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O papel da Lógica Jurídica consiste não só em garantir a possibilidade de que as conclusões

silogísticas, quando cabíveis, sejam corretas, mas também, e fundamentalmente, em


possibilitar que as escolhas das premissas sejam feitas de forma racional e justificada,
garantindo que o Direito possa efetivamente ser qualificado como Ciência e possibilitando que
se exerça um controle mais apropriado das decisões jurídicas.

SUMÁRIO: Introdução; 2. A Lógica. 3. Lógica jurídica. 4. Direito e Lógica em Hans Kelsen. 5.


Recaséns Siches e a lógica do razoável. 6. A teoria da argumentação de Robert Alexy.
7.Conclusões. Referências.

RESUMO: O presente artigo trata das relações entre a Lógica e o Direito, partindo da
problematização das ideias de que o Direito seria um sistema lógico e de que a aplicação das
leis a um caso concreto seria uma simples operação lógico-dedutiva. Defende-se a adoção de
um conceito ampliado de lógica, que inclua não só a lógica formal, mas também os raciocínios
não-dedutivos, de forma a possibilitar a superação da polêmica acerca da existência de uma
lógica jurídica, evidenciando sua existência como um ramo do saber com um objeto mais
amplo do que o da lógica formal, abarcando, além dos processos estritamente lógico-formais,
como a dedução e a indução, métodos extra-lógicos de justificação das decisões judiciais, como
a analogia e a argumentação retórica. Em seguida, analisa-se o papel dos princípios ou leis da
lógica jurídica nos processos de justificação racional das decisões judiciais na teoria pura do
Direito de Kelsen, na lógica do razoável de Recaséns Siches e na teoria da argumentação de
Robert Alexy.

Palavras-chave: lógica formal, lógica jurídica, lógica do razoável, argumentação.

INTRODUÇÃO

É muito difundida a ideia de que o Direito guarda íntima ligação com a Lógica, e que nas
relações estabelecidas entre as diversas normas que formam o ordenamento jurídico-positivo,
bem como na aplicação dessas normas aos casos concretos, devem ser obedecidos os
princípios da lógica. Lee Lowwvinger afirma que a “lógica, ou razão tem sido reivindicada por
filósofos igualmente como propriedade especial e como fundamento principal do Direito,
desde pelo menos o tempo de Aristóteles” (apud Kelsen 1986, p. 434). Para a maioria dos
leigos e grande parte dos juristas, assim, o Direito é um fenômeno estritamente lógico,
cabendo ao juiz, ao aplicar a lei a um caso concreto, deduzir logicamente a sentença a partir do
silogismo entre as leis gerais e os fatos. Daí ter W. F. Maitland, historiador do Direito inglês,
afirmado que os juristas “são os mediadores entre a vida e a lógica” (apud KELSEN, 1965, p.
275).
Com efeito, é comum os operadores do direito sustentarem a necessidade de uma “aplicação
lógica” das leis ou defenderem a “argumentação lógica” na sua atuação diária. Neste sentido,
Aldisert, Clowney e Peterson (2007, p. 100/102) afirmam que:

Logic is the lifeblood of American law. In case after case, prosecutors, defense counsel, civil
attorneys and judges call upon the rules of logic to structure their arguments. Law professors,
for their part, demand that students defend their comments with coherent, identifiable logic.
By now we are all familiar with the great line spoken by Professor Kingsfield in The Paper
Chase: “You come in here with a head full of mush and you leave thinking like a lawyer.” (…)
Logic anchors the law. The law’s insistence on sound, explicit reasoning keeps lawyers and
judges from making arguments based on untethered, unprincipled, and undisciplined hunches.
[1]

De acordo com esse modelo lógico-formal, o Direito, ou mais especificamente, o raciocínio


jurídico, seria construído a partir de normas que se vinculam por inferência lógica, de sorte que
seria possível fazer-se um encadeamento racional das normas, desde uma norma geral e
abstrata, de hierarquia superior e na qual se fundam as demais, até a mais concreta e
específica, diretamente aplicável ao caso concreto, formando-se assim uma pirâmide
normativa cujo ápice seria ocupado pela Constituição[2]. Além desssa relação entre normas,
haveria também uma relação lógica de inferência entre as normas e o fato posto em
julgamento, de tal modo que a conclusão, isto é, a sentença, seria o produto de um ato racional
de aplicação lógica.

Neste modelo, que teve suas bases estruturadas a partir do liberalismo do século XVIII, a
atividade judicial é tida como meramente declaratória da norma legal aplicável ao caso
concreto, cabendo ao juiz unicamente fazer um silogismo lógico-dedutivo em que a premissa
maior seria a norma e a premissa menor seria o fato, decorrendo daí uma única solução
possível, que deveria ser a adotada. O papel a ser desempenhado pelo juiz, assim, seria o de
mero aplicador da lei, cabendo-lhe tão-somente “dizer a lei do caso concreto”, extraída a partir
da lei genérica e abstrata. Por isso é que Montesquieu (1997, p. 203) afirmava que os juízes
“(...) não são mais do que a boca que pronuncia as palavras da lei; seres inanimados que não
podem moderar-lhe nem a força nem o rigor”. Em virtude dessa visão, como afirma
Kantorowicz (apud Prado, 1995, p. 62),

Imaginava-se o jurista ideal como um funcionário de certa categoria, sentado diante de sua
escrivaninha, armado de um código e de uma máquina de pensar da mais fina espécie. Diante
de um caso qualquer, podia esse funcionário, com o auxílio da lei e da máquina, chegar à
solução pretendida pelo legislador no código, com uma exatidão absoluta.
No mesmo sentido, tornando explícita a forma como a ligação entre a lógica e o direito era
vista, afirmou Beccaria (1995, p.17) que:

O juiz deve fazer um silogismo perfeito. A maior deve ser a lei geral; a menor, a ação conforme
ou não à lei; a conseqüência, a liberdade ou a pena. Se o juiz for constrangido a fazer um
raciocínio a mais, ou se o fizer por conta própria, tudo se torna incerto e obscuro.

Ocorre, entretanto, que vários fatores, entre os quais a crescente positivação de direitos
fundamentais, não só relacionados aos direitos civis e políticos, mas também aos chamados
direitos econômicos, sociais e culturais, além do reconhecimento da Constituição como
verdadeira norma impositiva e cogente, e não mais a mera “folha de papel” de Lassalle (HESSE,
1995), geraram um crescimento do grau de jurisdicionalização da vida social e política que
redundou numa profunda alteração do papel desempenhado pelo Poder Judiciário nas
democracias modernas, onde não mais é possível validamente sustentar-se a correção da
concepção liberal-legal clássica.

Tais fatores, aliados ao reconhecimento da existência de lacunas e antinomias no


ordenamento, bem como do caráter vago e impreciso das normas, tornaram evidente que em
muitos casos as decisões judiciais não são meros produtos do raciocínio lógico-dedutivo de
aplicação de normas válidas e enunciados empíricos comprovados. Como afirma Alexy (2001,
p. 17), a constatação feita por Larenz de que atualmente ninguém mais pode afirmar
seriamente que a aplicação das normas jurídicas nada mais é do que uma subsunção lógica sob
premissas maiores formuladas abstratamente “é um dos poucos pontos em que há
unanimidade dos juristas na discussão da metodologia contemporânea”.

Com efeito, a relação entre o direito e a lógica, pelo menos nessa forma estrita defendida pelo
modelo formalista, está longe de ser pacífica, como bem demonstra a célebre frase do Justice
Holmes, para quem “a vida do Direito não tem sido lógica, mas experiência”. No mesmo
sentido, afirmou Taine que “as sociedades humanas são um escândalo para a razão pura, pois
elas não são obra da Lógica, mas da história” (apud FRANCO MONTORO, 1995, p. 20).

2. A LÓGICA.

Além dos inúmeros pontos de tensão existentes na relação entre o Direito e a Lógica, há ainda
uma grande dificuldade decorrente da falta de unidade terminológica. Não raro nos discursos
jurídicos o termo “lógica” é utilizado sem muito rigor, como um adjetivo ligado à coerência do
discurso. Mesmo quando os juristas se referem à Lógica enquanto ciência, nem sempre estão
se referindo a uma mesma coisa. Como afirmou Chaim Perelman (1973, p. IX),

Cuando el jurista defiende una interpretación lógica del derecho, cuando sus adversarios
replican que “la vida del derecho no es la lógica sino la experiencia”; cuando los abogados se
acusan mutuamente de no respetar la lógica, la palabra “lógica” no designa, en ninguno de
estos casos, la lógica formal, la única practicada por la mayoría de los lógicos profesionales,
sino la lógica jurídica, que los lógicos modernos ignoran por completo[3].

Assim, antes de se iniciar uma discussão acerca das relações entre a Lógica e o Direito (e à
questão relativa á própria existência de uma Lógica Jurídica), é necessário que se delimite
aquilo a que nos referimos quando falamos de lógica. Neste aspecto, como Fabio Ulhoa
Coelho (2009, p. 04), temos que por lógica deve-se entender uma maneira específica de
pensar, ou melhor, de organizar o pensamento, ou, como afirma Cezar Mortari “lógica é a
ciência que estuda princípios e métodos de inferência, tendo o objetivo principal de
determinar em que condições certas coisas se seguem (são conseqüência), ou não, de outras”
(apud CARNEIRO, 2010, p. 1).

Por seu turno, a validade do raciocínio lógico é conferida pela obediência a algumas leis ou
princípios fundamentais da lógica, que garantem a correção formal do pensamento. Estes
princípios ou leis, derivados da forma típica do racionalismo ocidental, que propugnava
conhecer algo através da razão, são os princípios da identidade, do terceiro excluído e da não-
contradição.

Pelo princípio da identidade, entende-se que “o que é, é”, ou seja, que todo objeto é idêntico a
si mesmo. Como afirma Fábio Ulhoa Coelho (2009, p. 6), “no interior do pensamento lógico, as
coisas não podem ser entendidas como um complexo de múltiplos fatores contraditórios. Uma
árvore é uma árvore, e não o vir a ser de uma semente”.

Por seu turno, o princípio da não-contradição decorre do princípio da identidade e significa que
nenhum objeto pode ser ao mesmo tempo ele e não-ele, ou seja, um determinado objeto A
não pode ser, ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto, não-A, de modo que se dois
enunciados contraditórios sobre o mesmo objeto não podem ser simultaneamente
verdadeiros. Decorre daí o princípio do terceiro excluído, pelo qual se afirma que se dois
enunciados são contraditórios, um deles será verdadeiro e o outro falso (embora nada se
afirme quanto a qual deles é o verdadeiro). Daí que, nos casos de proposições contraditórias,
verificada a veracidade de uma delas, a outra será necessariamente falsa, e vice-versa. Por isso
é chamado de terceiro excluído, já que não há uma terceira opção, ou seja, ou as proposições
são verdadeiras ou falsas.

De se ressaltar, ainda, que tais princípios da lógica formal não guardam nenhuma relação com
a veracidade ou validade do conteúdo da argumentação lógica. Como afirma Coelho (2009, p.
7),

O argumento pode ser lógico, mas isso não quer dizer que sua conclusão seja necessariamente
verdadeira, isto é, corresponda à realidade. Muito pelo contrário, a única garantia que o
raciocínio lógico oferece é a de que, sendo verdadeiras as premissas e válida a inferência, a
conclusão será verdadeira. Em outros termos, há duas condições para que o raciocínio lógico
nos conduza à verdade: a veracidade das premissas e a correção do próprio raciocínio. Os
lógicos se ocupam dessa segunda condição apenas, já que da veracidade das premissas cuidam
os cientistas (biólogos, matemáticos, físicos, sociólogos, psicólogos, etc.).

Ocorre, entretanto, que o termo lógica, como assinalado por Kalinowski (1973, p. 30), é
suscetível de pelo menos três sentidos: o mais restrito, segundo o qual a lógica seria apenas a
lógica formal dedutiva, a ciência das estruturas formais do pensamento; um sentido amplo,
que designa não só a lógica formal, mas também a lógica não dedutiva, que estuda os
esquemas e regras dos raciocínios não-dedutivos (como os redutivos e analógicos), e, por fim,
um sentido ainda mais ampliado, que incluiria a metalógica, isto é, a parte da lógica que estuda
também as propriedades e os componentes dos sistemas lógicos.

O sentido restrito é o mais utilizado quando se trata da Ciência da Lógica[4]. É neste sentido
que, como anotado por Franco Montoro (1995, p. 16), posicionam-se, entre outros, Ulrich Klug
(“por Lógica, deve-se entender sempre a lógica formal”), Carnap (“lógica não-formal é um
contradictio in adjeto”) e Lourival Vilanova (“Lógica, tout cort, é lógica formal”).

2. LÓGICA JURÍDICA.

Apesar do sentido restrito de lógica ser o mais difundido, no presente trabalho adotaremos o
segundo dos sentidos supra apontados, opção que, além de ser mais apropriada para lidar com
as relações entre lógica e direito, objeto deste estudo, também tem a vantagem de permitir
superar a polêmica e complexa questão relativa à existência da lógica jurídica. É que aqueles
que defendem a inexistência de uma lógica especificamente jurídica têm como pressuposto a
noção de que a lógica seria unicamente a lógica formal (sentido restrito).
Ora, de fato, ao se entender a lógica unicamente como a lógica formal, que analisa as
inferências necessárias entre as proposições, resta evidente que a aplicação da lógica ao direito
não configuraria uma nova disciplina, mas seria antes a mera aplicação de postulados
universais a um ramo específico do saber, de modo que não seria possível falar-se em lógica
jurídica, posto que, como afirma Chaim Perelman (1998, p. 5),

(...) se identificarmos “lógica pura e simples” com a lógica formal, não apenas esta última
expressão se torna pleonástica, mas é ridículo falar de lógica jurídica, como seria ridículo falar
de lógica bioquímica ou lógica zoológica quando utilizamos as regras da lógica formal em um
tratado de bioquímica ou zoologia

Em contraponto, a adoção de um conceito mais amplo de lógica, que inclua também as


operações não dedutivas, como a argumentação retórica e a analogia, faz com que se
evidencie a existência autônoma de uma lógica jurídica. Neste sentido, o lógico polonês
Kalinowski (1973, p. 33), que inicialmente combatia a idéia da existência da lógica jurídica, ao
justificar sua mudança de entendimento, afirmou que:

(...) la lógica en sentido propio no agota el dominio de lo racional y por otra parte la retórica y
la argumentación en derecho (incluyendo también la interpretación jurídica) no están
condenadas a lo irracional (pero deben poner atención de no caer en él). En consecuencia, y
tomando en cuenta el carácter analógico del concepto de lógica y partiendo del nombre que lo
significa, se puede, siguiendo respectivamente el ejemplo de Perelman y de Gregorowicz,
extender al nombre de lógica jurídica al estudio de la argumentación jurídica de carácter
retórico, y al estudio de las reglas “extra-lógicas” de interpretación del derecho[5].

A lógica jurídica, pois, deve ter reconhecida sua cidadania científica e epistemológica, dotada
de um objeto mais amplo que o da lógica formal, posto que inclui também os elementos
racionais não dedutivos ou extra-lógicos identificáveis nas decisões judiciais. Essa visão
acentua a íntima relação entre a Lógica jurídica, a teoria da argumentação e a metodologia do
Direito, na medida em que a possibilidade de existência de justificações racionais para as
decisões jurídicas é um dos mais basilares pressupostos para a qualificação do direito como
ciência. Com razão, portanto, Karl Engish (1965, p. 7-8), quando afirma que:

A lógica do jurista é uma lógica material que, com fundamento na lógica formal e dentro dos
quadros desta, por um lado, e em combinação com a metodologia jurídica especial, por outro
lado, deve mostrar como é que nos assuntos jurídicos se alcançam juízos "verdadeiros", ou
"justos" (correctos), ou pelo menos "defensáveis". Uma lógica e metódica do jurista assim
entendida não é uma "técnica" que ensine artifícios conceituais com cujo auxílio se possam
dominar do modo mais expedito possível as tarefas de pensamento que se deparam ao
estudioso do direito. Ela também não é psicologia ou sociologia da heurística jurídica, a qual
indaga como se conduzem de facto as pessoas na prática quotidiana ao adquirirem pontos de
vista jurídicos. Constitui antes reflexão sobre o processo de conhecimento jurídico
especificamente correcto, o que não é coisa de fácil penetração. Ela esforça-se por alcançar
(nos limites do que ao conhecimento humano é possível) a meta de descobrir a "verdade" e
emitir juízos conclusivamente fundados.

A Lógica jurídica, pois, estuda todas as formas racionais de justificação de uma proposição
normativa, incluindo-se aí não só aquelas que assumem a forma de raciocínios dedutivos ou
indutivos, objeto da lógica formal, mas também aquelas justificações fundadas na analogia, na
argumentação e na retórica. Questão tormentosa daí decorrente é a relativa a saber como as
leis e princípios da lógica são (ou devem ser) aplicáveis ao direito[6], ou, em outros termos,
quais são as os princípios ou leis da lógica jurídica e qual o seu papel nos processos de
justificação racional de uma decisão jurídica.

Evidentemente não há consenso no âmbito da filosofia jurídica e da teoria do direito sobre o


tema. Ao contrário, neste campo, as divergências doutrinárias são grandes e profundas, até
em virtude de sua íntima relação com o conceito de Direito, outro tema também dado a
insuperáveis controvérsias. Por isso, provavelmente a melhor forma de se trabalhar a questão
seja fazendo uma incursão sobre algumas das mais influentes teorias acerca da relação entre
lógica e direito, a saber, a teoria pura do Direito de Kelsen, a lógica do razoável de Recaséns
Siches e a teoria da argumentação de Robert Alexy. Ressalte-se que a escolha desses autores
deveu-se não só ao elevado grau de aceitação que suas teorias tiveram na doutrina e
jurisprudência brasileiras, mas também, e fundamentalmente, em razão do fato de que as
diferenças entre as abordagens de cada um deles permite analisar de uma perspectiva
diferente as relações do Direito e da lógica[7].

3. DIREITO E LÓGICA EM HANS KELSEN.

Hans Kelsen é provavelmente o mais influente dos teóricos do direito do século XX, a tal ponto
do espanhol Luis Legazy Lacambra ter afirmado que o pensamento jurídico do século XX teria
de ser um permanente diálogo com Kelsen (apud FERRAZ JÚNIOR, 1995, p. 14). Uma das
principais características do pensamento kelseniano é o seu rigor metodológico, fundado na
permanente busca pela identificação do objeto e método específicos do Direito, objetivando a
construção de uma teoria do direito depurada de elementos extra ou meta-jurídicos, ou seja,
“uma teoria jurídica pura, isto é, purificada de toda a ideologia política e de todos os
elementos de ciência natural, uma teoria jurídica consciente da sua especificidade porque
consciente da legalidade específica do seu objeto.” (KELSEN, 1999, p. VII).
A Teoria kelseniana parte de um radical corte epistemológico que, mesmo sem desconhecer o
caráter transdisciplinar do fenômeno jurídico e a importância dos outros saberes para sua
compreensão, aponta como objeto e método precípuo da ciência do direito o estudo das
normas. Kelsen, partindo da divisão entre o mundo do ser (próprio das ciências naturais e
fundado no princípio da causalidade) e o mundo do dever-ser (próprio das ciências normativas,
fundando-se no princípio da imputação), faz uma distinção entre normas e proposições
jurídicas.

As normas seriam os atos de vontade emitidos pela autoridade competente, isto é, o legislador
ou o administrador, nos casos das leis e regulamentos gerais, ou o juiz, no caso da sentença
(valendo ressaltar que na teoria kelseniana a atividade judicial não é meramente declaratória,
mas criadora de norma individual). Para Kelsen (1986, p. 1/2),

Com o termo [norma] se designa um mandamento, uma prescrição, uma ordem. Mandamento
não é, todavia, a única função da norma.Também conferir poderes, permitir, derrogar são
funções de normas. [..] “Norma” dá a entender a alguém que alguma coisa deve ser ou
acontecer, desde que a palavra “norma” indique uma prescrição, um mandamento. Sua
expressão lingüística é um imperativo ou uma proposição de dever-ser.

Por seu turno, as proposições jurídicas, isto é, as proposições da ciência do Direito (doutrina)
não configurariam atos de vontade, mas sim atos de pensamento, na medida em que a
doutrina não cria normas, mas tão-somente descreve as normas existentes. As proposições da
Ciência do Direito, pois, não seriam prescritivas, mas descritivas. Assim, para Kelsen,

A Ciência do Direito contém proposições que são enunciados sobre normas jurídicas. Ela expõe
normas jurídicas, descreve normas jurídicas. Essas proposições não são propriamente normas,
mas enunciados sobre normas. Como Ciência, a Ciência do Direito apenas pode conhecer e
descrever normas a ela dadas, e não estabelecer normas.

Essa distinção entre as normas e as proposições feitas pela doutrina sobre as normas é
essencial para a compreensão das teses de Kelsen acerca das relações entre a Lógica e o
Direito, posto que na teoria kelseniana a Ciência do Direito, assim como qualquer outra ciência,
tem como pressuposto o respeito às regras da lógica nas suas proposições. Por outro lado, no
que se refere às normas, que não são atos de pensamento, mas atos de vontade, não haveria
qualquer lógica interna, já que as autoridades simplesmente editam as normas, no exercício de
suas competências, sem qualquer compromisso com o rigor lógico. Como afirma Fábio Ulhoa
Coelho (2009, p. 51),
(...) em Kelsen, as autoridades, sem qualquer preocupação sistemática ou lógica, editam
normas gerais ou individuais, enquanto os cientistas do Direito recuperam esse material bruto
(como os astrônomos recolhem do céu o movimento errático das estrelas) e dão-lhe forma
lógica indispensável ao seu conhecimento científico. A ordem jurídica, em Kelsen, não é lógica;
a ciência jurídica é que deve descrevê-la como tal.

Tem-se, assim, que na teoria kelseniana cabe à doutrina a obrigação de seguir as regras e leis
da lógica na elaboração de suas proposições a partir da ordem jurídica posta, para poder
construir a partir dela o sistema jurídico (este sim, de natureza descritiva e sujeito às regras da
lógica), uma vez que

A aplicabilidade de princípios lógicos à Ciência do Direito geralmente não é problema porque


os princípios da Lógica são aplicáveis a todas as Ciências. [...] Que, se existe algo assim como
“legal thinking”, pensamento jurídico, os princípios da lógica são aplicáveis a esse pensamento,
ou mais corretamente: ao sentido dos atos de pensamentos jurídicos, é evidente. Mas o
problema é se eles são aplicáveis a normas, que não são sentidos de atos de pensamento,
senão o sentido de atos de vontade. (KELSEN,1986, p. 240/315),

Por outro lado, Kelsen contrapõe-se veementemente à possibilidade de aplicação dos


princípios lógicos da não contradição e da inferência (conclusão) às normas. Ele parte da idéia
de que a análise lógica pode apenas dizer respeito a enunciados que são verdadeiros ou falsos
e verificáveis, e que as normas não são verdadeiras ou falsas, e sim válidas ou inválidas.

Essa distinção entre uma norma e uma asserção se torna evidente quando se compara, por
exemplo, a norma que dispõe que o homicídio deve ser punido com reclusão de 6 a 20 anos,
com a asserção de que “todo homem é mortal”. A asserção tem a estrutura de um ato de
conhecimento que, a depender da adequação de seu conteúdo à realidade, pode ser
qualificado como verdadeiro ou falso, enquanto na norma verifica-se um ato de vontade
editado pelo legislador e dirigido abstratamente à conformação da conduta de todos os
cidadãos, que devem se abster de praticar o ato incriminado. A norma não pode ser qualificada
como verdadeira ou falsa, mas sim de válida ou inválida. Nas palavras de Kelsen, (1965, p.
276/277)

(...) verdad y falsedad son cualidades o propiedades de una aserción. La validez, sin embargo,
no es la cualidad o propiedad de una norma, sino su existencia, su específica existencia, no una
existencia material, sino ideal. Que una norma es valida significa que existe; que una norma es
invalida significa que no existe, “existe” en el sentido ideal del término. Una norma inválida,
esto es, una norma no existente, no es norma de modo alguno. Pero una aserción que es falsa,
es todavía una aserción, tal como lo es una aserción verdadera; existe como una aserción, aun
cuando ella sea falsa.[8]

A partir dessa constatação, Kelsen afirma não ser possível aplicar-se às normas o princípio
lógico da não contradição, que somente teria sentido quando aplicado a asserções. Isso
porque, quando se trabalha com asserções, a existência de duas afirmações contraditórias
sobre um mesmo objeto implica que um deles seja falso (princípio da não-contradição).
Assim, se é afirmado que “todo homem é mortal” e que “o homem José é imortal”, uma das
asserções é falsa.

Quando se trata de normas, todavia, a existência de um conflito não pode ser resolvido por
princípios lógicos, mas unicamente por uma terceira norma que derrogue uma das normas
conflitantes. A validade de uma norma não implica necessariamente que outra norma que a ela
seja contraditória seja inválida. As fórmulas tradicionalmente utilizadas para a solução de
conflitos normativos, tais como as proposições de que as normas hierarquicamente superiores
derrogam as inferiores, que a norma posterior derroga a anterior ou de que a norma especial
derroga a norma geral, não configuram aplicação de princípios lógicos, mas aplicação de
normas jurídicas existentes no direito positivo, ainda que não prevista expressamente na lei,
sendo apenas pressuposta pelo legislador (KELSEN, 1986, p. 263 e ss.).

Defende Kelsen, ainda, a tese de que os silogismos não são aplicáveis direta ou indiretamente
às normas. Para ele, o silogismo normativo não pode ser admitido porque as premissas não
têm o mesmo caráter lógico, já que a premissa maior é uma norma geral hipotética (ex. aquele
que cometer homicídio deve ser punido com reclusão de 6 a 20 anos) e a premissa menor (ex.
João cometeu homicídio) é uma asserção, um enunciado sobre um fato, de modo que não há
relação lógica possível entre ambas e, portanto, não é possível extrair-se a validade da norma
individual (a conclusão do silogismo, a sentença) da norma geral à qual ela corresponde.

Coerente com essa idéia, Kelsen afirma que a decisão judicial de um caso concreto não é
produto de uma operação lógica que deduz a norma individual (sentença) a partir da
subsunção de uma regra geral aos fatos, mas sim configura “também criação do Direito, a
continuação do processo de produção do direito que acontece no processo legislativo (ou no
costume). Ela é um ato de individualização das normas jurídicas gerais que devem ser
aplicadas” (1986, p. 286). Esse caráter criativo da atividade jurisdicional fica mais evidente
quando se percebe que o juiz, ao suprimir as lacunas porventura existentes ou decidir com
base na analogia, não estará realizando qualquer operação lógica de dedução, mas sim criando
normas dentro do espaço de discricionariedade que lhe foi conferido. A tradicional ideia de
que o juiz, em sua atuação, não teria poder discricionário, pois estaria vinculado ao “espírito da
lei”, nada mais é do que uma ficção com fins meramente ideológicos. Para Kelsen (1986, p.
345/347),

(...) na teoria jurídica, procura-se indicar esse arbítrio do juiz como limitado, quando se
assevera que o juiz precisa preocupar-se com o espírito da lei, se ele aceita o fato sub judice
como semelhante ou de acordo, no essencial, com o fato típico determinado na norma a ser
aplicada.

O que é o “espírito da lei”, naturalmente só o juiz mesmo pode definir, e esta definição pode
sair muito diferente em diversos litígios a serem definidos por diferentes juízes. O “espírito da
lei” é – no fundo – uma ficção que serve para manter a aparência de que o juiz apenas aplica o
direito válido também em casos de decisão analógica, enquanto ele, em verdade, cria Direito
novo para o caso concreto. Para isto, porém ele precisa estar autorizado pelo ordenamento
jurídico. [...]

O que efetivamente existe quando a ciência do Direito tradicional (jurisprudenz) fala de uma
decisão judicial per analogiam, de modo algum é uma conclusão, na qual na validade de uma
norma geral positiva logicamente segue-se a validade de uma norma individual da decisão
judicial, senão a estatuição de uma norma individual autorizada pelo ordenamento jurídico
vigente, a qual não corresponde a nenhuma norma jurídica geral, conteudisticamente
determinada. [...]

O que se chama uma conclusão analógica geralmente não representa processo lógico, o que
ainda mais procede para a chamada conclusão jurídico-analógica.

Para Kelsen, portanto, as regras e leis da Lógica formal somente seriam aplicáveis às
proposições da Ciência do Direito (ou seja, à doutrina). Às normas, em especial à sua aplicação
judicial (jurisprudência), a leis e regras da lógica formal, especialmente o princípio da não
contradição e a regra da conclusão a partir de um silogismo, não seriam aplicáveis.

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JurídicaDireito e LógicaRobert AlexyHans KelsenFilósofos do DireitoFilosofia do DireitoTeoria do
Direito

Autor
Marcio Luiz Coelho de Freitas

Juiz Federal titular da 2ª Vara da Seção Judiciária do Amazonas. Mestrando em Direito


Ambiental pela Universidade Estadual do Amazonas. Professor da Escola Superior de
Magistratura do Estado do Amazonas.

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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2002 ABNT)

FREITAS, Marcio Luiz Coelho de. Lógica jurídica, argumentação e racionalidade . Revista Jus
Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3307, 21 jul. 2012. Disponível em:
<https://jus.com.br/artigos/22271>. Acesso em: 10 abr. 2018.

Publique no Jus

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