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DE RAMAZZINI A DEJOURS Lilfana A. M. Guimaraes André Barciela Veras Juliana Cestari LINTRODUGAO A satide mental geral tem merecido grande destaque na imprensa leiga, que relata 0 enor- me consumo de antidepressivos e tranquilizantes, as capas das revistas semanais apresentam temas como estresse, depresso e ansiedade, propondo, muitas vezes, solugbes magicas e mi- rabolantes, No entanto, constatamos que, em nosso pais, ainda ha falta de estudos e pesquisas relevantes nesta drea, particularmente, no que se refere a0 ambiente de trabalho. ‘As proporges epidémicas das afeccSes emocianais e mentais exigem a adocao de estraté- gias adequadas e cientificamente comprovadas, além de compativeis com a cultura de nosso pas. Com relago ao ambiente de trabalho, constatamos, por meio das estatisticas de afasta- mentos e acidentes no trabalho, que 0 capitulo “F” do Cédigo Internacional de Doengas (CID-10), relacionado 3s doengas mentais e emocionais, emerge como uma das rhais prevalentes. Dados do Ministério da Previdéncia demonstram o crescimento dos afastamentos do traba- tho, por uso abusive do alcool e drogas. O questionamento é se estariam os profissionais da area de satide ocupacional capacitados a conduzir programas de prevengdo, de diagnéstico e tratamen- to neste campo. Neste contexto, urge que profissionais e pesquisadores de satide ocupacional nao abor- dem somente 0s riscos ambientais, mas busquem entender e abordar as questdes psicossociais associadas ao trabalho. E emblematica a insergao deste pilar no modelo de ambiente de trabalho saudavel proposto pela Organizaco Mundial da Satide (2010). Ogata (2012) se refere a uma pesquisa realizada pela empresa Gallup, com mais de 1 mi: Iho de participantes, em todo o mundo, que constatou que 0 trabalho € 0 elemento mais impor- tante do bem-estar, em relaco aos outros dominios, como financeiro, social, comunitario e fisico. © bem-estar estaria relacionado primordialmente a realizago e ao sentido do trabalho (RATH; HARTHER, 2010). ‘A abordagem unicamente individual, em geral, ndo é efetiva se nao forem abordadas as questdes psicossociais relacionadas ao trabalho. Os gestores dos programas de promocao de sau- de e qualidade de vida reconhecem que a questo emocional e o estresse sao fatores muito im- portantes, pois esto relacionados a adoecimento precoce, absenteismo e presenteismo, aumen- to dos custos de assisténcia médica e doengas ocupacionais. Frequentemente, as abordagens sio pontuais, como palestras, feiras de satide, Semana Interna de Prevenco de Acidentes do Trabalho (sIPATs) ou sess6es de massagem, o “dia da fruta”, entie outros. A abordagem dos fatores emo- ionais exige conhecimento tedrico e preparagio de programas de Satide Mental que propiciem resultados efetivos e sustentaveis (OGATA, 2012), 15 Existem duas lacunas na literatura cientifica nacional. A primeira é oferecer pesquisas e re- flexdes sobre questdes conceituais e novos aportes tebricos, além de analisar a questo da sade emocional em diferentes ocupacdes, camo policiais, bancérios, funciondrios publicos, trabalhado- res rurais e da drea de servigos. A segunda ¢ oferecer propostas praticas de abordagem, particu: larmente no que se refere ao estresse ocupacional e 8s novas realidades do contexto do trabalho. Esta coletinea pretende oferecer subsidios ao preenchimento das duas lacunas. Neste capitulo, abordaremos a cronologia das leis e as regulamentagdes sobre fatos da satide geral e mental do trabalhador, aprofundando-nos e fazendo uma atualizagdo sobre a Psicopatologia/Psicodin&mica do Trabalho, modelo teérico-metodolégico proposto por Cristoph Dejours para 0 estudo das relagdes entre saide mental e trabalho. 1.1 A higiene ocupacional e sua evolugao Seguem abaixo elencados, os principais acontecimentos histéricos destacados na evolugo da, atualmente, denominada Satide Ocupacional, que, anteriormente, era Higiene Ocupacional. + No século IV A. C,, Hipécrates identificou e registrou a toxicidade do chumbo na industria mineradora. * No século |, Plinio mencionou a iniciativa de os escravos utilizarem panos para atenuar a inalagdo de poeira + Nos séculos XI! e Xill, foram realizadas as primeiras experiéncias sobre satide ocupacional. + Nos anos 1700, Bernardino Ramazzini publicou 0 primeiro livro sobre doengas ocupacionais. Sdo as contribuigées dese autor, que, por sua importéncia, serdo relatadas em detolhes, posteriormente, + £m 1778, Percival Pott reconheceu a fuligem das chaminés como uma das causas do céncer escrotal + A Revolusio Industrial, iniciada na Inglaterra, no século XVil, desencadeando transformacées ra- dicais na forma de produzir e de viver das pessoas e, portanto, de seu adoecer e morrer, deu novo impulso @ Medicina do Trabalho, dado que, muitos problemas de Higiene Ocupacional foram descobertos. Aumentou 0 ntimero de problemas de satide relacionados com o trabalho. + Em 1833, 0 parlamento britdnico regulamentou o trabalho da crianga, pela primeira vez, choma- da de “lei das fébricas” + Em 1851, William Farr descobriu que a mortalidade entre os fabricantes (com 25 a 45 anos) de vasos, era excessivamente alta, e que a fabricagio de cerdmica na Inglaterra era um das oficios ‘mais insalubres. + Em 1869, na Alemanha, foram instituidas as leis precursoras que responsabilizavam os emprega- dores por lesBes ocupacionais. + Em 1878, a legislagéo indicava requisitos para a implantacdo de ventilagao local exaustora, com 0 objetivo de remogao de poeiras e fumos. + 1890 - Primeira legislacdo sobre condigées de trabalho industrial, criada por meio do Conselho de Satide Publica + £m 1910, Oswaldo Cruz dirigiu pessoalmente estudos e 0 combate a epidemias na ferrovia Madeira-Mamoré. + £m 1919, foi criada a Organizagéo Internacional do Trabalho (OIT). Foi aprovada a primeira lei sobre acidentes de trabalho no Brasil (Decreto-Legislativo nuimero 3.754, de 15/01/1919. + 1920 - Indiistria de fiagdo em So Paulo contratou 0 que seria 0 primeiro médico de fébrica brasileiro. 16 ide do- cu ho, da veh fo ia is. 6s, cer vo wo m de ‘os 10- ho via lei ca « 1923 Criagéio da Inspetoria da Higiene Industrial (Hl) pelo Departamento Nacional de Satide, em que a higiene profissional e industrial seria incluida no dmbito da saude pablica. «1934 - Na USP iniciou-se 0 ensino da disciplina de Higiene do trabalho, na Escola de Higiene € ‘sauide Publica. Foi decretada a segunda lei de acidentes do trabalho (Decreto nimero 24.637 de 10/07/1934). + 1939 a 1943, Fundagdo da Assaciagdo Americana de Higiene Industrial (AIHA). O servico de Higiene do trabalho tornou-se Diviséo de Higiene e Seguranca no trabalho + 1948 - Criacdo da Organizagdo Mundial de Satide - OMS. As concentragées maximas permitidas passoram a ser chamadas de limite de tolerdncia. + 1953/1959 - A OIT fez a recomendagao 97, que trata da Protecdo da Satide do trabalhador. Na Conferéncia Internacional do Trobalho, foi aprovada a recomendacdo 112, sobre os servicos de Medicina do trabalho. + 1960/1970 - Surgiram os movimentos sindicais representando as reivindicagdes dos trabalho- dores na Alemanha, Franca, Inglaterro, Estados Unidos e Itélia. O governo brasileiro convidou técnicos da OIT para estudarem as condig6es de Sequranca e Higiene do Trabalho no Brasil. A Lei n. 5.161 criava a Fundagéio Centro Nacional de Seguranca, Higiene e Medicina do trabalho (FUNDACENTRO), em Sio Paulo, ligada ao Ministério do Trabalho e Emprego do Brasil + Década de 1970-0 modelo de atuagdo da Saude Ocupacional néo conseguia mais responder a todos 0s problemas causados pelas mudangas dos processos de trabalho: « automarao em alto grau, a robotizacéo, entre outros. + 1972 - Cursos (FUNDACENTRO) para a formacdo de Médicos do Trabalho. + 1978 - Comecaram a ser instituidas as Normas Regulamentadoras (NR) de Seguranga e Saude no Trabalho, com uma grande propor¢éo delas a partir da década de 1990. Interessa-nos focalizar aquelas relacionadas @ sauide, em particular & Saide Mental do trabalhador, citadas a seguir + Década de 1980 - Observou-se um avango mos estudos toxicoldgicos, especialmente, corn relacao a fatores de risco potencial genotdxico. + Década de 1990 - Verificou-se a tendéncia de estabelecer limites de tolerdncio, dado que os mes- ‘mos eram cada vez menores. + 1996 - NR 07 ~ Programa de Controle Médico de Saude Ocupacional (PCMSO), programa elabo- rado e implantado em todas as empresas que possuam funcionérios registrados, Sobre essa NR, vocé vai poder ter mais detathes na Unidade 3, + 1999- Portarias/MS ndmeros 1339 de 1999, que listam 0s Transtornos Mentais edo Comportamento relacionados ao trabalho, implicando utilizago de modelos diagndsticos e estabelecimento do nexo causal entre 0 Dano e/ou a Doenga e o Trabalho. O Decreto n. 3.048 de 06/05/1999, pelo Ministério da Previdéncia e Assisténcia Social, discriminando os Transtornos Mentais Relacionados 20 Trabalho (grifo dos autores), traz novos desafios aos profissionais de satide e de recursos hu- manos de organiza¢Bes pilblicas e privadas no reconhecimento e na prevencaio dessas patologias. + 2007 - Nexo Técnico Epidemiolégico Previdencidrio (NTEP) (1.N. 16/07 INSS 27/03/07). Para uma melhor compreensdo do que ocorre com a introdugdo do NTEP, listamos: O incentivo pora se investir em prevengiio (AT) e redugdo das doencas ocupacionais, ou seja, @ doenca cuja incidéncia for elevada em determinada atividade econdmica, seré caracterizada como do trabalho, independentemente da notificacdo pela empresa, por meio do CAT. Transfere-se o 6nus da prova para o empregador: até entdo, 0 trabathador é quem preci- sava provar que estava doente, ficando a cargo do médico da empresa, ou do INSS, conceder a emissdio do CAT. ‘Mudangas na forma de pagamento do SAT (seguro acidentario de trabalho). 17 O'enfrentamento desses desafios é especialmente importante no contexto atual, em que passa a vigorar o NEXO TECNICO EPIDEMIOLOGICO PREVIDENCIARIO (SESI, 2011). Trata-se de lei que permite a Previdéncia Social conceder beneficio acidentério ao trabalhador incapacitado, que seja acometido por doenca cujo risco de adquiri-la seja maior no ramo econémico ao qual perten- ce @ empresa em que trabalha, ou seja, com base em critério epidemiolégico, No item 1.2, serio detalhadas as contribuigdes de Bernardo Ramazzini, que podem ser consideradas as bases da Medicina do Trabalho, da Satide Ocupacional e, também, Salide Mental Ocupacional, da Satide Mental e Trabalho, dada sua completude e atualidade. 1.2.As contribuiges de Ramazzini ‘Apés 0 entendimento da cronologia da Higiene Ocupacional, posteriormente denominada Saticle Ocupacional, serio descritas nesta seco as contribuigdes de Ramazzini e a sua importéncia para 0 inicio da sistematizacao do campo de estudos e praticas em satide do trabalhador. No ano académico de 1690/91, Ramazzini iniciou no curso médico de Médena, Itdlia, suas aulas sobre a matéria que denominou De Morbis Artificum ~ as doencas dos trabalhadores. Suas observages e seus apontamentos de aula, mais tarde constituidores de seu diatriba- tratado- que intitulou De Morbis Artficum Diatriba, resultaram da amalgamacao de uma sélida bagagem de erudigdo na literatura histérica, filosdfica e médica disponivel- como se verd adiante-, com as ob- servagées colhidas em visitas a locais de trabalho e entrevistas com trabalhadores. Conforme relato feito pelo préprio Ramazzini, o despertar do seu interesse pelas doencas dos trabalhadores e pela elabora¢do de um texto voltado para este tema se deu a partir da obser- vagio do trabalho dos “cloaqueiros”, em sua prépria casa, em Médena, Italia. Esses trabalhadores tinham a tarefa de esvaziar as “cloacas” ("fossas negras”) que armazenavam fezes e outros dejetos, como, alids, ainda era feito rotineiramente, ha até no muito tempo, ém diversas cidades brasile ras, e, excepcionalmente, por trabalhadores de empresas de saneamento basico. Ramazzini, em uma rica descricdo, que resolve mos manter na integra, dada sua riqueza de contetido e narrativa, baseada em sua incomum e singular capacidade de observacao, relata: [J observei que um dos operérios, naquele antro de Caronte, trabalhava agodadamente, ansioso por terminar; apiedado de seu labor impréprio, interroguei-o porque trabalhava tao afenosamente e no agia com menos pressa, para que no se cansasse demasiadamente, com o excessivo esforco. Entdo, 0 miserdvel, levantando a vista e olhando-me desse antro, respondeu: ‘ninguém que no tenha experimentado podera imaginar quanto custaria permanecer neste lugar durante mais de quatro horas, pois ficaria cego’. Depois que ele saiu da cloaca, examinei seus olhos com atencSo e os notei bastante inflamados e enevoados; em seguida procurei saber que remédio os cloaqueiros usavam para essas afecdes, 0 qual respondeu-me que usaria o Gnico remédio, que era ir imediatamente para casa, fechar-se em quarto escuro, permanecendo até o dia seguinte, e banhando constantemente os olhos com agua morna, como tnico meio de alivier @ dor dos olhos. Perguntei-the ainda se sofria de algum ardor na garganta e de certa dificuldade para respirar, se dota a cabeca enquanto aquele odor irritava as narinas, e se sentia néuseas. Nada disso, respondeu ele, somente 05 olhos so atacados e se quisesse prosseguir neste trabalho muito tempo, sem demora perderia a vista, como tem acontecido aos outros’. Assim, atendendo-me, cobriu os olhos com as maos e seguiu para casa, Depois observei muitos opersrios dessa classe, quase cegos ou cegos completamente, mendigando pela cidade [.. Segundo Estréla (2002), Ramazzini tinha uma preocupagio e o compromisso com uma clas- se de pessoas habitualmente esquecida e menosprezada pela Medicina, O proprio Ramazzini reco- nhece no preficio de seu tratado, que: 18 que lei qe en- ser atal ada vcia uas uas que de ob: gas er res 05, lei- de [..] ninguém que eu saiba pds 0 pé nesse campo [doencas dos operarios}. [..] €, certamente um dever para com a misera condigao de artesdos, cujo labor manual uitas vezes considerado vil e sérdido é, contudo, necessério e proporciona comodidades a sociedade humana |...) Ramazzini entendera que: [..J 08 governos bem constituidos tém criado leis para conseguirem um bom regime de trabalho, pelo que é justo que a arte médica se movimente em favor daqueles que a jurisprudéncia considera com tanta importancia, € empenhe- se [..] em cuidar da satide dos operdrios, para que possam, com a seguranca possivel, praticar o oficio a que se destinaram, Os passos de abordagem utilizados e ensinados por Ramazzini seguem-se pelas visitas a0 local de trabalho e pelas entrevistas com trabalhadores. Alids, como antes visto, foi o impacto da observagao do trabalho e a das conversas com os trabalhadores que levou Ramazzini a se dedicar a0 tema das doengas dos trabalhadores. Mais tarde, com a sistematizagdo de seus estudos sobre as doengas dos trabalhadores, Ramazzini péde afirmar com a autoridade dos mestres: Eu, quanto pude, fiz o que estava 20 meu alcance, e nome considerei diminuido Visitando, de quando em quando, sujas oficinas a fim de observar segredos da arte mecanica.[..] Das oficinas dos artfices, portanto, que so antes escolas de ‘onde sai mais instruido, tudo fiz para descobrir 0 que melhor poderia satisfazer © paladar dos curiosos, mas, sobretudo, o que € mais importante, saber aquilo ‘que se pode sugerir de prescricées médicas preventivas ou curativas, contra as doengas dos operérios J abordagem clinico-individual, cujos fundamentos foram ensinados por Hipécrates (460 375 A.C), Ramazzini agregou a prética da histéria ou anamnese ocupacional. Assim, ele dizia algo que nao se aplica somente ao médico, mas a todos os profissionais da salide que atuam no contexto do Trabalho: Ampliando a abordagem clinico-individual, {..] um médico que atende um doente deve informar-se de muita coisa a seu respeito pelo proprio e por seus acompanhantes |... A estas interrogagbes devia acrescentar-se outra: ‘e que arte exerce?’. Tal pergunta considero oportuna e ‘mesmo necessério lembrar ao médico que trata um homem do povo, que dela se vale chegar as causas ocasionais do mal, a qual quase nunca € posta em pric, ainda que 0 médico a conheca. Entretanto, se a houvesse observado, poderia cobter uma cura mais feliz, Ramazzini introduziu, também, a anélise coletiva ou epidemiolégica, categorizando-a se- gundo ocupaco ou profissao (cerca de $0), 0 que Ihe permitiu construir e analisar “perfis epi- demiolégicos” de adoecimento, incapacidade ou morte, como até ento nao feitos. Com justica, portanto, Ramazzini é, também, respeitado pelo campo da Epidemiologia, por haver introduzido esta categoria de andlise, no estudo da distribuicgo da doenca. Outra area para a qual Ramazzini deixou sua contribuic30 foi a da sistematizagao e classifi cago das doencas segundo a natureza e 0 grau de nexo com o trabalho. Com efeito, 20 descrever as “doencas dos mineiros” (capitulo | de seu livro), Ramazzini entendeu que J omiltiploe variado campo semeado de doencas para aqueles que necessitam ganhar salério e, portanto, terdo de sofrer males terriveis em consequéncia do oficio que exercem, prolifera, |... devido a duas causas principais: a primeira, € a mais importante, a natureza nociva da substéncis manipulada, 0 que pode produzir doengas especiais pelas exalagbes danosas, e poeiras irritantes que 19 ‘afetam 0 organismo humano; a segunda é a violéncia que se faz 8 estrutura natural da maquina vital, com posigdes forgadas e inadequadas do corpo, o que ouco a pouco pode produzir grave enfermidade. A propésito das “doengas dos que trabalham em pé” (capitulo XXIX de seu livro}, assim se expressa Ramazzini: [..J até agora falei daqueles artifices que contraem doencas em virtude da Nocividade da matéria manipulada; agrada-me, aqui, tratar de outros operérios que por outras causas, como sejam a posi¢ao dos membros, dos movimentos corporais inadequados, que, enquanto trabalham, apresentam disturbios mérbidos, tais como os operdrios que passam o dia de pé, sentados, inclinados, encurvados, correndo, andando a cavalo ou fatigando seu corpo por qualquer outra forma, De fato, deste critério de classificaco empirica utilizado por Ramazzini, 6 possivel pingar as bases para uma sistematizacao da Patologia do Trabalho, em que, no primeiro grupo, estariam as “doencas profissionais” ou “tecnopatias”, e, no segundo, as “doengas adquiridas pelas condig&es, especiais em que o trabalho é realizado”, ou as “mesopatias”. classificag3o até hoje utilizada para fins médico-legais e previdenciarios em muitos paises, inclusive no Bra Muitas outras contribuigdes poderiam ser aqui identificadas, tais como sua visio das inter- -relacSes entre a Patologia do Trabalho e o Meio-Ambiente, quando estuda as “doencas dos qui- micos" (capitulo IV de seu livro), a énfase na preven¢So primaria das doengas dos trabalhadores, ‘© que ele faz no interior de intimeros capttulos de seu livro. Ainda, & no estudo das “doencas dos quimicos” que ele descreve a utiliza¢o potencial de registros de dbito para o estudo dos impactos da poluicdo ambiental sobre a satide das comunidades- estratégia metodolégica que até hoje se utiliza Apesar das relagdes Trabalho, Saude e Doenga dos trabalhadores serem reconhecidas des- de os primérdios da histéria humana registrada, expressa em obras de artistas plasticos, historia- dores, fildsofos e escritores, é relativamente recente uma produgio mais sistematica sobre o tema. Desde ento, acompanhando as mudangas e exigéncias dos processos produtivos, e dos movimentos sociais, as préticas da Sade Ocupacional tem se transformado, incorporando novos enfoques e instrumentos de trabalho, em uma perspectiva interdisciplinar, delimitando o campo da Satide Ocupacional e, mais recentemente, da Satide dos Trabalhadores e da Satide Mental do trabalho ou Saude Mental Ocupacional! 2 CONSIDERACGES SOBRE A SAUDE/DOENCA MENTAL E TRABALHO Comegaremos esta secdo pela definico de Sade, da World Health Organisation (1946, .45) que refere que “a satide & um estado de completo bem-estar fisico, mental e social e no simplesmente a auséncia de doenga ou enfermidade”. Dejours (1992) fala sobre 2 sade, como algo inatingivel, que a normalidade é um estado em que as doencas esto estdveis, devido a aco de estratégias defensivas; quanto & satide mental, nunca é verdadeiramente atingida e é evidente a relaco entre sade fisica e satide mental. Portanto, 0 Trabalho pode contribuir para a satide ou a doenga, é importante na construgiio da satide mental, moldando a identidade e podendo levar ou ndo a autorrealizagio e 8 autoestima do trabalhador, trazendo reconhecimento e oportunidades de relagdes socials. * Sugerimos que vocé assista 20 video "A Histéria da Seguranca no Trabalho” disponivel em: 20 ue se da os os 2s, ver as as es ra ate 2, os os. se Desde as ditimas décadas do século XX, constata-se uma crescente atengao a saide/doen- ca mental dos trabalhadores. Ressalta-se, ainda, uma associagao do sofrimento e/ou da doenca psiquica com o contexto laboral, que come¢e, paulatinamente, a ser reconhecida pelo imaginario social JACQUES; AMAZZARAY, 2006). E interessante notar que o termo ‘trabalho’ deriva do Latim tripalium, que, na Antiguidade, ‘era um instrumento de trés pontas de ferro, utilizado para a ceifa dos cereais. No entanto, com 0 decorrer do tempo, 0 termo tripalium passou para a histéria como instrumento de tortura, asso- ciado a sofrimento. O termo tripaliare significa “torturar alguém”. Atualmente, ‘trabalho’ tem um duplo significado: prazer e sofrimento. Ha pessoas que percebem o trabalho predominantemente como sofrimento, e outras como prazer, embora se saiba que prazer e sofrimento sempre existi- 10, variando os graus. A satide mental é definida pela Organizac3o Mundial da Satide (OMS), como “o estado de bem-estar no qual 0 individuo realiza as suas capacidades, pode fazer face ao estresse normal da vida, trabalhar de forma produtiva e frutifera e contribuir para a comunidade em que se insere” pode ser promovida por meio de programas adequados, da melhoria das condicdes sociais e da pre- vencdo do estresse, entre outros fatores, e da luta contra o estigma segundo 0 guia elaborado pelo Secretariado Nacional para Reabilitacdo e Integragio das pessoas com Deficiéncia (SNRIPD, 2006). Para Guimardes (1999, p.23), 0 campo da Satide Mental e Trabalho é 0 estudo da dindmica, da organizagio e dos processos de trabalho, visando 3 promordo da Satide Mental do trabalhador, por meio de ages diagnésticas, preventives & terapauticas eficazes. Oconceito de satide mental deve envolver o hamem no seu todo biopsicossocial, o contex- to social em que estd inserido, assim como a fase de desenvolvimento em que se encontra. Neste sentido, podemos considerar a satide mental como um equilibrio dindmico que resulta da intera- G80 do individu com os seus varios ecossistemas: 0 seu meio interno ¢ externo, as suas caracteris- ticas orggnicas e os seus antecedentes pessoais e familiares (FONSECA; MOURA, 2008). As trans- formagdes introduzidas nos contextos laborais, nos ultimos anos, tem oportunizado, em geral, methores condigdes de trabalho, com ambientes mais limpos, menos insalubres, menos riscos de acidentes e doengas, Por outro lado, tais transformagdes nos processos de trabalho tém suscitado novas formas de sofrimento e/ou doenga, vinculadas, principalmente, ao funclonamento psiquico dos trabalhadores e disseminadas pelos mais diferentes espacos de trabalho, incluindo o setor de servigos. As estatisticas de auxilio-doenca e aposentadoria por invalidez refletem este novo perfil. Segundo dados da OMS, cerca de 30% dos trabalhadores ocupados sofrem de Transtornos Mentais Menores (TMM), ¢ cerca de 10% sofrem de Transtornos Mentais Graves (GUIMARAES et al,, 2006). ‘As maiores conquistas no Ambito da salide do trabalhador se devem 8 luta histérica e coti- diana da classe, como atestam os registros da Histéria. Voltar-se, nos dias atuais, para as relacdes entre satide mental e trabalho € 0 novo desafio a ser coletivamente assumido. Para tanto, faz-se necessério demandar sustentacdo teérica, estudos empiricos, pactos com diversos segmentos so- Ciais, posigdes politicas e um trabalho de militancia, trabalho este potencialmente promotor de sade, 2.1.4 psicopatologia do trabalho © movimento liderado por alguns psiquiatras franceses e que adquiriu maior importancia os anos 50, no periodo efervescente do pds-guerra, teve alguns antecedentes importantes: 2a modernizac3o crescente da industria francesa (baseada nas tentativas de racionalizagéo e de au- mento da produtividade] desde a | Guerra Mundial, a criacdo de politicas de prevencéo no campo da satide e de um conjunto de medidas destinadas 8 promoc3o de uma “higiene social”, a consoli- ago do trabalho como um campo de estudo a partir da contribuigsio de uma vasta gama de dis- ciplinas: a sociologia empirica, a sociologia das organizagées, as ciéncias de gest, a psicotécnica, a psicofisiologia do trabalho, a psicologia do trabalho, a medicina do trabalho, a ergonomia entre outras E importante assinalar, também, a transformaco da Psiquiatria, no periodo entre as duas grandes guerras, apds 0 seu encontro com a Psicanilise, dividindo-se entre aqueles que aderiram © 0s que criticaram a incorpora¢do da teoria freudiana a pratica psiquidtrica. Ocorreram, também, mudangas cruciais em torno das reflexdes a respeito do trabalho, a partir das necessidades im- postas pela Il Guerra: as exigéncias de adaptagio e de readaptacao ao sistema produtivo. Outra questo fundamental concerne as novas interrogacBes a respeito do papel do trabalho na génese de doenca mental, mas, também, na integracdo dos individuos (principalmente, dos pacientes acometidos por transtornos mentais) & vida social. A busca de respostas a tais interrogagées levou 20 surgimento de novas formas de compreensio e de tratamento da “doenga” mental, cujos expo- entes mais importantes so Paul Sivadon e Louis Le Guillant (DEJOURS, 1987). Paul Sivadon deu continuidade aos trabalhos de Henry Ey, adotando, portanto, uma pers- Pectiva tedrica cujo eixo central se encontra na tentativa de conciliar as concep6es organicista e dindmica da doenga mental. Ou seja, ele tenta integrar e, ao mesmo tempo, ultrapassar o orgénico na compreensao da estruturac3o da personalidade. De qualquer forma, a doensa mental é enten- dida essencialmente como resultante de alteragdes no substrato organico (BILLARD, 1996). Nos termos dessa autora “a dinamica de Ey se refere mais aos movimentos evolutivos e contra evolu- tivos do desenvolvimento genético do que & dindmica dos afetos e das representagées tal como propée a teoria freudiana” (BILLARD, 1996, p. 80). Como herdeiro tedrico de Henry Ey, Sivadon terd sua obra atravessada por essa tentativa de integrar 0 psiquico, 0 organico e o social, mas, sem jamais conseguir estabelecer de forma satisfatéria as prioridades ontolégicas entre essas tr8s instancias. Ele vai recorrer & teoria da Gestalt para tentar fazer essa integrago, dizendo que “se € verdade que elementos heterogéneos, tais como fatores organicos e psicossociais, n3o podem se adicionar, é igualmente verdadeiro que, sob condicdes definidas pela teoria, eles podem se integrar num conjunto (...] de onde emergira uma nova funcdo ou um conceito original” (p. 124), Fica evidente, pelo caréter excessivamente abstrato (para nao dizer especulativo) da solugSo en- contrada por Sivadon, que ele nao foi capaz de resolver satisfatoriamente o dilema diante do qual se encontrava (DEJOURS, 2004), A-contribuicgo maior de Sivadon para o campo da satide mental no trabalho foi a sistema tizagdo de uma nova forma de abordar as afeccdes mentais: a ergoterapia. Por meio dessa abor- dagem, 0 trabalho passa a ser “reconhecido especialmente pelo seu valor de integra¢o social” (WISNER; VEIL; DEJOURS, 1985, p. 14). Mas, foi também Sivadon que empregou pela primeira vez 0 termo “psicopatologia do trabalho” (grifo dos autores), ou seja, apesar de ter dedicado grande parte dos seus esforcos 8 compreensio do valor terapéutico do trabalho no tratamento dos problemas mentals, ele foi capaz de “reconhecer o trabalhador no doente mental” (WISNER et al,, 1985) a0 constatar o potencial patogénico de certas formas de organizaco do trabalho. No artigo em que nomeou a nova disciplina que emergia das transformagées do pés-guerra, Sivadon Percorreu todo este caminho que vai do trabalho como fonte de crescimento e evolugso do psi- quismo humano, até as formas perversas de organizacao da atividade laboral, gerando pressdes € conflitos insuperdveis, possibilitando a emergéncia da doenca mental. 22 aus ‘po oli- fis- ca, tre uas am im, im- ‘tra ase tes you po- ase ae ico en- Nos slu- mo fon 1as, és “se em se 24), en- jual na- vor ial” sira ado nto NER No don psi- we Louis Le Guillant (1984) integra, tarnbém, a chamada Psiquiatria Social francesa e é percebi- do, om Sivaden (1993), como um dos mais importantes expoentes da Psicopatologia do Trabalho a Franca, embora suas perspectivas teéricas sejam fundamentalmente diferentes (ou mesmo tivergentes) em varios aspectos. Ele ird apoiar-se em correntes de inspiragdo marxista¢, principal- mente, em Georges Politzer, ofundador da Psicologia Concreta na Franca, pare elaborar sua teoria sobre os impactos do trabalho no psiquismo humano. Sua contribuigo para o desenvolvimento dessa nova disciplina foi decisiva; mas, é, até agora (infelizmente), muito pouco conhecida no Brasil, Ele tenta compreender as possiveis relacdes entre alienacdo mental e alienaco social, isto 6, ele se interroga “sobre as repercussées patolégicas do condicionamento social e da alienacdo no trabalho” (BILLARD, 1996, p. 82), vinculando-se s teorias que tentam captar os determinantes sociais da doenga mental, porém, sem perder de vista a dimensao psicolégica. O que ele propde 6 um esbogo de uma psicopatologia social, isto 6, tenta verificar 0 papel do meio no surgimento € no desaparecimento dos disturbios mentais. Em outras palavras, apesar de no negar a presenca de fatores orgdnicos e psiquicos no adoecimento, Le Guillant busca nas transfarmacdes sécio-his- toricas os elementos essenciais para compreender a génese dos transtornos mentais. Além disso, ele se apoia nas reflexdes de Politzer, para concluir que, somente apds o resgate das condig&es reais de existéncia dos individuos, das suas formas concretas de trabalhar e de ganhar a vida é que estaremos em condigées de compreender seu psiquismo e os disttirbios que possa apresentar. A sua tentativa & a de “estabelecer uma psicopatologia nao da vida quotidiana, mas da realidade quotidiana” (LE GUILLANT, 1985, p. 339). Assim, a doenca mental no trabalho seria consequéncia de toda uma trajetria do individuo (dai, sua proposta de se estudar minuciosamente a historia de vida dos pacientes), que se adicionaria a um contexto de trabalho repleto de contradigdes e de exi- géncias. Para ele, a chave da disciplina estd na questo da alienaco, pois ela nos introduz “numa psicopatologia onde o subjetivo e o objetivo seriam menos separados e onde o conhecimento do individuo e 0 da sociedade se reconciliariam” (LE GUILLANT, 1985, p. 359). O que defende, por- tanto, é uma abordagem psicossociolégica da doenca mental, na qual o trabalho estaria no centro da realidade social ‘A metodologia proposta por Le Guillant para 0 estudo do potencial patogénico do trabalho constitui-se numa abordagem pluridimensional, envolvendo: dados estatisticos, entrevistas, dados obtidos junto aos sindicatos, aos servigos médicos especializados, leitura da literatura médica e da literatura em geral (romances, poesias) que abordem o tema estudado, além dos dados indiretos. Ela é posta em pratica por um “ir e vir” constante entre o qualitative € o quantitativo, entre “os rnimeros e 05 fatos individuais” (LE GUILLANT, 1985, p. 367). Em suma, Le Gulllant tenta articular condigdes sociais, condigées de trabalho e fatos clinicos. Ele admite a relagao entre certos disttir- bios psiquicos e certas situagdes de trabalho, apesar de constatar a grande dificuldade de se com- preender concretamente como se da “a passagem entre uma situacdo vivida e uma desordem de espirito” (LE GUILLANT, 1985, p. 389). 2.2.A psicodinamica do trabalho de Dejours Influenciado pela Escola da Psicopatologia do Trabalho, o psiquiatra e psicanalista Christophe Dejours, nascido em Paris, em 1949, professor do Conservatorio Nacional de Artes e Oficios (CNAM) de Paris, que publica no Brasil, desde 1987, avangou esas ideias, desenvolveu novos paradigmas © consolidou uma nova linha de pensamento, chamada de Psicodinamica do Trabalho. Este campo enfatiza o papel das defesas adotadas pelos trabalhadores camo mecanismos de manutengao do equilibrio psiquico. 23 Elege como categoria de anélise o sofrimento mental, distanciando-se, assim, das concep- ges tedricas que tém por referencial perfis psicopatoldgicos baseados na nosologia psiquidtrica. Distancia-se, ainda, de abordagens que adotam o referencial da medicina ocupacional e que rela- cionam riscos as doencas psiquicas especificas. 0 sofrimento do trabalho se expressa, de acordo com a presente perspectiva, por meio de sentimentos de insatisfagdo e ansiedade, derivados da falta de significado do contetido do trabalho para o sujeito, da fadiga, do contetido ergonémico e das cargas de trabalho. Ha uma importante distinggo entre a insatisfarao gerada pelo contetido ergondmico (relacionado com a falta de adequacao do contetido as aptiddes e necessidades do trabalhador) e aquela gerada pelo conteudo significative do trabalho (ou simbélico), a qual engendra um sofrimento cujo impacto & mental. De forma geral, pode-se dizer que a Psicodindmica do Trabalho entende o trabalho como vértice do individuo e infere que a divisdo de tarefas e a diviso dos homens norteiam conflitos psi- quicos. A Psicodindmica do Trabalho enfatiza a centralidade do trabalho na vida dos trabalhadores, analisando os aspectos dessa atividade que podem favorecer a satide ou a doenca. Ao analisar a inter-relago entre Satide Mental e Trabalho (SM&T), Dejours (1987) acentua o papel da organiza- G0 do trabalho no que tange aos efeitos negativos ou positivos que aquela possa exercer sobre o funcionamento psiquico e & vida mental do trabalhador. Este autor conceitua organizago do tra- balho como a divisdo das tarefas e a divisio dos homens. A diviso das tarefas engloba o contetido das tarefas, o modo operatério e tudo que é prescrito pela organizac3o do trabalho, Dejours, Abdoucheli e Jayer (1994), posteriormente, passaram a acentuar o fato de que a relagdo entre a organizagao do trabalho e o ser hurnano encontra-se em constante movimento. Do ponto de vista da Ergonomia, a andlise da organizaco do trabalho deve levar em conta: a organi- 2a¢3o do trabalho prescrita (formalizada pela empresa) e a organizagSo do trabalho real (o modo operatérin dos trabalhadores). Segundo 0 autor, o descompasso entre as duas favoreceria 0 apa- recimento do sofrimento mental, uma vez que levaria o trabalhador & necessidade de transgredir para poder executar a tarefa 2.3 A psicodinamica do trabalho: outro campo de investigago em SM&T na Franca Christophe Dejaurs é, sem diivida, o maior representante de um novo campo de pesquisa que comecou a se delinear a partir dos movimentos de maio de 1968 na Franca: aquele que se interessa pela investigago das consequéncias mentais do trabalho, mesmo quando no surgem doengas mentais propriamente ditas (BILLARD, 1996). Para este autor, o objeto de estudo da Psicopatologia do Trabalho é, acima de tudo, o sofrimento, mas isto ndo significa que tude fique re- duzido & constatac3o desse sofrimento. Trata-se, também, de realizar uma andlise que abre possi- bilidades de transformagao dessa realidade. Ele observa que, muitas vezes, nao é possivel alcangar um equilfbrio entre as exigéncias da organizago do trabalho e as necessidades tanto fisiolégicas quanto psicoldgicas do trabalhador. Deste conflito, emerge um sofrimento que pode ser mais ou menos elaborado e apresentar repercussdes acentuadas sobre a satide mental (CLOT, 1996) Segundo Dejours (1984), o grande enigma para a Psicopatologia do Trabalho nao ¢ a “doen- 2” mental, e, sim, a normalidade, isto , o que importa realmente é compreender as estratégias defensivas (individuais e/ou coletivas) adotadas pelos trabalhadores, com a finalidade de evitar 0 adoecimento e preservar, ainda que precariamente, seu equilfbrio psiquico. A partir dessa cons- tatago, ele propée a mudanga do nome da disciplina para “Psicodindmica do Trabalho” (grifo dos autores) argumentando que no foi possivel estabelecer uma relagao causal entre certos dis- 24 p s Jo na 1a Ho. to no. st 35, va a 20 es do 2a Do nie do ve dir isa se am da re- ssi- car cas, ou ane tias ro ns- ‘if sis ttirbios psiquicos e certas formas de organiza do trabalho, Além disso, considera esta segunda denominagao mais adequada, na medida em que amplia o campo da investigagio, permitindo um olhar para 0 sofrimento, mas, também, para o prazer no trabalho. Em suma, Dejours no admite que 0 trabalho seria causador de doengas mentais, podendo no méximo desencadeé-las e, ainda assim, sob certas circunstancias bastante especificas. Segundo ele: [J a0 se dar a normalidade como objeto, a psicodin3mica do trabalho abre perspectivas mais amplas que [..] no dizem respeito apenas a0 sofrimento, mas também ao prazer no trabalho; no apenas a0 homem, mas ao trabalho; no apenas 4 organiza¢30 do trabalho, mas as situagdes de trabalho no detalhe rigorosa de sua dindmica interna (Codo, Sampaio, & Hitomi, 1993). Além disso, ele afirma que o desenvolvimento da psicopatologia do trabalho em dirego da psicadindmica do trabalho esté baseado em uma ‘descoberta’ essencial que ¢ 0 reconhecimento de que a relago entre organizagdo do trabalho e o homem no um bloco rigido, mas esté em continuo movimento. (DEJOURS, 1997). Nessa segunda fase de estudo da Psicopatologia do Trabalho, na Franca, observa-se uma significativa presenga de conceitos psicanaliticos nas suas principais produgSes tedricas. Isto n30 é novidade, uma vez que jé é bastante conhecido 0 “retorno” da Psicandlise para 0 campo das Ciencias Sociais, apés os movimentos de maio de 68. Segundo Billiard (1996, p. 82), no caso da SMB&q, esse impacto val se dar de forma mais evidente na “refundago da psicopatologia do tra- balho em torno dos anos 80". € facil concluir que essa busca de recursos na Psicanilise, a fim de explicar 0 sofrimento psiquico do homem no trabalho, tem sido objeto de polémica. Para alguns autores, a teoria psicanalitica ndo tratou do trabalho e, ainda menos, das possiveis consequéncias psicopatolégicas do sofrimento e da alienacao presentes na rela¢3o do homem com sua atividade profissional. Codo et al. (1994) discutem a auséncia da categoria trabalho ndo apenas na psicandlise, mas, na psicologia em geral. Eles concluem que a maioria das teorias psicoldgicas tem pouca con- tribuicSo a oferecer para o campo da SM&T. Os autores do presente estudo, também, fizeram uma longa reflexdo sobre a pertinéncia dessa importac3o de conceitos psicanaliticos pela Psicopatologia do Trabalho (LIMA, 1988). No entanto, apesar de ainda se considerar valida a maior parte dessas reflexes, conclui-se que alguns desses conceitos preservam sua forga na explicagao de certos fe- némenos detectados nas pesquisas em SM&T (DEJOURS, 1992). ‘Amais recente obra de Dejours traduzida para o Portugués abordou o tema do suicidio no trabalho (DEJOURS; BEGUE, 2010), Em 2012, foi publicado, na Franga, o livro Psychopathologie du travail (DEJOURS; GERNET, 2012), que pertence & colecdo “Les Ages de la vie" (As idades da vida) dedicada 8 Psicopatologia, publicada na Franca, pela Editora Elsevier Masson e que, certamente, atrai quem se interessa pelo campo da Psicologia do Trabalho e Organizacional. Trata-se do mais novo livro de Christophe Dejours, Ele escreveu o livro em coautoria com Isabelle Gernet, professora da Universidade de Paris-Descartes, do Laboratério de Psicologia Clinica e Psicopatologia, e membro da eauipe de Pesquisa “Psicodinamica do trabalho e da aco” no mesmo CNAM de Oejours. A obra “prope uma apresentag3o dos fundamentos tedricos, permitindo dar conta da inteligibilidade € da significaggo das condutas humanas em situagio de trabalho” (DEJOURS; GERNET, 2012, p. V). Talvez, em fungo das exig&ncias colocadas pela colecdo, o préprio titulo do livro pode deixar confuso o leitor contumaz dos textos de Dejours, j8 que, desde a década de 1990, ele argumenta ser preferivel outra expresso (Psicodinamica do Trabalho ~ PDT), como escrevera 25 “a ‘psicopatologia do trabalho é demasiadamente estreita para responder as novas questées, e somos obrigados a vislumbrar uma perspectiva mais ampla: a da psicodinamica do trabalho” (DEJOURS, 2004, p. 48}. Aqui, seguindo a légica da coleco, os autores falam em Psicopatologia do trabalho (PPT), argumentando que ela passou por uma “renovago” (DEJOURS; GERNET, 2012, p. 14). CO livro remete a Psicandlise como referéncia tedrica central para compreensdo psicopato- légica. Dejours recorre a ela desde o inicio de sua trajetéria e, neste livro, ela ganha um lugar fun- damental, mais explicitamente que em geral encontramos em outros textos seus. Articula a tese da centralidade da sexualidade e do trabalho na construgo da identidade, com a ideia de que os problemas psicopatolégicos no trabalho contemporaneo esto relacionados as condigdes socials e organizacionais nas quais ele é realizado. Na obra, na seco “Psicopatologia e psicodinmica do trabalho: abordagem conceitual”, 08 autores resgatam brevemente a histéria da PPT e repassam conceitos e nogbes centrais da POT, como: sofrimento, “um vivido especifico resultante da confronta¢do dindmica dos sujeitos com a organizac3o do trabalho" (p. 14); prazer, que “pode estar ao encontro do trabalho quando o so- frimento pode se transmutar em exig&ncia de trabalho pelo Ego e se transformar em experiéncia estruturante para a identidade” (p. 18); normalidade, resultado “de um compromisso entre 0 so- frimento eas defesas elaboradas para suportar este sofrimento” (p. 20); estratégias de defesas in- dividuais e coletivas, que so “toda uma série de processos psiquicos que véo contribuir para lutar contra a ameaga de descompensacao” (p. 21); inteligéncia no trabalho, que "se pode dar © nome de ‘engenhosidade’, em vista de evidenciar seu carter inventivo e pratico baseado na experiéncia de trabalho” (p. 35); coordenago, que “designa a prescrigio dada pela organizac3o do trabalho de relagao entre os individuos” (p. 44); cooperago, que “designa os lacos entre os sujeitos em via de realizar voluntariamente uma obja comum” (p. 44); divisio sexual do trabalho, organizada pelo “principio da separagao (entre trabalhos de homens e trabalhos de mulheres) e o principio da hierarquia: um trabalho de homem tem mais ‘valor’ que um trabalho de mulher” (p. 30). Esse percurso é interessante para aqueles que jé conhecem grande parte da obra de Dejours, por en- contrar uma apresentago de temas centrais de outra maneira. € também til para o iniciante, que encontra, em um texto sintético, 0 arcabougo tedrico da PDT. Na seco “Entidades psicopatolégicas ligadas ao trabalho”, apresentam-se dois capitulos: um com os “Principios da anilise etiolégica das patologias mentais em ligacdo com o trabalho”, tema que é to importante em Psicologia do Trabalho e Organizacional em sua relacéo com 0 ‘campo da satide do trabalhador. Sua importincia se apresenta seja para subsidiar iniciativas de prevenco, seja para atribuir beneficios previdenciérios ou indenizagSes trabalhistas a quem se afasta do trabalho em fungo de problemas de satide gerados ou agravados pelo labor. Os autores defendem que, em geral, a Psiquiatria no leva em conta suficientemente o poder patogénico do trabalho, limitando sua andlise & estrutura psicopatolégica do suleito, levando a equivocos, ja que “as relacdes entre funcionamento psiquico e campo social nfo se articulam de maneira direta, mas so sempre mediatizadas pelo encontro com o real mobilizado pelo trabalho” (p. 64). 0 outro capitulo apresenta "Entidades psicopatolégicas ligadas ao trabalho” e faz una breve descrigio do quadro psicopatoldgico, seguido dos itens “clinica”, “andlise”, “ilustrago clinica’, Infelizmente, nem todas as entidades ou seus subtipos vém acompanhados da ilustrag0, 0 que contribuiria para melhor compreendé-los. Neste capitulo, as entidades apresentadas so: transtornos do hu- mor; psicoses ligadas ao trabalho; patologias pés-traumaticas (Sindrome subjetiva pés-trauméti- a; sinistrose; neurose traumstica) e violéncia no trabalho; patologias do assédio (sexual; moral); patologias de sobrecarga (Karoshi; transtornos musculoesqueléticos; sindrome do esgotamento 26 es, 10" 7), to- an- ase os se a, DT, na s0- cia so- ine tar me cia tho em ada pio sse en- que al); nto profissional ou burn out); hiperatividade e dopagem no trabalho; transtornos do julgamento e do pensamento; suicidios e tentativas de suicidio; psicopatologia do desemprego. (0s autores argumentam que seria conveniente haver uma lista de patologias profissionais, especificamente psicopatolégicas. No Brasil, jd existe essa lista incluida entre as doencas oficial- mente reconhecidas pelo Ministério da Satide (2002), o que favarece o estabelecimento do nexo causal entre trabalho e os transtornos mentais, permitindo ganhos juridicos e previdenciarios para 9s trabalhadores, Por outro lado, tal lista acaba trazendo limitagdes, jé que 0 adoecimento dos tra- balhadores no se restringe ao que se apresenta naquele quadro e, como a préprie POT defende, ha inumeras formas de sofrimento no trabalho que ndo chegam a se configurar em patologia 8 custa de enormes esforcos individuais e coletivos dos trabalhadores. Aultima parte, “Intervengdes e perspectivas terapéuticas", inicia-se tratando dos “Elementos da legisla do trabalho” na Franca, focando dois aspectos: assédio; riscos psicossociais. A seguir, traz uma brevissima apresentacao do tema “Reinsercao e readaptacao pelo trabalho’, defen- dendo que se devem oferecer condigSes para que o sujeito possa se apropriar dos investimentos que faz naquele meio de trabalho, valendo-se de uma atividade adaptada &s suas dificuldades. Em cutro, apresenta os “Dispositivos institucionais” franceses para lidar com as questdes de satide e trabalho. Traz, também, uma apresentagdo sucinta sobre “Os atores engajados nas questes de psicopatologia do trabalho” e uma breve exposigio critica dos “Métodos de intervenggo na empresa”, Essa parte do livro traz ainda algo muito interessante, que pode fornecer caminhos para a formulagdo de terapéuticas em satide mental do trabalhador. Trata-se do que eles denominam de “Abordagem psicoterépica dos pacientes que sofrem de transtornos psiquicos em relago com o trabalho”. Nela, propdem formas de conduzir a terapia com trabalhadores, de modo @ tocar nos temas: organizagao do trabalho; cooperagio; avaliagao; sofrimento ético; género; esfera privada, esfera profissional; reconhecimento de injustigas. 3 CONCLUSAO A evolugiio histérica dos modos de abordagem da saide da Homem no trabalho justifica a escolha dos conceitos norteadores desta obra: satide psiquica e trabalho. igualmente, aparece cla- ra a necessidade de articulago cientifica da Psicologia do Trabalho com os saberes da satide e das ciéncias socials, visto que o campo de estudo e profissional sobre o qual se dedica foi constituido de forma multidisciplinar. Sendo assim, no serd de forma menos multidisciplinar (ou até interdis- ciplinar) que novos conhecimentos e novas préticas garantidores da satide psiquica do trabalhador iro se desenvolver. REFERENCIAS BILLARD, L. Les conditions historiques et sociales de apparition de la psychopathologie du travail en France (1929-1952). In: CLOT, Yes. 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