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BBR 0 ees on raven Visio DA REDAGAO Garantindo os direitos da infancia Por Cenise Monte Vicente’ O grande marco e referéncia dos direitos da infancia no Brasil é 0 EGA (Estatuto da Crianca ¢ do Adolescente), uma legislagio reeonhecida até mesmo no plano internacional como extremamente avangada. 0 para- digma da protegao integral instituido pelo Estatute representa, de fato, um salto que transcende o campo legal: trata-se também de um norteador ético para uma visdo de infancia ¢ de um modelo de democraeia participa~ tiva. Para compreender a extensdo da sua proposta, é necessario, antes de fazer uma andlise objetiva do contetido dos seus 267 artigos, recanhecer a infancia ¢ a adolescéncia nao apenas como uma faixa etdria, mas como conceitos histéricos, intrinseeamente ligados 4 cultura ¢ ao modo de pensar de uma sociedade. Afinal, nem todas as sociedades entendem as criangas como sujeitos de direito, e esta compreensao ¢ fundamental para assimilar o cardter transformador da proposta de protecdo e priorizagao da infancia intrinseca ao ECA. Em outros termos, a condigio de crianca cidada, postulada pelo Estatuto, éinovadora, uma vez que reconhece, além dos direitos fundamentais, seu di- reito A voz, a opiniao, a participagdo, ao respeito, a liberdade ¢ a dignidade. Por ser inovadora, tal concepedo exige que sejam feitas transformagies na sociedade, pois a prioridade demanda prontidao, de modo que qualquer de- mora em garantir os direitos acaba sendo tratada como omissao, negligencia e, portanto, delito. A protegao expressa no EGA, associada a nogao de prioridade absoluta, coloca 0 tema crianga como urgéncia mo Ambito das politieas publicas, prin cipalmente para paises onde esta visio ¢ inovadora, Nessa medida, o ECA no contempla apenas os direitos, mas estabelece desafios sociais ¢ politicos ¢ interfere na agenda politica em todas as instancias. 1 Cenise Monte Vicente é psicéloga e mestre er Psicologia peia USP (Universidade de $a Paula), foi arofes- sora de psicolagia criminal nq USP de Ribeirdo Preto (1993-2996); secretéria de Promocaa Social da Prefe- tara Municipal de Compinas (2993-1962); conselhelra municipal de direitos da crlance (e992); coordenadora Cxeeutiva do msn Ayrton Senna (3996 1999) ¢ cansulfora © mamero da Oficina de ides (2994-2006). Desde 2000 € coordenadora de Programa Bénco na Escola. Consultara em responsabilidade social e ambien- tel. Foi presidente do Conselho Diretivo da AND! em 2005/2006. Dircitos oa INFANCIA As demarcacées sacio-historicas da infancia e adolescéncia Os conceitos “infancia” e “adolescéneia” sio construidos nas teias sociais de relagdes de parentescos. de conjuntos de significados e de valores. Se esco- Themos 0 Brasil como exemplo, nao podemos pensar na situagdo atual dai fancia sem considerar aspectos importantes da formacio do pais, em particu lar seu modelo de colonizacao ¢ 0 advento da es¢ravidao. Os estudos apontam que, até o século 19, para a crianca escrava, a infincia se prolongava apenas até os 7 ou 8 anos de idade ~ momento em que. ao menos nas classes popula- Tes, ja se via nas criangas prontiddo necessdria ao trabalho, integranda-as ao mundo adulto. A titulo de exemplo do carater histérico do conceito de infancia, no cam. po do direito, pode se retomar a questio da violéncia contra essa populagao. Pelo que s¢ tem noticia, no primeiro caso de violéncia doméstica contra uma crianca levado a julgamento nos Estados Unidos, no século 19, foi utilizada na defesa da vitima a legislacao de protegao a0s animais, ji que nfo havia uma especifica de protegao a crianga*. ‘O século das transformacoes Oséculo 20 é0 grande momento da constituigio internacional dos direitos de meninas ¢ meninos. Até em , a tradicio do patrio poder tomava o pai como uma espécie de proprietario da crianga, da mesma forma que o marido o era da esposa. Michel Foueault, na sua “Historia da Sexnalidade” discute 0 patrio poder, refazendo a trajetéria da transferéncia do poder do rei em relagao a todos os seus suditos para a familia centralizada no pai. A légica do patrio poder, que faculta tudo 4 familia, sustenta a violéncia doméstiea e, muitas ve- zes, uma condicdo preearia para as criangas. Indicando objetivamente como a correlaeiio de forgas dentro da familia é importante, o estuda “Household decisions, gender and development: a synthesis of recent research”, condu zido pelo International Food Policy Research Institute (Instituto Internacio- nal de Pesquisa sobre Politicas de Alimentacdo), apontou que se homens e mulheres tivessem a mesma influéncia na tomada de decisées domésticas, poder-se-ia reduzir em 13,4 milhoes o nimero de criangas com menos de 3 anos de idade abaixo do peso no sul da Asia. FE na Afriea, ao sul do Sara, a quantidade daqueles adequadamente nutridos aumentaria em 1,7 milhao. Ow 2 Em 1856, 0 Case Morie Anne chegou oo conhecimento pablo, quando uma menina de nove anos sofria ‘agressies, « pesteriormente descebrlu Se que ndo hovie uma legislagio espectalizada em proteger es crian- {f05, a Sociedade Pratetora dos Animais ingressou em jutto pare defender a mening. Dincitos DA INFaNcta masculina no co} tidiano Direitos na agenda Oséculo 20 mostra seo momento adequado para possibilitaras transforma. $bes indicadas pelo percurso dos mareos legais que vio sendo construidos. Em 1923, a organizacso Save the Children formutow a primeira Carta de Di eitos da Crianea, depois aprovada e assimilada pela ONU (Orgunizagio das Nacées Unidas), Em 1948, no Pés- Guerra, é assinadaa “Declaracao Universal des Direitos Humanos", documento que expressa um grande pacto mundial para se eneaminhar um projeto de humanidade, F €m1959 {oi firmadaa"De- claragio dos Direitos da Grlanga” (eia mais sobreo assunto no Capitulo 9). Contudo, uma declaragio nde é uma lei internacional, logo nao tem a exigibilidade da lei, como é Prerrogativa de uma convengio. Assim, para que a Deelaracio tivesse a valor de lei e pudesse ter sua implementacao de fato “eobrada”. a ONU levou a frente varias negociacdes até a Promulgacao da “Convencao sobre os Direitos da Crianga” Durante 30 anos, o texto da ConvencSo foi encaminhada Para os diferentes paises ~ os quais. buscando sionais. deram inicio a processos que desembocaram em miudangas legis lativas no contexto de Seus respectivos parlamenios. Dessa maneira, foram Sarantidos og encaininhamentos de deeisces & adequacdes a fim de permi Ura adesio formal 4 Convencio, No Brasil o alinhamento pra Convenedo aconteveu de forma bastante pe culiar, propiciado pela Constituigao de 1988, cujos trabalhos aconteccram sin, em 20 de novembra de 1989. A Constitninte Tecebeu, assim, a contribuicao de instituicdes e especialistas que estavam sintonizados com as diseussées inter nacionais sobre os direitos dactianga caso do Unicef (Fundo das Nagdes Uni- das para a Infincia) e de wma ¢ ie de movimentos Sociais, como ao MNMMR lescente, com absoluta Priordade, o direito & vida. a sauide. & alimenta $00, d eduenpdo, ao lazer. a Profissionalizacao, & cultura, é dignidade, ao CC f—_ ee drecros ox nviace respeito, & liberdade ¢ & convivéncia familiar e comunitdria, além de co los a salvo de toda forma de neglis violencia, crueldade ¢ opressdo. lod éneia, diseriminagao, exploraraa, O salto qualitative do ECA Oartigo mencionado anteriormente refleteo paradigma de protegic integral tal como manifesto também na Convengio. Para implementa lo no pais, contudo, faltava a lei ordinaria, legislacio especifica que regulamenta um artigo eonsti- tucional. O ECA é esta lei, promulgada a 13 de julho de 1990. Em seu texto, estao arrolados quem sao os sujeitos de deveres e como o direito se efetiva. Com o ECA, a exigibilidade foi institnida j4 que o direito ¢6 se realiza a partir do momento em que a saciedade pode cobrara observacio e ocumpri mento deseus artigos por meio de todo um itinerrio, um sistema de garantia de direitos - com procedimentos previstos ¢ instituicdes responsiveis. Des se modo, naquelas situagdes em que o direito é violado ou ameacado, as pes soag ou instituigées sabem a quem recorrer para assegura- lo. A efctivagio de direitos depende de itinerarios’ completes, capacitados ¢ articulados. Com. plementando as alteracdes legais ¢ dando realidade 4 transformacao, devem. ocorrer mudangas em um segundo eixo, o institucional. Antes do ECA, o sistema funcionava segundo uma estrutura institucional menos complexa, apoiads basicamente emum Juizado de Menores ena Funa- bem (Fundagao Nacional do Bem Estar do Menor), a qual, desde 1964, tinha a competéncia de formular ¢ implantar a Politiea Nacional do Bem Estar do Menor em toda 0 territorio brasileira. Além disso, existiam as Febems (Fun- dacdes Fstaduais do Bem. Estar do Menor), com responsabilidade de obser var a politica estabelecida nacionalmente ¢ de executar, nos Estados, as acdes a elas pertinentes. Nesse tema, a infancia pobre, desadaptada, abandona da, carente, encontrava como destino a internagao em abrigos ou a privagdo de liberdade. 0 ECA muda isso, propondo um reordenamento insti radical. Griaram se varias figuras: ¢ © Conselho Tutelar, eleito pela comunidade, ¢ uma instancia que atua no ucional el municipal com o fim de fiscalizar, exigir, responder pelas vialaches e ameagas concretas, acionando o Sistema de Garantia de Direitos; 2 O fenae itinerdrio, cat come utilicade ogui, refere-se 0 instituicdes necessdrias e complementares na aten- dimente de quatquer criana com seus afreitos arseacados au violados: CMOCAS (Coasethos Municipais de Defese des Direitos da Cridiga e do Adolescente}, conselkos tutelares, varas da inflinci, Mintstério Publica, assislentes Socials, equipes € instituicdes de soude e educarao, delegacio especiolizada bu capacitada etc. aoe DinEtTos pa Iurancia quais governo e sociedade trabalham Juntos para definir as politicas pa- 4 partir de uma ética de descentralizacdo de recur respondam is demandas ¢ aos direitos de criancas ¢ jovens. OECAsurge, portanto, no Contexto do movimento de fortalecimento demo eritico do pais. que acabara de sair do regime militar ~— ou seja, enfrentando os diversos desafios que implicam a participacdo cidada, os processus de eleicao, © 0 conceito de co-responsabilidade, todos contemplados em sua Proposta ino- vadora. Nesse sentido, o Estatuto define estruturas novas, aserem instituidas, 0 que demanda tempo para sair do papel e, de fato, se tornar realidade. Esse eixo do reordenamento ¢ bastante complexo — ele exige o apoio de leis municipais © estaduais, a definicda de espagas e de recursos, o reconhecimento dos no- Vos atores e a criacdo de Artioulaces ¢ interfaces. Sao novas instituiedes, novos Protocolos, novas dindmicas, 0 direito da criangadepende esse conjunto ede tempo. que oscila entre uma laténcia minima e uma lentidao que muitas vezes é claro indicador de injustica e violagao da lei, Orcamenta: o X da questao Ha ainda um terceiro eixo a ser focalizado 0 do financiamento. Antes de mais DIREITOS Da INFANCIA aay seguinte forma: R$ 30 s40 pagamento de empréstimos, subsidios e ajustes, R$ io vio para a Previdéncia, R$ 80 seguem destinos diversos ¢ somente R$ 10 si0 direcionados aos direitos das criancas ¢ dos adolescentes. E preciso acompa nhamento e pressdo para mudar esta composigio ¢ possibilitar uma perspectiva melhor para 083 milhées de eriangas que mascema cada ano no Brasil, dos quais cerca de dois tergos em potencial situagio de exclusao, segundo a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicilios) de 2004,, realizada pelo IBGE (Insti tuto Brasileiro de Geografia ¢ Estatistica). Mais de um sexto dessas criancas nio so soquer registradas no seu primeiro ano de vida, de acordo com as Esta- tisticas do Registro Civil (IBGE, 2004). Neste eixo do financiamento, contudo, o ECA tras também uma novidade: acriagao do FIA (Fundo da Infancia ¢ da Adolescéncia), mecanismo pelo qual qualquer pessoa ou empresa pode destinar uma porcentagem do seu Imposto de Renda devido a um fundo de sua escolha — municipal, estadual ow nacio- nal. A instituieao do FIA aproxima o cidadao do mundo das finaneas pitblicas por meie da destinagiio do imposto obrigatério — , logo, trata-se de uma oportunidade de expressar compromisso com a infancia, de dialogar com os conselhos ¢ participar da priorizagao, prevista no Artigo 227 da Constituicao, em termes dos recursos disponibilizados. Vertentes miltiplas na garantia dos direitos Os trés eixos meneionados ao longo do presente artigo — o da legislagdo, o do rear denamento institucional e o do financiamento~ esto sujcitos A politica, a presstio de interesses divergentes, aos conflitos entre o paradigma antigo ¢ onovo. Hadese terem conta também que o ECA, como trabalha com direitos fundamentais, suscita reformas na edueagdo, na saiide, na assisténcia social, na politica de atencdo a fa milia ete. A Loas (Lei Organica da Assisténcia Social) éum bom exemplo de como. reordenamento transcende a legislagiio especifica, pois abarca otema ¢ os dircitos das familias mais vulneraveis (leia mais sobre politicas pablicassociais no Capitulo 1), Para exemplificar: um direito novo, previsto no ECA, ¢ o da crianca per manecer com sua familia — ou seja, ter sua convivéncia familiar preservada + mesmo em situag’o de pobreza. Anteriormente, as familias em situago precaria, de pobreza extrema, perdiam o direito de ficar com seus filhos, que jam para os abrigos e para a adogo. Segundo o “Levantamento Nacional dos Abrigos para Criancas ¢ Adalescentes da Rede SAC” (Ipea, 2008), a pobreza ainda hoje ¢ o motive mais comum para o abrigamento: 24.1%, ou seja, qua~

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