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Dr Martyn | [ovG-Jor les Gn ses DOUTRINE RIBLIGKC Pa oe | ty) Ultimo volume de uma série de trés pelo famoso pregador GRANDES DOUTRINAS BIBLICAS A Igreja e as Ultimas Coisas Martyn Lloyd-Jones — magistral! Este € 0 tltimo volume de uma nova e impor- tante série de grandes obras escritas por Martyn Lloyd- -Jones, o destacado pregador, no qual ele explora a Biblia a fim de encontrar as esséncias da fé crista. Nossa atencao é agora voltada para o ponto de vista biblico da Igreja e das tiltimas coisas. O autor comega com uma detalhada investigacdo da Igreja e das ordenangas, especialmente com uma compreensao correta do batismo e da Ceia do Senhor. Os capitulos subsequéntes focalizam a segunda vinda de Cristo, 0 juizo final ¢ a ressurreigao do corpo. Além de uma andlise detalhada do ensino biblico contido no capitulo 9 de Daniel e do Apocalipse, Dr. Lloyd-Jones também examina os diferentes pontos de vista susten- tados sobre esse assunto e considera a maneira de Deus cumprir Seu plano para os judeus. Dr. Lloyd-Jones foi um eficiente médico cirugiao que em 1927 deixou a pratica da medicina e tornou-se ministro duma igreja no sul de Gales. Posteriormente, por trinta anos, até 4 sua aposentadoria em 1968, ele ministrou na Capela de Westminster, em Londres. PES PUBLICACOES EVANGELICAS SELECIONADAS Rua 24 de Maio, 116 — 3° andar — salas 14-17 01041-000 - Sao Paulo —- SP GRANDES DOUTRINAS BIBLICAS Volume 3 A Igreja e as Ultimas Coisas D. Martyn Lloyd-Jones PES PUBLICACOES EVANGELICAS SELECIONADAS Caixa Postal 1287 01059-970 — Sao Paulo — SP Titulo original The Church an Editora: Hodder and Stoughton Ltd., Primeira edicao em inglés: 1998 Copyright: Lady E. Catherwood Ann Desmond z 5S PranRinroilEs O direito de Dr. MartymLloyd-Jones de ser identificado como o obra tem sido assevetado de acordo com 0 ato de Copyright, Patents 1988 ° Traducdo do inglé: Valter Graciano Mat Revisao: Antonio Poccinelli Capa: Sergio Luiz Menga Primeira edic4o em portugués: 1999 Impressao: Imprensa da Fé INDICE PrefACiO veeceescssesssesstesssecssessneessesstenuesseccssessneesnsessecsssesnsesneete 7 WONDMNARWNE Ree WN OS 14 1S 16 17 18 19 20 21 22 23 A I greja eesessesesessesssesesssessesiecsesseesesneenesseenecseseeanenses As Marcas e 0 Governo da Igreja As Ordenangas — Sinais e Selos O Batismo A Ceia do Senhor .... Morte e Imortalidade Imortalidade Condicional ou Segunda Chance A Segunda Vinda — Introducao Geral . O Tempo de Sua Vinda — os Sinais O Plano de Deus para os Judeus .. O Anticristo A Interpretagao de Daniel 9:24-27 Conclusao do Capitulo 9 de Daniel e o Arrebatamento Secreto O Livro do Apocalipse ~ Introdugao Os Pontos de Vista Preterista ¢ Futurista O Ponto de Vista Historicista Espiritual . O Sofrimento e a Seguranca dos Redimidos . As Trombetas .. O Juizo Final . O Ponto de Vista Premi Pés-milenismo ¢ o Ponto de Vista A Ressurreigao do Corpo O Destino Definitivo PREFACIO Nas noites de sexta-feira, apés a guerra, o Dr. Lloyd-Jones passou a manter reunides de debates numa das salas da Capela de Westminster, em Londres. Os temas desses debates versavam sobre quest6es praticas da vida cristaé, e as reunides eram freqiientadas por um grande ntimero de pessoas. As questdes que surgiram demandavam um s6lido conhecimento de todo tipo de ensino biblico. As vezes surgiam também problemas doutri- narios, com os quais “o Doutor” tinha que tratar, geralmente em sua conclusao, no encerramento do debate. Em parte era resultado disso, e em parte porque o numero foi se tornando grande demais para a sala comportar, ¢ talvez também porque as pessoas que lhe pediam informacoes sobre as doutrinas biblicas eram tantas, que ele comecou a sentir a necessidade de mudar a “reuniao noturna de sexta-feira” para a propria Capela, e ali ministrar uma série de prelegdes sobre esses grandes temas. Ele fez isso de 1952 a 1955, e entao deu inicio 4 sua magistral série sobre a Epistola aos Romanos, a qual deu seguimento até sua aposentadoria em 1968. As prelegoes doutrindrias eram muitis- simo apreciadas pelas grandes congregac6es que as ouviam; ¢, ao longo dos anos, muitos tém dado testemunho da maneira como, por meio delas, sua vida crista se fortaleceu. Mais tarde, o proprio Doutor se sentiu mais satisfeito em pregar sobre doutrinas como parte da exposic&o regular, como certa vez afirmou: “Se as pessoas desejam conhecer uma doutrina em particular, poderao encontra-la nos manuais de doutrina”. Mas a grande orga de seus estudos doutrinarios consiste em que eles nao sao dridos compéndios de prelegoes. FE) tudo um pregador, c isso se salict uas prelegdes. Ele era também pastor, ¢ desejava que homens e mulheres compartilhassem de seu senso de admiragao ¢ de sua gratidao a Deus pelos fatos poderosos do evangelho, Dai sua linguagem clara > era acima de wom todas e destituida daquela complexa fraseologia académica. A semelhanea de Tyndale, ele queria que a verdade se revestisse de palavras “compreensiveis ao povo”. Outro desejo seu era que o ensino nao ficasse s6 na cabega, por isso ha em cada prelegdo uma aplicagao para que se assegurasse que 0 corac&o e a vontade também fossem tocados. A gléria de Deus era sua principal motivagao na ministracdo destas prelecdes. ~ Os que conhecem a pregacao e os livros do Dr. Lloyd-Jones, ao lerem as prelegées, haverao de se lembrar que seus pontos de vista sobre alguns temas se desenvolveram ao longo dos anos, e que suas énfases provavelmente nem sempre eram as mesmas. Todavia esta constitui parte da riqueza de seu ministério, como o foi do ministério de muitos dos grandes pregadores do passado. Nao obstante, no tocante as verdades essenciais e fundamentais da Palavra de Deus, ndo ha qualquer mudanca em sua proclamagao, e nenhum som incerto tem-se emitido. Temos encontrado certa dificuldade na preparagdo destas prelecées para a publicagdo. Elas foram haé muito tempo pronunciadas e gravadas em fitas, de modo que em certos lugares houve dificuldade em decifrarem-se as palavras, e algumas fitas se perderam. Além disso, s6 uma pequena parte das prelecdes foi taquigrafada, e assim, num ou dois casos, nao temos nem fita nem manuscrito. Afortunadamente, contudo, o Doutor guardou suas anotaces pessoais de todas as prelegdes, e assim as temos usado, embora, naturalmente, significa que esses capitulos nao se acham tao completos quanto os demais. As fitas do Doutor sao distribuidas pelo Martyn Lloyd-Jones Recording Trust, e de todas as suas fitas 0 maior nimero de pedidos consiste nestas prelegdes doutrinarias. A caréncia de conhecimento das verdades vitais da fé crista é maior agora do que antes — com certeza ainda maior agora do que na década de 1950! Portanto nossa oracao é para que Deus use e abencoe estas prelecdes novamente, para o nosso fortalecimento e para a gléria dEle. Os Editores 1 A IGREJA Chegamos agora a sexagésima prelecao em nosso estudo das doutrinas biblicas, portanto é provavel que este seja um bom lugar para lembrar-lhes dos varios passos e estagios pelos quais ja passamos. Tendo comegado com nossa consideragaéo do homem neste mundo, e tendo notado a futilidade de confiarmos somente em nosso préprio entendimento, chegamos a perceber, como as pessoas tém sempre percebido, a necessidade de uma revelacao. Deus nos deu essa revelacdo: é uma revelacaéo de Si proprio em Sua Palavra. Entéo, havendo considerado 0 que a Palavra nos diz sobre Deus, prosseguimos considerando o que ela nos diz sobre homens ¢ mulheres em suas necessidades, bem como a causa de suas necessidades — a qual introduziu a doutrina do pecado. Isso conduz a necessidade de salvacgaéo que consideramos na Pessoa e obra do Senhor Jesus Cristo, e em seguida na aplicacao de tudo isso a nés mediante a operagéo do Espirito Santo. E assim chegamos a uma nova seg4o: nova simplesmente no sentido em que reconhecemos certas divisdes 4 guisa de conveniéncia do pensamento; obviamente, porém, nova em nenhum outro sentido. Além disso, devemos observar nova- mente 0 maravilhoso modo no qual cada uma dessas doutrinas conduz 4 préxima, de uma forma totalmente inevitavel. A verdade é uma sé € 0 propésito de Deus é um todo, de tal maneira que, ao terminarmos de discutir uma doutrina estamos, necessariamente, nos introduzindo na proxima. Na prelecao anterior, estivemos analisando juntos 0 ensino da Biblia concernente aos dons espirituais. Consideramos como Deus concede 4 Igreja apdstolos e profetas, pastores e mestres, os quais possuem os dons necessdrios. E vimos que varios outros dons especiais sao concedidos ao povo cristo, tanto dons temporarios para os primeiros cristéos quanto outros dons que sao de cardter permanente e s40 concedidos a todos os cristaos em todos os tempos. Em todos esses casos, porém, observamos que os dons eram concedidos a Igreja e aos membros da Igreja. E assim chegamos, por meio de uma légica inevitavel e pela forca da propria verdade, a uma consideracao da doutrina biblica da natureza da Igreja. Cra, esta doutrina costuma ser totalmente omitida nos livros que tratam das doutrinas biblicas, embora seja dificil de se descobrir o porqué. Isso é muitissimo lamentével, pois se real- mente estamos interessados em discutir as doutrinas que aparecem na propria Biblia, entéo precisamos analisar a doutrina da Igreja. A maioria das Epistolas neotestamentarias foi escrita a uma igreja, e seu ensino se volta mais para a Igreja. Por isso nao basta considerar as doutrinas da Biblia que tratam mais de nossas necessidades ¢ experiéncias pessoais ¢ individuais. Grande parte do Novo Testamento nao se destinaria a verdades concernentes 4 Igreja a nao ser que isso fosse algo de vital importancia. O proprio carater das Escrituras por si mesmo nos compele a considerar esta doutrina. Outra razao, sem diivida, é a grande proeminéncia que esta doutrina ja teve na historia da propria Igreja. Tomemos, por exemplo, a histéria da Bretanha. Distingue-se proeminente- mente toda a questao da natureza da Igreja. Notamos isso na Reforma Protestante — uma daquelas grandes questées decisivas acerca das quais todo mundo conhece—e em tudo 0 que aconteceu no século dezessete, inclusive certos aspectos da Guerra Civil. Ora, vocés nao podem visualizar essas coisas, mesmo pelo prisma secular, sem perceber que a doutrina é muitissimo importante. Nossos pais a consideraram como algo de importancia tao vital que estavam preparados para enfrentar as maiores dificuldades e sofrer a perda de quase todas as coisas em decorréncia de sua preocupacao pela doutrina da natureza da Igreja. Para eles, ela nao era algo que pudesse ser considerado com indiferenga. Qualquer que fosse a persegui¢ao, ainda com 0 risco de suas vidas, muitos deles fundaram conventiculos e insistiam em reunir-se 10 neles. Portanto, se nao tivéssemos nenhuma outra razao para considerar esta doutrina, seriamos compelidos a estuda-la por respeito aos nomes e 4 grandeza de nossos antepassados distantes. As pessoas n4o sofreriam assim pela verdade e por uma causa se ela fosse uma questao indiferente. Eevidente que h4 ainda outra razao que nos levaa considerar esta questao, e é justamente a grande proeminéncia que esté sendo dada na atualidade 4 Igreja Crista em conexéo com o que é conhecido pelo nome de movimento ecuménico. Os noticidrios religiosos dedicam grande espaco a isso e esta sendo propagado pelos expoentes do ecumenismo quea funcao particular da Igreja no século vinte é chamar a atencdo para a natureza da Igreja. Portanto, se porventura quisermos entrar em discuss4o com tais pessoas e sermos capazes de nutrir um inteligente interesse por essas discussdes, cabe-nos conhecer algo acerca desta doutrina neotestamentaria. Além disso, porém, ha uma razo que, em certo sentido, é muito mais importante do que todas as outras juntas. Suspeito que ela constitui a deficiéncia do povo evangélico, particu- larmente durante os tltimos sessenta a setenta anos, de levar a sério 0 ensino biblico concernente a natureza da Igreja, o que explica a maioria dos problemas que estamos enfrentando na atualidade. Por uma razao ou outra, nossos pais e avés imediatos sentiam que era suficiente formar movimentos sem pensar em termos da Igreja, com 0 resultado de que 0 testemunho evangélico se diluiu entre as grandes denominagées e 0 povo cristao evangélico s6 se reune em movimentos em vez de reunir-se em igrejas. E assim, olhando por esse prisma, isso se constitui num tema de muita importancia. Se é verdade que nutrimos profundo interesse pela mensagem cvangélica ¢ sua vital importaéncia no mundo atual, entéo somos compelidos a considerar a doutrina da Igreja. Uma vez introduzidos no ensino biblico concernente 4 natureza da Igreja, permitam-me fazer minha costumeira observacdo introdutéria. Este é um tema em extremo contro- vertido — praticamente tem sido assim com todas as doutrinas. I Acaso nao tem? A hist6ria, porém, por si sé, assegura-nos que esta é, provavelmente, a mais controvertida de todas. E no entanto é pura covardia deixar de tratar um tema simplesmente por ser controvertido. Qualquer que tenha sido nossa educacao ou histéria; quaisquer que sejam nossos preconceitos, é preciso que tentemos avaliar, com a mente mais aberta possivel, o que as Escrituras tém a nos dizer. Que todos nos nos esforcemos em fazer isso, orando para que Deus nos livre dos preconceitos para os quais todos nds nos inclinamos. Aproximemo-nos, portanto, de algumas palavras prelimi- nares de definigao. A primeira pergunta que devemos encarar é esta: qual éa relacao da Igreja com o reino de Deus? Encontramos na Biblia ensino sobre o reino e ensino acerca da Igreja. Hé entre os cristos, com freqiiéncia, muita confusao acerca desses dois assuntos. Isso se deve grandemente ao fato de como a igreja catélica romana identifica os dois. No ensino catélico-romano, a Igreja é o reino de Deus, e os catélicos romanos sao absolutamente coerentes na maneira como resolvem isso, reivindicando o direito de governar e dominar toda a vida das pessoas em todos os seus aspectos. Vocés se lembram como, na Idade Média, a igreja romana costumava governar os reis, os senhores, os principes, as provincias e as autoridades com base na alegacao de que ela era 0 reino de Deus, de que ela era suprema. E tal idéia tende, em certa medida, a persistir. Por isso temos de ser claros sobre a relacao entre Igreja e reino. O que € 0 reino de Deus? Ele é melhor definido como o governo de Deus. O reino de Deus esta presente onde quer que Deus esteja reinando. Eis a razdo por que nosso Senhor podia dizer que, em virtude de Sua atividade e Suas obras, “o reino de Deus esta dentro de vés” (I.uc. 17:21). Disse ainda: “Mas, se é pelo dedo de Deus que eu expulso os deménios, logo é chegado a vos o reino de Deus” (Luc. 11:20). Portanto, se considerarmos 0 reino de Deus como 0 governo e 0 reinado de Deus, entao o reino esteve aqui quando nosso Senhor esteve aqui pessoalmente. Ele esta presente onde quer que o Senhor Jesus Cristo é reconhecido como Senhor. O reino vira, porém, com maior 12 plenitude quando tudo e todos tiverem reconhecido Seu senhorio. E assim podemos dizer que o reino ja veio, o reino esta entre nés € 0 reino ainda esta por vir. Qual, pois, é a relagéo da Igreja com o reino? Seguramente é esta: a Igreja € uma expressdo do reino, mas nao deve ser equiparada a ele. O reino de Deus é mais amplo e mais poderoso que a Igreja. Na Igreja, onde ela é verdadeiramente a Igreja, 0 senhorio de Cristo é reconhecido e confessado e Ele habita ali. Portanto, o reino esta ali nesse sentido. E assim a Igreja é uma parte do reino, mas apenas uma parte. O reino de Deus é muito mais amplo do que a Igreja. Deus governa em regides além da Igreja, em regides onde Ele nao é reconhecido, porquanto todas as coisas estao em Suas mios e a histéria esta em Suas m4os. Por isso a Igreja nao € co-extensiva com o Reino. Examinemos agora alguns dos termos que sao usados. A palavra grega que se traduz para “igreja” é 0 termo ekklesia, ¢ ekklesia significa “aqueles que sao chamados”, nao necessaria- mente chamados do mundo, mas chamados da sociedade para alguma fung4o ou propésito particular; sido “chamados conjuntamente”. Podemos traduzir ekklesia pela palavra “assembléia”. Se vocés lerem 0 relato em Atos, capitulo 19, sobre a extraordindria reunido que se deu na cidade de Efeso, reuniao que quase se transformou em motim, descobrirao que o secretario municipal da cidade a denominou de uma assembléia, uma ekklesia, pela qual ele quiz dizer que certo numero de pessoas se reuniram conjuntamente. Da mesma forma, em seu discurso em Atos, capitulo 7, Estévao refere-se a Moisés como estando “na igreja no deserto” (v.38). E assim os filhos de Israel eram uma igreja, um ajuntamento, uma assembléia do povo de Deus. Era a ekklesia, a igreja do Velho Testamento. Esse € 0 significado fundamental da palavra “igreja”. Ora, nossa palavra “igreja”, e todos os termos e nomes cognatos, inclui um significado ligeiramente diferente. Usamos a palavra para significar que pertencemos ao Senhor. Nossa palavra “igreja” vem da palavra grega kurios, que significa “senhor” — tem a mesma derivacao das palavras Imperador ¢ 13 César. E importante termos isso em mente, visto que devemos manter estes dois significados juntos: a Igreja consiste daqueles que pertencem ao Senhor, que se retinem conjuntamente. Avancemos, porém, mais um passo. Analisemos algumas afirmagGes que as Escrituras fazem sobre a Igreja, e que sao realmente importantes. Na Biblia, a palavra ekklesia, quando aplicada aos cristaos, geralmente se usa em referéncia a um local de reuniao. A distingdo que ora facgo é quanto a diferenca entre a Igreja considerada como uma idéia geral e a igreja considerada como idéia de localidade e particularidade. O termo que € quase invariavelmente usado nas Escrituras inclui este sentido de localidade. Por exemplo, em Romanos, capitulo 16, quando Paulo envia suas saudag6es a Aquila ¢ Priscila, ele faz uma referéncia a “a igreja que esta na casa deles” (v.5). Um grupo de cristaos se reunia na casa de Aquila e Priscila, e o apéstolo Paulo nao hesita em chamar de igreja aquele local de reuniao. Ele nao esta pensando em termos da idéia moderna ecuménica, segundo a qual a Igreja € 0 grande elemento. Em seguida, Paulo também enderega sua Epistola, por exemplo, “a igreja de Deus que esta em Corinto”. Ele escreve a Epistola aos Galatas “As igrejas da Galacia” (Gal. 1:12), nao “a Igreja da Galdcia”. Paulo nao esta pensando numa sé unidade dividida em ramos locais, mas nas igrejas, um grupo dessas unidades, na Galdcia. Esta € uma questao muitissimo significativa e importante. Ora, se vocés percorrerem as Escrituras, descobrirao ser esse o método apostélico comum de lidar com 0 tema. Temos, porém, que observar que ha dois ou trés exemplos em que a palavra “igreja” € usada em vez de “igrejas”, e um deles é bastante interessante. Ele se encontra em Atos 9:31. HA certa diferenca aqui entre a Authorised (King James) Version e a Revised Version. A Authorised Version tem a redagao: “Entao as igrejas tinham descanso por toda a Judéia, a Galiléia e a Samaria, e eram edificadas.” A Revised Version, porém, traz o singular, “igreja”, e esta é indubitavelmente a melhor tradugao. Sim, mas mesmo assim devemos lembrar-nos que a referéncia € quase com 4 toda certeza aos membros da igreja em Jerusalém que haviam sido espalhados por toda parte em decorréncia da perseguicao. Portanto é provavel que Lucas no estivesse se referindo a idéia de “a Igreja” como diferente de “as igrejas”, mas estivesse pensando numa sé igreja dispersa por varias regides e em paz. Entretanto, este nao € um ponto vital. Além disso, lemos em 1 Corintios 12:28: “E a uns pés Deus na igreja, primeiramente apéstolos, e em segundo lugar profetas”. Paulo nao diz que Deus os pés “nas igrejas”, e, sim, “na igreja”. HA ainda outra forma na qual se usa o termo “igreja”. Em certas passagens, como aquelas grandes passagens na Epistola aos Ef€ésios, Paulo esté obviamente pensando na Igreja como incluindo n4o s6 os que estao na terra, porém também os que estao no céu. No final do primeiro capitulo, ele diz: “E sujeitou todas as coisas debaixo dos seus pés, e para ser cabeca sobre todas as coisas 0 deu 4 igreja, que € 0 seu corpo, o complemento daquele que cumpre tudo em todas as coisas” (Ef. 1:22,23). Semelhantemente, em outra parte da Epistola, ele diz: “Para que agora a multiforme sabedoria de Deus seja manifestada, por meio da igreja, aos principados e potestades nas regides celestiais” (3:10). E Paulo escreve a mesma coisa também em Efésios 5:23-32. Até aqui, pois, vimos que, geralmente falando, 0 termo ekklesia € usado no plural, e os escritores estao obviamente pensando nas igrejas individuais; nuns poucos exemplos, porém, hé uma concepgao mais ampla em que se usa o termo “a Igreja”. E em seguida devemos analisar os varios quadros ou ilustragdes que s4o usadas a fim de ensinar a doutrina concer- nente a Igreja, e hd um bom ntimero delas muito interessantes. A primeira é a analogia de um corpo. Em diversas das Epistolas neotestamentarias somos informados que a Igreja é 0 “corpo de Cristo”. O classico exemplo, sem dtivida, esté em 1 Corintios, capitulo 12, mas 0 encontramos também em Romanos, capitulo 12, em Efésios, capitulo 4, e noutros lugares. Outro quadro € o da Igreja como um templo ou como um edificio, onde o apéstolo se compara com um sdbio construtor 1s (1 Cor. 3:10). Em Efésios 2:20 ele fala da Igreja sendo edificada sobre o fundamento dos apéstolos e profetas; portanto ele pensa nela ali como um edificio que esta sendo erigido. Em Efésios, capitulo 5, Paulo se refere a Igreja como a noiva de Cristo, e essa imagem reaparece no livro do Apocalipse. Ainda outro conceito é aquele de um império. Em Efésios, capitulo 2, Paulo fala de nds como “concidadaos dos santos e da familia de Deus” (v.19). Essa, obviamente, foi uma analogia que de repente surgiu na mente do apéstolo. Provavelmente ja fosse um prisioneiro em Roma no tempo em que escreveu essa Epistola, e estivesse pensando nesse admiravel Império Romano. Ele sentia que havia algo no Império que era andlogo a Igreja, com todas as partes dispersas e ainda com uma unidade central. Fazendo uso de outro termo, podemos falar, como se tem feito ao longo de todos os séculos, da “Igreja militante” e da “Igreja triunfante” (a Igreja terrena esta Jutando por sua vida, pela doutrina e por cada elemento) a Igreja que se encontra além do véu, jubilosa e triunfante. Tomem, por exemplo, a grandiosa forma na qual isso é expresso em Hebreus 12:22-24. E assim, tomando todas essas idéias juntas, que conclusao tiramos? Obviamente, a Igreja é espiritual e invisivel. Todos os exemplos que tenho lhes apresentado da palavra empregada no singular pressupdem algo que nao pode ser visto, mas que possui uma realidade como entidade espiritual. Ao mesmo tempo, porém, a Igreja € também visivel e pode ser vista externamente e pode ser descrita como existindo em Corinto, em Roma ou em algum outro lugar particular. E muito importante que tenhamos em mente essas duas coisas. O invisivel tem suas manifestacgdes locais. Uma boa analogia aqui é a alma. Nao podemos ver as almas humanas, mas sabemos que cada pessoa possui uma alma e expressa esse fato através do corpo, através do comportamento e da vida, o invisivel manifestando-se através do visivel. E isso € obviamente verdadeiro no que tange a Igreja Crista. Além das igrejas locais ha aquilo que se chama a Igreja. O corpo de Cristo € uma entidade, é algo real e vivo. 16 E muito importante que delineemos essas distingdes para que, 4 luz do que tenho dito, eu possa prosseguir e acrescentar 0 seguinte: ninguém pode ser cristao sem ser membro da Igreja espiritual e invisivel. E impossivel. Todos os cristaos sao mem- bros do corpo de Cristo. No entanto, é possivel ser membro da Igreja sem ser membro de uma parte visivel da Igreja — embora devesse ser. Alguém pode estar numa sem estar na outra. E possivel igualmente ser membro da Igreja visivel, de sua manifestacao externa, e nao ser membro da Igreja invisivel, espiritual. E assim vocés podem ver como € muito importante essa distincdo biblica entre Igreja universal, que é Seu corpo, e suas manifestagdes visiveis e locais. Portanto, em resumo: 0 sentido usual de “igreja” apresentado nas Escrituras é de um local de encontro dos santos onde sao reconhecidos a presenga e 0 senhorio de Cristo. Além de tudo isso, porém, nas igrejas locais, todas as pessoas que realmente nasceram de novo e s4o espirituais, séo também membros da Igreja espiritual invisivel, o genuino corpo de Cristo. Como ja disse, isso € algo de grande importancia caso queiramos entender a presente discussao sobre a Igreja. E assim chegamos pr6xima questo referente 4 unidade da Igreja. E este é o grande tema de hoje. Com toda seguranga, aqui se pode dizer certas coisas sem qualquer receio de contradigao. Se é para sermos guiados pelo ensino biblico, entéo devemos concordar prontamente que a unidade com a qual as Escrituras se preocupam é a unidade espiritual. O décimo-sétimo capitulo do Evangelho de Joao é com freqiiéncia citado equivocadamente! As pessoas simplesmente retiram uma frase de seu contexto. Dizem, citando o versiculo 21: “Para que todos sejam um”, ¢ ficam nisso. Insistem também que divisao na Igreja € 0 maior de todos os pecados. Ora, por certo que todos nés concordamos que divisao € algo deploravel; cisma ¢ certamente pecado. Entretanto, quando interpretamos isso no sentido cm que todo aquele que se chama cristao, nao importa qual a condigéo ou forma, é alguém com quem devemos manier uniao absoluta em todos os aspectos, 7 entao isso é uma contradigao do que Joao, capitulo 17, ensina. Certamente, Joao, capitulo 17, faz o carater dessa unidade muito simples e claro. Os termos de nosso Senhor sio estes: “Para que todos sejam um; assim como tu, 6 Pai, és em mim, e eu em ti, que também eles sejam um em nos ... E eu lhes dei a gléria que a mim me deste, para que sejam um, como nés somos um” (vv. 21,22). Isso é totalmente espiritual. Nosso Senhor esta falando da relacao entre 0 Paice o Filho e os que estao em Cristo, Os quais est4o no Pai e no Filho, e Ele ja nos disse certas coisas sobre essas pessoas. Diz Ele: “Porque eu lhes dei as palavras que tu me deste, e eles as receberam, e verdadeiramente conheceram que sai de ti, e creram que tu me enviaste” (v.8). Por isso as palavras de nosso Senhor acerca da unidade sao aplicaveis unicamente as pessoas que créem nessa doutrina particular; e se alguém me diz que é cristao, porém diz que Jesus era unicamente homem, entao eu nao tenho nenhuma uniao com ele. Nao pertenco ao mesmo grupo dele. Pode chamar-se de cristaéo, mas se n&o creu nem aceitou isso, nao existe nenhuma base para a unidade. A unidade é de carater espiritual. Também em Efésios 4:3 Paulo fala acerca de “a unidade do Espirito no vinculo da paz”. Aquele grande capitulo 12 de 1 Corintios apresenta a mesma questao. Para a analogia do corpo ser absolutamente correta, deve haver uma unidade essencial, organica e espiritual. As partes néo podem funcionar em harmonia se nao se pertencerem reciprocamente, se nfo tiverem em si a mesma vida, se 0 mesmo sangue nAo fluir através delas. Ainda em Efésios, Paulo diz: “Porque por ele ambos temos acesso ao Paiem um mesmo Espirito” (2:18). Portanto, o primeiro ponto que deve receber énfase é 0 Espirito. A unidade é espiritual. Nao € uma mera unido biolégica de uma porgao de organismos nem um mero consentimento formal. Tampouco é uma liga de pessoas que divergem, mas que se uniram em favor de algum propésito comum. Isso nao é 0 que encontramos nas Escrituras. Esta unidade é algo mistico, algo espiritual; é vital; é uma comunidade cheia de vida. O segundo principio, porém, é igualmente claro nas 18 Escrituras, a saber: que essa unidade deve basear-se na doutrina; deve ser doutrinal. Ja lhes mostrei isso 4 luz de Joao, capitulo 17. Diz nosso Senhor: “Agora sabem que tudo quanto me deste provém de ti; porque eu lhes dei as palavras que tu me deste, e eles as receberam, e verdadeiramente conheceram que sai de ti, e creram que tu me enviaste” (Joao 17:7,8). Ora, as “palavras” as quais nosso Senhor Se referiu significam as palavras sobre ser Ele o unigénito Filho de Deus. Sao palavras acerca da encarnagao, acerca da Palavra que Se fez carne. Sao palavras nas quais Ele alega: “Antes que Abraao existisse, eu sou” (Joao 8:58). Sao palavras que ensinam Sua miraculosa vinda ao mundo, Seu nascimento virginal. Referem-se aos Seus milagres, porque Ele mesmo faz referéncia a Seus milagres (Joao 14:11), ao sobre- natural, ao propésito de Sua morte — dando Sua vida em resgate por muitos (Mat. 20:28) — e as palavras que Ele falou acerca da Pessoa do Espirito Santo, e assim por diante. E no entanto exige- -se que entremos em alguma grande uniao com pessoas que negam Sua deidade singular, as quais nao créem que Ele é 0 unigénito Filho de Deus, nao créem no Seu nascimento virginal e nao créem que Ele tenha alguma vez operado milagre - dizem que milagres séo impossiveis e que nao passam de folclore. Tais pessoas néo créem na expiagao substitutiva nem na Pessoa do Espirito Santo. Destacam bem esta afirmagao: “as trés Pessoas sao uma 86”, e ignoram todo este rico ensino doutrinal precedente. Falar de unidade com tais pessoas nada mais é que uma negacao de Jodo, capitulo 17. Joao, capitulo 17, porém, nao é o tinico exemplo desta verdade de que a unidade deve ser baseada na doutrina. Em Atos 2:42 somos informados que imediatamente apés o dia de Pentecoste, “perseveravam nia doutrina dos apéstolos e na comunhiao, no partir do pao ¢ nas oragoes”. As Escrituras s0 verbalmente inspiradas. As pahivras tem valor; o lugar ¢ a posigéo das palavras num versiculo sao de tremenda importéncia. Nao nos € dito que os primeiros crentes perseveravam firmemente na comunhao ¢ na doutrina dos apostolos. Nao! Perseveravam na doutrina c na comunhao dos apéstolos, no partir do pao e nas 19 oragées. Noutros termos, antes que possa haver comunhao é preciso haver aceitacao geral da doutrina. A comunhao tem por base a mesma fé, a mesma verdade, o mesmo discernimento. Se vocé pretende uma coisa ao falar de Cristo, e outra pessoa pretende outra coisa, seria possivel vocés terem comunhio real? Como seria possivel vocés irem a Deus através da mesma Pessoa, se uma pessoa cré que Ela é simplesmente homem, ¢ a outra diz: “Nao, nao, essa Pessoa é a substancia eterna que Se fez carne”? E preciso que haja a unidade de crenga, do contrario vocé se sentira pesaroso acerca da outra pessoa e cheio de dtivida quanto ao que ela pretende com seus termos. Atos 2:42 tem a doutrina dos apéstolos, em seguida a comunhdo; hoje, porém, a comunhao € posta em primeiro lugar. Diz-se: “Cheguemos todos a um acordo. Entéo podemos decidir sobre questées de fé”. Nés, porém, nao podemos ter comunhao a parte desta unidade de doutrina. Ha ainda uma declaragdo muito forte na Segunda Epistola de Joao: “Se alguém vem ter convosco, e nao traz este ensino, n4o o recebais em casa, nem tampouco o saudeis. Porque quem o satida participa de suas mas obras” (2 Joao 10,11). Isso procede de Joao, 0 apéstolo do amor. A importancia que ele atribui 4 doutrina ea verdade € tao grande que na verdade ele esta dizendo: “Vocés nao devem receber um homem em sua casa, porque, se 0 fizerem, estaréo estimulando-o. Se lhe derem comida e 0 despedirem em sua viagem, estarao estimulando sua falsa doutrina. Nao facam isso”. E se vocés lerem a Primeira Epistola de Joao, entéo descobrirao que toda a sua preocupacao gira em torno da mesma coisa. Havia determinadas pessoas, diz ele, esses anticristos e seus seguidores, que “sairam de nosso meio”. Estavam entre nés, mas se foram. Evidentemente nao eram dos nossos (1 Joao 2:19). Lembrem-se que essa é uma questao de doutrina, e que doutrina é essencial e vital 4 genuina comunhao. Portanto, quando estivermos discutindo a questao da unidade da ‘Igreja, é preciso que coloquemos nas primeiras posigdes 0 carater espiritual e doutrinal da unidade. Nunca é coisa dificil 20 reunir um grupo de pessoas que nao créem em nada em par- ticular. Isso, porém, nao é unidade. Unidade € algo positivo. Nao és6 0 caso de pessoas se reunirem, visto que ninguém se preocupa muito com o que € dito ou crido. Unidade é uma vida, é um poder, é um entusiasmo. E 0 povo unido que se junta pelo que tem em comum. Isso é supremamente verdadeiro na Igreja de Deus. Se vocés retrocederem ao longo da histéria da Igreja, descobrirao que ela amitide tem sido mais valiosa e mais usada por Deus quando tem havido apenas um punhado de pessoas que concordavam em espirito e em doutrina. Deus as tomou e as usou e fez algo poderoso através delas. Quando, porém, havia apenas uma Igreja em toda a Europa ocidental, que rumo ela tomou? A Era das Trevas. E no entanto, parece-me que essa grande ligao da historia esta sendo inteiramente esquecida e ignorada neste tempo presente. Digo essas coisas, nao porque me sinto animado pelo espirito de controvérsia, mas porque sinto zelo pela verdade como a encontro nas Escrituras, e considero algo tragico notar como as Escrituras estao sendo deturpadas e pervertidas no interesse de uma unidade que nao é unidade nenhuma. Finalmente, qual € a relacao da Igreja com 0 Estado? Aqui, uma vez mais, esta um assunto extremamente controvertido. A idéia catélico-romana sempre foi que a Igreja € o Estado e controla tudo no Estado e, como lembrei-lhes no inicio, essa igreja sempre fez isso. No extremo oposto esta 0 assim chamado ponto de vista “erastiano”, uma idéia inicialmente proposta por um homem chamado Erasto, o qual, lamento dizer, foi médico. Sinto o dever, em alguma ocasiao, de apresentar-lhes a hist6ria das desditosas intervengées de médicos na histéria doutrinal da Igreja! Erasto, infelizmente, foi o homem que deu origem a perniciosa doutrina de que a Igreja é um ramo do Estado. Ora, esse €, naturalmente, o ponto de vista na Inglaterra com respeilo a Igreja Anglicana. A Igreja da Inglaterra é erastiana, e a maioria das Igrejus Luteranas defende a mesma posicdo. A Igreja Luterana wa 21 Alemanha era erastiana, e creio que um bom argumento pode ser estabelecido, dizendo que, provavelmente, jamais teriamos ouvido a respeito de Hitler, nao fosse o erastianismo da Igreja Luterana na Alemanha. Entretanto, esse é um ponto passivel de debate. O erastianismo, reitero, é a crenga de que a Igreja € uma espécie de departamento do Estado, e que ela é administrada e governada pelo Estado, de forma que a cabeca do Estado designa bispos e outros dignitdrios e funciondrios da Igreja. Na Inglaterra, em 1928, houve uma grande controvérsia na Casa dos Comuns sobre a proposta de um novo Livro de Oragao. A Igreja decidiu té-lo, porém o Parlamento tinha poder para indeferi-lo. Talvez vocés digam que foi algo muito bom que o Parlamento possuisse tal autoridade! De um ponto de vista, sim, mas olhando por outro prisma, n4o, pois isso constitui uma espada que pode cortar de ambos os lados. Em 1928 deu certo, no entanto, 0 que dizer se 0 Parlamento de repente decidisse agir erroneamente? Nao nos esquecamos de que ele ainda tem o poder de agir assim. Eis, pois, os pontos de vista catélico-romano e erastiano da Igreja e do Estado. Mas contra estes sem diivida devemos concordar, se percorrermos cuidadosamente as Escrituras, que ha um terceiro ponto de vista que pode set descrito como “os dois Estados”. As pessoas que defendem este ponto de vista créem que Deus é dono de tudo. Deus € 0 Senhor do universo, tanto quanto o Senhor da Igreja. Deus ordenou o Estado. Diz Paulo: “Porque nao ha autoridade que nao venha de Deus; e as que existem foram ordenadas por Deus” (Rom. 13:1). Os magistrados e outros tipos de governantes n§o foram instituidos pelo homem, mas por Deus. Sim, porém ha este outro Estado, a Igreja, e os dois existem lado a lado. Um nao controla 0 outro. Ambos sao separados e ambos se acham sujeitos a Deus. Esse, sugiro-lhes, é o quadro apresentado pelo Novo Testamento. Nao existe qualquer indicacao de algo vindo de algum lugar que se assemelhe a uma Igreja-Estado. Os primeiros crentes eram independentes dos governos. Reuniam-se sob 0 senhorio e na presenca de Cristo. De fora estava 0 grande Estado 22 ao qual pertenciam. Embora permanecessem cidaddos desse Estado, haviam entrado numa esfera que, em certo sentido, nao tinha absolutamente nada a ver com o Estado. E pelos séculos a fora esse tem sido 0 ponto de vista reformado da relagdo entre o Estado e a Igreja. Precisamente da mesma forma, nao podemos encontrar nas Escrituras tal coisa como Igreja “nacional”, sendo precisamente 0 inverso. Paulo escreve: “Onde nao ha grego nem judeu, circuncisdéo nem incircuncisao, barbaro, cita, escravo ou livre, mas Cristo é tudo em todos” (Col. 3:11). A Igreja é algo diferente, éconstituida daqueles que nasceram de novo e tém vida espiritual, os quais sdo, como ja vimos, membros do corpo mistico de Cristo e se retinem em sua assembléia local — igreja — chame-a do que vocés quiserem, com Cristo como cabeca. Diferengas de nacio- nalidade, juntamente com distingées sociais e raciais, sio irrelevantes e jamais devem ser mencionadas em conexéo com a Igreja. Acrescentar tais qualificagdes é seguramente fazer-se culpados de algo que nao é biblico. A Igreja é, nesse sentido, una, € seu povo é o mesmo em todos os lugares. Sabemos historicamente como as igrejas nacionais tém surgido em varios paises. Se estivermos, porém, preocupados com 0 conceito biblico, entao repito que eu, pessoalmente, nao consigo encontrar nada correspondente a tal condigdo referida em algum lugar nas paginas das Escrituras. Nao é argumento valido dizer que a nacio de Israel era a Igreja do Velho Testa- mento. Esse era 0 caso naquele tempo; agora, porém, disse Cristo aos judeus: “Portanto eu vos digo que vos ser4 tirado 0 reino de Deus, e ser dado a um povo que dé os seus frutos” (Mat. 21:43). Portanto, o que fica? E a Igreja, como Pedro nos comprova no capitulo 2 de sua Primeira Epistola, onde aplica a Igreja as palavras que foram ditas a nagao de Israel. A Igreja é agora supra-nacional; ela tem 0 seu povo em todas as nagées. Ela é constituida pelo redimidos de Deus que vivem na terra em varias condigdes, mas que sao também cidadaos daquele reino que nao é deste mundo. 23 2 AS MARCAS E GOVERNO DA IGREJA Nosso pr6éximo tema, ao continuarmos com a doutrina da Igreja, é o que geralmente se chama as marcas da Igreja, ou as caracteristicas da Igreja. Para qué a Igreja existe aqui? O que ela faz quando demonstra que é a Igreja? Eis ai uma importante pergunta, e varias respostas tém sido proferidas. O ensino protestante comum é que hé trés marcas principais da Igreja. A primeira é a pregacdo da Palavra. Essa € a tarefa principal da Igreja Crista: ela foi criada e chamada 4 existéncia para esse propésito. A pregacdo da Palavra é efetuada em dois aspectos principais. A Palavra é pregada na Igreja para edificar e estabelecer os santos, os crentes. Eles se reunem, como vimos, para a comunhio. A Igreja é a comunhao daqueles que sao crentes em Cristo e confessam Sua lideranca e Seu senhorio, e a Palavra € pregada a fim de que sejam fortalecidos na fé. As Epistolas do Novo Testamento foram escritas para os crentes com esse objetivo especifico em vista, e os apéstolos e os profetas tinham o mesmo propésito em sua pregacao. Quando homens e mulheres foram convertidos, isso era apenas 0 comego. Nasciam como criancinhas em Cristo, ¢ careciam de instrugao; careciam de ser advertidos contra o erro e protegidos contra a heresia. Por isso a Igreja é essencial aos crentes. O segundo objetivo da pregagao é sem diivida a evangeli- zacio. E a tarefa especifica da Igreja Crista pregar aos que nao sao crentes. Nosso Senhor, em Sua oracao sacerdotal em Joao, capitulo 17, diz bem especificamente que, como o Pai O enviara ao mundo, assim também Ele estava cnviando Seus seguidores imediatos e os que creriam nElc através deles. Eram enviados ao mundo como Ele fora. Ele veio trazendo a mensagem do reino, 24 e nds somos enviados portando a mesma mensagem. Faz parte da obra da Igreja pregar 0 evangelho aos que sao de fora a fim de que sejam convencidos e convictos do seu pecado, e para que sejam guiados a uma fé viva e vital em nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Essa, pois, a primeira marca da Igreja—a pregagao da Palavra. A segunda marca e caracteristica da Igreja ¢ a genuina administracao das ordenang¢as. Nao me deterei aqui agora porque pretendo tratar da doutrina das ordenangas em seu proprio lugar. Devo, porém, mencionar o assunto agora, visto ser ele uma das marcas da Igreja. A Igreja é um lugar onde as ordenangas so correta e genuinamente administradas em conexdéo com a pregacao da Palavra. A terceira marca da Igreja, aquela a que anseio mais enfa- tizar, uma vez que é tao lamentavelmente negligenciada, é 0 exercicio da disciplina. Ora, se tivéssemos perguntado no inicio: “Quais s4o as trés marcas essenciais da Igreja?”, fico pensando quantos teriam mencionado o exercicio da disciplina? Nao ha a menor dtvida de que esta doutrina é gravemente negligenciada. Alias, se me fosse pedido que explicasse por que as coisas sao como sao na Igreja; se me fosse pedido que explicasse por que a estatistica revela os ntimeros decrescentes, a falta de poder e a falta de influéncia sobre homens e mulheres; se me fosse pedido que explicasse a razao de tantas igrejas parecerem incapazes de sustentar a causa sem recorrerem a jogos, dangas e coisas semelhantes; se me fosse pedido que explicasse por que a Igreja se acha em condicao tao lamentavel, minha resposta teria de ser que a causa principal é a falha de exercer a disciplina. Quando foi que vocés ouviram pela ultima vez uma referéncia feita de um pulpito cristao sobre o tema da disciplina? Quantas vezes vocés tém ouvido sermées ou discursos sobre 0 assunto? O termo ja foi quase riscado completamente da existéncia, e o que ele significa e representa jd caiu no desuso. E, infelizmente, nao é sé a disciplina que é negligenciada, mas hA um grande ntiimero de pessoas que até mesmo tentariam justificar a negligéncia, e € por causa disso que quero tratar 25 detalhadamente do assunto. Ora, é com base biblica que sugiro que a disciplina deve ser exercida. Tomemos a passagem de Mateus, capitulo 18, comegando com o versiculo 15: “Ora, se teu irm4o pecar, vai, e repreende-o entre ti e ele s6; se te ouvir, terés ganho teu irmao; mas se nAo te ouvir, leva ainda contigo um ou dois, para que pela boca de duas ou trés testemunhas toda palavra seja confirmada. Se recusar ouvi-los, dize-o a igreja; e, se também recusar ouvir a igreja, considera-o gentio e publicano” (vv. 15-17). Essas sao palavras de nosso préprio Senhor. Semelhantemente, em Romanos 16:17 lemos: “Rogo-vos, irm4os, que noteis os que promovem dissensdes e escandalos contra a doutrina que aprendestes; desviai-vos deles”. A disciplina € 0 tema de todo o capitulo 5 de 1 Corintios, que termina com estas palavras: “Tirai esse iniquo do meio de vos”. Nada pode ser mais explicito que isso. Vemo-la novamente em 2 Corintios, capitulo 2, especialmente os versiculos 5 a 10, onde Paulo fala sobre receber de volta uma pessoa que havia sido disciplinada; e também em 2 Tessalonicenses, capitulo 3, onde ele da instrugdes quanto ao que se deve fazer com membros de igreja que vivem de maneira desordenada. Entao em Tito 3:10 ha esta ordem explicita: “Ao homem faccioso, depois da primeira e segunda admoestacao, evita-o”. Como vimos na prelecao anterior, este ensino também se encontra em 2 Joao, versiculo 10. E € natural que nas varias cartas as igrejas individuais no livro do Apocalipse haja exortacgdes sobre o exercicio da disciplina. Apesar disso, porém, ha os que amitde tentam justificar a auséncia ou a falta de disciplina na igreja local; e, estranhamente, muitos agem assim com base na parabola do joio em Mateus, capitulo 13. “Vocé nao deve disciplinar os cristaos”, eles dizem. “Se tentar exercer a disciplina, e puser as pessoas para fora da igreja, vocé estar4 violando as instrucdes de nosso proprio Senhor, pois quando os servos disseram: “Queres, pois, que vamos arranca-lo?”, o Mestre disse: “N&o, para que, ao colher o joio, nado arranqueis com ele também o trigo. Deixai crescer 26 ambos juntos até a ceifa.” Além do mais, exatamente pelas mesmas razoes, alguns contestam qualquer separagéo do povo cristao de uma igreja que possa ser considerada apéstata. Essa, porém, é uma grave e ma interpretacdo das Escrituras, uma vez que a parabola do joio obviamente nAo se refere 4 Igreja, e sim, ao reino. Todas as parabolas de Mateus, capitulo 13 sao pardabolas do reino, e é bom que vocés se lembrem que na prelecaio anterior enfatizei que a Igreja e 0 reino nao sao idénticos. A Igreja é uma expressao do reino; 0 reino, porém, é maior que a Igreja. E, por certo, nosso préprio Senhor diz explicitamente, em Sua interpretagao particular desta parabola, que o campo no qual 0 trigo € 0 joio sao semeados nao é a Igreja, e, sim, 0 mundo (Mat. 13:38). A boa semente sao os filhos do reino, mas 0 joio sao os filhos do maligno. Portanto, a parabola do joio nado tem relagao nenhuma com a questao da disciplina no seio da igreja local. Ela constitui um quadro do mundo inteiro que, uma vez que o mesmo pertence a Deus, pode, nesse sentido geral, ser considerado como sendo Seu reino. No bojo do mundo, porém, ha dois grupos — os que sao cristaos, os quais pertencem ao reino eterno, e os que pertencem ao diabo. Aplicar a parabola do joio a Igreja é, com toda certeza, cair no mesmo erro dos catélicos romanos; e é um erro no qual a maioria das igrcjas que seguem essa igreja tem também se inclinado a cair. Kis por que, em certo sentido, nao ha disciplina na igreja catolica romana. Raz4o por que se torna possivel que pessoas sejam consideradas cristas perfeitamente boas, mesmo quando suas vidas sao dissolutas. Nao sao disciplinados; nao sao postos para fora da igreja. E, de fato, a mesma coisa é verdade com respeito a Igreja Anglicana. A Igreja Anglicana, também por causa da viséo que tem de si mesma, nao cré que deva disciplinar 0 membro individual. A imagem da Igreja, porém, que apresentamos na prelecao anterior, exige que haja disciplina. Além do mais, como ja vimos, a pratica da disciplina é algo acerca do qual somos exortados reiterada e veementemente nas proprias Hscrituras. Ora, a di lina deve ser exercida por duas formas princi- 27 pais. Antes de tudo, deve-se exercé-la em relacéo 4 doutrina, Lemos: “O homem faccioso, depois da primeira e segunda admoestagio, evita-o” (Tito 3:10). O apdstolo Joao diz que, se um homem nfo trouxer a verdadeira doutrina, ele nao deve ser de forma alguma recebido, nem mesmo em casa, muito menos na igreja. Deixem-me tornar isso bem claro. Isso nao significa que os cristéos nunca devam admitir um incrédulo em sua casa. Por certo que nao significa nada disso! O que significa é que, se um homem que alega nao sé ser cristéo, mas também mestre, est4 ensinando erro, com certeza vocés nao devem recebé-lo em suas casas. E claro, porém, que vocés recebem 0 incrédulo em suas casas para que possam falar-Ihe das verdades cristas. Paulo expressa isso perfeitamente em 1 Corintios 5:11, onde, por assim dizer, ele diz: “Em todas estas questées de disciplina, nao estou me referindo aqueles que estao 14 fora no mundo, pois se vocés vao separar-se de todos desse tipo, significaria que teriam de sair totalmente do mundo! Nao. Nao estou dizendo isso, porém eu digo que se um homem que é um irmdo for culpado dessas coisas, entaéo nado devem conviver com ele”. Portanto o Novo Testamento nos diz que realmente devemos estar preocupados pela doutrina na Igreja, e que devemos fazer algo acerca da falsa doutrina. E creio que toda a situagéo com que nos defrontamos hoje é prova abundante das terriveis conseqiiéncias de nao exercer a disciplina com respeito a doutrina. Nao hesito em asseverar que nossos avés e bisavés do século dezenove nao exerceram a disciplina que deveriam ter exercido quando a fatal Alta Critica comegou a chegar aqui, vinda da Alemanha. Foi em decorréncia de nao terem disciplinado as pessoas que creram e ensinaram tais coisas que estamos enfrentando a presente situacao. Com equivocada tolerancia e, freqiientemente, com uma falsa compreenséo do ensino da parabola do joio, permitiram entrar esse ensino erréneo, esperando que as coisas logo melhorassem; e falaram em manter um testemunho positivo e nao negativo! Nesta atual geracdo, estamos acumulando as conseqiiéncias dessa tragica falacia por parte dos lideres da Igreja. 28 Devemos, pois, exercer disciplina no tocante 4 doutrina, e devemos igualmente exercé-la no tocante a vida e a maneira de viver porque, se os membros da Igreja Crista forem negadores da doutrina dela em suas vidas e em sua pratica, quem ir4 crer nela? Sera a negacao das palavras de nosso Senhor: “Para que vejam as vossas boas obras, e glorifiquem a vosso Pai, que esta nos céus” (Mat. 5:16). Inconsisténcia ou vida pecaminosa por parte de um crente faz incalculdvel dano 4 causa de Cristo. Nao importa quao ortodoxas sejam tais pessoas, se ndo estéo controlando e disciplinando seu temperamento, seus desejos, suas paix6es, suas luxtirias, estao, em palavra e ac&o, negando a fé que pregam, e se tornam um obstaculo e um escandalo aos que sao de fora. O ensino biblico consiste em que, se um irmao desobediente nao se corrige nem atenta para a correcdo, entao precisa realmente ser afastado da igreja. E preciso “entrega-lo a satands”, frase usada por Paulo, “para a destruigdo da carne, a fim de que 0 espirito seja salvo no dia do Senhor Jesus” (1 Cor. 5:15). Nao sei exatamente o que isso significa, mas provavelmente signi- fique algo mais ou menos assim: vocés nao sé o eliminam do rol de membros, mas param de orar por ele. Vocés o cedem a satands, por assim dizer, e satands o fara sofrer, provavelmente em seu corpo. Ele se tornara ignobil e miseravel, o que podera despertar seus sentidos e salvar sua alma. Este é um assunto importante. Leiam a hist6ria da Igreja em qualquer época de reavivamento e despertamento — nao importa quando — e descobrirdo que, invariavelmente, uma notavel caracteristica de tal época é o exercicio da disciplina. Leiam, por exemplo, sobre Jodo Wesley. Se j4 houve um disciplinador na Igreja, foi esse homem! Em seu Journals, ele registra que em determinada ocasiao saiu para visitar uma igreja — certas reunides em Dublin — e quando chegou 14, encontrou cerca de seiscentas pessoas. Entéo comegou a examinar os membros da igreja, um a um; e quando terminou, alguns dias depois, a igreja tinha trezentos membros! Alguém poderia perguntar: se Joao Wesley voltasse hoje, o que ele faria? 29 Isso, porém, nao aconteceu sé com Wesley. Durante os periodos de avivamento e despertamento, os lideres de todos os ramos da Igreja se preocupavam sempre com a pureza — necessariamente. Voltavam-se para o Novo Testamento e simplesmente tentavam viver uma vida de acordo com 0 ensino neotestamentario; e o Novo Testamento nos diz que 0 vaso, 0 instrumento, o canal que Deus usa deve seguramente ser puro. Portanto, 0 ensino nao é apenas de uma igreja “reunida”, mas também de uma igreja “pura”. Como seria possivel uma igreja misturada com 0 mundo em varios aspectos ser um canal do Espirito Santo? E algo quase inconcebivel! Por isso, a terceira marca da Igreja € a disciplina. Quando chegamos ao governo da Igreja, descobrimos uma vez mais que ele constitui uma quest4o muitissimo discutivel e controvertida. E interessante observar que o Novo Testamento nao é muito especifico acerca do governo da Igreja. Ele nao nos ministra uma instrucao detalhada, como faz em relag&o a muitas outras doutrinas, e indubitavelmente essa foi a raz4o por que 0 Novo Testamento foi escrito enquanto a maioria dos apéstolos ainda vivia, e assim eles e os profetas puderam ensinar e governar a Igreja. Ao lermos aquelas partes do Novo Testamento que foram as tiltimas a serem escritas, como as Epistolas Pastorais, notamos um aumento definido no ensino com referéncia a ordem e 0 governo eclesidsticos, o que é, sem divida, precisamente 0 que esperariamos. Ainda no livro de Atos, porém, encontramos os apéstolos ordenando lideres e dando instrugdes sobre como a vida das igrejas seria ordenada. Portanto, embora tenhamos bem pouco ensino especifico, temos uma clara indicac&éo dessa ordem em conexao com a qual o governo era crescentemente necessario. O que nos causa confusaéo, em nossa época e geracd4o, € 0 fato de que, subseqiiente ao perfodo dos apéstolos e profetas, bem como subseqiiente ao ensino das Escrituras, a Igreja propriamente dita comegou a fazer coisas e acrescentar coisas, as quais nem sempre podem ser encontradas nas Escrituras, com isso criando uma tradigao que as vezes contradizia as Escrituras. 30 Quais, pois, sao as idéias principais que, no transcurso dos séculos, tém sido correntes na propria Igreja com respeito a questéo do governo eclesidstico? Bem, antes de tudo sempre houve aqueles que nao créem absolutamente em qualquer governo eclesiastico, e ainda existem representantes desse ponto de vista na Igreja atualmente. Dizem que nado ha necessidade alguma de um governo desse tipo, porque todos os membros, quando se retinem, sdo obedientes ao Espirito. Isso geralmente surgiu como uma reacdo contra o que podemos denominar de eclesiasticismo, ou, se vocés o preferirem, é uma reagéo contra aquela terrivel idéia que se acha sumariada na palavra “cristandade”. Ora, admitamos com bastante franqueza que hé muito a ser dito em favor desse ponto de vista. Infelizmente, quando o Império Romano tornou-se cristao, a Igreja Crista decidiu chamar-se “cristandade”, e tomou por empréstimo muitas das idéias do Império Romano, inclusive seus sistemas de governo. E quanto a mim particularmente, permitam-me admiti-lo bem simples e claramente, nao consigo ver uma igreja cat6lica romana moderna nas Escrituras. Certa vez formulei esta questéo a um sacerdote catélico-romano com quem discutia estas coisas. Disse- -lhe: “Vocé pode dizer-me, bem honestamente, se vé sua igreja, como existe hoje, no Novo Testamento?” E ele admitiu que nao podia. Mas, naturalmente, acrescentou ele, como todos fazem: “Ah, sim, mas a revelacdo tem tido continuidade desde entio”. E para os catélicos romanos, a tradigao é igual as Escrituras. Ora, podemos entender perfeitamente uma reacdo contra todo eclesiasticismo, essa mescla de Igreja e Estado, bem como a elevacao de oficios, hierarquias e a busca de poder. E muito ficil de entender as pessoas reagindo tao violentamente contra isso, quando dizem: “Nao creio absolutamente em qualquer ordem; qualquer ordem é perigosa. Se vocés elevam um homem, ele logo acrescentara ao que lhe deram, e por fim teréo uma tremenda organizacao que esmagaré a vida do espirito”. Dizem que a maquina sempre mata 0 espirito, que a organizagho apaga o espirito. A Igreja tornou-se téo complexa, mesquinha ¢ 31 inflexivel, que ao Espirito Santo nao é dado qualquer oportu- nidade de operar. O resultado, historicamente, é que toda vez que ha um avivamento, quase que invariavelmente surge a formagao de uma nova denominagao, porque a antiga corporacao eclesidstica nao péde conter a nova. Esta era viva demais; tornou- se um elemento perturbador, e as pessoas, presas as velhas estruturas eclesidsticas, se viram fora. Portanto, ha muito a ser dito em favor dessa recusa em aceitar governo eclesidstico, e no entanto pergunto se este ponto de vista analisou bem tudo que é ensinado nas Escrituras, se os oficios definidos estéo indicados ali, e as funcées atribuidas a tais oficios. Provavelmente o argumento final seja que, uma coisa é dizer que nao devemos crer em lideranca alguma, e outra coisa muito diferente é termos uma igreja em que, na pratica, nao haja lideres. Lideranga é inevitavel, e se nao pusermos isso no papel, alguém logo cuidara que nela existam lideres autodesignados. Portanto, se € para termos na igreja lideranga e ordem, entéo que as fundamentemos no ensino das Escrituras. A teoria que vem a seguir com respeito ao governo da Igreja € formulada pelos que defendem 0 ponto de vista erastiano, 0 qual, como ja vimos, afirma que a Igreja é uma funcao do Estado, e€ que, portanto, o Estado governa a Igreja. O Estado designa os oficiais da Igreja, principalmente os altos dignitdrios, e estes, por sua vez, designam os demais. Poder algum é atribuido ao pregador local. Os membros comuns tém pouquissima participagao. A disciplina, em Ultima andlise, é exercida pelo Estado, e a Igreja nao tem nem mesmo poder para exercer excomunhao. A idéia erastiana é, como ja vimos, 0 ponto de vista da Igreja Luterana e da Igreja da Inglaterra. ~ O préximo ponto de vista, 0 qual tem alguma relagdo com 0 anterior, € 0 sistema episcopal: crenca no governo dos bispos. Os proponentes deste conceito ensinam que Cristo pessoal- mente delegou o cuidado da Igreja diretamente a determinados homens, uma “ordem” ou “colégio de bispos”, que sao descendentes dos apéstolos numa sucessdo espiritual direta. Esse 32 € 0 ensino que Cristo designou os apéstolos, e eles tinham que perpetuar-se a si mesmos e sua ordem pela designagao de bispos, e que o governo da Igreja devia ser confinado exclusivamente aos bispos. Isso é ensinado pelas Igrejas Episcopais. Aqui também os membros na realidade tém pouquissima participao na ordenagao da vida da Igreja. O que dizer sobre isso? Bem, tudo que posso dizer 4 guisa de comentario é que o homem que Jancou mais luz sobre o tema € indubitavelmente o grande Bispo Lightfoot, que uma vez foi bispo de Durham. O Bispo Lightfoot provou, para a satisfagao de todos, que no Novo Testamento néo ha qualquer diferenca entre 0 bispo e 0 anciao — que bispo, ancido e presbitero s40 termos intercambiaveis. Por exemplo, 0 apdstolo Paulo, escrevendo a igreja em Filipos, diz: “Paulo e Timéteo, servos de Cristo Jesus, a todos os santos em Cristo Jesus que estéo em Filipos, com os bispos e didconos” (Fil. 1:1). A palavra “bispos” é ai equivalente a presbiteros e anciaos, e vocés podem observar que na igreja em Filipos havia nao apenas um, mas havia diversos bispos. De forma que, longe de haver sé um bispo sobre uma grande diocese, um bispo responsdvel por um grande grupo de igrejas, no Novo Testamento havia varios bispos numa s6 igreja. Portanto nao eram bispos segundo nossa compreensao da palavra. Eram “anciaos” ou “presbiteros” — homens mais idosos a quem se delegava essa posicao e funcao. Também parece-me que — e sinto-me feliz em dizer que concordo inteiramente com os cavalheiros a quem se denominam “eruditos” - nao ha no Novo Testamento qualquer autorizacao para o ponto de vista episcopal do governo da Igreja Crista. Na verdade esta foi uma idéia que surgiu varios séculos depois do primeiro século, iniciada por um homem chamado Cipriano. E com isso, naturalmente, podemos facilmente perceber como ela veio 4 existéncia. Surgiram problemas na Igreja, acumularam-se as dificuldades e sentiu-se a necessidade de algum género de disciplina, algum género de corporacao para decidir as situagdes. E uma vez tendo tomado esse rumo, estamos no caminho do episcopado. E amitide se tem afirmado entre 33 nos que nao cremos num “colégio de bispos”, que cremos em bispos, sim, mas em bispos locais! Provavelmente haja alguma verdade em tal acusagéo. No momento em que comecamos a exercer a disciplina, faz-se necessdrio algum padrao, de algum poder e de alguma corporagio que a ponha em pratica. E sé foi em conseqiténcia dessa necessidade que a idéia de episcopado veio a existéncia. Desde entao, porém, por certo que foi a duras penas que a igreja catélica romana tentou tracar 0 episcopado a partir do apéstolo Pedro! Esse fato, pois, me conduz ao ponto de vista catélico- -romano, que é 0 episcopado levado a sua conclusao ldgica. Digamos 0 seguinte sobre ele: este ponto de vista é absolutamente légico e coerente. Se realmente cremos na ordenagio episcopal da Igreja, entao a conclusdo légica é a de um bispo acima de todos os demais, sendo ele o detentor de autoridade final. Ele fala ex cathedra; ele é infalivel; e sua prépria palavra provém definitivamente de Deus. Aqui estd a reivindicagao dos catélicos romanos. Sustentam que 0 papa nao somente € 0 bispo principal, porém que é 0 sucessor direto do apéstolo Pedro, e é, portanto, o vigario de Cristo na terra. Ora, n4o entraremos nos argumentos contra tudo isso — ha livros que podem oferecer-lhes a resposta completa. A resposta principal, porém, é que, historicamente, os catélicos romanos nao tém nenhuma base. Ora, nao estou simplesmente fazendo uma afirmagao vazia; é algo que pode ser demonstrado. Se vocés quiserem um grande livro sobre o tema, entdo leiam The Infallibility of the Church (A Infalibilidade da Igreja), escrito por um homem chamado Salmond. Os catélicos romanos tém sido totalmente incapazes de responder o detalhado argumento de Salmond, por isso rejeitam o livro na sua totalidade. Nao podem responder-lhe porque nao ha nenhuma resposta. A proxima teoria do governo da Igreja € o ponto de vista presbiteriano. Os presbiterianos comecaram afirmando que a igreja local em si mesma € uma entidade, mas que, por causa da ordem e formalidade, para evitar-se 0 caos, € conveniente para as igrejas locais que se estabeleca uma corporacdo que todos 34 reconhecerdo e 4 qual todos se conformarao. Dai, um ntiimero de igrejas se englobava para formar um presbitério. Quando digo, “um numero de igrejas”, nao quero dizer toda a corporagao da Igreja reunida, mas que cada igreja local numa determinada regiao designava delegados — um ministro e um anciao — e todos reunidos formavam um presbitério. Entéo solenemente unanimes concordavam que cada igreja local acatasse a decisao do-presbitério. Avancaram ainda mais e reuniram um nimero de presbiteros numa assembléia geral. Cada presbitério enviava um ntimero de delegados que constituiam a assembléia geral, e os presbiterianos concordavam em acatar as decisées dessa suprema corte, a assembléia geral. Ai, ent&o, esta a esséncia do sistema presbiteriano que tem sido, por exemplo, o método de governo da Igreja Presbiteriana; alias, nas igrejas em geral da Escécia desde o tempo de Joao Knox e da Reforma Protestante. E entdo, finalmente, existe 0 ponto de vista de governo eclesidstico a que chamamos congregacional ou independente. E bastante dificil tratar deste tema hoje em dia, porque nenhuma das descricgdes que estarei apresentando é estritamente correspondente com o que realmente esta em voga hoje. Aqui passo a descrever independéncia ou congregacionalismo, mas existe hoje bem pouco de tal qualificagéo. Os congregaciona- listas - aqueles que créem no sistema congregacional — afirmam que cada igreja local é uma entidade em si, que tem poder supremo para decidir tudo sozinha. E um agrupamento de cristéos que créem que o Senhor estd presente e é O Cabega da Igreja, e créem que, quando O buscam e O aguardam, Ele, por meio do Espirito, os guiaré e lhes dard a sabedoria de que necessitam para decidirem sobre doutrina e disciplina, e assim por diante. A igreja local é auténoma, governa a si prépria e néo reconhece nenhuma corporacao superior, seja um colégio de bispos, um presbitério, uma assembléia geral ou qualquer outra coisa. Pergunto, porém, quantas igrejas como tais existem hoje? Originalmente, a descrigéo se aplicava aos assim chamados congregacionalistas e aos batistas, porquanto os batistas créem 35 na ordem eclesidstica congregacional, na independéncia do ponto de vista de governo. Hoje, porém, em linhas gerais, tanto os congregacionalistas como os batistas adotaram a idéia presbiteriana com seus fundos de sustento e seu controle sobre a igreja local através desses fundos. Nao sao mais congregaciona- listas, sendo que se tornaram presbiterianos, com poder atribuido a uma corporacao superior que pode influenciar a igreja local. Entretanto, ideal e originalmente no século dezessete, 0 congrega- cionalismo - ou a independéncia — se conformou ao padrao que acabo de descrever. Bem, historicamente, ai vocés tém os diferentes pontos de vista sobre a organizagao da Igreja. Sem dtivida muitos estao ansiosos por fazer uma pergunta neste ponto: sera que o senhor defende um sistema de governo em preferéncia a outro? Ora, nao tenho por que temer o desafio! Quando um homem se sente chamado por Deus para ensinar, é seu dever tentar fornecer orientagéo. Nao quero ser hiper-dogmatico, mas sugiro que, quando pensamos nessas coisas 4 luz do ensino do Novo Testamento, esquecidos do que sucedeu na histéria, com certeza chegamos a conclusao de que a concepgao local e independente €a mais biblica. Sim, as igrejas locais, ainda nos tempos do Novo Testamento, se reuniam para a comunhao, e seguramente devemos agir assim. Todos nds que somos crist&os desejamos ter comunhao com os cristéos de outras igrejas. Sustentamos as mesmas convicgées, cultuamos 0 mesmo Senhor, é bom nos reunirmos em conferéncias — sem diivida. Como entendo o ensino das Escrituras dos tempos neotestamentarios, porém, nenhum concilio possuia autoridade suprema. Tomem, por exemplo, 0 concilio que se reuniu em Jerusalém, o qual se acha descrito em Atos, capitulo 15. Ele nao tinha poder de legislar para as igrejas locais; ele simplesmente enviou uma recomendagao. Simplesmente disse: “Pareceu bem ao Espirito Santo e a nds” (Atos 15:28). O concilio nao podia compelir as igrejas locais; nao podia coagir. Ele disse: isto é 0 que entendemos. Este € 0 nosso conselho. E as igrejas locais podiam aceitaé-lo ou rejeita-lo. Por certo que, se uma igreja local 36 discordasse inteiramente, entao, quando tivessem sua préxima reuniao de comunhao, os outros cristéos tinham o poder de sugerir que talvez tal igreja nao tivesse o direito de participar da comunhio. Se nao estivesse de acordo, entaéo nao haveria mais comunh4o alguma. Mas nao havia poder legislativo nem coercivo. E essa é a raz4o por que sugiro 0 ponto de vista local e independente; parece-me que 0 mesmo se aproxima mais estreitamente do padrao neotestamentario. Cada igreja local seria auténoma e independente, mas sempre disposta a reunir-se em comunhio com aquelas da mesma doutrina e do mesmo espirito. Se vocés no aceitam 0 ponto de vista congregacionalista, e se adotarem qualquer um dos outros sistemas, eventualmente se acharao membros de uma corporagao na qual os poderes controladores nao concordam com vocés em doutrina ou em pratica — e todavia vocés estarao comprometidos a apoiar financeiramente um ensino que créem ser erréneo e perigoso simplesmente por pertencerem a tal corporacao. Isso é 0 que tem invariavelmente acontecido na histéria, e essa é a posi¢ao de muitos evangélicos na atualidade. Pertencem a igrejas com as quais, em principio, nao sé discordam, mas também nao tém simpatia, e contudo se acham sujeitos a tais poderes. Um clérigo evangélico, por exemplo, pode querer que um extremo bispo anglicano-catdlico venha para confirmar seus proprios membros. Ou um evangélico pode achar-se numa igreja livre dando subvengées para o sustento de ministros e ministérios que, segundo ele realmente cré, sao a propria negacao da fé. Portanto, reitero, 4 luz do ensino neotestamentério, ¢ seguramente também a luz da experiéncia ao longo dos séculos, parece-me que o ideal é a igreja local, pessoas que concordam, que estao em comunhao com todos os demais que semelhante- mente concordam, mas sem qualquer obrigatoriedade, sem qualquer direito de impor coisa alguma sobre as igrejas, sem qualquer direito de obrigar a consciéncia. Esta comunhao de crentes da mesma doutrina, que se retinem para crescer na suw vida espiritual, se ajudam mutuamente o maximo que podem, contudo livre e voluntariamente. Sequer uma unica igreja ¢ 37 compelida a fazer coisas que s40 contr4rias a seus pontos de vista e de fato contrarias 4 sua consciéncia. Espero que ninguém sinta que este nado foi um tema espiritual. Estas coisas séo, para mim, de vital importAncia, e se porventura alguém disser: “O governo da Igreja nada tem a ver comigo, sou uma pessoa espiritualmente consciente”, entio a nica coisa que tenho a dizer-Ihe é que vocé é uma pessoa muito antibiblica. Como membro do corpo de Cristo, é sua ocupacao, € seu dever, atentar para que a Igreja visivel de forma alguma contradiga a doutrina do proprio Senhor, da qual Ele nos fez administradores e guardiaes. 38 3 AS ORDENANCAS SINAIS E SELOS Estivemos analisando o significado e importancia da doutrina da Igreja — a qual é 0 corpo de Cristo — e suas caracteristicas e governo. Agora prosseguiremos analisando como, na Igreja, somos edificados em nossa fé santissima. Noutras palavras, chegamos a consideragado dos meios da graca. Perguntamos: como seriam os cristaos edificados, fortalecidos, encorajados e estabelecidos? E essencial que abordemos 0 ensino biblico sobre as ordenangas por essa via, porque tém havido diferentes idéias no tocante a esses meios da graca. Em certo sentido, a igreja catélica romana reconhece um so meio da graca, e esse meio é os sacramentos. O ensino dessa igreja é que toda a graca vem ao crente através dos sacramentos — batismo, a comunhdo da Ceia do Senhor, bem como outros cinco sacramentos que os catélicos romanos reconhecem e os quais serao tratados depois. Eles, porém, dizem que a graga nos vem de uma forma mais ou menos mec&nica, através dos sacramentos. No extremo oposto do ensino catélico-romano sobre os sacramentos esté 0 ponto de vista que foi originalmente ensinado e aprofundado pelos quacres, e que ainda é defendido por eles, isto é, o ensino de que o tinico meio da graga é a operagao interna do Espirito Santo no crente. Os quacres acreditam que, se alguém experimenta a operacao desta “luz interior” — 0 Espirito de Deus no intimo — nada mais € necessdrio. Outro ponto de vista, o qual surgiu em reag&o tanto aos catélicos romanos quanto aos quacres, é aquele que diz nao haver nenhum outro meio da graca sendo a Palavra de Deus escrita, as Escrituras. Sustenta-se que a Biblia sé, seja qual for a forma que 39 ela nos venha — falada, ensinada, pregada, lida — é 0 inico meio da graca. Ora, nao nos € possivel penetrar tudo isso detalhadamente nesta série de prelegdes; contentemo-nos, pois, em express4-lo assim: o ensino protestante tradicional sobre esta questao é que o crente recebe graca através da Palavra de Deus e da aplicagéo da Palavra de Deus pelo Espirito Santo e através das ordenangas. Como veremos, as ordenangas jamais devem ser separadas da Palavra. Essa é a raz4o por que os pais protestantes disseram que a graga veio exclusivamente pela Palavra, porque, como eles mesmos corretamente realcaram, as ordenancas nada podem fazer sem a Palavra. Isso, porém, é um tanto extremado, e portanto dizemos que os meios normais da grac¢a sao a Palavra — a pregacdo, o ensino ou a leitura da Palavra sob a iluminagao e orientacao do Espirito - e as ordenangas. Isso, pois, nos conduz a uma andlise do ensino biblico concernente as ordenangas. A palavra “sacramento” tem sido usada pela Igreja Crista por muitos séculos, e no entanto sinto- -me muito inclinado a concordar com aqueles que ensinam que € uma pena que esta palavra seja ainda usada. E um termo que no se encontra nas Escrituras, mas que foi introduzido na Igreja e em seu ensino nos séculos subseqiientes. HA bem pouco para ser examinado na filologia ou na derivacao da palavrasacramento, exceto que nos ajuda a ver como a palavra veio a ser escolhida pela Igreja. Nossa palavra “sacramento” procede do latim sacramentum, termo este de cunho legal. Numa disputa legal ha sempre dois elementos ~o acusador e 0 acusado. Ora, no mundo antigo era costume que ambas as partes depositassem certa quantia em dinheiro no tribunal; e entéo, quando o caso fosse decidido, o dinheiro daquele que perdia a causa era entregue pelo tribunal para determinados propésitos religiosos. Esse depésito em dinheiro foi chamado de sacramentum. E assim “sacramento”, significando um depésito, uma garantia, foi aplicado ao batismo ea Ceia do Senhor. Infelizmente, a palavra latina, sacramentum, foi também 40 usada para traduzir a palavra grega “mistério”, a qual, nas religides pagds, era a palavra usada para um rito secreto ou cerim6nia de iniciagao. Creio que ainda hoje determinados movimentos pagaos possuem ainda algum tipo de rito iniciatério de ingresso. Certamente esse era 0 caso das religides pagas de mistério do mundo antigo, e que essa idéia foi tomada por empréstimo pela Igreja Crista a fim de descrever os meios da graca que se apresentam ao povo dessa forma particular. Repito, é uma pena que a palavra “sacramento” seja ainda usada, mas foi assim que aconteceu, e talvez tenhamos que aceitar as coisas como elas sao. Pessoalmente, tento nao usar esse termo. Na igreja, nunca anuncio que “o sacramento da Santa Comunhao” seré administrado. Em vez disso, digo: “Espero que nos encontremos 4 mesa da comunh4o para participarmos da Ceia do Senhor”. E faco isso bem deliberadamente. O termo, (sacramento) contudo, é usado, e basta que sejamos conscientes do que as pessoas entendem por ele. Quais, pois, sao as definigGes dos sacramentos (das ordenangas) que foram formuladas no passado? No vigésimo quinto dos Trinta e Nove Artigos da Igreja da Inglaterra, lemos: “Os sacramentos ordenados por Cristo nao sao apenas sinais ou emblemas da profissao dos cristaos, mas, antes, s4o0 testemunhos definidos, e sinais eficazes da graca e da boa vontade de Deus para conosco, por meio dos quais Ele opera invisivelmente em nos, e nao sé nos vivifica, mas também nos fortalece e nos confirma em nossa fé nEle”. A Confisséo de Westminster traz esta definigao: “Um sacramento é uma ordenanga santa instituida por Cristo em Sua Igreja para significar, selar e exibir aqueles que estao dentro do pacto da gracaos beneficios da Sua mediacdo para aumentar- -lhes a fé e todas as outras gragas, para coagi-los 4 obediéncia, a fim de testificarem e nutrirem o seu amor e comunhao uns com os outros, e para distingui-los daqueles que estao de fora”. Ele prossegue afirmando que as partes de um sacramento sdo duas: uma, “um sinal externo e sensivel usado segundo a propria determinagio de Cristo”; a outra, “uma graga interior ¢ espiritual 41 presente”. As vezes um sacramento tem sido definido como “um sinal externo e visivel de uma graga interna ¢ espiritual”. Ora, é muito importante que prestemos atengao a estas definicgdes, porquanto elas nos lembram que os sacramentos nao sdo uma invencgéo humana. E nosso proprio Senhor quem ordenou que Seu povo fizesse essas coisas. E nao pode haver a minima dtivida, senfo que seu propésito era recorrer ao auxilio de algo que pudesse ser visto, com o fim de ajudar 0 que tem sido ouvido. Ora, a maioria das pessoas é indubitavelmente ajudada ao ver coisas. Dai por que ensinarmos o alfabeto as criangas, geralmente fazendo uso de figuras. Dizemos: “M para maga”, e mostramos a figura de uma maga, e a crianca mentaliza a figura. As criangas sao sempre ajudadas por figuras; é mais facil aprender coisas tendo uma representagao visual do que apenas ouvindo. Neste ponto sinto-me tentado a fazer uma digressdo, salientando que um triste aspecto da época em que vivemos é que ha4 um grande volume de evidéncia de que 0 povo, a despeito de sua educagao e de sua jactanciosa cultura, acha mais e mais dificil absorver a verdade pela audicao, e recorre cada vez mais a auxilios visuais. E uma confissao terrivel, mas parece ser a realidade. Indubitavelmente nosso Senhor, em Sua infinita bondade e condescendéncia, inclinou-Se para nossa fragilidade e providenciou auxilios visuais, algo que pudés- semos ver, com o fim de ajudar-nos a absorver 0 que ouvimos. Portanto, temos algo externo e visivel que conduz a uma graca interna. A pergunta, pois, que de imediato surge é: qual é a relacdo entre o sinal externo ea graca por ele significada? Vocés percebem a importancia dessa pergunta? Qual seria a relacdo entre 0 pao e o vinho na Ceia do Senhor, e a 4gua no batismo, e a graca que € recebida? Eis uma pergunta que, no transcurso dos séculos, tem conduzido a grandes discussées e controvérsias. Na verdade, um grande volume de literatura tem sido dedicado a este tema tao fascinante e encantador. E, contudo, se alguém nao for muito prudente, podera gastar demasiado tempo examinando-o. 42 Tentemos, pois, sumariar os conceitos. Ora, espero que todos nés percebamos que estamos ponderando sobre algo muito pratico. Se vocé, meu amigo, nao concorda, permita-me fazer-lhe estas simples perguntas: qual é sua compreensao do que realmente sucede no batismo? Qual é sua compreensdo do que vocé pessoalmente faz quando toma o pao eo vinho na celebragao da Ceia do Senhor? Qual é sua idéia acerca do pao e do vinho? O que significam? Esse é 0 tema que vamos analisar, ou seja: a relacdo existente entre os simbolos, ou elementos, e a graca que representam ou simbolizam. Aqui, pois, estéo as idéias principais. Primeiro, temos 0 ensino catélico-romano, e nao sé o catélico-romano, mas também, € evidente, 0 ponto de vista anglicano-catélico; na verdade, 0 ponto de vista de qualquer pessoa que se deleita no titulo “catélico”, porquanto na maioria das denominacées ha grupos que defendem o que chamam “doutrina sacramentalista”. A idéia catélica é que a graca esta contida nos préprios elementos do sacramento: que a graga estd no pao e no vinho, bem como na 4gua. Com isso a graga € recebida no ato de tomar 0 pao eo vinho ou no ato da agua aspergida. E tao mecanico quanto isso. E como tomar uma injecdo. Se vocé come esse pao, seja qual for sua condig&o ou a condicao da pessoa que lhe administra 0 pao, vocé, real e necessariamente, est4 recebendo a graca. Visto que a graca esta na substancia, ela age automa- ticamente. O termo técnico para isso é que a graga age ex opere operato, ou seja, ela age, por assim dizer, em sua virtude e existéncia inerentes. O extremo oposto da doutrina do sacramentalismo é 0 ensino defendido por muitos hoje, mas que, originalmente, foi formulado por Zwinglio, um dos reformadores suicos. Zwinglio reagiu violentamente contra o ensino catélico-romano, e disse que os sacramentos nada s4o sendo sinais ou simbolos externos. Sua tinica fungdo é comemorar e trazer 4 lembranga algo que aconteceu no passado. Eles nada séo em si mesmos e em sentido algum nos conferem graca. Sado simplesmente a ratificagdo externa de algo; so puramente simbédlicos, principalmente 43 comemorativos. Portanto, quando tomamos 0 pao e o vinho, estamos simplesmente rememorando algo que nosso Senhor realizou uma vez. * Ora, 0 ensino tradicional, protestante reformado, nao é nenhum desses, mas que pode ser expressa assim: os sacra- mentos, assim chamados, nAo sé significam gracga, porém, como o expressa a Confissdo de Westminster, também selam a graga. Quando Paulo escreve sobre a circuncisio em Romanos 4:11, ele diz que Abraao “recebeu 0 sinal da circuncisao, selo da justiga da fé que recebeu quando ainda nao era circuncidado”. Ora, ele recebeu essa justica da fé antes de ser circuncidado. Por que, entio, foi ele circuncidado? Bem, a doutrina consiste em que a circuncisao Ihe foi dada como sinal e como selo da justiga da fé, a qual ele jé havia recebido. E essa é a base da definigfo tradicional protestante do que significa um sacramento. E evidente que ele é um sinal externo, algo visual, como ja vimos. Sim, porém é mais que isso, e € aqui onde nos separamos de Zwinglio. Além de ser um sinal, ele é também um selo. Ora, um selo é algo que autentica uma promessa. Quando uma pessoa apée seu selo num documento, ele nao acrescenta nada ao documento como tal, nao adiciona nada as declaracgées do documento, mas é uma autenticacao adicional, confirma a verdade do que se afirma no documento. E foi nesse sentido que para Abraao a circuncis&o era, nfo apenas um sinal, e sim, também um selo. O arco-iris € um selo exatamente no mesmo sentido. Deus deu 0 arco-ris, vocés se lembram, para confirmar a verdade que Ele ja havia declarado com respeito a Sua relacao com o mundo. Ele disse que a terra nunca mais seria inundada por um diltivio; todavia Ele nao sé disse isso, como também deu 0 arco-iris como selo, uma confirmagao adicional (Gén. 9:8-17). Aqui chegamos a propria esséncia do ensino genuinamente protestante com respeito a este assunto. Portanto, apresentarei outra ilustracdo. Pensem no uso de um anel ou alianga. Por que alguém sempre da ou recebe um anel? Nao é essencial, mas é um costume, ¢ existe algo nessa pratica. A importancia de um anel é 44 que ele é um selo. Sela o compromisso ja feito. Ele nao acrescenta nada ao compromisso; simplesmente diz a mesma coisa de uma forma diferente, e no entanto existe valor nele. A pessoa que tem 0 anel pode olhar para ele e lembrar do que 0 anel representa. O que quero enfatizar, porém, é que o ato de dar ou de pér esse anel € uma acao da parte de uma pessoa que esta selando uma promessa a outra pessoa. Portanto, os Trinta e Nove Artigos e aConfissdo de Westminster nos dizem que os sacramentos nao s4o simples sinais, como também selos da graga. Confirmam a graca que jd recebemos. Sim, mas avancaremos ainda mais? Eles a exibem, diz a Confissdo de Westminster, significando que, em certo sentido, eles a transmitem. Ora, eis o lugar onde se deve ter cuidado, porque no momento em que dizemos que um sacramento comunica gra¢ga, alguém pode perguntar: “De repente vocé se tornou catdélico romano? Agora vocé vem dizendo que a graga é comunicada pelos meios e pelos simbolos?” Nao. Permitam-me mostrar-lhes a diferencga. O ensino cat6lico-romano é que a graga € apresentada mecanicamente nos simbolos; que o pao se transforma no corpo real de Cristo: ensino este que eles denominam de transubstanciagdo. E semelhan- temente se diz que a graca penetra a Agua do batismo, de tal modo que a d4gua deixa de ser Agua, e passa a conter graga em solugao, por assim dizer. O que estou ensinando nao diz isso de forma alguma. Voltemos ao caso do jovem que se torna noivo de uma jovem. Ele ja declarou seu amor franca e claramente; j4 0 repetiu; j4 expressou seu sentimento. Sim, mas no seria verdade dizer que, quando ajovem recebe o anel de noivado, ela sente haver recebido algo adicional, algo extra? Ora, num sentido fundamental, ela nado recebeu mais nada. Ela j4 tem o amor do jovem, e ele nao lhe tem dado mais amor. Entretanto, o recebimento do anel equivale o recebimento do amor de uma forma especial, de uma forma na qual ela ainda nao o havia recebido. Semelhantementc, © ensino protestante diz que os elementos s4o realmente um 45 meio de comunicar-nos a graga. Noutras palavras, como ja vimos, o anel € uma espécie de selo; e cada vez que ela olha para ele, a jovem encontra ali a certeza para confirmar o que ja cré e j4 sabe. Esse € igualmente o valor de uma chave que permite o ingresso a um edificio. E 0 valor de uma escritura quando uma propriedade é transferida de uma pessoa a outra, e assim por diante. Como ja vimos, a circuncisao, portanto, nao era apenas um sinal; era também um selo da justica da fé. Essa €é uma distingao biblica, e 6 muito importante que se preste cuidadosa atencao a ela. Quando recebemos uma ou outra dessas orde- nancas, é preciso compreender que ela nao é meramente alguma representagdo externa, e, sim, verdadeiramente um meio da graca; e devemos estar cénscios de receber algo que s6 nos vem por essa via especial. Vocés verao a relevancia de tudo isso quando estivermos tratando em separado do batismo e da Ceia do Senhor. Deixem-me, porém, realgar tudo o que tenho tentado dizer, expondo-o desta forma: 0 que uma ordenanga se destina fazer? Bem, primeiramente pretende significar, selar e comunicar, aos que estao dentro do pacto da graga, os beneficios da redengao de Cristo. Eles tm ouvido a proclamagao do evangelho, tém ouvido as declaracdes da graga em Cristo através da palavra pregada. Muito bem, é possivel que vocés indaguem: 0 que mais eles ainda podem ter? Podem ter esta ordenanca (sacramento). Deus, 0 proprio Senhor, a tem designado. Ele mesmo € quem nos ordenou que a guardassemos. Quando as pessoas sao batizadas, devem estar cénscias de que a graca lhes é comunicada pessoalmente por esta via especial, de modo que, o que tém crido em geral, agora sabem ser seu. A graga vem avocé, pessoalmente, eamim. Da mesma forma, quando tomamos o pao e 0 vinho a mesa da comunhio, devemos considerar como se Deus estivesse dizendo: “Ora, este € 0 modo que escolhi para dizer-lhe que minha graca /he é dada em particular. Vocé é admitido a isto; vocé é membro do corpo; e eu estou dizendo-lhe através deste p4o e através deste vinho que minha graca esta chegando a vocé,” 46 Essa € Sua maneira de dizé-lo. Ele nao precisava ter decidido agir assim, mas 0 fez. Isso € 0 que Ele disse ao apéstolo Paulo, como lemos em I Corintios 11:23: “Porque eu recebi do Senhor o que também vos entreguei ...”. A ordenanga foi decretado pelo Senhor para ajudar-nos. O segundo propésito de uma ordenanga é que ela é também um emblema visivel ou sinal de nossa membresia da Igreja. Os que sao batizados e os que se chegam para tomar a Ceia do Senhor possuem um tipo de emblema ou indicagao do fato de que sio membros da Igreja. Por isso existem essas duas fungées princi- pais; a primeira, porém, é a mais importante. Nossa proxima pergunta é esta: essas ordenangas (sacra- mentos) seriam absolutamente essenciais? Ora, é claro que depende do ponto de vista que vocés tém sobre elas. Se esposam 0 ponto de vista catélico, elas sao absolutamente essenciais, porque, se nao as receberem, nao estarao recebendo a graca. E jA que sdo o Gnico meio da graca, vocés nao podem de forma alguma negligencid-las. Podem negligenciar a pregacao da Palavra € muitas outras coisas, mas nao podem receber a graca sem as ordenangas. O extremo oposto disso, como ja vimos, é a posi¢4o quacre, e também o ensino do Exército de Salvagéo. Os que defendem este ponto de vista créem que as ordenangas nao sao absoluta- mente necessdrias. Nao interessam. A posicao reformada, protestante, € que cremos nestas ordenangas porque foram instituidas e ordenadas pelo Senhor Jesus Cristo pessoalmente. E um mandamento Seu, e participamos em obediéncia a Ele. Nao sé isso, mas vemos muito claramente no Novo Testamento que os préprios apéstolos obedeceram esse mandamento, e nossa posicdo € que devemos construir sobre o fundamento dos apéstolos e profetas. Apressamos, porém, em acrescentar que as ordenangas nao sao essenciais, e que comemos o pao e tomamos o vinho, nao porque cremos que s4o essenciais, mas porque esta ordenanga foi ordenada e porque ela é um dos meios da graca ordenados pelo préprio Senhor. Dizemos que as ordenangas nao sao 47 essenciais porque, por nossa propria definicdo, nao acrescentam nada a Palavra. E nao existe qualquer graca particular, excepcional, que é comunicada exclusivamente pelas ordenangas. Eis por que sempre foi o ensino tradicional que as ordenangas e a Palavra jamais devem ser separadas, e que as ordenancas devem ser sempre observadas em conexao com a pregacdo da Palavra. Nunca deve haver um culto exclusivamente como um encontro ao redor da mesa de comunh4o ou um culto exclusivamente para o batismo. Deve haver um culto religioso completo, e a Palavra deve ser proclamada, a fim de que nos salvaguardemos daquele grave perigo do catolicismo, que considera um sacramento (ordenanga) nao sé como algo em si e por si mesmo, mas também como o supremo meio de receber a graca. Nao hesito em assumir minha posi¢ao ao lado dos grandes pais protestantes, que asseveraram que a pregacao da Palavra vem em primeiro lugar e esta acima de tudo mais. Evidentemente € essencial que quem quiser obter algum beneficio das ordenangas, precisa ser um homem ou uma mulher de fé. Esta implicito em nossa definigdéo que sem fé nao ha qualquer valor no batismo, nem na Ceia do Senhor. E por ja saber que ela é amada que uma mulher valoriza seu anel de noivado. De modo semelhante, a ordenanga € a confirmacao da fé; ela sela a fé. Portanto enfatizamos nao sé a pregaciio da Palavra, mas a absoluta necessidade de fé no recebedor. Os catélicos romanos no estao interessados nisso. A graca est4 no sacramento e deve, portanto, entrar em todos os que 0 recebem, nao importa qual seja a condicdo espiritual da pessoa. A Juz de nosso ponto de vista, porém, a fé é essencial, e nao ha qualquer valor em nos achegarmos 4 mesa de comunh4o e comermos 0 pao e bebermos o vinho, se nao nos achegarmos com fé — nao ficamos diferentes nem melhores do que éramos antes, Todavia, se nos achegarmos com fé genuina, compreendendo que Deus instituiu a ordenanga com 0 expresso propésito de fortalecer nossa fé, entaéo devemos estar cénscios de receber a graca, nao através do pao e do vinho como tais, mas através da compreensao de que Deus nos esta falando algo mediante 0 pio 48 co vinho, os quais Ele escolheu para nos falar assim. Isso nos conduz ao ultimo ponto: quantas ordenangas (sacramentos) ha? Os catélicos reconhecem sete: batismo, confirmagao, eucaristia, peniténcia, extrema uncao, ordem (isto 6, a ordenagao de um homem como diacono ou sacerdote ou bispo ou © que quer que seja) e, por fim, matrimGénio. Esta percepgdo do matriménio como sacramento fundamenta a atitude da igreja catélica romana e, em geral, a Igreja da Inglaterra, no tocante a toda a questao do divércio. Determina nao so a atitude geral dessas igrejas quanto ao divércio, mas, em particular, controla sua posic¢&4o com respeito ao novo casamento da assim chamada “parte inocente”. A posigao protestante tradicional reconhece apenas duas ordenangas: 0 batismo e a Ceia do Senhor, E a razao para isso é simplesmente que essas foram as tinicas duas a serem instituidas e ordenadas pelo Senhor pessoalmente. E nao ha, obviamente, quando percorremos a Biblia — e falo muito deliberada e ponderadamente — nenhuma evidéncia a favor dos outros cinco como sacramentos. Esse foi um ensino que penetrou o seio da Igreja nos tiltimos séculos quando o poder dos sacerdotes cresceu ese desenvolveu a idéia sacramentalista. Tal desenvolvimento é muitissimo légico, uma vez que demos o primeiro passo em falso; mas a propria igreja catélica romana nao afirma que tem por base evidéncia biblica. Entretanto, ela alega que este ensino adicional da igreja é tao inspirado quanto as Escrituras. E assim temos considerado a questdo das ordenangas em geral, e vimos que o grande e importante principio consiste na énfase sobre serem as ordenangas um selo. Agora, ao chegarmos a consideracao do batismo e da Ceia do Senhor, simplesmente teremos que considerar o que é selado, e como exatamente é selado. Espero, porém, que sejamos esclarecidos sobre esta grande idéia central e entendamos que sua base esté em Romanos 4:11. Seguramente, nao podemos sen4o sentir a sensagao de gratidao c louvor em nossos coragées por Deus haver ordenado, decretado ¢ instituido esses auxilios para nossa fé. E Deus em Sua infinita condescendéncia que atentou para nossa fraqueza e providenciou 49 algo tanto para os olhos quanto para os ouvidos. Estes sao meios da graca designados por Deus para que nao tivéssemos nenhuma justificativa caso fracassemos. Se dissermos que realmente n4o conseguimos ouvir um sermao que ultrapasse vinte minutos, e acharmos que talvez ainda um quarto de hora seja mais do que podemos agiientar neste século iluminado; se dissermos que é demais tentar absorver a verdade por esse meio, bem, aqui estd — aqui temos este outro meio. Mas, acaso nao reconhecemos também a extraordinaria presciéncia de Deus? Quao amitide tem ocorrido na hist6ria da Igreja que, quando os homens que tiveram o privilégio de estar nos pulpitos, estavam ali nao pregando a verdade e a fé evangélica, mas estavam pregando uma espécie de humanismo ou moralidade, ou até mesmo pregando a igreja, quao freqiiente, pois, tem ocorrido que, quando no pilpito tem sido esquecido o privilégio e o dever, o evangelho ainda tem sido proclamado aos que tiveram alguma compreensdo desse outro método, o método visual! E, portanto, “as ovelhas famintas” — fazendo uso das palavras de Milton — que tém vindo, mas nao tém sido alimentadas pela Palavra pregada, tém podido encontrar a nutrico espiritual no pao e no vinho, ou na agua do batismo, e ali tém se lembrado através de sua compreensao das Escrituras que Deus pode falar tanto por esse meio quanto pela pregacao. E assim nos maravilhamos uma vez mais, nao sé na bondade e condescendéncia de Deus que Se inclina para nossa fraqueza, poderoso como Ele é, mas também em Sua extraordinaria provisdo, garantindo que a verdade seria sempre proclamada, através da Igreja, e com freqiiéncia por homens cujas palavras negavam o que precisamente testemunhavam enquanto administravam as ordenangas. Os caminhos de Deus estio realmente além de nossa compreensao, porém sdo sempre perfeitos. Louvado seja Deus! 50 4 O BATISMO Estamos considerando os meios da graca que estéo disponiveis na Igreja, e sio administrados pela Igreja para a edificagéo e fortalecimento do verdadeiro crente, e em nossa prelecdo anterior visualizamos em geral quais sao os apelidados sacramentos. Agora chegamos a uma consideracao detalhada das duas ordenangas que foram ordenadas pelo Senhor e as quais consideramos, portanto, obrigatérias: 0 batismo e a Ceia do Senhor. Em primeiro lugar, abordemos a doutrina biblica do batismo. Provavelmente seja até desnecessério mencionar o fato de que este € um tema sobre o qual tem havido grande controvérsia. Enquanto muitas péssoas tém sido, talvez, em grande medida, ignorantes sobre algumas das outras causas de dissensao, estou certo de que numa época ou noutra, todo cristéo professo tem se cnvolvido numa discussao sobre a questéo do batismo. Pessoas piedosas, espirituais, cultas, so igualmente encontradas defendendo as diversas opinides. Portanto, convém-nos uma vez mais dizer que devemos nao sé abordar este tema com prudéncia, mas, 0 que é ainda mais importante, de uma maneira crista e no Lspirito que alegamos ter recebido e a Quem nos submetemos. Em nenhum outro assunto é mais importante evitar meros rotulos, generalizac6es voltiveis ¢ pronunciamentos dogmaticos do que quando abordamos um tema como este. Nao seria plenamente dbvio, antes de darmos mais um passo, que este tema nao pode ser decidido em termos finais, que ele nao é um desses temas sobre os quais podemos apresentar uma prova absoluta e inequivoca? Se fosse possivel, jamais teria existido tanta controvérsia e nao existiria tantas distingdes denomi- nacionals. Citarei 0 exemplo do professor Karl Barth, o grande tedlogo 51 reformado (ainda que minha citagao nao signifique que eu concorde com sua posi¢do essencial). Barth foi educado de uma maneira tipicamente presbiteriana, mas experimentou uma grande mudanga em seu ponto de vista acerca do batismo. Tendo sido instrufdo a crer no batismo infantil, ele escreveu um livro para dizer que nao mais cria nisso, porém cria no batismo de adulto. Portanto, nao nos convém ser hiperdogmiaticos e dar a impress4o de haver apenas um possivel ponto de vista. Como vimos na prele¢ao anterior, o batismo nao é essencial a nossa salvacdo. Nenhuma ordenanga é essencial 4 salvacgao: se disserem que sim, entao estarao se enfileirando com os catdlicos romanos. Os protestantes sempre afirmaram que, embora 0 batismo e a Ceia do Senhor sejam mandamentos do Senhor, e devemos, pois, pratica-los, eles no sao essenciais. Nao cooperam com a graca, simplesmente apontam para ela e no-la trazem de uma forma especial. Por isso devemos abordar 0 tema com bastante prudéncia e com espirito cristao. Ha trés posigées principais sobre este tema: os pedobatistas, os batistas e o Exército de Salvagao, juntamente com os quacres. Na Igreja Primitiva nao houve referéncia definida ao batismo infantil até 175 d.C. Esse siléncio nao prova, contudo, que o batismo infantil nado fosse praticado antes dessa data. Um importante exemplo de evidéncia vem de Tertuliano, que foi um grande homem na Igreja primitiva no final do segundo século. Ora, Tertuliano mudou seus conceitos acerca deste tema e tornou- -se oponente do batismo infantil. E assim ha seguramente um exemplo muito forte para dizer que nos dias de Tertuliano nao se podia estabelecer que 0 batismo infantil fosse ensinado e praticado pelos apdstolos, pois se esse fosse 0 caso, um homem da estirpe de Tertuliano jamais teria falado contra ele da forma que o fez. Outra porcao de evidéncia muito importante é que 0 grande Agostinho, cuja mae era crista, nao foi batizado na infancia. E verdade que nao podemos dar demasiada importancia a esse argumento, mas cle é significativo no sentido em que demonstra que o batismo infantil nao era uma pratica universal. 52 Quando avancgamos através dos séculos, descobrimos, em geral, que até chegar a Reforma Protestante sé havia batismo infantil. Os principais reformadores protestantes deram seguimento a essa pratica, porém no final do século dezesseis surgiu um novo grupo de pessoas que receberam o nome de anabatistas, pois criam que se devia rebatizar na confissao de fé (o prefixo ana significa “novamente”), quando alguém tinha idade bastante para ser capaz de fazer uma afirmacao pessoal. Essa breve anélise histérica nos leva 4 proxima pergunta: qual € 0 significado do batismo como ensinado nas Escrituras? Aqui a coisa significativa a ser observada é que a frase que geralmente se usa é “batizar em”. Existe, por exemplo, 0 famoso mandamento em Mateus 28:19: “Portanto, ide, fazei discipulos de todas as nacées, batizando-os em (dentro do) nome do Pai e do Filho e do Espirito Santo”. Exatamente a mesma frase se encontra, de uma forma ainda mais interessante, em 1 Corintios 1:13, onde Paulo diz: “Sera que Cristo esta dividido? Foi Paulo crucificado por amor de vés? Ou fostes vés batizados em (dentro do) nome de Paulo?” Da-se o mesmo em 1 Corintios 10:2, onde somos informados que os filhos de Israel “foram todos batizados cm Moisés” — voltarei a fazer referéncia a isso mais adiante. Ha também a declarag&o de Romanos 6:3-6, onde Paulo argumenta: “Ou, porventura, ignorais que todos nés que fomos batizadosem Cristo Jesus fomos batizados na sua morte?” E lemos em 1 Corintios 12:13: “Pois em um sé Espirito fomos todos batizados cm um s6 corpo, quer judeus, quer gregos”; e o mesmo se dé em Galatas 3:27 e em Colossenses 2:12. Jé consideramos uma série dessas declaragées quando tratamos da doutrina do batismo do Espirito Santo (ver volume 2, Deus o Espirito Santo). O que, entéo, aprendemos disso? Bem, com certeza a primeira coisa e a mais importante sobre 0 batismo é que ele pressupée unido, ser posto dentro de algo: somos batizados no Espirito Santo, batizados em Cristo, batizados no corpo, batizados cm Moisés. E muito importante que tenhamos em mente que 0 sipnificado primArio de batizar nao € purificar, e sim, esta uniao «uc nos identifica com determinado contexto, que nos poe dentro 53 de determinada atmosfera. E, por certo, na citagéo de Mateus 28:19, somos informados que somos batizados na bendita Trindade, no Pai e no Filho e no Espirito Santo. Portanto, 0 significado primario do batismo € uniao, entretanto esse nao € 0 tinico significado. Existe também o sentido secundario de limpeza e purificagéo. No batismo somos purificados da culpa do pecado, como vemos na resposta de Pedro, no dia de Pentecoste, ao povo que gritava, dizendo: “Que faremos, irm4os?” “Pedro entao lhes respondeu: arrependei-vos, e cada um de vés seja batizado em nome de Jesus Cristo, para remissao de vossos pecados” (Atos 2:37,38). Encontramos esse significado também em Atos 22:16, onde € dito a Paulo: “Levanta- -te, batiza-te e lava os teus pecados, invocando 0 nome do Senhor”; e em 1 Pedro 3:21, onde Pedro, referindo-se as pessoas que estavam na arca de Noé, diz: “que também agora, por uma verdadeira figura — o batismo — vos salva, o qual nao é o despojamento da imundicia da carne, mas a indagagdo de uma boa consciéncia para com Deus, pela ressurreigéo de Jesus Cristo.” Noutras palavras, o batismo é uma garantia de que estamos livres da culpa do pecado, e também da contaminacao do pecado. Ha muitas declaragdes desse fato. Em 1 Corintios 6:11 somos informados que alguns dos membros da igreja em Corinto se fizeram culpados de alguns pecados terriveis, no entanto Paulo diz: “mas fostes lavados, mas fostes santificados, mas fostes justificados ...”. E nao ha diivida de que “lavar” em parte se refere ao batismo. De igual modo, em Tito 3:5, onde Paulo fala de “o lavar da regeneracdo”, h4 indubitavelmente uma referéncia 4 mesma coisa. Portanto, o significado do batismo é que ele nos poe nesta posicao de uniao, todavia para estarmos ai precisamos ser lavados e purificados da culpa e da contaminacao do pecado. Qual, entao, é 0 propdsito do batismo, se esse é seu signi- ficado? Aqui devemos comecar com uma negativa. A fungao, 0 propésito, do batismo nao é purificar-nos do pecado original. Esse é 0 ensino da igreja catélica romana, e nao s6 0 dessa igreja, mas também o da Igreja Luterana, e de fato certas secdes da 54 Igreja da Inglaterra ensinam de maneira bem especifica que 0 proposito do batismo é purificar-nos do pecado original e regenerar-nos. Por isso falam da regeneracdo batismal. As pessoas as vezes nao atinam de que esse é 0 ensino da Igreja Luterana e, em certo sentido, é 0 ensino oficial da Igreja da Inglaterra, ainda que haja nessa Igreja muitos que repudiam a sugest4o. Nés, porém, dizemos que 0 propésito do batismo no é livrar-nos e purificar- -nos do pecado original, e tampouco regenerar-nos. Pergunto, pois: qual é a fun¢ao do batismo? Bem, como ja indiquei na prelecao anterior, o batismo é um sinal e selo. Primeiro, ele é um sinal e selo da remissao de nossos pecados e de nossa justificagao. Como j4 vimos, 0 batismo € algo que fala a mim. Como 0 anel de noivado no dedo fala, assim o batismo fala aos que sao batizados, dando-lhes a certeza de que so justificados e seus pecados sao perdoados . Nao sao justificados porque foram batizados; sao batizados porque sao justificados. O batismo nao €o meio de seu perdao e justificagdo, e sim, a certeza deles. O batismo, porém, é mais que isso, e diria, especialmente, que ele é um sinal e selo da regeneracao, de nossa uniéo com Cristo e do recebimento do Espirito Santo. Ora, uma vez mais digo que ele é um sinal e um selo. Nao sou regenerado ao ser batizado; apenas tenho o direito de ser batizado por ter sido regenerado. O batismo me informa que estou regenerado; ele me certifica que ja nasci de novo, que estou unido a Cristo e que o Espirito Santo habita em mim. E a selagem desse fato para mim. E a mancira de Deus conceder-me um penhor. Como Ele deu 0 arco-iris, e como Ele deu a circuncisao a raga eleita, assim Ele nos da um sinal e selo de nossa regeneragao no ato do batismo. E ento, em terceiro e ultimo lugar, o batismo é um sinal de ser membro da Igreja, a qual é Seu corpo. E uma separacao do mundo e uma introdugao oficial, de uma mancira externa, no corpo visivel de Cristo. Ja estamos no invisivel, porém aqui cntramos no visivel, e o batismo € um sinal ou emblema disso. Deixem-me, entao, sumariar isso novamente e reenfatiz4- -lo. O propésito principal, a fung4o, do batismo é como um selo 55 para.o crente. Nao é primariamente algo que fazemos; é algo que € feito em nds. E algo do qual somos os recipientes passivos. Nossa profisséo e nosso testemunho seguem isso e sdo-lhe conseqiientes. Ora, enfatizo isso porque creio que vocés concor- darao que muito freqiientemente é posto de modo contrario, ea énfase é posta em nossa ag40, em nosso testemunhar, em nosso testemunho. Isso, porém, vem em segundo lugar. O elemento primordial e primario sobre o batismo € que ele é algo que Deus decidiu fazer conosco. E a concessao divina do selo de nossa regeneracao; e quando somos batizados, Ele esta nos falando e nos informando que estamos regenerados. E claro, porém, que, quando somos batizados, estamos incidentalmente dando nosso testemunho de que cremos na verdade. Secundariamente, pois, o batismo é uma forma de testificar, de dar testemunho. Mas € preciso uma vez mais realgar, como fizemos ao tratar das ordenangas em geral, que 0 batismo nao nos comunica béngao alguma que a Palavra em si mesma no nos possa dar. Ele nao acrescenta a graca; n4o nos faz algo que nao pode ser feito de outra maneira. Por isso nao afirmamos que 0 batismo é essencial, embora afirmemos que ele é do maior valor possivel. E, seja como for, ele é obrigatério em virtude de nosso Senhor o ter ordenado, e nos furtamos deste selo particular das promessas de Deus feitas a nds, caso nao nos submetamos ao batismo. Primaria- mente, pois, ele se destina a assegurar-nos, a reassegurar-nos e a fortalecer e a aumentar nossa fé. Portanto, reitero: as pessoas se equivocam em extremo quando simplesmente consideram o batismo como uma ocasiao para testificar e como um recurso evangelistico, enquanto deixam de enfatizar que ele é, primeiro eacima de tudo, Deus em Sua infinita gragae bondade pondo- -Seem nosso nivel, fazendo algo objetivo, algo que pode ser visto € por esse meio esta nos selando as promessas de perdiao e regeneracdo, bem como a habitagao do Espirito Santo. Ora, isso nos conduz a algo ainda mais controvertido: quem deve ser batizado? E aqui, por certo, hé uma grande divisao entre os que dizem que as criancas devem ser batizadas ¢ os que dizem que s6 os crentes convictos devem ser batizados. Eis 0 proprio 56 centro e ponto nevralgico da controvérsia. Comecemos avaliando os argumentos que se produzem em favor do batismo infantil. Em primeiro lugar, h4 quem aponte para o incidente dos pequeninos que eram levados a nosso Senhor para que os abengoasse. Lucas nos diz que eram realmente criangas. Nosso Senhor as tomava em Seus bracos e as abencoava, dizendo: “Deixai vir a mim as criangas, e ndo as impegais, porque de tais €oreino de Deus” (Luc. 18:16). A resposta, por certo, é que nao ha nenhuma mengao do batismo nesse ponto. Uma coisa é dizer que nosso Senhor pode abengoar as criangas; outra coisa muito diferente, porém, é dizer que Ele, portanto, ensinou que as criangas devam ser batizadas. O segundo argumento apresentado esta baseado em Atos 2:39, um versiculo a que jé fiz referéncia. Quando Pedro se poe a pregar no dia de Pentecoste, 0 povo clama e pergunta: “Que faremos, irmaos?” Entao Pedro responde: “arrependei-vos, e cada um de vés seja batizado em nome de Jesus Cristo, para remissao de vossos pecados; e recebereis 0 dom do Espirito Santo. Porque a promessa pertence a vos, a vossos filhos ...”. Nessa passagem, © argumento prossegue, as pessoas séo informadas que o batismo se aplica tanto a seus filhos como a elas mesmas. Contudo, sempre que leio esse argumento em algum livro, noto que o resto do versiculo é sempre descartado: “e a todos os que estao longe: a quantos o Senhor nosso Deus chamar.” Claramente, pelo termo “filhos” Pedro néo tem em mente descendentes fisicos, nao tem em mente os filhos dos que ouviam, mas € como se dissesse: “A promessa néo é somente para vocés que estéo imediatamente aqui, agora, porém é para a proxima geracao e para a geracdo depois dessa, e depois daquela, e continuar4 a percorrer os séculos. E nao é somente para judeus, como também para os que estaéo longe” — os gentios, os que se acham fora da comunidade de Israel. Alias, é para “quantos o Senhor nosso Deus chamar”. O terceiro argumento emana de Atos 16:15 e 33. Somos informados que quando Lidia creu no Senhor, “Depois que foi batizada, ela e sua casa”. E Lucas escreve igualmente que o 57 carcereiro de Filipos foi imediatamente batizado, “ele e todos os seus”. Argumenta-se que isso deve significar que as criangas ¢ talvez mesmo os recém-nascidos de ambas as casas foram também batizados. A isso, naturalmente, a resposta é que nao temos noticia de haver qualquer crianga em uma ou outra das casas. Poderia ter havido, eu nao sei e ninguém mais sabe. Uma casa pode consistir de filhos adultos, e 4s vezes nem mesmo é necessério que os tenha. A casa bem que poderia consistir de servos. No caso do carcereiro, de qualquer forma, ha clara indicagao de que teriam sido adultos, j4 que somos informados que a palavra foi pregada nao s6 ao carcereiro, e sim,também a sua familia. Lemos: “Entao lhe pregaram (Paulo e Silas) a palavra, ea todos os que estavam em sua casa”. Os da familia parece que foram capazes de ouvir e receber a verdade. E assim uma vez mais nao hd um claro exemplo de batismo infantil. A evidéncia que se apresenta em seguida se encontra em 1 Corintios 1:16, onde Paulo diz: “E verdade, batizei também a familia de Estéfanas; além destes, nao sei se batizei algum outro”. Uma vez mais, 0 argumento é que deve ter havido criancas na familia. No entanto, se consultarmos | Corintios 16:15, lemos o seguinte: “Agora vos rogo, irmaos, pois sabeis que a familia de Estéfanas é as primicias da Acaia, e que se tem dedicado ao ministério dos santos”. Essa € seguramente um pressuposto de que a familia de Estéfanas nao incluia criangas, mas adultos que creram na verdade e que agora estavam cooperando e ministrando aos santos. E por fim 0 ultimo argumento da tese esta em 1 Corintios 7:14, onde somos informados que os filhos de pais crentes sao santificados por seus pais. Aqui nossa resposta € que isso nado significa necessariamente que as criangas eram batizadas. Significa apenas que Ihes era permitido entrar nos cultos da igreja e que desfrutavam de certos privilégios pertencentes a Igreja. Na verdade, a mim parece haver neste ponto uma resposta conclusiva, porque somos informados que um esposo incrédulo é santificado por sua esposa e que uma esposa incrédula é santificada por seu esposo crente. O mesmo termo é usado acerca 58 do esposo incrédulo ou da esposa incrédula como é usado acerca dos filhos. Evidentemente, pois, este versiculo nao esta de forma alguma tratando do batismo. Portanto podemos sumariar, dizendo que no Novo Testa- mento nao ha clara evidéncia de que as criangas eram sempre batizadas. Nao posso provar que nao eram, mas estou certo de que nao hA evidéncia de que eram; nao é possivel tirar uma conclusao definitiva. As afirmagées sdo tais que nao nos permitem fazer um pronunciamento dogmatico, A segunda linha de argumento em favor do batismo infantil €a analogia baseada na circuncis4o. Somos informados de que 0 batismo no Novo Testamento corresponde a circuncisao no Velho Testamento, ¢ sempre que um filho nascia ao judeu, ele era circuncidado quase imediatamente. E assim 0 apéstolo Paulo diz que foi “circuncidado ao oitavo dia” (Fil. 3:5). O argumento € que todos os filhos nascidos de pais israelitas eram introdu- zidos em Israel em cardter oficial e 0 sinal que recebiam era a circuncis4o. Portanto, diz-se que, quando chegamos 4 era crist4, indubitavelmente o paralelo no Novo Testamento deveria ser levado a efeito com as criangas. Nao ha dtivida de que em muitos aspectos este 6 um argumento muito forte. Contudo, minha dificuldade é esta: parece-me que ele ignora 0 ponto essencial que é 0 modo de se entrar no reino. Ora, o modo de se entrar no reino de Israel era através de descendente fisico, e somente por esse meio. O grande contraste entre o Velho e o Novo é a diferenca entre 0 fisico e 0 espiritual, e o Novo Testamento ensina que 0 modo de se entrar no reino de Deus nao € por meio de descendéncia fisica, e sim, pelo nascimento espiritual. Temos de nascer do Espirito antes de entrar no reino de Deus. Portanto, parece-me que esse argumento fracassa nesse ponto. As pessoas tém também argumentado em prol do batismo infantil com base no fato de que no Velho Testamento Deus entrou num pacto com Seu povo, e os meninos recém-nascidos eram circuncidados como um sinal desse pacto. No Novo Testamento, Deus inaugurou um novo pacto, e diz-se que os 59 filhos dos que estaéo em relagéo com 0 novo pacto devem, portanto, ser batizados. Esse argumento, porém, tem por base Atos 2:39, ¢ ja Ihes sugeri que, dizer que esse versiculo se refere aos filhos fisicos é interpretar mal seu significado. Portanto, esse é outro argumento inconclusivo e na verdade falacioso. Mas, deixem-me dizer algo sobre 0 outro lado. Ha pessoas que parecem crer que podem resolver este problema de uma maneira muito simples. Dizem que o batismo infantil seria erréneo em virtude de 0 batismo ser o selo e o sinal da regeneragao, ¢ assim nao sabemos ainda se uma crianga sera ou n4o regenerada. Esse, porém, é sem diivida um argumento muito perigoso, pois terfamos certeza de que 0 adulto est4 regenerado? Alguém pode dizer com certeza que ele cré no Senhor Jesus Cristo, entretanto isso provaria que ele é regenerado? Se vocés disserem que tém certeza que sim, porque ele diz que cré, entao o que dizer quando mais tarde ele nega inteiramente a fé, como muitos tém feito? Nao, néo podemos ter certeza de que alguém estd regenerado. N4o nos compete decidir quem nasceu de novo e quem nao nasceu de novo. Temos evidéncia presumivel, mas n4o podemos ir além disso. Por conseguinte, esse argumento nao deve ser usado como base para 0 batismo de adulto. Semelhantemente, pessoas com freqiiéncia dizem algo mais ou menos assim: “Vejam as milhares de criangas que foram batizadas quando ainda recém-nascidas. Foram aceitas na Igreja Crista, mas subseqiientemente declinaram, provando que nunca foram realmente cristas”. Uma vez mais, a resposta, por certo, é exatamente a mesma. Esse tem sido o caso, infelizmente, milhares de vezes, com pessoas que foram batizadas sob confissao da fé quando adultas. Devemos ser prudentes quando lidamos com esses argumentos, visto que 0 mesmo ponto negativo pode ser usado em ambos os lados. Nao devemos basear nossos argumentos em observagées, e sim, nas Escrituras, como estivemos tentando fazer. O que, pois, podemos concluir neste ponto? Eevidente que a pergunta crucial a fazer é esta: a que o batismo se destina? O que ele significa? Qual € seu propésito? Bem, eu j4 respondi a 60 pergunta. Se o grande ponto sobre 0 batismo consiste em que ele ¢ uma selagem feita por Deus daquilo que estou certo que j4 me aconteceu, entéo com certeza ele é para um crente adulto. Nao pode ser um selo para uma crianga sem discernimento; isso € impossivel. Se o batismo fosse apenas um sinal, entao eu poderia ver um grande argumento para batizar uma crianga. Mas, como todos concordam, mesmo aqueles que defendem o batismo infantil, muito mais importante do que o sinal é a selagem. Por certo, entao, o batismo é somente para uma pessoa que sabe, que € cénscia do que esté acontecendo. Parece-me que quando examinamos 0 caso do eunuco etiope, ou mesmo o do préprio apéstolo Paulo, tudo indica que ambos foram batizados mais ou menos privativamente, o algo importante sobre 0 batismo é 0 selo. Quanto a mim, esse tiltimo argumento é conclusivo. Isso me leva ao meu tiltimo ponto principal: qual deve ser o modo do batismo? Como deve ser ele administrado? Uma vez mais, vocés devem estar familiarizados com a grande discussao. Ha duas escolas principais de pensamento: aspersao e imersao. O que teria a histéria a dizer sobre isso? Bem, ela tem muito a dizer, nao obstante, infelizmente, nada decisivo! Entretanto, muito se pode dizer sobre bases histéricas. Durante os primeiros mil anos da Igreja Crista, 0 modo comum do batismo era a imersao. Mesmo os catélicos romanos dizem que 0 certo é que a pessoa seja imersa. Nao colocam isso na primeira posig&o, porém dizem que a imers4o é legitima e dao instrucdes quanto a como cla deve ser feita. A Igreja Ortodoxa Grega e a Igreja Ortodoxa Russa ainda praticam a imersao, e dizem que a imersdo é0 modo - muitos de nossos amigos batistas ficaréo surpresos quando ouvirem que no so os tnicos crentes na imersao! No Livro de Oracao da Igreja da Inglaterra de Eduardo VI, a imersao foi posta antes da aspersdo. A aspersdo s6 era permitida como uma alternativa a imers4o no caso de enfermos ou incapacidade de algum género..A presente pratica s6 foi introduzida no livro de oragdo de 1662. A Confissdo de Westminster diz que a forma correta de batizar € por aspers4o, e exclui a imerséo, mas é muito interessante notar que, depois de uma longa discussio na 61 Camara Jerusalém da Abadia de Westminster, os doutores de Westminster tinham um voto final. Vinte e cinco votaram pela exclusao da imersdo, e vinte e quatro votaram contra sua exclusdo, sendo sua deciséo consumada pela maioria de apenas um! Entao, quais sao os argumentos? H4 quem diga que a palavra grega, baptizo, estabelece o argumento em termos absolutos. Mas nao faz isso, porque os estudiosos se acham divididos sobre seu significado. A palavra baptizo nao prova tudo. Eis uma interessante porcao de evidéncia. Se lermos Lucas 11:37,38, descobriremos 0 seguinte: “Acabando Jesus de falar, um fariseu o convidou para almocar com ele; e havendo Jesus entrado, reclinou-se 4 mesa. O fariseu admirou-se, vendo que ele nao se lavara antes de almogar.” A palavra usada ali € baptizo, e eviden- temente nao significa que ficassem surpresos por Jesus nao ter efetuado um banho completo. Ao contrario, era o costume dos fariseus, antes de sentar-se para comer, meter suas maos em Agua corrente. Acreditavam ser essencial, e ficaram surpresos que nosso Senhor, nao enfiando suas maos em 4gua corrente, imediatamente sentou-Se. E assim ha ai a sugestao de aspersao. Uma vez mais 0 argumento em prol da imersao é apresen- tado com base em Romanos, capitulo 6, e as passagens paralelas de que fiz mengao anteriormente. Mas a resposta € que esses versiculos nao se referem necessariamente ao rito ou a ceriménia do batismo. Em todos esses versiculos, Paulo esté argumentando em prol de nossa uniao com Cristo — ele nao sé argumenta que somos sepultados com Ele, como também que somos crucificados com Ele, que j4 morremos com Ele. O batismo nao indica isso de forma alguma. Nao é verdade? “Mas”, dizem alguns, “ele indica o sepultamento e a ressurreicao.” Naturalmente, porém, Paulo também argumenta acerca da morte e crucificagéo. De forma que os que apoiam o batismo por imers&o estao dando ao argumento mais do que 0 apéstolo da. Ha ainda outro argumento com base no batismo de nosso Senhor e naquele do eunuco etiope. Somos informados que nosso Senhor “saiu logo da 4gua” (Mat. 3:16), e que Filipe e o eunuco 62 também “sairam da 4gua” (Atos 8:39). Afirma-se que essa é uma prova conclusiva de que o batismo deve ser efetuado por imersao completa. Atos 8:39, porém, nao diz isso. Tudo 0 que ele nos diz ¢ que Filipe e 0 eunuco estiveram na 4gua e entdo sairam dela, posto que se nos diz que ambos sairam da agua. E se se pretende provar que o eunuco foi totalmente imerso, entao Filipe também deve ter sido totalmente imerso. Nao; com certeza o versiculo simplesmente indica que ficaram em pé na agua, e nao nos diz cxatamente como Filipe efetuou 0 batismo. E o mesmo se aplica no caso de nosso Senhor. Ha, porém, outra porgao de evidéncia que parece-me ser muito importante. No Velho Testamento, as coisas eram postas 4 parte, purificadas, consagradas e santificadas por aspersao. Os cantos do altar eram aspergidos com sangue, e sangue era aspergido diante da cortina do Lugar Santo (Lev. capitulo 4). O pecado era remido por asperséo com 4gua, na qual se langava as cinzas de uma novilha (Num. capitulo 19). O autor da Epistola aos Hebreus usa esse simbolismo. Ele fala sobre “tendo nossos coragdes purificados da ma consciéncia” (Heb. 10:22) - sao purificados por asperséo com o sangue de Cristo. O Velho Testamento faz uso da aspersao para purificar, 0 que me parece significativo e importante. E ha, finalmente, este argumento, pelo que vale: milhares de pessoas iam a Joao Batista, atendiam sua pregacgéo e eram batizadas por ele. Certamente, se 0 batismo por imersdo, no sentido em que é geralmente aceito hoje, era 0 método do batismo de Joao, entao o problema fisico envolvido entra neste argumento. Sumariando, parece-me que, a luz da evidéncia das Escrituras, a pratica nos dias do Novo Testamento era mais ou menos assim: a pessoa a ser batizada e a que batizava se punham em pé juntas na Agua. Se era no Rio Jordao, se punham de pé no Jordao, e aquela que batizava a outra mergulhava sua mao na Agua e aspergia a 4gua sobre aquela que estava sendo batizada. Obviamente nao estou em condigéo de apresentar qualquer evidéncia, mas nos escritos dos diversos Pais hé muito que 0 63 sugere, e, como jd vimos, isso parece-me adequar-se perfeitamente com o que sucedeu ao eunuco. Entretanto, certamente néo hd como chegar a alguma conclusao final, e portanto o tinico ponto de vista, a meu ver, que vale a pena alguém adotar € 0 que admite ambos os métodos. O modo do batismo nao € 0 elemento vital. A coisa significada é © que importa; é a selagem que conta, e quanto a mim estaria disposto a imergir ou a aspergir o crente. Se hé um suprimento adequado de Agua, tal como o de um rio, creio que o melhor meétodo é ficar de pé na 4gua e batizar dessa maneira. Eu nao recusaria até mesmo imergir completamente. O de que estou certo é que dizer que a imersao total é absolutamente essencial no é so ir além das Escrituras, mas é tender para a heresia, se nao for ser realmente herege. E atribuir importancia ao modo, ponto de vista que jamais podera ser consubstanciado nas Escrituras, e certamente estd fora de sintonia com a pratica que foi consistente em todo o Velho Testamento. Em conclusao, até onde posso ver, os que se dispdem a ser batizados devem ser crentes adultos. Nao consigo ver compro- vac4o, como ja tentei demonstrar-lhes, para o batismo infantil. Quanto ao modo, porém, pode ser a aspersdo ou a imersdo ou uma combinagao de ambos, o que pessoalmente creio ser mais biblico e o método pelo qual grande evidéncia pode ser produzida historicamente. Mas, havendo dito muito sobre quem deve ser batizado e como tal pessoa deve ser batizada, uma vez mais enfatizarei a importancia de se discernir que é por esse meio que Deus decidiu n4o s6 assinalar, porém também selar-nos a nossa redenc4o, nosso perdao, a remissio de nossos pecados, nossa uniao com Cristo, nosso batismo nEle e nosso recebimento do Espirito Santo. E assim Deus Se inclina para a nossa fraqueza, autentica nossa fé, nos da seguranga, nos fortalece e nos fortifica quando somos atacados pelo diabo, o qual tenta levar-nos 4 incredulidade. O batismo é determinacao de Deus e, seja qual for o modo, nos lembra a coisa que é significada, a coisa que é selada. 64 5 A CEIA DO SENHOR Passamos agora 4 consideracéo da Ceia do Senhor. Este, igualmente, tem sido 0 tema de grande debate e controvérsia na Igreja Crista durante muitos séculos, especialmente desde a Reforma Protestante, e grandes e poderosas obras tém sido escritas sobre ele. Seria facil entrar em tudo isso, mas decidi nao fazé-lo, porque a maior parte das controvérsias que se tém suscitado, realmente suscitou-se nado com base em qualquer ensino biblico, mas, antes, por causa das adigdes ao ensino biblico pelas quais a igreja cat6lica romana e seus seguidores se tém feito responsaveis. Noutras palavras (digo isso por causa daqueles que se sentem interessados no método como algo diferente da matéria), ha uma diferenca bem real entre teologia biblica e teologia sistematica. Teologia biblica significa doutrina que nasce diretamente do ensino da propria Palavra. Nao podemos, porém, entrar numa consideragao sistematica da doutrina sem também considerar 0 que tem sido ensinado na Igreja ao longo dos séculos. Ora, nesta série de prelegdes, estivemos tentando tratar de doutrinas biblicas, mas tenho feito referéncias, de passagem, a outros ensinos, porque julguei que todos nés temos ouvido algo sobre eles, e gostariamos de saber como eles vieram & existéncia, por que cremos serem eles erréneos e como dar-lhes resposta. Tenho tentado o melhor que me é possivel (vocés serao os juizes do éxito que porventura cu tiver) ater-me a doutrina biblica e evitar entrar demais na histéria das doutrinas. Portanto, se vocés se sentirem desapon- tados por eu nao tratar de uma forma detalhada do ensino catélico-romano sobre a transubstanciacao, esse € meu motivo. Do contrario, creio que nossa série de prelecdes sobre doutrinas biblicas se tornaria quase intermindvel. E assim selecionarci agora oO que considero como sendo de real importancia. 65 S6 ha dois pontos de vista com respeito 4 Ceia do Senhor. O primeiro é 0 ponto de vista tipicamente catélico — e quando digo “catélico”, nao me refiro simplesmente aos catélicos romanos, mas também aos anglicanos-catélicos, bem como outros que pertencem aos varios movimentos ritualisticos, até mesmo em algumas das igrejas livres. Certas sociedades sacramentalistas e sacramentais estao vindo a existéncia, e todas elas podem ser inclufdas no titulo genérico de catélico. Existem pessoas que de uma forma ou de outra créem nesse ensino da aco do sacerdote, o pao se transforma realmente no corpo fisico do Senhor Jesus Cristo. Ora, essa é aquela doutrina que, durante a Idade Média, comegou a surgir na Igreja Ocidental, a qual era, entao, nada mais, nada menos, que a igreja catélica romana, porém a doutrina nao foi definida por ela até 0 século doze. A transubstanciag4o, pois, continuou sendo a doutrina oficial da Igreja Ocidental (mas nao da Oriental) até a Reforma; e, como eu disse, é ainda defendida pelos catélicos romanos e outros. Os catélicos romanos tém engendrado uma grande filosofia em torno da transubstanciacao. Caso alguém pergunte: “Como é possivel acontecer isso, uma vez que ainda continuo vendo algo que se parece com pao, é branco e tem a textura e o sabor de pao?”, eles respondem que isso é perfeitamente correto. Acrescentam, porém, que tudo o que se vé pode ser dividido em duas segdes ou divisées principais — a substancia e os acidentes. Ora, como eu ja disse, nao quero entrar nisso detalhadamente, mas creio ser importante que saibamos algo sobre o assunto, visto haver tantas pessoas hoje que dizem ter sido abengoadas por esse ensino. E vocés vao descobrir sempre que, quando o verdadeiro protestantismo se torna sem vida e letargico surge em algumas pessoas estranha atracao pelo ensino sacramental, no qual nao se tem nada a fazer sendo receber 0 pao, ¢ ele atua quase que automaticamente. Portanto, esse ponto de vista diz que a cor do pao n4o tem nada a ver com a substancia do pao, mas € um dos acidentes, como sao a textura e o sabor, e que a 66 substancia pode transformar-se sem afetar os acidentes. Por isso cré-se que a substancia do p&o nao é mais o que era, sendo que, por um milagre, transformou-se no corpo real do Senhor. E, por certo, crendo que 0 pao € agora essencialmente 0 corpo do Senhor, os catélicos romanos o depositam num calice especial; adoram- -no; dirigem-lhe suas oragées; chamam-no “héstia” e carregam iat héstia em procissao. Pois bem, nao ha necessidade de prosseguirmos com o assunto, porque até mesmo a igreja cat6lica romana esta disposta aadmitir que a doutrina nao pode ser provada a luz das Escrituras. ‘lentam pér forte énfase no fato de nosso Senhor dizer: “Isto é 0 meu corpo” (Luc. 22:19). Esse “é”, dizem eles, € profundamente importante. Afirmam que Ele nao diz: “Isto representa o meu corpo”, mas: “Isto é 0 meu corpo”, e devemos tomar Suas palavras literalmente. Existem muitas respostas claras a isso. Ali estava ainda nosso Senhor em Seu corpo, como, pois, poderia significar que o pao que ora tinha diante de Si era realmente Seu corpo? Ele estava falando no corpo no exato momento em que havia pao em Sua mao. Essa é uma resposta. Mas ha outra resposta e, em muitos aspectos, ainda mais poderosa, resposta essa que os catélicos romanos nunca podem contestar. Nosso Senhor iria dizer mais adiante: “Este cdlice éa nova alianga em meu sangue” (Luc. 22:20), e poderemos dizer- -Ihes que, se insistirem sobre o “é”, num caso, entdo terao que insistir sobre o “é”, no outro caso. Portanto, o vinho nao teria a menor importancia, mas 0 que importa € 0 cdlice, visto que Ele disse: “este cdlice”, nao o vinho dentro do calice. Com certeza iio existe resposta para isso. Noutros termos, a tentativa de basear a doutrina da transubstanciacao nessa nica palavra é nao apenas antibiblico, e sim, certamente irracional. O fato é que a doutrina como um todo teve ingresso na igreja catélica romana simplesmente para pér em realce a posigdo e o status dos sacerdotes. Unicamente 0 sacerdote é que pode operar esse milagre e, visto que unicamente ele é quem pode fazer isso, entao cle se torna correspondentemente muito importante. Ora, cerca de 1830, John Henry Newman (posteriormente 67 Cardeal Newman), Keble e outros comecaram 0 movimento anglicano-cat6lico neste pais. Entéo, muito deliberadamente disseram e nao se envergonhavam de dizer que acreditavam que a tnica forma de salvar a Igreja Anglicana (visto ela estar, ent4o, em péssimas condig6es) era exaltar a posigaéo do ministro — 0 sacerdote. E escolheram um dos métodos da época mais honrados de fazer isso, a saber, adotaram a antiga doutrina da transubs- tanciagdo. Vocés percebem que estou sendo tentado a fazer 0 que nao quero — e estou pondo em pratica a muito recomendavel graca restringedora - porém devo manter minha palavra e refrear-me de entrar em detalhes adicionais. Essa, contudo, em sua esséncia, é a posicao. Ora, os luteranos tém um ponto de vista ligeiramente diferente. Nao créem na transubstanciacao, e, sim, naquilo que chamam de consubstanciagdéo. Dizem que os catélicos estaéo errados, e que nao existe nenhuma mudanga na substancia do pao. O pao continua sendo ainda pao, mas 0 corpo do Senhor se junta a ele (con significa “com”, dai con-substancia). Portanto créem que possuem a ambos: 0 pao e o corpo do Senhor, a um sé tempo; 0 corpo de nosso Senhor esta com e sob o pao. Por certo que isso nao muda muito a posicao, e € muitissimo insatisfatoria. Lutero, tendo visto no inicio esse fato claramente, depois fraquejou e, sendo influenciado por alguns de seus amigos, retrocedeu a um compromisso muito prejudicial e insatisfatorio com a antiga posicao catélica. Acho que seria interessante, também, observar 0 ponto de vista diferente defendido pelos reformadores protestantes. Devo lembrar-lhes que ja fiz referéncia ao ponto de vista de Zwinglio relativo 4s ordenangas (capitulo 3). Ora, Zwinglio foi coerente consigo por considerar que a Ceia do Senhor é simplesmente um sinal e uma comemoragao. Mas quando chegamos ao ponto de vista reformado, descobrimos uma vez mais, como ja vimos no batismo, que a ordenanga nao é apenas um sinal, e sim, também um selo. Ja discorremos satisfatoriamente esse ponto quando focalizamos as ordenangas em termos gerais, e agora temos simplesmente que aplicar esse 68 ensino a Ceia do Senhor. E assim formulemos a pergunta vital: 0 que significa a Ceia do Senhor? E nao existe dificuldade alguma em responder a isso. A primeira coisa implicita é a morte do Senhor. Paulo afirma isso explicitamente em 1 Corintios, capitulo 11. Diz ele: “Porque lodas as vezes que comerdes deste pao e beberdes do calice estareis anunciando a morte do Senhor até que ele venha” (v. 26). O partir do pao e o tomar ou o beber do vinho so uma represen- tagéo do corpo partido de nosso Senhor, Seu sangue derramado. ssa € a coisa primaria que se acha implicita nesse ato, e em 1 Corintios, capitulo 11 Paulo, especificamente, nos manda fazer isso porque é dessa forma que proclamamos a morte de nosso Senhor. E, outra vez, quero sublinhar algo que consideramos anteriormente. Porventura néo vemos aqui uma maravilhosa provisao feita pelo proprio Senhor? Pois tém havido periodos na histéria da Igreja nos quais a morte do Senhor foi raramente proclamada dos pulpitos. Ela tem sido negada; tem sido mal cntendida e mal usada. Sim, mas nosso Senhor dera este mandamento — como diz Paulo: “Porque recebi do Senhor 0 que também vos entreguei” (1 Cor. 11:23)—como também Ele ordenou aos outros apéstolos nos mesmos termos (Luc. 19,20). Ainda que © pilpito haja fracassado, a Ceia do Senhor continua ainda declarando, proclamando, pregando a morte do Senhor, e com freqiiéncia tem havido grande desar-monia, para nao dizer contradicdo, entre a pregacio do homem e a pregacao do pio e do vinho a mesa da comunhao. A Ceia do Senhor, porém, é igualmente uma declaragio e um sinal da participagéo do crente no Cristo crucificado. Estamos em comunhao com Ele. Ela nos lembra da nossa uniao com Ele e, portanto, de nossa participagao em Sua morte. Vocés se lembram do rico ensino sobre isso em Romanos — que estamos cm Cristo e, devido estarmos em Cristo, morremos com Ele, fomos sepultados com Ele e ressuscitamos com Ele. Mas, além disso — e isto é extremamente importante — a ‘cia do Senhor nos é um memorial e uma declaragéo de que final participamos dos beneficios da nova alianga. Isso, uma 69 vez mais, emana das palavras do apéstolo em 1 Corintios 11:25: “Semelhantemente também, depois de cear, tomou o calice, dizendo: este cdlice € 0 novo pacto no meu sangue; fazei isto, todas as vezes que 0 beberdes, em memoria de mim”. Ora, quando discorremos sobre a morte do Senhor e da doutrina a ela concernente (ver volume 1, Deus 0 Pai, Deus o Filho), demonstramos como o derramar do sangue na morte do Senhor foi também a ratificagao do novo pacto. Lemos sobre esse novo pacto na Epistola aos Hebreus, no oitavo capitulo, no décimo capitulo, em particular, e indubitavelmente também no nono. Assim, pois, a Ceia do Senhor nos é memorial que em e através. de nosso Senhor Jesus Cristo, Deus fez com os crentes um novo pacto. Cristo é o mediador do novo pacto. Ele é 0 cabega e representante da humanidade nesse novo acordo, nesse novo e maravilhoso pacto que Deus fez com os homens e as mulheres. Em Hebreus, capitulo 8, deparamos com esse notdavel contraste entre os dois pactos, e é muito interessante noté-los. “Porque repreendendo-os, diz: eis que virao dias, diz o Senhor, em que estabelecerei com a casa de Israel e com a casa de Juda um novo pacto. Nao segundo 0 pacto que fiz com seus pais no dia em que os tomei pela mao, para os tirar da terra do Egito; pois ndo permaneceram naquele meu pacto, e eu para eles nao atentei, diz o Senhor. Ora, este € 0 pacto que farei com a casa de Israel, depois daqueles dias, diz o Senhor; porei as minhas leis no seu entendi- mento, € em seu coraco as escreverei; eu serei o seu Deus, e eles seréo 0 meu povo; e nao ensinara cada um ao seu concidadao, nem cada um ao seu irmAo, dizendo: Conhece ao Senhor; porque todos me conhecer4o, desde 0 menor deles até 0 maior. Porque serei misericordioso para com suas iniqitidades, e de seus pecados nao me lembrarei mais” (Hebreus 8:8-12). E assim, toda vez que nos reunimos para celebrarmos a Ceia do 70

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