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CULPA A culpa sempre se esconde atrás da máscara do

auto-aperfeiçoamento como garantia de mudança e


A BUSCA DA PERFEIÇÃO nunca dá certo. Os erros dos quais nos culpamos são
Antônio Roberto Soares aqueles que menos corrigimos. A lista de nossos “pe-

P
-cados” no confessionário é sempre a mesma. A culpa,
longe de nos proporcionar incentivo ao crescimento,
faz-nos gastar as energias numa lamentação interior
or detrás de nossas tristezas e frustrações, por aquilo que já ocorreu, ao invés de as gastarmos em
de nossas insatisfações na vida, de nossos novas coisas, novas ações e novos comportamentos.
tédios e angústias, está um sentimento, o Por isto mesmo, em todas as linhas terapêuticas, este
mais arraigado em nosso comportamento é um sentimento considerado doentio. Não existe ne-
e responsável por grandes sofrimentos nhuma linha de tratamento psicológico que não esteja
psicológicos, que é o sentimento de culpa. O senti- interessado em tirar dos seus pacientes o sentimento
mento de culpa é o apego ao passado, é uma tristeza de culpa. A culpa é um auto-desprezo, um auto-desres-
por alguém não ter sido como deveria ter sido, é uma peito pela natureza humana, por seus limites e pela sua
tristeza por ter cometido algum erro que não deveria fragilidade. A culpa é uma vingança de nós mesmos
ter cometido. O núcleo do sentimento de culpa são por não termos atendido a expectativa de alguém a
estas palavras: “Não deveria...”. A culpa é a frustra- nosso respeito, seja esta expectativa clara e explícita,
ção pela distância entre o que nós fomos e a imagem ou seja uma expectativa interiorizada no decorrer da
de como nós deveríamos ter sido. Nela consiste a nossa vida. Por isto é que se diz que, ao nos sentirmos
base para a auto-tortura. Na culpa, dividimo-nos culpados, estamos alienados de nós mesmos, e a nossa
em duas pessoas: uma real, má, errada, recriminação interna não é, nem mais nem menos,
ruim, e uma ideal, boa, certa e que tortura do que vozes recriminatórias dos nossos pais, nossas
a outra. Dentro de nós processa-se um julgamento mães, nossos mestres ou outras pessoas que ainda
em que o Eu ideal, imaginário, é o juiz e o Eu real, residem dentro de nós.
concreto, humano, é o réu. O Eu ideal sempre Mas aquilo que nos leva a esse sentimento de
faz exigências impossíveis e perfeccio- culpa, aquilo que alimenta esta nossa doença auto-
nistas. Assim, quando estamos atormentados pelo -destrutiva, são algumas crenças falsas. Trabalhar o
perfeccionismo, estamos absolutamente sem saída. sentimento de culpa é, primordialmente, descobrir
Como o pensamento nos exige algo impos- as convicções falsas que existem em nós, aquelas
sível, nunca o nosso Eu real poderá atendê- verdades em que cremos e que são errôneas, e nos
-lo. Este é um ponto fundamental. levam a este sentimento. A primeira delas é a crença
Muitas pessoas dedicam a sua vida a tentar reali- na possibilidade da perfeição. Quem acredita que é
zar a concepção do que elas devem ser, em vez de se possível ser perfeito, quem acha que está no mundo
realizarem a si mesmas. A diferença entre auto-reali- para ser perfeito, quem acha que deve procurar na
zação e realização da imagem de como deveríamos sua vida a perfeição, viverá necessariamente ator-
ser é muito mais importante. A maioria das pe ssoas mentado pelo sentimento de culpa. A expectativa
vive apenas em função da sua imagem ideal e este é perfeccionista da vida é um produto da nossa fan-
um instrumento fenomenal para se fazer o jogo prefe- tasia, é um conceito alienado de que é possível não
rido do neurótico: a auto-tortura, o auto aborrecimen- errar, que é possível viver sem cometer erros.
to, o auto-castigo, a autopunição, a culpa. Quanto maior for a discrepância entre a realida-
Quanto maior for a expectativa a nosso respeito, de objetiva e as nossas fantasias, entre aquilo que
quanto maior for o modelo perfeccionista de como podemos nos tornar através do nosso verdadeiro
deve ser a nossa vida, maior será o nosso sentimento de potencial e os conceitos idealistas impostos, tanto
culpa. A culpa é a tristeza por não sermos perfeitos, é a maior será o nosso esforço na vida e maior a nossa
tristeza por não sermos Deus, por não sermos infalíveis; frustração. Respondendo a esta crença opressora da
é um profundo sentimento de orgulho e onipotência; perfeição, atuamos num papel que não tem funda-
é uma incapacidade de lidar com o erro, com a imper- mento real nas nossas necessidades. Nos tornamos
feição; é um desejo frustrado; é o contato direto com a falsos, evitamos encarar de frente as nossas limita-
realidade humana, em contraste com as suas intenções ções e desempenhamos papéis sem base na nossa
perfeccionistas, com os seus pensamentos megaloma- capacidade. Construímos um inimigo dentro de nós,
níacos a respeito de si mesmo. E o mais grave é que que é o ideal imaginário de como deveríamos ser e
aprendemos o sentimento de culpa como virtude! não de como realmente somos. Respondendo a um
ideal de perfeição, nós desenvolvemos uma fachada te um castigo, de que a cada falta deve corresponder
falsa para manipular e impressionar os outros. uma punição. Aliás, o sentimento de culpa é
É muito comum, no relacionamento conjugal, marido a punição que damos a nós mesmos pelo
e mulher não estarem amando um ao outro e, sim, erro cometido. Não é possível não errar, o
amando a imagem de perfeição que cada um espera erro é inerente à natureza humana, ele é
do outro. É claro que nenhum dos parceiros consegue necessário a nossa vida. Na perfeição hu-
corresponder a esta expectativa irreal e a frustração mana está incluída a imperfeição. Só cres-
mútua de não encontrar a perfeição gera tensões e cemos através do erro.
hostilidades, num jogo mútuo de culpa. Esta situação As pessoas confundem assumir o erro com sentir
se aplica a todas as relações onde as pessoas acredi- culpa. Assumir o erro é aceitar que erramos, é nos
tam que amar o outro é ser perfeito. Quando voltamos responsabilizarmos pelo que fizemos ou deixamos
para nós exigências perfeccionistas, dividimo-nos de fazer. Mas quando acreditamos que a culpa
neuroticamente para atender ao irreal. Embora as decorre do nosso erro, tentamos imputar a outros a
pessoas acreditem que errar é humano, responsabilidade dos nossos erros, numa tentativa
elas simplesmente não acreditam que são infrutífera de acabar com a nossa culpa.
humanas! Embora digam que a perfeição não existe, A propósito do erro, há um texto interessantíssi-
continuam a se torturar e a se punir e continuam a tor- mo no livro “Buscando Ser o que Eu Sou”, de Ilke
turar e a punir os outros por não corresponderem a um Praha, que diz: “O perfeccionismo é uma morte
ideal perfeccionista do qual não querem abrir mão. lenta. Se tudo se cumprisse à risca, como eu gos-
Outra crença que nos leva à culpa, esta taria, exatamente como planejara, jamais experi-
talvez mais sutil, mais encoberta e pro- mentaria algo novo, minha vida seria um repetição
funda, é acreditarmos que há uma relação infinda de sucessos já vividos. Quando cometo um
necessária entre o erro e a culpa, é a vincu- erro vivo algo inesperado. Algumas vezes reajo ao
lação automática entre erro e culpa. Quase cometer erros como se tivesse traído a mim mesmo.
todas as pessoas a quem temos perguntado de onde O medo de cometer erros parece fundamentar-se
vêm os seus sentimentos de culpa, nos respondem na recôndita presunção de que sou poten-
taxativamente que vêm de seus erros. Acreditamos cialmente perfeito e de que, se for muito
que a culpa é uma decorrência natural do erro, que cuidadoso, não perderei o céu. Contudo, o
não pode, de maneira alguma, haver erro sem haver erro é uma demonstração de como eu sou,
culpa. Se acreditamos nisto, estamos num problema é um solavanco no caminho que tracei, um
insolúvel. Ou vamos passar a vida inteira tentando lembrete de que não estou lidando com os
não errar para não sentirmos culpa - e isto é impos- fatos. Quando der ouvidos aos meus erros,
sível porque sempre haverá erros em nossa vida ao invés de me lamentar por dentro, terei
- ou então passaremos a vida inteira nos sentindo crescido”. Este é o texto.
culpados porque sempre erramos. Essa vinculação Algumas pessoas nos perguntam: “Mas como
causal entre erro e culpa é profundamente falsa. A avançar em relação a este sentimento, como
culpa não decorre do erro, mas da maneira arrancar de mim este hábito de me deprimir
como nos colocamos diante do erro; vem com os erros cometidos?”. Só existe uma saída
do nosso conceito relativo ao erro, vem da para o sentimento de culpa. Façamos uma fantasia:
nossa raiva por termos errado. Uma coisa imaginemos por um instante que estamos à morte e
é o erro, outra coisa é a culpa; erros são nossos sentimentos deste momento são de angústia,
erros, culpa é culpa. São duas coisas distin- tristeza e frustração por todos os erros cometidos, por
tas, separadas, e que nós unimos de má fé, tudo o que deveríamos ter feito e não fizemos; remor-
a fim de não deixarmos saída para o nosso sos pelos nossos fracassos como pai, como mãe, como
sentimento de culpa. O erro é o modo de se profissional, como esposo, como esposa, como reli-
fazer algo diferente, fora de algum padrão. gioso, como cidadão, mas, ao mesmo tempo, estamos
O que é chamado erro é a saída fora de um modelo com um profundo desejo de morrer em paz, de sair
determinado, que pode ser errado hoje e não amanhã, desse processo íntimo de angústia e morrer tranqui-
pode ser errado num país e não ser errado em outro. los. Qual a única palavra que, se pronunciada neste
A culpa é um sentimento, vem de nós, vem da crença momento, sentida com todo coração, teria o poder de
de que é errado errar, que não podemos errar, que de- transformar a nossa dor em alegria, o nosso conflito
vemos ser castigados pelas faltas cometidas; crença em harmonia, a nossa tristeza em felicidade? Somente
de que a cada erro deve corresponder necessariamen- uma palavra teria essa magia. A palavra é: Perdão.
O Perdão é uma palavra perdida em nossa vida. O de que o passado é uma fantasia, é apenas saber
primeiro sentimento que se perde no caminho da perder o que já está perdido. O auto-perdão é um
loucura é o sentimento de perdão, o sentimento de sim à vida que nos rodeia agora, é uma adesão ao
auto-perdão. Se a culpa é a vergonha da queda, o presente, à única coisa viva que possuímos, que são
auto-perdão é o elo entre a queda e o levantar de nossas possibilidades neste momento. Não podemos
novo. O auto-perdão é o recomeço da brincadeira abraçar o presente, a vida, o passado e a morte ao
depois do tombo: “Eu me perdôo pelos erros mesmo tempo. O perdão é uma opção para a vida,
cometidos, eu me perdôo por não ser per- o auto-perdão é a paciência diante da escuridão, é
feito, eu me perdôo pela minha natureza o vislumbre da aurora no final da noite. O auto-
humana, eu me perdôo pelas minhas limi- -perdão é o sacudir da poeira, é a renova-
tações, eu me perdôo por não ser onipo- ção da auto-estima e da alegria de viver, é
tente, por não ser onipresente, por não ser o agradecimento por sabermos que mais
onisciente, eu me perdôo por...”. O perdão importante do que termos cometido um erro
é sempre assim mesmo, é pessoal e in- é estarmos vivos, é estarmos presentes.
transferível. Para encerrar este tema, quero sugerir-lhes uma
O perdão aos outros é apenas um modo de dizermos reflexão sobre este texto escrito por Frederick Pearls:
aos outros que já nos perdoamos. Perdoarmo-nos é “Que isto fique para o homem! Tentar ser algo que
restabelecer a nossa própria unidade, a nossa inteireza não é, ter idéias que não são atingíveis, ter a praga
diante da vida, é unir outra vez o que a culpa dividiu, do perfeccionismo de forma a estar livre de críticas,
é uma aceitação integral daquilo que já aconteceu, é abrir a senda infinita da tortura mental. Amigo, não
daquilo que já passou, daquilo que já não tem jeito; é o seja um perfeccionista. Perfeccionismo é uma mal-
encontro corajoso e amoroso com a realidade. dição e uma prisão. Quanto mais você treme, mais
Somente aqueles que desenvolveram a capacidade erra o alvo. Amigo, não tenha medo de erros, erros
de auto-perdão conseguem energia para uma vida não são pecados, erros são formas de fazer algo de
psicológica sadia. A criança faz isto muito bem. O maneira diferente, talvez criativamente nova. Ami-
perdão é a própria aceitação da vida do jeito que go, não fique aborrecido por seus erros.
ela é, nos altos e nos baixos. O auto-perdão é a Alegre-se por eles, você teve a coragem de
capacidade de dizer adeus ao passado, é a aceitação dar algo de si”.

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