época, e não posso acreditar que, apesar dos esforços para
conviver com o “fogo” e a “volúpia”, a vida ainda me deu momentos incríveis. Itália.
Verão. O barulho das cigarras ao anoitecer. Meu quarto. O quarto dele. Nossa varanda,
que afastava o mundo todo. O vento do nosso jardim que subia a escada até meu aposento.
O verão em que aprendi a amar. Amar pescar. Por que ele aprendeu. Amar correr. Por
que ele aprendeu. Amar polvo, Heráclito, Tristan. O verão em que ouvi um pássaro cantar,
cheirei uma planta, ou senti a neblina levantar-se bem debaixo dos meus pés nos dias
quentes e ensolarado, e como meus sentidos estavam sempre alerta, tudo me levava a ele.
Poderia negar tantas coisas – que eu desejava tocar seus joelhos e pulsos quando
estes reluziam à luz do sol com aquela textura gomosa que eu havia visto em tão poucas
pessoas; que eu amava como seu short branco de jogar tênis parecia ter adquirido a cor
do barro, que se tornou, com o passar das semanas, a cor de sua pele; que seu cabelo, mais
loiro a cada dia, pegava a luz antes do nascer do sol pela manhã; que sua ondulada
camiseta azul, ainda mais ondulada em dias de ventania que ele a vestia no pátio, perto
da piscina, prometia abrigar pele e suor que me excitava só de pensar. Tudo isso eu
poderia negar. E acreditar na minha negação.
Mas foi o colar de ouro, com uma estrela de Davi e um mezuzah1 dourado em seu
pescoço era mais atraente de que qualquer outra coisa que eu desejava, pois isto nos unia
e me lembrava que, por mais que todo o resto conspirasse para que fôssemos opostos em
tudo, aquele símbolo transcendia tudo isso. Eu vi sua estrela quase que imediatamente
quando ele chegou. E daquele momento em diante, eu soube o que me hipnotizou e fez
com que a busca por sua amizade, sem nunca encontrar um jeito de me aborrecer com
ele, era maior do que qualquer um de nós dois poderia vir a querer do outro, bem maior
e, assim sendo, melhor que sua alma, meu corpo, ou mesmo a própria Terra. Encarar
aquele colar com a estrela e o amuleto era como encarar algo atemporal, ancestral, imortal
em mim e nele, em nós dois, implorando para ser revivido de seu sono milenar.

1
Pequeno amuleto que contém o pergaminho de uma oração judaica, símbolo da fé judaica.
O que me intrigava era que ele não parecia notar ou se importar com o fato d’eu
também usar um colar assim. Assim como também não deve ter notado as vezes em que
meus olhos viajaram por seu traje de banho e tentaram identificar o que havia nos unido
no deserto.
Com exceção da minha família, aquele era provavelmente o único judeu a pisar
em B. mas diferente da gente, ele nunca escondeu. Nós não éramos judeus muito
chamativos. Vestíamos nosso judaísmo como as pessoas faziam pelo mundo: debaixo da
camisa, não escondido, aninhado. “Judeus discretos”, nas palavras de minha mãe. Ver
alguém proclamar seu judaísmo em seu pescoço, como Oliver fazia quando pegava uma
das bicicletas e ia para a cidade com sua camisa aberta, nos chocava o mesmo tanto quanto
ensinava que podíamos fazer o mesmo e ficarmos impunes. Tentei imitá-lo algumas
vezes, mas era muito autoconsciente, como alguém tentando parecer natural enquanto
anda nu em um quarto trancado e acaba ficando excitado com a própria nudez. Na cidade,
tentei ostentar meu colar com o silencioso barulho de quem o faz menos pela arrogância
e mais por vergonha reprimida. Oliver era diferente. Não é que ele não havia pensado
sobre ser judeu ou sobre a vida dos judeus em um país católico. As vezes conversávamos
sobre isso nas longas tardes em que colocava de lado o trabalho e aproveitávamos a
companhia enquanto os empregados, e os convidados, haviam entrado nos quartos para
descansar por algumas horas. Pelo que me disse, havia vivido muito tempo em
cidadezinhas da Nova Inglaterra para saber como era ser o estranho judeu. Mas o
judaísmo nunca o incomodou do jeito que fazia comigo, nem era o assunto de um
permanente, metafísico desconforto para ele com o mundo. Tampouco despertou a
mística, não dita promessa de uma redentora irmandade. Talvez por isso ele não se
incomodava ou tocava no assunto sobre ser judeu como crianças arrancam a casca da
ferida quando querem que esta suma. Estava bem com aquilo. Estava bem com si mesmo,
do mesmo jeito que se sentia sobre seu corpo, sua aparência, sua estranha raquetada, suas
escolhas de livros, músicas, filmes, amigos. Estava bem com perder sua caneta Mont
Blanc. “Posso comprar outra igualzinha aquela”. Estava bem com críticas. Uma vez
mostrou umas páginas das quais sentia orgulho de ter escrito ao meu pai, que disse que
seus insights sobre a hora de Heráclito eram brilhantes, mas precisavam firmar-se, que
deveria aceitar a natureza paradoxal do pensamento daquele filósofo, e não apenas
explicá-la. Ele sentia-se bem com firmar coisas. Com o paradoxo. De volta para a mesa
de rascunhos – com a qual também se sentia bem. Uma vez convidou minha tia mais nova
para uma conversa a sós durante uma volta em nosso barco, durante a meia-noite. Ela
recusou. Ficou de bem com aquilo. Tentou outra vez alguns dias depois e, após ter seu
convite recusado novamente, e continuou tentando. Ela também estava bem com aquilo
e se tivesse passado mais uma semana conosco, provavelmente teria aceitado dar uma
volta no mar, à meia-noite, que poderia muito bem durar até o sol nascer.

Continua...

Tradução: Snow
Revisão: Shizuo

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