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CAPITULO 1 O artifice inquieto A palavra artifice evoca imediatamente uma imagem. Olhando pela ja- nela da oficina de um carpinteiro, vemos l4 dentro um homem de idade cercado de aprendizes e ferramentas. Reina a ordem no local, pegas para a confecco de cadeiras estao enfileiradas, o ambiente é tomado pelo odor das lascas recém-aparadas na madeira, o carpinteiro debruga-se em sua ban- cada para fazer uma rigorosa incisdo de marchetaria. A oficina € ameagada por uma fabrica de méveis instalada logo adiante na mesma rua. artifice também poderia ser visto num laboratério proximo. Nele, uma jovem técnica franze as sobrancelhas diante de uma mesa na qual estao es- tendidos seis coelhos mortos, tendo voltadas para cima as barrigas abertas. Ela est4 preocupada porque algo deu errado com a injegao que lhes apli- cou; tenta, agora, entender se aplicou errado 0 procedimento ou se havia algo de errado nele proprio. Um terceiro artffice poderia ser ouvido na sala de concertos da cidade. Uma orquestra ensaia com um regente convidado; ele trabalha obsessiva- mente com a se¢ao de cordas, repetindo interminavelmente uma passagem para fazer com que os mtisicos ataquem as cordas com seus arcos exatamente na mesma velocidade. Os violinistas esto cansados, mas também felizes, pois o som ganha coesao. O gerente da orquestra se preocupa; se 0 regente convidado continuar, 0 tempo de ensaio serd excedido e terao de ser pagas horas extras. O maestro nao estd nem af. 30 ARTIFICES O carpinteiro, a técnica de laboratério e 0 maestro so artffices porque se dedicam a arte pela arte. Suas atividades tém cardter pratico, mas sua lida nao € apenas um meio para alcangar um outro fim. O carpinteiro poderia vender mais méveis se trabalhasse com maior rapidez; a técnica podia dar um jeito de transferir 0 problema para o chefe; o regente convidado talve tivesse mais probabilidade de voltar a ser contratado se ficasse de olho no telégio. Com certeza € possivel se virar na vida sem dedicagao. O artffice representa uma condi¢ao humana especial: a do engajamento. Um dos ob- jetivos deste livro é explicar como as pessoas se engajam de uma forma pré- tica, mas nao necessariamente instrumental. A pericia artesanal est sendo subestimada, como observei no Prélogo, quando é equiparada exclusivamente a habilidade manual, como a do car pinteiro. Os alemes tém a palavra Handwerk ¢ os franceses, artisanal, para se referir ao empenho do artffice. O inglés pode ser mais abrangente, como na palavra statecraft; Anton Tchekov usou a palavra russa mastersvo para. designar tanto seu labor de médico quanto o de escritor. Quero inicialmen- te tratar todas essas agdes concretas como laboratérios nos quais os senti- mentos e as ideias podem ser investigados. Um segundo objetivo deste estudo € explorar 0 que acontece quando a mao e a cabega, a técnica ea ciéncia, a arte e 0 artesanato sd separados. Mostrarei como a cabega € entdo prejudi- cada; o entendimento e a expressao ficam comprometidos. ‘Toda habilidade artesanal baseia-se numa aptidao desenvolvida em alto grau, Uma das medidas mais habitualmente utilizadas é a de que cerca de 10 mil horas de experiéncia so necessdrias para produzir um mestre carpinteiro ou miisico. Varios estudos demonstram que, progredindo, a habilidade tomna-se mais sintonizada com os problemas, como no caso da técnica de laboratério preocu- pada com o procedimento, ao passo que as pessoas com nfveis primitivos de habilitagao esforgam-se mais exclusivamente no sentido de fazer as coisas fun- cionarem. Em seus patamares mais elevados, a técnica deixa de ser uma ativi- dade mecAnica; as pessoas sdo capazes de sentir plenamente e pensar profundamente 0 que esto fazendo quando 0 fazem bem. E no nfvel da mes- tria, como demonstrarei, que se manifestam os problemas éticos do artesanato, O ARTIFICE INQUIETO 31 Tecompensas emocionais oferecidas pela habilidade artesanal na con- do desse tipo de pericia sao de dois s tipos: as pessoas se ligam a realida- fvel e podem orgulhar-se de seu trabalho. Mas a sociedade criou sulos para essas recompensas no passado e continua a fazé-lo hoje. Em rentes momentos da histéria ocidental, a atividade pratica foi menos- divorciada de ocupagées supostamente mais elevadas. A habilida- nica foi desvinculada da imaginagao, a realidade tangivel, posta em pela religido, o orgulho pelo proprio trabalho, tratado como um luxo. o artifice € especial por se mostrar engajado como ser humano, nem por aspiragées e dificuldades deixam de espelhar essas questdes mais as do passado e do presente. | das primeiras celebragées do artifice é encontrada num hino homérico tus dos artifices, Hefesto: “Canta, Musa da voz clara, as celebradas ha- les de Hefesto. Com Atené e seus olhos brilhantes, ele ensinou glorio- s oficios aos homens de todo o mundo — homens que, antes, moravam avernas nas montanhas, como animais selvagens. Mas agora que apren- m offcios gracas a Hefesto, famoso por sua arte, eles levam uma vida ila em suas casas 0 ano todo.”! O espitito do poema vai de encontro a de Pandora, que surgiu aproximadamente na mesma época. Pandora eside a destruicdo, Hefesto langa seus poderes sobre o artifice, como gpiciador da paz e produtor de civilizagdio. Ohino a Hefesto pode aparentemente celebrar apenas um cliché, o da a¢do tendo inicio no momento em que os seres humanos comecaram ferramentas. Mas ele foi escrito milhares de anos depois da fabrica- de ferramentas como a faca, a roda e 0 tear. Mais do que faria um sim- s técnico, 0 artifice civilizador utilizou essas ferramentas para um bem ivo, o de por fim a vida ndmade dos homens, como cagadores-coleto- 32 ARTIFICES Tes ou guerreiros desenraizados. Refletindo sobre o hino homérico a Hefesto, um historiador moderno escreve que, como o trabalho artesanal “tirou as pessoas do isolamento, personificado pelos ciclopes moradores das caver nas, artesanato e comunidade eram indissociaveis para os primeiros gregos”? A palavra empregada no hino para designar 0 artifice € demioergos. Tra- tase de uma combinagao de ptiblico (demios) com produtivo (ergon). 0 artifice arcaico ocupava uma posi¢do social mais ou menos equivalente a da classe média. Entre os demioergoi estavam — além de trabalhadores ma- nuais especializados, como os oleiros — médicos e magistrados de escaléo inferior, e mesmo cantores profissionais e arautos, que eram, na antiguida- de, os difusores de noticias. Essa camada de cidaddos comuns vivia entre 0s aristocratas abastados, relativamente poucos, e a massa de escravos que fa- _ Amudange zia a maior parte do trabalho — muitos dos quais tinham grande capacitagao técnica, mas sem que seus talentos se traduzissem em direitos ou reconhe- cimento politico.> Nessa sociedade arcaica € que o hino homenageava como civilizadores aqueles que associavam a cabega as maos. Como muitas outras sociedades até recentemente qualificadas pelos antropdlogos como “tradicionais”, a Grécia arcaica tinha como certo que as jas contin habilidades e capacitagdes seriam passadas de geragdo em geragao. O que é ido, o pepl mais digno de nota do que pode parecer. As normas sociais tinham mais intretanto, 01 peso que os dons individuais na “sociedade da capacitago” tradicional. O desenvolvimento do talento dependia da observancia de regras estabelecidas por geragdes anteriores; num tal contexto, essa palavra moderna entre as c modernas — 0 “génio” pessoal — nfo fazia muito sentido. Para adquirir uma e género qui qualificagao, alguém tinha de ser obediente. O autor do hino a Hefesto « ‘ia contr. compreendia a natureza desse vinculo comunitério. Tal como acontece internos da m com os valores mais profundamente arraigados em qualquer cultura, pa- tecia 6bvio que as pessoas se identificariam com outros artifices na quali- érebro dos | dade de concidadaos. A capacitagdo seria um vinculo ao mesmo tempo Esse tipo com os antepassados ¢ os pares. Em sua evolugao gradual, as habilidades inta ainda tradicionais parecem, assim, isentas do princfpio da “natalidade” exposto por Hannah Arendt. -exemplo, na O ARTIFICE INQUIETO. 33 eera celebrado como homem publico na época de Homero, 0 artifice seu valor menos reconhecido na era classica. O leitor de Aristéfanes a um pequeno indicio dessa mudanga no desprezo com que ele tra- leiros Kittos e Bacchios como esttipidos bufées, em virtude do traba- e executam.* Um press4gio mais sério da menor fortuna do artesaio ece nos escritos de Aristételes sobre a natureza do artesanato. Na ica, ele afirma: “Consideramos que em toda profisso os arquitetos nais estimaveis e sabem mais e so mais sdbios que os artesdos, pois hecem as razGes das coisas que sao feitas.”> Arist6teles troca a palavra costumava designar 0 artifice, demioergos, por cheirotechnon, que signi- asimplesmente trabalhador manual.® A mudanga tinha um significado especial e ambiguo para as trabalhado- dosexo feminino. Desde os tempos mais primitivos, a tecelagem era uma idade reservada 4s mulheres, que lhes conferiram respeitabilidade na vida lica; 0 hino designa especificamente oficios como a tecelagem como ticas que contribuiram para civilizar as tribos de cagadores-coletores. A a que a sociedade arcaica se tornava classica, a virtude ptiblica das continuava sendo celebrada. Em Atenas, as mulheres fiavam um do, o peplos, que anualmente exibiam em ritual pelas ruas da cidade. tanto, outros oficios domésticos, como a culindria, nao tinham esse stigio piblico, e nenhum trabalho artesanal daria as mulheres atenienses a classica o direito de votar. O desenvolvimento da ciéncia classica ibuiu para um movimento de definigdo das habilidades por critérios genero que levou a aplicagao exclusiva da palavra artesdo aos homens. A 9s bragos e nas pernas aos das mulheres; partia do pressuposto de que 0 tebro dos homens era mais “muscular” que o das mulheres.’ sse tipo de distingao por critérios de género langou as sementes de uma nta ainda hoje viva: em sua maioria, os oficios e artifices domésticos tem cardter diferente dos trabalhos que hoje se executam fora de casa. Por plo, nao consideramos os cuidados paternos como uma atividade no an ARTIFICES mesmo sentido que atribufmos ao offcio de bombeiro ou a programaga computadores, muito embora um alto grau de capacitagaio especializada necessdrio para ser um bom pai ou uma boa mie. O filésofo classico mais identificado com 0 ideal arcaico de Hefesto Platao, que também se preocupava com o seu fim. Ele foi encont etimologia de “fazer”, a palavra poiein, a origem do conceito de habilid FE também a palavra que deu origem a poesia, e no hino os poetas aparet como artffices igualmente. Toda pericia artesanal é um trabalho voltadoy a busca da qualidade; Platao formulou esse objetivo no conceito de are! padrao de exceléncia, implicito em qualquer ato: a aspiragdo de qualid levard o artffice a se aperfeigoar, a melhorar em vez de passar por cima, Platdo também observou que em sua €poca, embora “os artifices sejam tas (...) ndo sao chamados de poetas, tém outros nomes”.* Platao temia esses nomes diferentes e mesmo essas capacitagoes diferentes impediss os homens de seu tempo de entender’o que tinham em comum. Nos cit séculos transcorridos entre o Hino a Hefesto e sua época, algo parecia dado errado. Debilitara-se a unidade existente nos tempos arcaicos en capacitag4o e a comunidade. As habilidades prdticas ainda sustinham a da cidade, mas nao eram mais reconhecidas por isto. = Para entender a presenga viva de Hefesto, convido 0 leitor a dar um vastos mental. Os usuarios dos programas de computagao de “cédigo aberto”, es cialmente no sistema operacional Linux, sao artifices que corporificam ce elementos celebrados no Hino a Hefesto, mas nao todos. Os técnicos do Lit também traduzem coletivamente aquela preocupacao de Plato, m ma moderna; esse conjunto de artifices nao € desprezado, mas representai tipo de comunidade incomum e mesmo marginal. O sistema Linux é um artesanato ptblico. O kernel (nticleo de softy do cédigo Linux esta disponivel a todos, pode ser utilizado e adaptado} qualquer um; as pessoas se oferecem voluntariamente e doam seu tem O ARTIFICE INQUIETO 35 a aperfeicod-lo. O Linux contrasta com o cédigo utilizado na Microsoft, segredos até recentemente eram entesourados como propriedade in- ial de uma s6 empresa. Numa das aplicagGes mais utilizadas do Linux, Vikipedia, o kernel permite o funcionamento de uma enciclopédia para a I qualquer usuario pode contribuir.? Ao ser criado na década de 1990, 0 tentava resgatar um pouco do espfrito de aventura dos primeitos dias ormatica na década de 1970. Ao longo dessas duas décadas, a indtis- ia de software metamorfoseou-se em pouco tempo num conjunto de pou- sempresas dominantes, adquirindo o controle de concorrentes menores expulsando-os do mercado. Nessa dindmica, os monopélios pareciam ricar em série produtos cada vez mais mediocres. Tecnicamente, os softwares de cédigo aberto seguem os padrées da Open Source Initiative, mas a simplificadora etiqueta “software livre” nao reflete xatamente a maneira como os recursos sao utilizados no Linux.!? Eric ond muito apropriadamente distingue dois tipos de softwares livres: 0 nodelo “catedral”, no qual um grupo fechado de programadores desenvol- 0 cédigo para em seguida disponibilizé-lo para qualquer interessado, e 0 odelo “bazar”, do qual qualquer um pode participar através da Internet, luzindo cédigos. O Linux arregimenta artffices num bazar eletrénico. kernel foi desenvolvido por Linus Torvalds, agindo, no infcio da década e 1990, bem de acordo com a convicgao de Raymond de que, “diante de tantos pares de olhos, qualquer bug é moleza” — jargao de engenheiro para dizer que, com a participagao de tanta gente no bazar de codificagao, os problemas de criagdo de cédigos confiaveis € os erros de informatica podem ser resolvidos com mais facilidade que no catedral, e muito mais facilmente le nos softwares comerciais garantidos por direitos autorais."! Trata-se, portanto, de uma comunidade de artifices 4 qual pode ser apli- ada a antiga denominagiio de demioergoi. Ela est voltada para a busca da qualidade, a confecgao de um bom trabalho, que vem a ser o principal fator de identidade de um artifice. No mundo tradicional do oleiro ou do médico arcaico, os padrdes de um bom trabalho eram fixados pela comunidade, a medida que a habilitagdo ia passando de geragdo em geracio. Esses herdei- 36 ARTIFICES tos de Hefesto, entretanto, vém enfrentando um contflito comunitério torno da utilizagdo de suas habilidades. Acomunidade de programagao tenta encontrar maneiras de concil a qualidade com 0 acesso livre. Na aplicagao Wikipedia, por exemplo, tos verbetes sao tendenciosos, obscenos ou simplesmente errados. U: dissidéncia pretende atualmente impor padrées editoriais, 0 que iria frot talmente de encontro ao desejo do movimento de se manter como wu comunidade aberta. Os “elitistas” adeptos da edigao nao contestam ap ficiéncia técnica dos adversarios; todos os profissionais envolvidos no co flito tem um profundo desejo de preservar a qualidade. O conflito també € pronunciado na frente generativa da programagao em modo Linux. S usudrios enfrentam um problema estrutural: como promover a coexisté: cia da qualidade do conhecimento com as trocas livres e igualitarias nu comunidade?!? Seria um equivoco imaginar que, pelo fato de as comunidades artesanaii tradicionais transmitirem as habilitagdes de uma geragdo a outra, essas ha. bilitagées terdo sido fixadas de maneira rigida; em absoluto. A olaria antiga por exemplo, mudou radicalmente quando entrou em uso 0 disco de pe rotativo ao qual era afixado um bloco de argila; dai surgiram novas maneit de moldar a argila. Mas a mudanga mais radical sobreviria lentamente. No Linux, 0 processo de evolugao da capacitagiio € apressado; a mudanga ocor re diariamente. Aqui também poderiamos pensar que um bom artifice, seja um cozinheiro ou um programador, preocupa-se apenas com a solugdo dos problemas, com solugGes que encerrem uma tarefa, com a conclusao do trabalho. Com isto, estarfamos deixando de dar crédito ao trabalho concreto em seu processo. Na rede Linux, quando um bug é resolvido, frequentemente se descortinam novas possibilidades para a utilizagao do cédigo. O cédigo est4 constantemente evoluindo, nao € um objeto acabado nem fixo. Existe no Linux uma relagdo quase instantdnea entre a solugao de problemas e a detecgaio de problemas. Ainda assim, o ritmo experimental da solugao e da detecgiio de proble-_ mas faz com que 0 antigo oleiro e o moderno programador sejam membros O ARTIFICE INQUIETO 37 ibo. Seria melhor comparar os programadores do Linux com | tribo moderna, a dos burocratas que nao se abalangam a dar um 1e todos os procedimentos, metas ¢ resultados visados de deter- +trizes sejam antecipadamente mapeados. Temos aqui um siste- imento fechados geralmente tém vida curta. O antropélogo André than compara, por exemplo, o officio da fabricagao de facas de écia pré-classica, aberto, sempre em evolugao, dificil mas de ux pode ser considerado profundamente “grego” em sua im- lidade. Em suas oficinas online, € impossivel deduzir, por exemplo, le@mit.edu” € um homem ou uma mulher; o que importa € que it.edu” contribui para o debate. Os artifices arcaicos vivenciavam essoalidade equivalente; os demioergoi frequentemente eram cha- ptiblico pelos nomes de sua profissao. Todo offcio artesanal, com algo desse cardter impessoal. O fato de o trabalho ter um aspecto al pode fazer com que a pritica dos oficios artesanais parega ingrata; alguém ter uma relagdo neurética com o pai nao o desculpa por a a conexao macho-fémea da tomada. Numa das salas de conversa do Linux, que costumo frequentar, as habituais simulagoes e evasi- eado do século XX, em suas tentativas de definir 0 cardter do artifice. ele: “O trabalhador imbufdo do oficio artesanal se envolve no tra- em si mesmo e por si mesmo; as satisfagGes do trabalho sao de per se recompensa; os detalhes do trabalho cotidiano so ligados, no espirito alhador, ao produto final; o trabalhador pode controlar seus atos no 38 ARTIFICES trabalho; a habilidade se desenvolve no processo do trabalho; 0 trabalhoe ligado a liberdade de experimentar; finalmente, a famflia, a comun a politica sao avaliadas pelos padrdes de satisfagao interior, coeréncia e mt perimentagao do trabalho artesanal.’ Se a descrigdo de Mills parece de um invidvel idealismo, poderfame em vez de rejeité-la, perguntar por que a perfcia artesanal do tipo Lit tao incomum. A pergunta vem a ser uma versao moderna da antiga preoe tdes fundamentais como a colaboragao, a necessdria relagao da solugao problemas com a deteccao de problemas ¢ o carater impessoal dos padtée mas ainda assim a comunidade parece ter algo de especial, sendo de may nal. Deve haver algum conjunto de forgas sociais mantendo essas quest6 fundamentais abafadas. Baixa de motivacao Trabalhadores desmoralizados pelo sistema de comando e competigdo O mundo modemo tem duas receitas para suscitar 0 desejo de trabalhar bet e com afinco. Uma € 0 imperativo moral de trabalhar pelo bem da comut dade. A outra recorre 4 competicdo: pressupde que competir com out estimula 0 desejo do bom desempenho, prometendo recompensas indi duais no lugar da coesao comunitéria. As duas receitas se tém revelado probl miticas. Nenhuma delas — em sua forma nua e crua — serviu as aspiragoe de qualidade do artifice. Os problemas envolvidos no imperativo moral surgiram diante de mit de forma pessoal e aguda durante visita que fiz com minha mulher ao imps rio comunista em 1988, as vésperas de seu colapso. Tinhamos sido convida dos pela Academia Russa de Ciéncias a visitar Moscou, em viagem as organizada sem 0 “apoio” do Ministério do Exterior e seus espides de plat tio; prometiam-nos toda a liberdade na cidade. Visitamos as igrejas d Moscou, outrora trancadas, j4 entio superlotadas, e a redagao de um jome O ARTIFICE INQUIETO. 39 1 ava sem autorizagdo, na qual as pessoas conversavam, fumavam jezem. quando escreviam. Quase en passant, nossos anfitrides decidi- levar-nos aos subtirbios de Moscou, que eu nunca antes visitara. s conjuntos habitacionais foram construfdos basicamente nas déca- riores 4 Segunda Guerra Mundial. Como gigantescos tabuleiros z, 0S subtitbios estendem-se até o horizonte por terrenos planos e mente arborizados com bétulas e choupos. A concepgio arquiteténica ios era boa, mas o Estado nao pudera assegurar um trabalho de boa e. Os indicios do baixo indice de motivagio dos operdrios apare- os detalhes da construgao: em quase todos os prédios, 0 concreto fora pejado e reforcado de qualquer jeito; janelas pré-fabricadas de exce- ‘concep¢io estavam desalinhadas nos encaixes; e era insuficiente a tacfio no espaco entre as janelas e o concreto. Num dos prédios, re- i augurado, encontramos as caixas vazias de material de calafetacao, contetido tinha sido vendido, segundo nossos guias, no mercado ne- ro. Em algumas das torres de apartamentos, os operarios tinham preenchi- paco entre as molduras das janelas e as paredes com jornais amassados, Otrabalho malfeito era um bardmetro de outras formas de indiferenga rial. Os prédios que visitamos destinavam-se a cidadaos relativamente a negligéncia visivel na construcio refletia-se no desinteresse dos mo- res pelo seu entorno: nao havia plantas nas janelas e varandas; as pare- estavam recobertas de pichagées e obscenidades pintadas a spray, que ninguém se dera ao trabalho de limpar. Quando perguntei sobre 0 estado abandono dos prédios, nossos guias deram uma explicagao vaga. “As pes- ” — em geral — no dao mais bola; se desiludiram. Essa condenagio genérica nao se aplicava indistintamente no império, 0s operdrios da construcaio civil na Unido Soviética ha muito se tinham -mostrado capazes de construir prédios de alta qualidade para fins cientificos e a ser mal 40 ARTIFICES militares. Ainda assim, os guias pareciam querer provar a frivolidade da recei- ta coletiva e moral do trabalho benfeito. Conduziam-me e 4 minha mulher de bloco em bloco de apartamentos com perversa satisfagdo, apontando exem- plos de fraude e trapaga, saboreando um prazer de verdadeiros conhecedores na contemplagao da falsa calafetagao, que seria denunciada pela simples che- gada do inverno. Provocado, um deles cunhou a expresso “as rufnas do mar- xismo” para explicar a evidéncia ao mesmo tempo dos operarios desiludidos e de moradores indiferentes ao ambiente em que viviam. O jovem Karl Marx considerava-se um Hefesto secular cujos escritos libertariam o moderno artifice. Nos Grundrisse, apresentou a habilidade artesanal nos termos mais amplos possiveis: “atividade criadora de formas”.'° Enfatizou que as relagdes individuais e sociais desenvolvem-se pela confec- a0 de objetos fisicos, permitindo o “desenvolvimento completo do indivi- duo”.® Antes de se tornar um analista da injustiga econdmica, Marx foi um Moisés para os trabalhadores, prometendo concretizar a dignidade do tra- balho que é natural as pessoas como parte de uma comunidade. Este cere utdpico do marxismo sobreviveu mesmo depois que Marx, em idade mais avangada, comegou a se enrijecer, transformando-se num idedlogo intran- sigente e amargurado. Bem tardiamente, em seu ensaio “O programa de Gotha”, ele retomou a ideia de que 0 comunismo despertaria novamente 0 espirito da habilidade artesanal.”” Na pritica, a economia centralizada da Rtissia parece explicar as ruinas do marxismo. Os economistas chamam a atengio para os nfveis incrivelmen- te baixos de produtividade da sociedade civil russa ao longo das décadas de 1970 e 1980. A industria da construgdo enfrentou particulares problemas : sua burocracia nao se mostrava muito capaz de transporte de materiais de comando centralizad estimar os materiais necessdrios para um projet pelas enormes distancias da Riissia era lento, seguindo caminhos irracionais; as fabricas e as equipes de construgao raramente se comunicavam direta- mente. E as autoridades reagiam com alarme a quaisquer iniciativas nos canteiros de obras, temendo que a autogestao local gerasse uma resisténcia generalizada ao Estado. O ARTIFICE INQUIETO 41 estes motivos, o imperativo moral “Faga um bom trabalho por seu soava vazio. Os problemas concretos longe estao de ser uma exclusi- e da indiistria russa da construgao. O socidlogo Darren Thiel encontrou ios igualmente desiludidos em muitos canteiros de obras britanicos. lastria da construgao civil na Gra-Bretanha do livre mercado sofre de a produtividade; seus trabalhadores qualificados sao tratados duramen- ais de artifices”, 0 que vem a ser mais ou menos como dizer que a Inglater- ta € um pats de lojistas ou observar que os neozelandeses sao bons na cria- gao de ovelhas.'? Mas 0 fato € que no ultimo meio século os japoneses demonstraram uma criatividade pratica que devolveu a vida ao pais depois da Segunda Guerra Mundial. Na década de 1950, os japoneses fabricavam _ em massa produtos simples e baratos; no inicio da década de 1970, produ- ziam automéveis, radios e aparelhos de som baratos e de alta qualidade, além de ago e aluminio excepcionais para finalidades especiais. O trabalho rigoroso em padrées elevados conferiu aos japoneses, ao lon- go desses anos, um senso especial de respeito proprio e reciproco. Em certa medida, eles precisavam dessas metas coletivas, pois os trabalhadores, espe- cialmente os dos escaldes intermediarios das organizag6es, passavam longas horas trabalhando juntos, raramente encontrando a mulher ou os filhos, para chegar ao fim do més. Mas o imperativo moral funcionava por causa da maneira como era organizado. Nos anos do pés-guerra, as empresas japonesas adotaram a panaceia do analista de negécios W. Edwards Deming, que preconizava, em nome do “controle de qualidade total”, que os gerentes pusessem a mo na massa na produgio e os subordinados falassem com franqueza aos superiores. Refe- tindo-se a um “artesanato coletivo”, Deming estava querendo dizer que 0 que solidifica uma instituigdo nado € apenas o compromisso comum, mas 42 ARTIFICES também as trocas afiadas. Os japoneses frequentemente sdo apresentados nas caricaturas como conformistas vivendo em rebanho, esteredtipo que nao da propriamente conta do profundo senso critico que os empregados da Toyota, da Subaru ou da Sony podem evidenciar em relagao aos colegas. A hierarquia imperava nas relagdes de trabalho japonesas, mas a fran- queza da comunidade Linux era normal nessas fabricas. Nelas, era possivel dizer a verdade ao poder, na medida em que um gerente competente podia facilmente ter acesso aos cédigos de cortesia e deferéncia na fala para trans- mitira mensagem de que alguma coisa estava errada ou nao funcionava bem. No coletivismo soviético, em contraste, 0 centro ético e técnico estava mui- to distante da vida concreta. Marx tratou do “trabalhador”; Deming e seus seguidores japoneses tratavam do trabalho. Em vez de nos incitar a imitar os japoneses, a comparagao nos convida a repensar 0 triunfalismo com que foi recebido 0 colapso do império sovié- tico hé uma gerag4o, com a vitéria do capitalismo no momento em que o comunismo rufa. Boa parte do discurso triunfalista girava em torno da com- paragao das virtudes da concorréncia com os vicios do coletivismo — consi- derando-se que a competi¢Ao individual tinha mais chances de produzir um bom trabalho, uma competigao para estimular a qualidade. O ponto de vis- ta ndo tem sido abragado apenas por capitalistas; na “reforma” de servigos publicos como os de assisténcia de satide, o objetivo € promover a concor- réncia interna e os mercados para melhorar a qualidade do atendimento. Precisamos examinar mais atentamente essa visio triunfalista, pois ela obs- curece ao mesmo tempo o papel que a competigdo e a cooperagio efetiva- mente desempenham na realizagao de um bom trabalho e, de maneira mais geral, as virtudes da perfcia artesanal. ¢ A produgio do telefone celular nos conta uma histéria reveladora sobre a superioridade da cooperagao em relagao 4 competi¢ao na realizagao de um bom trabalho. O ARTIFICE INQUIETO & telefone celular resulta da metamorfose de duas tecnologias, o radio lefone. Antes dessa fusdo, os sinais telef6nicos eram transmitidos por € 0s sinais de radio, emitidos no ar. Na década de 1970, os militares j4 am equipamentos compardveis aos telefones celulares. Eram apare- de radio grandes e pesaddes, com faixas especfficas para a comunica- . Versdes domésticas do celular podiam ser encontradas nos taxis, com nce limitado e som de baixa qualidade. O defeito do telefone com fio sua imobilidade, sua virtude, a clareza e seguranga da transmissao. No cerne dessa virtude estd a tecnologia de comutagio do telefone fixo, elaborada, testada e refinada ao longo de geragoes. Essa tecnologia é que de ser mudada para amalgamar o radio e o telefone. O problema e sua -solucdo eram perfeitamente claros. O que ainda dava muita margem a dii- vida, contudo, era a maneira de ligar os dois. Os economistas Richard Lester e Michael Piore estudaram as empresas que tentaram criar a tecnologia de comutagao, constatando que, em algu- mas delas, a cooperagao e a colaboragao permitiram abrir caminho na questdo da tecnologia de comutagao, enquanto em outras corporagdes a com- petico interna comprometia 0 empenho dos engenheiros em melhorar a qualidade dos comutadores. A Motorola, uma histéria de sucesso, desenvol- veu uma “prateleira tecnolégica”, criada por um pequeno grupo de enge- nheiros, na qual eram depositadas possiveis solugdes técnicas a serem utilizadas por outras equipes no futuro; em vez de tentar resolver diretamente o problema, ela desenvolvia ferramentas cuja utilizagao imediata nao era ainda clara. A Nokia enfrentou o problema de outra forma colaborativa, estabelecendo entre seus engenheiros uma conversa aberta de que fre- quentemente participavam também os desenhistas industriais e os profis- sionais de venda. As fronteiras entre as unidades empresariais da Nokia eram deliberadamente vagas, por nao serem suficientes as informagGes técnicas para avaliar todo 0 alcance de um problema; ideias paralelas eram necess4- rias. Lester e Piore afirmam que 0 processo de comunicagio assim gerado era “fluido, vinculado ao contexto e indeterminado”.” 44 ARTIFICES Em contraste, empresas como a Ericsson atuavam aparentemente com maior clareza e disciplina, dividindo o problema em partes. O surgimento do novo comutador deveria ocorrer mediante a “troca de informagées” en- tre departamentos, “e nao através do cultivo de uma comunidade inter- pretativa”.?! Organizada com rigidez, a Ericsson foi perdendo terreno. Efetivamente chegaria a resolver o problema da tecnologia de comutagao, mas com maior dificuldade; os diferentes departamentos protegiam cada um © seu territério. Em qualquer organizagaio, os individuos ou equipes que entram em competi¢ao e so recompensados por se sair melhor que os ou- tros haverao sempre de entesourar informagoes. Os prejuizos para o bom trabalho decorrentes do entesouramento de informagGes so particularmente sensiveis em empresas de tecnologia. As corporages que tiveram éxito gragas A cooperacao compartilhavam com a comunidade Linux essa caracterfstica experimental da habilidade artesanal tecnolégica, a intima e fluida conexao entre a solugao de proble- mas e a deteccdo de problemas. No contexto da competigao, em contraste, sdo necessarios padrées claros de realizagéo e conclusao de um trabalho para avaliar o desempenho e distribuir recompensas. Qualquer misico achard perfeitamente compreensfvel a histéria do te- lefone celular: a boa mtisica de cAmara e o bom trabalho orquestral s6 po- dem melhorar, especialmente nos ensaios, dessa maneira. Os ouvintes talvez imaginem que 0 fato de estar tocando com uma estrela da batuta ou gran- des solistas inspira os miisicos da orquestra, estabelecendo 0 virtuose um padrao que eleva o patamar dos demais, mas isto depende do comportamento da estrela. Um solista desprovido de coleguismo pode, na verdade, diminuir a vontade dos mtisicos da orquestra de tocar bem. Como os mtisicos, os engenheiros sao intensamente competitivos; a questao, em ambos 0s casos, é saber 0 que acontece quando desaparece a cooperagao capaz de estabele- cer alguma forma de compensagdo: o trabalho se degrada. A histéria triun- falista, contudo, tende a mostrar-se cega a esse necessdrio equilfbrio. Uma desilusio como a dos operdrios russos que minha mulher e eu encontramos nos subtirbios de Moscou pode ser constatada também mais yerto de casa ar os demioe , por sua « dos execut« empresas je jd fizeram amigos 0s | ‘tiam estim -deprimida funcionav. O ARTIFICE INQUIETO 45 casa. Ao retornar dessa ultima viagem ao império, comecei a estu- ioergoi da nova economia americana: trabalhadores de nivel médio sua capacitacao, deveriam ter assegurado um lugar seguro na “nova iia” que vinha sendo formada desde a década de 1990.” A expresso e ao trabalho nos setores de alta tecnologia, finangas e servigos, apoia- por investidores globais e conduzidos em instituigdes mais flexiveis, ageis adas para o curto prazo que nas rigidas jaulas burocraticas do passado. eus alunos e eu nos concentramos em pessoas que formulam cédigos de Y putadores, se encarregam da contabilidade no escritério ou cuidam da igo para as lojas numa cadeia de varejo — todas elas competentes, nas sem cargos com nomes sexy nem rendas espetaculares. O mundo de seus pais e avés era de certa forma protegido dos rigores da competicao. No século XX, os trabalhadores qualificados de classe média contravam lugar em burocracias relativamente estaveis que conduziam empregados por uma longa carreira, da juventude a aposentadoria. Os antepassados das pessoas que entrevistamos trabalhavam duro para conse- -guir o que queriam; sabiam perfeitamente 0 que lhes aconteceria se nao 0 fizessem. Nao é mais novidade que esse mundo de classe média desmoronou. O sistema corporativo que outrora organizava carreiras tornou-se um labirinto de empregos fragmentados. Em princfpio, muitas empresas da nova econo- mia adotam as doutrinas do trabalho em equipe e da cooperagao, mas, ao contrario das praticas que vigoram na Nokia e na Motorola, esses princfpios frequentemente sao uma farsa. Constatamos que as pessoas davam demons- tragdes de comportamento amistoso e cooperativo sob o olhar controlador dos executores da vontade do patrao, em vez de — como acontece nas boas empresas japonesas — desafiar e contestar os superiores. Verificamos, como jd fizeram outros pesquisadores, que elas raramente consideravam como amigos os colegas de trabalho em equipe. Alguns dos entrevistados se sen- tiam estimulados por essa competicao individualizada, mas a maioria ficava deprimida — e por um motivo especffico. A estrutura de recompensas nao funcionava bem para elas. ARTIFICES Anova economia eliminou duas formas tradicionais de recompensa no trabalho. Tradicionalmente, as empresas présperas se programam para re- compensar os empregados que trabalham duro, em todos os niveis. Nessas empresas da nova economia, contudo, a participacdo dos empregados de n{vel médio na riqueza ficou estagnada ao longo da tiltima geragao, embora a dos que ocupam as posigdes mais elevadas tenha aumentado muito. Em 1974, por exemplo, o diretor executivo de uma grande corporagao america- na ganhava cerca de trinta vezes mais que um empregado de nivel médio, ao passo que em 2004 chegava a perceber 350 a 400 vezes mais. Nesses trin- ta anos, os ganhos salariais reais no nfvel médio subiram apenas 4%. Na geragao anterior, a pura e simples solidez dos servigos prestados a uma empresa era outro motivo de recompensa, sacramentada burocratica- mente nos aumentos salariais automdaticos por tempo de servigo. Na nova economia, esse tipo de recompensa por servigos prestados diminuiu ou de- sapareceu; as empresas passaram a ter um horizonte de curto prazo, prefe- tindo trabalhadores mais jovens e novos no posto a empregados mais velhos e supostamente mais acomodados — 0 que significa que, para os trabalha- dores, sua experiéncia perde valor institucional 4 medida que aumenta. Os técnicos que primeiro entrevistei no Vale do Silicio acreditavam poder su- perar esse problema da experiéncia desenvolvendo suas capacitag6es, cri- ando uma blindagem interna que haveriam de levar de empresa em empresa. Mas a habilidade nao basta para protegé-los. No mercado globalizado de hoje, os trabalhadores qualificados de nfvel médio arriscam-se a perder 0 emprego para um concorrente da India ou da China que tem a mesma qua- lificagdo mas trabalha por um saldrio mais baixo; a perda do emprego nao é mais um problema exclusivo da classe operdria. Mais uma vez, muitas em- presas tendem a no fazer investimentos de longo prazo na capacitagao de um empregado, preferindo contratar pessoas que j4 tém as novas qualifica- Ges a enveredar pelo processo mais dispendioso de recapacitagao. Existem certas peculiaridades nesse quadro sombrio. O sociélogo Christopher Jencks demonstrou que a “remuneragao da habilidade” revela- se robusta nos escaldes mais altos porém mais fraca mais para baixo; os gran- O ARTIFICE INQUIETO 47 lores de sistemas sao generosamente recompensados hoje em dia, 0 programadores de rotina, muitas vezes, nao ganham mais e as vezes ham menos que prestadores de servigos manuais como bombeiros € lores. Além disso, sustenta Alan Blinder, embora muitos empregos téc- de mais alta qualificagao do Ocidente estejam sendo transferidos para da Asia e do Oriente Médio, existem empregos que ndo podem ser ortados por exigirem contato pessoal. Alguém que viva em Nova York e trabalhar com um contador de Bombaim, mas dificilmente poderia ecorrer, para seu divércio, aos servigos de um advogado indiano.”* _ Seja como for, as tribulagdes dos artifices da nova economia constituem adverténcia contra o triunfalismo. O crescimento da nova economia aum ensimesmamento de muitos desses trabalhadores na América e a Gra-Bretanha. As empresas que ndo demonstram muita lealdade para com sets empregados suscitam em troca um baixo grau de comprometi- mento: as companhias que operavam através da Internet e enfrentaram pro- blemas no inicio da década de 2000 aprenderam uma dura ligdo, vendo seus empregados saltarem do barco que afundava em vez de se esforgarem para -ajudar na sobrevivéncia. Descrentes das instituig6es, os trabalhadores da nova economia apresentam indices mais baixos de comparecimento eleitoral e participacao politica que os trabalhadores de nivel técnico de duas gera- -g6es atr4s; embora muitos deles se filiem a organizagoes de voluntariado, sG0 poucos os que participam ativamente. Em seu festejado livro Bowling Alone [Jogando boliche sozinho], 0 cientista politico Robert Putnam apon- tou nesse “capital social” reduzido um resultado da cultura televisiva e da ética consumista; em nosso estudo, constatamos que o distanciamento em telagao as instituigdes estava mais diretamente relacionado as experiénci- as no trabalho.** Se 0 trabalho efetuado nos empregos da nova economia € qualificado e realizado sob forte pressao, exigindo dedicagao de longas horas, ainda assim €um trabalho desagregado: eram poucos, entre os técnicos que encontra- mos, os que acreditavam que seriam recompensados se fizessem um bom trabalho simplesmente por fazé-lo. Pode ser que 0 moderno artifice lute 48 ARTIFICES internamente por esse ideal, mas, considerando-se a estrutura do sistema de recompensas, 0 esforgo serd invisivel. ° Do ponto de vista social, em suma, a desmoralizacdo tem: muitos lados. Pode ocorrer quando uma meta coletiva de bom trabalho perde o sentido e se torna vazia; da mesma forma, a pura e simples competigdo pode neu- tralizar um bom trabalho e deprimir os trabalhadores. Nem o corpo- rativismo nem 0 capitalismo, como simples etiquetas, atacam a questio institucional. As formas de comunicagio coletiva nas fabricas japonesas de automéveis e as praticas de cooperagao em empresas como a Nokia ea Motorola levaram a lucratividade. Em outros terrenos da nova economia, contudo, a competi¢ao incapacitou e desalentou os trabalhadores, perma- necendo sem recompensa ou invisivel 0 ethos do bom trabalho pelo bom trabalho que orienta o artifice. A ruptura das habilidades Mao e cabega separadas Aera moderna costuma ser considerada uma economia da capacitagéio, mas 0 que é exatamente uma capacitagao? A resposta genérica é que se trata de uma pratica do treinamento. Neste sentido, a capacitagao contrasta com 0 coup de foudre, a inspiragao stibita. O atrativo de inspiracio est4 em parte na convicgao de que o talento bruto pode substituir 0 treinamento. Os pro-| digios musicais costumam ser citados para corroborar essa convicgao — equivocadamente, porém. Uma crianga prodigio como Wolfgang Amadeus Mozart efetivamente tinha a capacidade de se lembrar de uma quantidade impressionante de notas, mas entre os 5 e os 7 anos de idade Mozart apren- deu a treinar sua grande memoria musical inata improvisando no teclado. Desenvolveu métodos para parecer estar produzindo misica espontanea- O ARTIFICE INQUIETO. 49 b - A misica que comporia mais tarde também parece espontanea por- que a anotava diretamente na pagina, com relativamente poucas correcdes, mas as cartas de Mozart mostram que ele perpassava as partituras mental- mente repetidas vezes antes de registra-las na pauta. Devemos encarar com desconfianga os supostos talentos inatos e sem treinamento. Comentirios do tipo “se tivesse tempo, eu escreveria um grande romance” ou “se pelo menos conseguisse me recompor” costumam ser fan- _ tasia narcisista. Revisar repetidas vezes uma acdo, em contrapartida, permite _ aautocritica. A educagao moderna evita o aprendizado repetitivo, conside- rando que pode ser embotador. Temeroso de entediar as criangas, avido por apresentar estimulos sempre diferentes, 0 professor esclarecido pode evitar arotina, mas desse modo impede que as criangas tenham a experiéncia de estudar a propria pratica e modulé-la de dentro para fora. O desenvolvimento das capacitagdes depende da maneira como € orga- nizada a repetigao. Por isso é que, na misica como no esporte, a duragao de uma sessio de pratica deve ser cuidadosamente pesada: 0 ntimero de vezes a repetir uma pega nao pode ultrapassar o alcance da atengao do individuo em determinada etapa. A medida que se expande a capacitagdo, a capacida- de de sustentar a repetigao aumenta. Na misica, € a chamada regra Isaac Stern, tendo declarado o grande violinista que, quanto melhor a técnica, por mais tempo o miisico é capaz de ensaiar sem se entediar. Existem mo- mentos “Eureca!” que soltam as amarras de uma prdtica que emperrou, mas eles esto incorporados & rotina. A medida que uma pessoa desenvolve sua capacitagao, muda o conteti- do daquilo que ela repete. O que parece dbvio: nos esportes, repetindo infindavelmente um saque de ténis, 0 jogador aprende a jogar a bola de maneiras diferentes; na musica, o menino Mozart, aos 6 e 7 anos de idade, ficou fascinado com a sucessdo de acordes da sexta napolitana, na posigao fundamental (0 movimento, por exemplo, de um acorde de dé maior para um acorde de 14 bemol maior). Depois de trabalhar alguns anos nela, tor- nou-se perito em inverter a mudanga para outras posigdes. Mas a questo ao mesmo tempo nao é 6bvia. Quando a pratica € organizada como um meio 50 ARTIFICES para alcangar um fim predeterminado, reaparecem os problemas do siste- ma fechado; a pessoa em treinamento atingiré uma meta fixa mas nao ird além. A relagao aberta entre a solucdo de problemas e a detecgao de proble- mas, como no trabalho no Linux, forja e expande capacitagdes, mas nao pode ser um epis6dio eventual. A capacitagao s6 se expande dessa maneira por- que o ritmo da solugao e da expansiio se repete constantemente. Esses preceitos para forjar a capacitagao através da pratica deparam-se com um grande obstaculo na sociedade moderna. Refiro-me aqui 4 manei- ra como as mAquinas podem ser mal utilizadas. Na linguagem corrente, 0 que é “mecanico” se equipara a uma repeticao de natureza estatica. Gragas 4 revolugao da microinformatica, contudo, a maquinaria moderna nao é estatica; através dos circuitos de retroalimentagao, as maquinas podem apren- der com a prépria experiéncia. Mas as maquinas sao mal empregadas quan- do impedem que as préprias pessoas aprendam com a repeticao. A maquina inteligente pode separar 0 entendimento mental humano do aprendizado repetitivo, instrutivo, com a m&o na massa. Quando isto acontece, as facul- dades conceituais humanas perdem. Desde a Revolugao Industrial do século XVIII, a mdquina parece cons- tituir uma ameaga ao trabalho do artesao-artifice. A ameaga tinha um card- ter fisico; as m4quinas industriais nunca se cansavam, faziam 0 mesmo trabalho hora apés hora sem reclamar. A ameacga da maquina moderna ao desenvolvimento das capacitagdes tem um carater diferente. Um exemplo dessa ma utilizagdo ocorre no CAD (computer-assisted design: desenho com a ajuda do computador), o programa de informatica que per- mite aos engenheiros conceber objetos fisicos e aos arquitetos gerar imagens de construgées na tela. A tecnologia remonta ao trabalho de Ivan Sutherland, um engenheiro do Massachusetts Institute of Technology (MIT) que ten- tou descobrir em 1963 como um usuario poderia interagir graficamente com um computador. O mundo material moderno nao poderia existir sem as O ARTIFICE INQUIETO 51 ravilhas CAD. Ele permite a modelagem instantanea de produtos, dos rafusos aos automéveis, especifica com precisao sua engenharia e contro- sua produgao.”* No trabalho arquitetonico, contudo, essa tecnologia ne- - essiria também apresenta riscos de ma utilizacao. No trabalho arquitetdnico, o projetista estabelece na tela uma série de ontos; os algoritmos do programa ligam os pontos numa linha, em duas ou és dimensGes. A concepgao com ajuda do computador tornou-se quase iniversal nos escrit6rios de arquitetura, por sua preciso e rapidez. Entre ias virtudes esté a capacidade de girar imagens, para que o projetista possa Ta casa ou o prédio de escritérios de varios pontos de vista. Ao contrario do que acontece com um modelo fisico, 0 modelo na tela pode ser rapida- mente aumentado, diminufdo ou dividido em partes. Certas aplicagées so- fisticadas do CAD reproduzem os efeitos, numa estrutura, das mudangas de iluminagao, direcionamento dos ventos ou temperatura. Tradicionalmente, 0s arquitetos analisavam os prédios de duas maneiras, pela planta e 0 corte transversal. O CAD permite muitas outras formas de andlise, como, por exemplo, fazer uma viagem mental na tela pelas correntes de ar do prédio. Como poderia uma ferramenta tao Util ser mal empregada? Quando 0 CAD foi introduzido no ensino de arquitetura, substituindo 0 desenho a mao, uma jovem arquiteta do MIT observou que, “quando projetamos um espago, desenhando linhas e Arvores, ele fica impregnado em nossa men- te. Passamos a conhecé-lo de uma maneira que nao € possivel com 0 com- putador. (...) Ficamos conhecendo um terreno tracando-o e voltando a tragd-lo varias vezes, e nado deixando que o computador 0 ‘corrija’ para nés”.*6 Nao € uma questao de nostalgia: a observagao leva em conta o que éperdido mentalmente quando o trabalho na tela substitui o tragado a mao. Tal como acontece em outras praticas visuais, os esbogos arquitetonicos frequentemente constituem imagens de possibilidade; no processo de cris- talizagao e depuracao pela mao, o projetista procede exatamente como 0 jogador de ténis ou o mtisico, envolve-se profundamente, amadurece suas ideias a respeito. O espago, como observa a arquiteta, “fica impregnado na mente”. 52 ARTIFICES O arquiteto Renzo Piano explica da seguinte maneira seu método de trabalho: “Comegamos fazendo esbogos, depois tragamos um desenho e en seguida fazemos um modelo, para entao chegar a realidade — vamos a0 espago em questo —, voltando mais uma vez ao desenho. Estabelecemos uma espécie de circularidade entre 0 desenho e a concretizagao e de volta novamente ao desenho.””’ Sobre a repetigao e a pratica, observa Piano: “ perfeitamente caracterfstico da abordagem do artifice. Ao mesmo tempo pensar e fazer. Desenhamos e fazemos. O ato de desenhar (...) € revisitado Pc Fazer, refazer e fazer mais uma vez.”* Essa metamorfose circular, geradora find de vinculos, pode ser abortada pelo CAD. Uma vez tragados os pontos na i tela, os algoritmos se encarregam do desenho; a m4 utilizagao ocorre se 0 processo é um sistema fechado, um esquema meios-fim estatico — a “circularidade” de que fala Piano desaparece. O fisico Victor Weisskopf dis- se certa vez a seus alunos do MIT que trabalhavam exclusivamente com experiéncias informatizadas: “Quando vocés me mostram esse resultado, 0 | _ es computador entende a resposta, mas nao creio que vocés a entendam.”” A tealizagao de projetos com a ajuda do computador gera riscos espe- tornan ciais na concepgao de prédios. Tendo em vista a capacidade da maquina de |_ ita instantaneamente apagar e reconfigurar, 0 arquiteto Elliot Felix observa: |, rio “Cada agao é menos consequente do que seria no papel (...) cada uma delas ant serd ponderada com menos cuidado.”» O restabelecimento do desenho a Wn mao pode permitir superar esse risco; mais dificil de enfrentar € uma ques- tio que diz respeito aos materiais com que é construfdo o prédio. As telas de Atle planas de computador nao sao capazes de reproduzir bem as texturas dos diferentes materiais ou ajudar na escolha das cores, embora os programas CAD sejam capazes de calcular com assombrosa precisao a quantidade de tijolos ou de ago que pode ser necessdria num prédio. Desenhar os tijolos a eria t mao, por tedioso que possa ser, leva o projetista a pensar em sua ma- simple terialidade, a lidar com sua solidez, contraposta ao espago em branco repre- Flybj sentado no papel por uma janela. O CAD também impede o projetista de projet pensar em termos de escala, que € diferente do puro e simples tamanho. O CG conceito de escala envolve a avaliacgdo das proporgées; 0 senso de proporgao emo O ARTIFICE INQUIETO 53 apresenta-se ao projetista como uma conexao de concentragées de is. O objeto na tela pode efetivamente ser manipulado para ser apresen- 0, por exemplo, da perspectiva de alguém que esta no local, mas neste ido o CAD é frequentemente mal empregado: o que aparece na tela ece uma coeréncia impraticavel, composta de uma maneira unificada > nunca se verifica na visao fisica. Os problemas com a materialidade tm um longo pedigree na arquite- ra. Poucos projetos de construgao de prédios de grande escala anteriores 4 industrial puderam contar com plantas de trabalho detalhadas como as e o CAD € capaz de produzir hoje em dia; 0 papa Sisto V reformou a ’iazza del Popolo em Roma, no fim do século XVI, descrevendo numa con- lersa os prédios e 0 espago ptiblico que tinha em mente, instrugdo verbal ue deixava bastante espaco para o pedreiro, o vidreiro e o engenheiro tra- balharem com liberdade e amplas possibilidades de adaptagao. As plantas — desenhos a tinta nos quais é possivel apagar, 0 que no entanto resulta numa aparéncia de sujeira — adquiriram valor legal no fim do século XIX, tornando essas imagens no papel equivalentes de um contrato juridico. A planta, além disso, representava uma decisiva desconexao entre a cabega € amo no tragado de projetos: a ideia de algo conclufdo na concepgao antes mesmo de ser construfdo. Um exemplo marcante dos problemas que podem decorrer dos projetos mentalizados € encontrado no Peachtree Center da Gedrgia, num subtirbio de Atlanta. Temos aqui uma pequena floresta de torres de escrit6rios de con- creto, estacionamentos, lojas e hotéis, delimitada por autoestradas. Em 2004, ocomplexo cobria cerca de 540 mil metros quadrados, 0 que 0 torna um dos mais surpreendentes “megaprojetos” da regiao. O Peachtree Center nao po- deria ter sido construfdo por um grupo de arquitetos trabalhando & mao: é simplesmente vasto e complexo demais. O analista de planejamento Bent Flyvbjerg explica um outro motivo econémico da necessidade do CAD em projetos dessa magnitude: pequenos erros tém grandes efeitos indiretos.*! Certos aspectos do projeto sao excelentes. Os prédios nao sao dispostos como num shopping center, mas numa malha de ruas formando 14 quartei- 54 ARTIFICES 16es; 0 complexo resgata o conceito de rua e pretendia ser acolhedor para pedestres. A concepgao dos trés grandes hotéis é de John Portman, um quiteto de ideias exuberantes, adepto de toques sensacionais como elevad res envidracgados subindo e descendo quarenta andares em patios intern Mais adiante, os seis emp6rios comerciais ¢ torres de escritérios surgem com caixas de concreto e ago mais convencionais, algumas apresentando na fact externa detalhes renascentistas ou barrocos que se tornaram a marca regis trada da arquitetura pés-moderna. O projeto como um todo nao busca anonimato, mas afirmar uma personalidade. Ainda assim, certas falhas sig- nificativas do projeto sao evidentes: trés falhas que representam para o dese- nho com ajuda de computador uma ameaga de cardter mais genérico, como uma pratica desvinculada da materialidade. A primeira é a desconexdo entre simulacao e realidade. No projeto, 0 Peachtree Center enche as ruas com vistosos cafés na calgada. Mas 0 fato é que nao foi levado em conta o forte calor da Ge6rgia: as mesas ao ar livre na verdade ficam vazias do fim da manha ao fim da tarde, a maior parte do ano. A simulagao nao substitui adequadamente a sensagdo da luz, do vento e do calor no local. Os projetistas talvez devessem ter sentado diariamente ao sol do meio-dia na Geérgia, durante uma hora, antes de ir trabalhar; 0 desconforto fisico lhes teria permitido enxergar melhor as coisas. A grande questio aqui é que a simulagdo pode ser um sucedaneo perfeitamente insatisfat6rio para a experiéncia tatil. Os projetos que dispensam 0 uso da mao também desqualificam um certo tipo de compreensao relacional. O hotel de Portman, por exemplo, da énfa- se a ideia de coeréncia, com a tensdo dramatica dos elevadores envidraga- dos subindo num patio de quarenta andares; os quartos do hotel dao para patios de estacionamento. Na tela, a questao do estacionamento pode ser _ esquecida fazendo-se girar a imagem, para que o mar de carros desapare- a; no local, nao € possivel descarté-la dessa maneira. Naturalmente, nao € culpa do computador. Os projetistas de Portman podiam perfeitamente ter inclufdo uma imagem dos carros para descortinar aquele mar na telaa partir dos quartos do hotel, mas neste caso criariam um problema funda- O ARTIFICE INQUIETO. 55 a o projeto. Enquanto o Linux funciona descobrindo proble- ) CAD frequentemente € usado para oculté-los. A diferenga explica te 0 sucesso comercial do CAD; 0 sistema pode ser usado para con- as dificuldades. mente, a exatidao do CAD traz a baila um problema hd muito ine- envolvidos na construgao do Peachtree Center justificadamente ltam com orgulho seus prédios de uso multiplo, mas essas misturas de es foram calculadas nos mfnimos detalhes; os célculos levam a uma ou desdobradas. Fica faltando, assim, a vida informal e tao facil e socid- rel das ruas dos bairros antigos de Atlanta. Uma abrangéncia positiva do que é incompleto est4 necessariamente ausente da planta; as formas sao decidi- as antes do seu uso. Se nao chega propriamente a causar o problema, 0 ‘programa CAD o agrava: os algoritmos fixam quase instantaneamente uma agem totalizada. O tatil, o relacional e o incompleto so experiéncias ffsicas que ocorrem no ato de desenhar. O desenho representa aqui um leque mais amplo de experiéncias, como, por exemplo, a maneira de escrever caracteristica da edicdo e da revisdo, ou a maneira de tocar musica que explora repetidas vezes as qualidades intrigantes de determinado acorde. O dificil e 0 incompleto deveriam ser fatores positivos em nosso entendimento; deveriam estimular- nos de uma forma de que nao sao capazes a simulagao e a manipulacao facil de objetos completos. A questéo — quero aqui frisar — € mais complicada que a mera oposigdo mao versus maquina. Os modernos programas de com- putador podem efetivamente aprender com sua prépria experiéncia de uma forma expansiva, pois os algoritmos sao reelaborados através da retroali- mentagao de dados. O problema, como afirma Victor Weisskopf, é que as 56 ARTIFICES pessoas podem acabar permitindo que as maquinas fagam esse aprendiza- do, servindo a pessoa apenas como testemunha passiva e consumidora da competéncia em expansao, sem participar dela. Por isto é que Renzo Piano, projetista de objetos muito complicados, estd sempre retornando de forma circular a pratica de desenhd-los 4 mo. As formas abusivas de utilizagao do CAD bem demonstram que, quando a cabega e a mao estdo separadas, € a cabega que sofre. O desenho com ajuda de computador pode servir como simbolo de um amplo desafio enfrentado pela sociedade moderna: como pensar a vida como artifices fazendo bom uso da tecnologia. “Conhecimento intro- jetado” é uma expressdo na moda nas ciéncias sociais, mas “pensar como um artifice” € mais que um estado de espirito: representa uma aguda po- ere na sigdo critica na sociedade,__, Emparedado no Peachtree Center durante um fim de semana de deba- tes sobre “Valores comunitarios e metas nacionais”, fiquei particularmente interessado pelas garagens. Para-choques padronizados tinham sido instala- dos na frente de cada vaga. Pareciam muito bem concebidos, mas suas ex- tremidades inferiores eram de metal pontiagudo, passivel de arranhar os carros ou as panturrilhas. Algumas delas, contudo, tinham sido viradas, por medida de seguranga. A irregularidade do ajuste mostrava que a corregdo tinha sido feita manualmente, com o alisamento e 0 arredondamento do aco nos pontos em que podia oferecer perigo; o artifice tinha pensado pelo arquiteto. A iluminagao dessas casas de automéveis revelou-se de intensida- de desigual, com o stibito surgimento no prédio de sombras perigosas. Fai- xas brancas irregulares haviam sido pintadas para orientar os motoristas em meio aos bolsdes de sombra e luz, num sinal antes de improvisagao que de cumprimento dos planos. O artifice pensara mais e mais profundamente sobre a iluminagao que os projetistas. Esses amoladores de aco e pintores, com toda evidéncia, nao tinham sido convidados a participar de reunides de trabalho no inicio do projeto nem contribuido com sua experiéncia para evitar pontos problematicos dos pro- jetos exibidos na tela. Portadores de conhecimento incorporado mas meros O ARTIFICE INQUIETO. 57 Ima resposta diz respeito 4 maneira como algo deve ser feito, outra, a tro- com que funcione. E a diferenga entre corregaio e funcionalidade. mg) Imente, nao deveria haver conflito; no mundo real, existe. Muitas vezes Poa tamos um padrao de corregao que raramente é alcangado, se € que che- 7 a sé-lo alguma vez. De forma alternativa, poderfamos trabalhar em fun- ba- io do padrao que é possivel, do que é suficientemente bom — mas também nte aqui podemos acabar na frustragao. Dificilmente se pode satisfazer o desejo ila- de realizar um bom trabalho obedecendo 8 lei do menor esforgo. sa Desse modo, seguindo a medida absoluta de qualidade, o escritor volta os obsessivamente a cada virgula, até que o ritmo de uma sentenga fique bom, pe eo carpinteiro entalha as pegas de uma junta macho-fémea até que as duas a estejam rigidamente encaixadas, sem necessidade de parafusos. Seguindo a do _ medida da funcionalidade, o escritor entregard 0 texto no prazo, estejam ou lo ndo todas as virgulas no lugar, j4 que o que é escrito precisa ser lido. O car- a: pinteiro sintonizado com a funcionalidade ficaré menos preocupado com ei cada detalhe, sabendo que os pequenos defeitos podem ser corrigidos por oe parafusos ocultos. Mais uma vez, a questo € concluir o trabalho para que a He pega possa ser usada. Para o absolutista que hd em todo artifice, cada imper- te feigdo é um fracasso; para o profissional, a obsessao com a perfeicao pode sera receita do fracasso. lo E necessdria uma certa sutileza filosdfica para entender esse conflito. f Pratica € prdtico tem origem comum_na linguagem. Poderia parecer que, quanto mais alguém treina e pratica no desenvolvimento de uma habilida- 58 ARTIFICES de, mais desenvolverd uma mentalidade pr ntrando-se no possivel e no particular, Na verdade, uma longa experiéncia pratica pode levar na di- recdo oposta. Eis aqui uma variante da “regra Isaac Stern”: quanto melhor sua técnica, mais inatingiveis seus padrdes. (Dependendo do humor, Isaac Stern desenvolvia muitas e muitas variantes da “regra Isaac Stern” sobre as virtudes dos exerccios praticos.) O Linux pode funcionar de maneira seme- Ihante. As pessoas mais capacitadas para usé-lo so em geral as que se con- centram nas ideais e infindaveis possibilidades do programa. O conflito entre fazer bem € conseguir acabar insere-se hoje num contexto institucional, que ilustrarei aqui com o caso da assisténcia de satide. Muitos leitores de mais idade saberao muito bem, como eu, do que estou falando. o Na tiltima década, 0 Servigo Nacional de Satide (NHS — na sigla em inglés) da Gra-Bretanha estabeleceu novas medidas de definigdo do bom atendimento por parte de médicos e enfermeiros: quantos pacientes sao visitados, a rapidez com que sao atendidos, a eficiéncia com que saio encaminhados a especialis- tas. Sao medidas de avaliagdo numérica da maneira correta de proporcionar assistencia médica, mas medidas voltadas para as necessidades humanas dos pacientes. Seria mais facil, por exemplo, se o encaminhamento para os espe- cialistas fosse deixado a critério do médico. Mas tanto os médicos quanto os enfermeiros, os assistentes de enfermagem e as equipes de limpeza conside- tam que essas “reformas” diminufram a qualidade dos servigos, tendo como referéncia 0 que é vidvel na pratica. E o sentimento que expressam é bem conhecido. Pesquisas tém indicado amplamente que na Europa ocidental os médicos consideram que suas habilidades e capacitagGes no trato com os pa- cientes sao ignoradas, na busca por padres institucionais. O Servicgo Nacional de Satide apresenta um contexto muito diferente da “assisténcia gerenciada” ao estilo americano e de outros mecanismos pautados pelo mercado. Apés a Segunda Guerra Mundial, a criagao do NHS

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