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24 aLcey Platao (séculos v-tv a.C.). Com esse fragmento, portanto, fica caracterizada, como noutros fragmentos de Alceu e do poeta clegiaco Tedgnis (século v1 aC), a dimensio educativa do simpésio e das relagées entre os homens adultos e os meninos. Vale lembrar que os dizeres gregos (otnos, 6 phile pai, Kal aldthea) do fragmento ressoam na expressio latina posterior, im vino veritas, * Vioho, 6 caro menino, ¢ verdade... FRAGMENTO 368 Citado em Heféstion, esse é outro fragmento provavelmente temanes- ceate de um paidikén. Nele, ¢ solicitada a presenga de Ménoo, menino elogiaito em kharienta ("gracioss") — termo que encerra a ideia da Kris, fundamentada no ideal da reciprocidade, essencial av simpésio e desejada pelo amador, A persona, decerio um homem adulto, dado o contexto em que se insere, mostra-se desejoso do menino, sem 0 qual nao pode desfrutar os prazeres do simpésio, canta clogiosamente o sedutor: * Pego-a alguém convidar 0 gracivso Ménon se de fato devo me alegrar por estar no simpésio ... Safo filha de Lesbos, c, 630-380 a.C.) SAFO, OnIGA PowTA da Grécia arcaica da qual temos um corpus preservado, viveu a maior parte de sua vida na principal eidade da ilha de Lesbos, Mi- tilene, embora tena nascido em Eresos. Seu nome figura naquele mesmo tempo e espaco ao lado do nome de Alceu, ambos de familia aristocritica. Nao sabemos se eles se conheceram, embora seja plausivel assumir que: conkeciam um a obra do outio, nao apenas por pertencerem ao mesmo segmento sécio-politico da cidade onde suas cangbes citqulavam oralmente, mas porque Alceu se vale de vima éstrutura méfrica, a chamada “estrofe sifica®, que leva o nome’da poeta em que ocorre pela primeira ver. Nao encontramos no corpus xemanescente da mélica de Safo, todavia, 0 uso da “estrofe alcaica’, estrutura catacteristica da poética de seu conternpordneo. AS composigies de Safo foram objeto de performances para audiéncias em Mitilene, como é préprio da poesia arcaica e classica, mas as condigces especificas de tais performances escapam-nos largamente, f bem marcada ‘nos fragmentos de suas cangSes, nos quais s40 muitos os nomes femininos, aideia de ura grupo que inclui a persona, grupo este que esté no centro das inais diversas leituras, das mais distintas hip6teses, Mencciono apenas duas das mais conhecidas. Pensou-se, como Gentili (1990, pp. 72-104), que 0 grupo seria um thiasos, ou seja, um circulo cultual de meninas liderado pela poeta tornada sacerdatisa de Afrodite, deusa 4 qual o grupo se dedicaria; ‘mas nio hd paralelos para essa leitura, que se vale de probblemiticos testermu- snhos antigos e da leitura biografizante dos fragmentos de Safo. Pensou-se ainda na hetairefa ferninina — jamais documentada em parte algumia da ayeaica @ cl4ccica —. nor espelhamento 4 masculina. de aue falei tebe 96 SAFO. ‘no comentirio a Alceu — esta,a masculina, muito bem documentada em fontes de varios tipos, consistindo sempre em espécie de confraria deamigos ¢ aliados politicos, todos aristocratas de faixa etiria equivalente na idade adulta, que se reunia nos simpésios. Satisfazendo-se, contudo, com o jogo de espelhios, Parker (1996, pp. 146-83) defendeu o argumento de que Safo liderava uma hetaiveia feminina e que os nomeés femininos de sua poesia ‘sio de mulheres adultas como ela’ Além do problema do espelhamento; contudo, 0 argumento no encontra amparo no vocubulétio séfico, eit que prevalecem termos gregos (kérai, parthénoi, patdes)’ que implicam, necessariamente, meninas, mogas jovenss, virgens, que nao participam da esfera do sexo — participagio esta que define a idade adulta, a condicao de} mulher. Noutras palavras, indicadas por tais termos ou individualizadas em. seus nomes ~ pelos festemunhos antigos que os comentani tratados como notes de meninas --, mogas, ¢1id0 mulheres, “s4o, em toda prababilidade, © assunto da maior parte.da poesia de Safo” (Lardinois, 1994, p. 70). A ‘questio é saber qual a relagio entve elas € a poeta: “GO minimo que pode: mos assumir € que elt compés cangoes para performances feitas por essas meainas, como os epitakimios, o hino a Adonis [Et. 140] ¢ 0 Fr. 58” Gd. ib.), hoje reeditado como a “Cangao sobre a velhice”. Essa imagein, cabe-notar,” ielativiza 0 peso da carigio monédica em Safo, a propor que a poeta era lider de um coro de mentinas;algo que Ferrari (2010) valoriza. Quanto & questio polémica da dimenséo erdtica da meélica séfica pen- sada nesse cenério, vale lembrar que, na era arcaica, “o -comipasitor de canges corais era também sesponsavel pelo treinamento ¢, muito frequente-\” ‘menie, pelo acompanhamento do coro nas performances” (Lardinois, 1994," Pp. 79-80); Safo poile ter tido-essa fungio e. desempenhado esse papel, bem como o da orlentagéo do desabrochar da feminilidade das meninas, futuras espoisas, como no caso de Aleman em. seus parténios (Frs. 1 € 3}. a partir-da argumentago amparada nos textos, esta ideia qué sintetiza fio inicio de seu estudo Gd, pp. 12-4, 33-7): © grupo de Safo é uit.” dos bem documentades grupos de meninas aristocraticas, formados para” treinamento coral e educagao feminina, inclusive de conscientizacao da sexualidade das virgens (futuras esposas), 0 que explicaria o erotismo tao. * Ver: além da “Cangio sobre a vehi’ de Safe seguintesfragmentos: 1730, 49.56, “6B. 04, 122, sans, 193. PORTAS DA VIRADA DOS SECULOS VU-VI A.C. oF presente nas cangSes; tais grupos eram liderados por uma khorodiddskalos (mesiza do coro), papel que Safo teria, portanto, desempenhado; ¢ tal grupo tevia. executado performances de. cangdes corais. ¢ cangdes solo — estas cutoadas pela prépria Safo ow por urna lider —, composigdes “que tinham ‘um propésite publico, festivo” (id., p. 13), mesmo aquelas que projetam uma ‘you poética de marcada subjetividade, como o Fe. ‘A hipétese me parece bem delenilida e sustentaila em bons elementos; mas dai a dizer que a respdsta que buscamos vai alguma, se ndo grande, distancia, Continuamos, pois, incertos quanto a performance original de boa parte da mélica silica.. De qualquer modo, a fama de que breve se nnutriram suas cangées — seguramente herdeiras, como as canges de Alceu, de uma rica ebem reputada tradicfo local, na qual se inserem figuras mais nebulosas; como ‘Terpandro (séculos vini—vit a.C.) ¢ Arion (séculos it~ vi aC.) .ultrapassou largamente as fronteiras de Milflene, . Mostra isso © volume bastante expressivo e heterogéneo de testemunhos sobre Safo, que, inseridos na tradigéo ficcionalizante do género discursive biogrifico na Antiguidade, foram criados a partir de seus poemas e, em circularidade vviciosa, foram usados para compreendé-los e comenti-los, Contradit6rios, anedéticos, extremados, flutuantes, movidos pelo esforgo vio de recuperar © que jd para 08 antigos estava perdido — 0 conhedimento da vida de Safo ¢ de sua formacio-e atividades em Lesbos. —, esses testemunhos 86 fazem aumentar a gistincia entre. poeta-e cangées.. Ena tecepgio critica ¢ literirig modersa, contribuiram-para consolidar a intricada trama de natrativas sobre Safo, que revelam tendéncias eriticas ¢ ideolgicas variadas. Destaca-se nessa trama a imagem de Sifo Wésbica, © adjetivo entendido como «eferente 20 hofnossexnalismo feminino,,na leitura modernizante do exotismo da meélica sifica; cujo.universs 6, como Ja disse, essencial- mente feminino, Dos graves problemas suscitados por essa imagem; para além da propria inadequacto de pensar a sexualidade no mundo-antigo coma pensamos modernamente, traiei detalhadamente nouttos trabalhios (Ragusa 2005, pp. 55-78: 200, p. 36); basta aqui lembrar, brevemente: @ exiguidade de fontes sobre ohomossexualismo entre mulheres; a ignoréucia sobre 6 contexto da ilha de Lesbos no que tange &-vida cotidiana feminina e sobre a pripria Safo: a separagio quase completa entre os universos de omens ¢ mulheres, o que explica a concentragio da poeta em seu proprio _universo ao cantata tematica erdtica; 0 fato de que o anedotirio ea tradicior bioerdfica ficcionalizante antigos, refletindo a percepcdo da intensidade do. 98 erotisme de sua mics, retratavam Salo como promiscua; mas em registro: 4 heterossexual o fato de que, decerto refletindo essa. mesma percepgio,.a 4 comédia de Aristéfanes na Atenas do século va.C, denominara a pritica das felacao por verbo (Iesbidzein e siriOnimos} que remete & ilha de Safos 0 uso.“ da imagem da “moga-de Lesbos’, da “lésbia’, em contextos heteroerdticos: / ‘em Anacreonte (Fr. 358) € mesmo tardiamente, em Catulo (século 1.€);0 fato de que 0 adjetive “lésbica” ¢ o substantivo “lesbianismo” registram-sé pela primeira vez em lingua inglesa, no século xix, como relativos a6. homossexualismo feminino ¢.a Lesbos/Safo. Concentremo-nos, pois, nas cangdes de Safo, e deixemos de lado as: miiltiplis imagens da pocta, construidas em sua recep¢ao. ‘Com apenas tim poema integralmente preservado — mas nao integral: 4g mente legivel, 0 Fr. 1 ou “Hino a Afrodite” —, a maioria dos tragmentog de Safo & considerada remanescenté de cangées solo, e a minoria, de corals;. | algo que atualmente tem sido muito debatido; eha.ainda de mélica narrath epicizante (Fr, 44). Come ocasiao de performance, pensa-se, em principie,: znas mais piblicas do que privadas para as cangdes coraise nas mais privadas. 4 do que publicas para as cangées solo, Mas se o simpdsio certamente foi’ essencial na circulagio da mélica sifica, em reperformances, & objeto de debate inténso a questio da performance original das cangoes tomadas por: monddicas, em virtude da tematica erdtico-emorosa, da autonomeagiio da persona como “Safo’.da proeminéncia da 1 pessoa do singular — embora’ 4 saras vezes identificdvel em qualquer nivel além deste —, do carter apa~'! rentemente.intimista — se posso assim falar — dos textos, das numerosas figuras femininas contempladas eroticamente, No tragado de-amplas pinceladas que este comentario pode sintetizar eis algumas caracteristicas da mélica séfica ~ de sua forma,-contetido, lin; ‘ghagem, personagens --, apreendidas da leitura do conjunte de fragmentos, aqui traduzidos. : ‘Nenhuma outra deidade aparece nas cangies de Safo com a mesma frequéncia, nem do mesmo modo, que Afrodite, Esse fato se coaduna bem coma énfase na pabxio erética, na beleza e no universo feminino, inescar pavels ao leitor da poeta de Lesbos. Hé, portanto, estreita afinidade entre.’ 0 fazer postico de Safo ea imagem de Aftodite, que-se araduz. em notivel e inigualavel cumplicidade entre a deusa dileta e a voz postica dos versos, como mostra varios fragmentos, entre os quais, os dois-primeiros (Frs. 1 e2) desta antologia. Em cada um deles, ademais, acham-se caracteristicas “ POETAS DA VIRADA DOS SECULOS VII-VI A.C. 99 relevantes do tratamento do tema da paixio, da linguagem erotizante. Por exemplo, no caso do Fr. 1, a ideia de que a paixio & doenga da mente e do corpo (1 estrofe) temn no Fr. 31 sen ponto culrminante, mas igualmente ressoa 1nos Fs. 47, 96, 130, entre outros tantos. Eno caso do Fr. 2,0 uso da natureza come base de construgio metaférica do erotisino € do mundo ferninino de Afrodite, algo qué ecoa nos Frs. 94, 96, bem como da ago de Eros, o deus, como se vé no Br. 47. ‘Merece destaque ainda no Fr. 1a dimensio da meméria, trazida quase sempre ao presente da cangiio, e mais raramente articulada ao futuro, como, no caso do Fr, 55, em que s¢ liga & questo da imortalidade conferida pela poesia, ssa meméria abarca o mundo mitico ¢ o das experiéneias vivenciadas pelos mortais; esses mundos por ve7es se articulam, como no ‘caso do Fr, 16 ¢ da “Cangdo sobre a velhice’, a diferenga do que se passa xno Fr, 44, cujo tema 6 tid-somente mitico — as bodas do principe trotano Heitor 6 de Andrémaca, No caso dos Fr. 16 ¢ 98, cabe por fim ressaltar @ atengdo aos adornos femininos, & tuminosidade da beleza feminina e aos gestos que projetam a feminilidade. ‘©. grupo dos fragmentos 102 a 140, nalmente, tem como ponto de interesse a nitida teverberaggo das origens populares'da mélica, ou seja, desse ato natural ao homem que é calntar. O 102 liga-se.a tridigo do canto das dores de amores pela jovem, em queixa mie; além disso, raza tona um dos contextos motivadores da cangio popular e cendtio de sua circutacio: © universo do trabalho; que, em Safo, dadas as personagens femininas, & 0 do tecer. Os Frs. 105, 110, 111, 114, por sua vez, so remanescentes de epitalaumios ou himeneus — ambos os termos entendidos largamente como “cangées de casamento’, celebradas pelas comunidades em estagios vatiados da cerim6nia nupeial, os quais contudo néo podemos precisar em bases sélidas. Neles, a linguagem da natureza articula-se ao universo feminino em transigio da virgem que e vai tornando, no processo das festividades, a mulher adulta, E tem lugac em seus versos uma jocosidade inegavelmente popular, que nao se acha nouteos textos da mélica séfica, mesmo quando a cangio envereda pela dimenséo do elogio da beleza, caracteristica forte em Safo, 0 Fx. 140. enfin, liga-se aos rituals fiinebres, trazendo & tona ¢ em bela formulacio postica um didlogo entre vores que, seguramente num palco € ee de ota, nanta —'@ vaancena — lim episddio mifico no presente 00 SAFO da perforniance,-a morte dé Adénis, paixio de Afrodite. A leitura desse fragmento, bem: como dos epitalimios, é iidicativa de quio inadequado é assamir que Safo e a persona sio plenamente identificaveis uma a outras isso porcuie nesses fragmentos se-evidencia via dimensio coral ¢ publica, distinta da aparente intimidade que emanaria de otras cancées. FRAGMENTO 1 Conbecido como “Hino a Afrodite’, esse fragmento — 0 tinico texto integralmente preservado, exceto pela lacuna no inicio do verso 19 — tem diversas fontes, mas a principal é tratado Sobre 0 arranjo das palavras; em que.a.cancao é citada na integra por Dionisio de Halicarnasso (rétorico, século 1 a.C.)yalgo raro nessaé fontes de transmissio indireta, A cangio é formalmente um hino clético, como o Fr. 34 de Alceu. No. hino de Safo, distinguem-se trés etapas tradicionais na formulagao de preces: identificagio da deidade (versos 1-2), que'se justifica no sistema politefsta: sgrego; lembranga de elos. previamente firmados algo que se repete na siataxe das formas verbais dos.pedidos todos da prece —; a suplicante implora a Atrodite que-néo a dome a sew poder, coni instrumentos habitnais da.patologia amorosa, que comprometem o equilibrio mental (“angistias’ dsaisi efisico (“nduscas’, oifaisi). Bis aqui a visto poética recorrente de éros como mal que. assola corpo © metite, que Safo elabora diversas veres em sua mélica € em, sintese irretocavél no Fr. 3i. ‘© modo como Afrodite é inicialmente invocada tia prece merece aten- lo: dois epitetos ressaltam,o status olimpico da deusa (‘imortal’, verso 15 “filha de Zeas’, verso 2), © dois-outros, sua beleza; sua volubilidade seu cardter ardiloso: “De fired manto furta-cor’ verso 1.“tecela-de ards’ verso 2— respectivainente, Poikiléthron’ & doléploke. -sses dois epitetos compostos langam:a sedugio.rética.e a deidade quéva rege no ambito do-movediga, do oblique, do camblatite’ —-poildlos significa *vartegado, inttincado, cambiante, furta-cor”; déles, “engano, ardil’, Mais:.0. manto floral (thréna),confere feininilidade & densa; ¢ o trabalho de fiar trammas — de tecidos ou de engenos — ¢ por exceléncia feiminino:na Grécia antiga, celebrizado nas imagens de sedutoras e perigosas tecelds, como Helena; na Itada (canto 11, versos 125-128),.e, 08 Odisseia, a ninfa Calipso (canto ¥, versos 61-62) ea feiticeita Circe (canto x, versos 220-224), e nat imagem da esposa fiel, porém astuta; Penélope (Odissefa, cantos is, versos 93-1305 XIX, 136-156; Xx1y, 229-148). Ao longo da cangio, utros epitetos sio atribuidos a Afrodite, todos marcando seti satus divino & olimpico — todo’, exceto 0 iltimo epiteto, ‘que no verso 28° peniiltima palavia do texto grego, &'qual ée segue apenas o imperative éso ("88"): syimmakhos.(“aliada de utas”), em tinica ocorréncia na poesia grega antiga (Campbell, 1998, p. 266), que combina as, ideias de alianga e combate, guerra (rdkhe), e-estabelece a rélagdo entre a arena da seduyao @ a arena da tuta armada. Tssa relagdo se firma no Listonia Some ened mange’) cue é& amositive, mas’

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