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TROPICALIA: OBJETIVACAO DE UMA IMAGEM BRASILEIRA Celso Favaretto PER IEO CIC C COR ero en rer cut ea eMC Tau ue’ Dee Cte eae Mcttee eure terete et Poe tes eestor eum eee emu ees Reeiee tee Manet Eee ecient C ears Pere cecnet Meee omn cet met eet) Prenat M mite ere reece roa cece eae eucee sures oe mer uert ice das coma emergéncia do parangolé; outra, de critica da cultura, efetuada Pome Re Cert oe ieccest at cess enc teérico-critico cuja singularidade e eficdcia se distinguiram sobremaneira Pre eseee eect eres rece Caner cnet da modernidade no Brasil. ser eRe Came OR Wire Lect ewe Mc) Prec eeeteet tier tee Cane atte ree Cee Ct en tec ee etna rent PC een reece eer tea Cee niet it CMC et eerie terete ater tem ser Oe ier Ok acre rr Pee eeu netecn tet Conn scat Betee ener ce eices Tropicdlia apareceu com destaque em um momento em que uma ampla circulagao de ideias e realizagées artisticas de vanguarda processavam uma rearticulacao da reflexdo e praticas politicas depois de 64. Na mos- tra “Nova objetividade brasileira”, em 1967, cujo texto base é de Citicica, a manifestaco ambiental se situou com destaque ao lado de uma ampla e variada produc&o de vanguarda. 0 trabalho de Oiticica foi sempre con- textualizado: quer dizer, diante das transformagées nas experimentacées artisticas contemporaneas disparadas pela “morte da arte”, pela abertura das circunscrig6es tradicionais do trabalho artistico, tanto da atividade dos artistas como da vida histérica das artes, das circunscrigdes institucionais, a sua obra sempre esteve relacionada a situacées de arte e de cultura. Entenda-se: arte de intervencao, arte participativa, arte urbana, etc., das décadas de 1960 e 1970 ou atuais, sempre implicaram e ainda implicam as circunstancias que envolvem as acées, pondo em relacdo a obrae a realidade, a situagdo e os acontecimentos. Naquele tempo das promessas, tratava-se de propor a arte como moda- lidade de intervenco na realidade como um todo, especificada em alguns de seus aspectos ~ no sistema de producio cultural e de comunicacao, como nas praticas tropicalistas, por exemplo. Tratava-se de fazer a critica dos lugares institucionalizados de evidenciacao e de circulagao da arte. Uma arte da aco, de convite, exigéncia ou imposigao de participacao, que seria irrecuperavel pelo principio da representacao, concebia experiéncias, que implicavam o coletivo, no modo de se apresentar e na significagao, visando quase sempre a uma eficdcia, seno imediata, simbélica. Essas experiéncias configuravam novos modos de sentir, de relacionar-se, de agir socialmente, com que pretendiam induzir novas formas de subjetividade politica, pelo entendimento que faziam da fusao da arte com a vida no tempo das ilusdes revolucionarias, das mudangas dos comportamentos, das promessas de emancipacao. Assim, a Tropicdlia de Hélio Oiticica 6 uma proposicao artistica situ- ada no cerne dessa discussio artistica e das reflexdes estéticas daquele tempo, em todo lugar mas com referéncia especifica ao que ele dominava vanguarda brasileira e ao mesmo tempo elaboracao de uma posigao critica sobre os discursos ético-estéticos correntes que vinham se formulando desde 0 modernismo, centrados na constituicéo de imagens de Brasil; mais proximamente, focalizavam as relacdes entre arte e sociedade, te- matizadas pelo menos desde meados dos anos de 1950. Tropicdlia é tam- bém uma singular experiéncia de pensamento na arte; ou, parafraseando Mario Pedrosa, “um exercicio experimental do pensamento” na arte, em que os efeitos da invengdo de conceitos e producao de sentido, so con- tingentes, autorrefenciais, implicando uma nomeagao toda original que 164 aparece por pura necessidade dos seus desenvolvimentos & medida que © trabalho exigia. Oiticica é um desses pensadores que avangam sempre; desde 0 inicio, quando dispara o seu programa com o parangolé, a pulsao que conduz os seus desenvolvimentos é sempre de avanco, sem titubear. Propondo, inventando proposicées, 0 pensamento de Oiticica se desen- volveu aparentemente em linha reta, na verdade afirmando o devir como movimento da obra. O seu programa in progress definiu uma posicao propriamente estética e uma pratica artistica que, enquanto criticava as idealizacdes que ainda recobriam 0 dominio artistico e o cultural, abria uma pletora de interven- des singularizadas que destoavam da mesmice e do conformismo artistico, cultural e politico que dava a tnica ao que denominou a diarreia brasileira. A critica & concepcao imperante de obra, & mistificagao do artista e ao sistema da arte, enfim, a descentralizagdo da arte, “pelo deslocamento do que se designa como arte, do campo intelectual racional para o da propo- sig&o criativa vivencial”,’ levou-o, através de proposigdes em sequéncia, & passagem da posicaio “de querer criar um mundo estético, mundo-arte, superposicao de uma estrutura sobre o cotidiano, para descobrir os ele- mentos desse cotidiano, do comportamento humano, e transforma-lo por suas préprias leis, com proposicées abertas, no condicionadas, unico meio possivel como ponto de partida para isso”. E ainda: Esta claro que a “ideacdo” anterior substitui a “fenomenacaio” de hoje. 0 artista nao é ent&o o que declancha os tipos acabados, mesmo que al- tamente universais, mas sim propde estruturas abertas diretamente ao comportamento, inclusive propée propor, o que é mais importante como consequéncia. A obra antiga, peca nica, microcosmo, a totalidade de uma ideia-estrutura, transformou-se, com o conceito de objeto, também numa proposigo para o comportamento [...]: estruturas palpaveis exis- tem para propor, como abrigos aos significados, ndo uma “visio” para um mundo, mas a proposigao para a construcao do “seu mundo”, com os ele- mentos da sua subjetividade, que encontram ai razdes para se manifestar: so levados a isso? Contudo, a passagem do “mundo das imagens do abstrato conceitu- al” para o comportamento nao implicava para ele a simples diluigdo das estruturas - pois “o que importa, ainda, é a estrutura interna das proposi- 1 OITICICA, Hélio, Aspiro ao grande labirinto. FIGUEIREDO, Luciano; PAPE, Lygia e SALO- MAO, Waly (orgs.). Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p. 1. 165, Ges, sua objetividade"? - mas que “a preocupacao estrutural se dissolve no “desinteresse das estruturas” que se tornam receptaculos abertos as significagdes”;* a passagem da unidade da obra, da coeréncia,* a multipli- cidade das células-comportamento, a expansdo celular em que no cabem aiideia de forma e estrutura: “o passado de ‘necessidade estrutural’ cresce para o agora de ‘exist&ncia ou no’: algo espreita a possibilidade de se ma- nifestar e aguarda - ultraguarda”.° Em 1969, no momento da exposigao em Londres, na Whitechapel Experience, afirmou que tinha chegado ao limite do que vinha sendo proposto como uma nova fundacdo da arte, com o seu programa parangolé. Em carta a Lygia Clark declarou: “encerrei a minha época de fundar coisas, para entrar nessa bem mais complexa de expandir energias, como uma forma de conhecimento ‘além da arte’; expansio vital, sem preconceito ou sem querer ‘fazer histéria’, etc.”’ Vem data intrigante afirmagdo, feita em 1978, de que tudo o que tinha feito antes tinha sido um preliidio ao que tinha que vir, ao que estava vindo, de modo que estava apenas comecando." Mas, a sua proposicao de antiarte ambiental - que além de conceito mobilizador para conjugar a reversao artistica, a superacao da arte, a re- nova¢ao da sensibilidade e a participacao, implicava o redimensionamento cultural dos protagonistas das acées, 0 imbricamento das dimensdes ética e estética - desde o inicio visava a liberar as atividades do ilusionismo, isto 6, ja implicava o além da arte. Como ele dizia, nao visava com a antiarte a criacdo de um “mundo estético”, pela aplicagdo de novas estruturas ar- tisticas ao cotidiano; nem simplesmente diluir as estruturas no cotidiano, mas, acima de tudo, transformar os participantes “proporcionando-lhes proposigdes abertas ao seu exercicio imaginativo”, de modo a torna-lo “objetivo em seu comportamento ético-social”.® Tratava-se, portanto, de outra inscrigao do estético: o artista como motivador da criacao; a arte como intervengao cultural. 0 imaginario que conduzia o experimental de 3 OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto, FIGUEIREDO, Luciano: PAPE. Lygia e SA- LOMAO, Waly (orgs.). Op. cit., p. 103 4 Idib, pong OITICICA, Hélio. 0 q faco é misica. In: OITICICA FILHO, César (org.). Museu é 0 mundo. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011, p. 180. 6 Idib..p.n7. 7 Carta de 23/12/69. In: FIGUEIREDO, Luciano (org.). Lygia Clark-Hélio Oiticica: cartas, 1964-74. Rio de Janeiro: UFRJ, 1998. 8 Cf. texto em Daisy Peccinini (org.). Objeto na arte: Brasil anos 60. Séo Paulo: FAAP, 1978, p. 190. 9 OMICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Op. cit.. p.77. 166 Citicica é aquele que se interessa pela fungdo simbélica das atividades - 0 que implica a suplantacao da imaginagao pessoal em favor de um imagi- nativo coletivo - e nao pelos simbolismos da arte. 0 requisito para que isso se cumpra é que as atividades, as ages, devem supor uma adequada perspectiva critica para a identificagao das praticas culturais com efetivo poder de transgressao - 0 que, por sua vez, provém da confrontacao dos participantes com as situacées. Nessa direco, Citicica se situou de modo especifico nos debates que efetuavam a radicalizacao do social e do politico nas artes do CPC aos tropicalistas sé para se ter uma ideia do que é preciso pensar quanto as variadas estratégias que provinham da intersegio do estético com o politico, basta relembrar produgdes mais significativas que apareceram no incrivel ano de 1967: Terra em transe de Glauber Rocha, a encenagao de O rei da vela pelo Teatro Oficina de José Celso, de Arena conta Tiradentes no Teatro de Arena de Augusto Boal, o Tropicalismo do grupo baiano, a exposicao “Nova objetividade brasileira’, os livros Panamérica de José Agrippino de Paula, Quarup de Anténio Callado, Pessach: a travessia de Carlos Heitor Cony. Nessas obras, desdobravam-se proposigdes que articulavam, em suas particularidades, os signos que vinham se disseminando nas temati- zacdes que fixavam perspectivas emblematicas para fazer face & situacdo complexa e tensa em que se compunham a resisténcia aos célculos do regime militar, o resgate das culturas populares, a assimilacdio de todo tipo de modelos e processos da industria cultural, cujo desenvolvimento disparava, com penetracdo nunca vista no pais em todas as camadas so- ciais, manifestando poder e informacdo e simultaneamente de diluicao e mistura de referéncias culturais fixadas e de técnicas modernizadoras com que se respondia ao desejo crescente de superagao ou apagamento das marcas do subdesenvolvimento. Dentre as proposicdes que mais exploraram a convivéncia dos elementos culturais e artisticos disparatados, sem diivida foi a atividade tropicalista a que mais eficientemente propés uma via que tinha a ver com o desejo de modernizacdo, com a realizaco do imperativo moderno, de realizar a condenacaio ao moderno, de tratar a desigualdade, a dependéncia, os desajustes, as contradigdes de um modo cuja criticidade alterava os termos em que estavam postas as discussdes desde os anos 50, reativando e re- pensando indicacdes da antropofagia oswaldiana. Daf o interesse imediato que despertou em Oiticica, especialmente pelo “jogo coma ambivaléncia” que se articulava em suas composicées e atitudes. As estratégias visando a compor um trabalho de inovagao artistica e de resisténcia & ditadura eram marcadas pela ambivaléncia, proveniente da articulagdo por justaposigao de materiais de proveniéncia diversas, 167 sincréticos, mobilizando nas composig6es uma atitude de fuga das pola- rizagées, estéticas e ideoldgicas para enfrentar as indeterminagdes do que Hélio Oiticica chamou de “brasil diarreia”, e Décio Pignatari e depois Gil e Torquato, “geleia geral brasileira’. A rememoracdo dessa atitude critica produzida nas cangées e outras ac6es tropicalistas e o procedimento critico que faz da ambivaléncia uma técnica estético-politica esto expostos de modo incisivo em alguns textos de Hélio Oiticica: em “A trama da terra que treme: o sentido de vanguarda do grupo baiano” (1968), “Brasil Diarreia” (1970) e “Experimentar o experimental” (1972). “€ preciso entender que uma posigao critica implica inevitaveis ambiva- léncias”, pois “pensar em termos absolutos é cair em erro constantemente ~ envelhecer fatalmente: conduzir-se a uma posi¢&o conservadora (con- formismos; paternalismos, etc.); 0 que no significa que nao se deva optar com firmeza: a dificuldade de uma opgao forte ¢ sempre a de assumir as ambivaléncias e destrinchar pedaco por pedago cada problema” [...] “en- tender e assumir todo esse fenémeno, que nada deva excluir dessa “pos- ta em questo": a multivaléncia dos elementos “culturais” imediatos [...] reconhecer que para se superar uma condic&o provinciana estagnatéria, esses termos devem ser colocados universalmente, isto é, devem propor questées essenciais ao fenémeno construtivo do Brasil como um todo, no mundo [...] Nossos movimentos positivos parecem definir-se como, para que se construam, uma cultura de exportagdo: anular a condicao colo- nialista ¢ assumir e deglutir os valores positives dados por essa condi- co € no evitd-los como se fossem uma miragem [...] assumir € deglutir a superficialidade e a mobilidade dessa “cultura”, é dar um passo bem grande - construir ~ ao contrario de uma posico conformista, que se ba- seie sempre em valores gerais absolutos: essa posic&o construtiva surge de uma ambivaléncia critica [...] A formagao brasileira [...] é de falta de cardter incrivel: diarreica; quem quiser construir [...] tem que ver isso e dissecar as tripas dessa diarreia - mergulhar na merda [...] a condicao brasileira, mais do que simplesmente marginal dentro do mundo, é sub- terranea, isto ¢, tende e deve erguer-se como algo especifico ainda em formagao [...]: assume toda a condicdo de subdesenvolvimento, mas nao como uma “conservacao desse subdesenvolvimento”, e sim como uma, “consciéncia para vencer a super paranoia, repressao, impoténcia...” bra- sileiras; 0 que mais dilui hoje no contexto brasileiro é justamente essa fal- ta de coeréncia critica que gera a tal convi-conivéncia; a reacao cultural, que tende a estagnar e se tornar oficial. 10 OIICICA, Hélio. “Brasil diarreia". In: GULLAR, Ferreira. Arte brasileira hoje. Rio de Ja- neiro: Paz e terra, 1973, p. 150-151. 168 Essa “posico critica” é estendida em “Experimentar o experimental”, ao explicitar a relagao entre atividades criticas de vanguarda e o consumo: “o experimental assume o consumo sem ser consumismo”, pois para ele “fugir ao consumo” nao é “uma posig&o objetiva [...] mais certo é sem duvida consumir 0 consumo como parte dessa linguagem”." Proposico polémi- ca, que esteve na base das criticas mais acerbas feitas aos tropicalistas. © acento na ambivaléncia como modalidade critica visava a dar conta do procedimento de justaposicao dos materiais arcaicos e modernos, cultos € populares, experimentais e da cultura de massa, constantes da experiéncia brasileira que, por efeitos de humor, parédia e alegorizacdo, sao desloca- dos, assim criticados. A frase de Oiticica, em sua concisa concentragao conceitual, indicava a relagdo tensa entre vanguarda e comunica¢io, vanguarda e mercado, néo uma composicao oportunista e conformista, como o acentuado em algumas criticas. Tratava-se de um descentramento das questes em debate nas atividades artisticas e criticas, fazendo uma reavaliagdo dos fracassos ou das inadequages dos projetos e estratégias culturais que visavam a politizacdo das aces. Uma reavaliagio dos efeitos e eficacia politica dessas agdes implicava inevitavelmente o questionamento dos modos de expressao artistica e do papel sdcio-historico da arte. Da maior importancia foi a atitude de deslocar os modos vigentes de interesse pelo coletivo, de expresso do inconformismo social na experimentagao artistica, pelo ultrapassamento do mero interesse pelas mitologias, valores e formas de expressio das experiéncias populares. O interesse de Oiticica por praticas populares nao implicava recurso a valorizacdo, dada naquele momento, a cultura popular com énfase na mitologizagao das raizes populares. Mas o destaque dado & Mangueira, ao samba, a construtividade popular deriva da sua concepcao de antiarte ambiental; da sua experiéncia da marginalidade. Mantendo-se afastado dos projetos culturais que figuravam o conceito compésito de “realidade nacional”, tomado como um dado, como etapa da aco politica que reagia & dominago do imperialismo e do regime militar, Citicica respondeu a sua maneira aos apelos dessa posicao. A sua marginalidade foi vivida, pois é © ponto em que se desfaz a contradigao do inconformismo estético e do inconformismo social. Para ele, a arte tem sempre fungao politica, con- tanto que isso ndo seja um “alvo especial”, mas sim “um elemento”, pois, “se a atividade é nao repressiva sera politica automaticamente”.” Arte e politica sao praticas convergentes, mas que ndo se confundem, sob pena de se promover a estetizagio da politica. 11 OITICICA, Hélio, “Experimentar o experimental”, In: TORQUATO NETO e SALOMAO, Waly (orgs.). Navilouca. Rio de Janeiro: Gernasa, 1974, p. 6. 12. Entrevista. AYALA, Walmir. A criagdo plastica em questéo. Petropolis: Vozes, 1970, p. 166. 169 Na Tropicdlia, a “objetivacdo de uma imagem brasileira” ndo se faz pela figuracao de uma realidade como totalidade sem fissuras, mas pela devoragao das imagens conflitantes que encenam uma cultura brasileira. Essa devoracdo se atribui aos participantes: apropriando-se dos elementos disparatados, justapostos, que formam uma “sintese imagética” - na ver- dade uma mistura de imagens, linguagens e referéncias -, os participantes agem nesse sistema conjuntivo e ambivalente, produzindo a evidenciagao do processo de constituigdo das contradigées enunciadas. 0 objetivo é provocar a explosio do dbvio por efeito da participacdo, com que tudo 0 que é traco cultural é ressignificado; alheia ao exclusivismo da experi- mentagao ou da expresso de contetidos do nacional-popular, Tropicdlia conjuga experimentalismo e critica, de modo que as imagens “nao podem ser consumidas, nao podem ser apropriadas, diluidas ou usadas para intencdes comerciais ou chauvinistas”." Ou seja: a Tropicdlia define uma linguagem de resisténcia & diluic&o: assumir uma posigdo critica, diz Oiti- cica, é enfrentar a “convi-conivéncia”, essa doenga tipicamente brasileira, misto de conservacio, diluicao e culpabilidade, que concentra os “habitos inerentes & sociedade brasileira”: cinismo, hipocrisia e ignorancia’. Essa “posicao critica universal permanente”, patente no que denominou “o ex- perimental’, possibilitou-the interferir na vanguarda brasileira, enquanto nela encontrou condicées para desenvolver projetos coletivos implicitos em seu programa-Parangolé. O alcance critico que Oiticica atribui & sua posic&o provém da atitude de desestabilizacdio do experimentalismo e das interpretacées culturais hegeménicas. Ao insistir na “urgéncia da colocacao de valores num con- texto universal”, para “superar uma condi¢&o provinciana estagnatéria”, rompe com os debates que monopolizavam as praticas artisticas e cultu- rais, radicalizando-os. Com Tropicdilia, o projeto e a teorizacio, Oiticica, juntamente com as demais producées identificadas como “tropicalistas”, evidenciou o conflito das interpretagdes do Brasil sem apresentar um pro- jeto definido de superacao dos antagonismos. Expondo a indeterminacao da histéria e das linguagens, devorando-as, todas ressituaram os mitos da cultura urbano-industrial, misturando elementos arcaicos e modernos, explicitos ou recalcados, ressaltando os limites das polarizagbes ideolégicas no debate cultural em curso. E nessa direcdo que Oiticica destaca a importancia da producdo do Grupo Baiano, identificando-a com as propostas e com a linguagem de seu programa ambiental. Para ele, ambas articulam o experimentalismo 13. OIMTICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Op. cit., encarte. 14 OITICICA, Hélio. “Brasil diarreia”. Op. cit., p. 148-149. 170 construtivista e o comportamental; nelas a participac&o é constitutiva da produgao, ea critica, efeito da abertura estrutural. Para ele, 0 cardter re- volucionario implicito nas suas criagées e posigées se deve & nao distingao entre experimentalismo e critica da cultura; 4 auséncia de privilégios entre posi¢ées discrepantes, quando se trata de “constatar um estado geral cultural” e nele intervir; e, finalmente, & nao distingdo entre a repressdo da ditadura e a setores da critica e do pubblico de esquerda." Oiticica identifica nos masicos a mesma ténica de suas manifestagdes ambientais: a renovagao de comportamentos, de critérios de juizo ea eficacia critica passam pelo modo de produgao, em que se aliam conceitualismo, construtividade e vivéncia. Ambas as produgées originam conjuntos hete- réclitos, em que processos artisticos e culturais diversos s4o justapostos e, efeito da devoragao, reduzidos a signos que agenciam ambivaléncia critica e exploram a indeterminagdo do sentido, propondo-se, assim, como aces que exigem dos participantes a produciio de significado. Ambas fazem parte do projeto critico que assume a ambivaléncia como modo de significar a diarreia brasileira. Os tropicalistas, ele diz, “modificam estruturas, criam novas estruturas”. Um simples cotejo entre a estrutura das duas tropica- lias, o labirinto de Oiticica e a cangao de mesmo nome de Caetano Veloso, evidencia o cardter ambiental e o construtivismo que thes 6 comum, ou seja, a coincidéncia dos modos de operar o experimentalismo conjugado A critica cultural. A convergéncia dessas produgées pode ser assinalada, por exemplo, na mudanca radical da recepgao: a transformacao do ouvin- te e do espectador em protagonistas de ages, que tanto se referem as intervengdes implicitas na prépria estrutura das obras-acontecimentos, quanto as alusdes a outros modos de categorizar e contextualizar as aces. © jogo com a ambivaléncia difere de outros procedimentos criticos surgidos naquele momento que, incidindo sobre a ambiguidade das pra- ticas artisticas de vanguarda, entendiam que o tropicalismo positivava uma combinacdo entre progresso técnico, experimentalismo de vanguar- da e imobilismo social e politico dada a sua pratica de tomar o mercado como integrante do processo de produgdo. Como se sabe, os tropicalistas no elidiam essa discusso, tanto no implicito das cangdes como nas declaragées e atitudes; acima de tudo na materialidade da linguagem, do proceso construtivo. A colocacao do aspecto estético e do aspecto mercadoria no mesmo plano, essa ambivaléncia, fazia parte da estratégia que problematizava o sistema da arte. Essa estratégia substitufa as formas 15 Cf. “Atrama da terra que treme - 0 sentido de vanguarda do grupo baiano”. Correio da Manhé, Rio de Janeiro, 24/11/68. Reproduzido em Museu é 0 mundo. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 20n1, p. 117. m consagradas de participacdo - em que frequentemente o politico das aces era reduzido pela énfase no primado dos efeitos imediatos e, em grande parte, emotivos, do poder da dentincia e da exortagao - pelo processo de composicao que articulava estrutura e comportamento, construtividade e vivéncia na elaboragao critica que, pela justaposigao de elementos discor- dantes, evidenciava o processo de constituicdo mesma das contradigdes enunciadas. Em vez da crenga na eficacia imediata da figuracio da realidade brasileira, propunha um deslocamento que pela devoracao das imagens encenava aspectos emblematicos da realidade brasileira - como se pode ver, por exemplo, nas cang6es Tropicdlia, Geleia geral, Parque industrial, Margindlia 11, Enquanto seu lobo nao vem e na manifestagao ambiental Tropicdlia de Oiticica: um processo conjuntivo e ambivalente, corrosivo, que vinha da transformacio do receptor em ativo decifrador de signos, com que se articula em outro nivel de consciéncia. Nas cangGes tropicalistas 0 jogo com a ambivaléncia, por proceder como processo construtivo, acentua a indeterminacao como indice de criticidade que opde resisténcia ao consumo das imagens que se situam numa zona de indiscernibilidade, efeito da corrosao efetivada pelo paro- diar das referéncias e pela alegorizacdo. Dai a radicalidade das misicas tropicalistas e da antiarte de Oiticica quando pensama simultaneidade de critica e insercdo no mercado. A indistincdo entre estética e mercadoria faz parte da sua estratégia dessacralizacao para enfrentar a “convi-conivéncia”. © consumo era visto como uma das categorias transformadoras, como modo de enfrentar e dissolver as dualidades erigidas como oposicées, pela exploracao da ambivaléncia, saindo das oposicdes - bom gosto e mau gosto, nacional e internacional, cultura superior, cultura de massa e cultura popular, vanguarda e comunicacdo; critica e conformismo. A desmistifi- cagao das relacées entre criacéo e consumo destoava de posigdes que & esquerda e a direita condenavam o envolvimento comercial das artes, da arte como simples submissao as modas. Para os tropicalistas, e Oiticica, contudo, nao parecia possivel apropriar-se desses recursos e ao mesmo tempo preservar uma suposta neutralidade da arte. Assumir a ambivaléncia era o modo eficaz, ética e esteticamente, de enfrentar a diarreia brasileira. As cangées tropicalistas resultam de um processo construtivo em que as imagens resultam da justaposicao de materiais de procedéncia diversa, de elementos dispares, provocando um efeito de obscuridade e estranhe- za. Cenas alusivas, fragmentarias, compostas como alegorias do Brasil, aludiam a persisténcia dos arcaismos, das deformagées no processo de modernizacao da sociedade, tal como estiio explicitados nas interpreta- G6es vigentes no sistema artistico-cultural. As cangées, individualmente ou em conjunto, quando assim consideradas, configuram, na fulguragao 172 de suas imagens, uma situaco histérica impossivel de ser concretizada com nitidez e que irrompe sob a forma de retorno do recalcado. Assim, as cangdes geram significacdes conflitantes com os significados designados como identificadores de uma entidade abstrata, a realidade brasileira, emblematizada em signos que indiciam “as reliquias do Brasil", como as enunciadas na cancao “Geleia geral” de Torquato Neto e Gilberto Gil. Os fatos culturais designados, as formagées histéricas, os estilos artisticos, usos e costumes so desapropriados de seus valores jé fixados como tradi- Ao, como identitérios, e sao transfigurados pela parddia, pelo humor, pela satira, pelos procedimentos grotescos, pela carnavalizacao da linguagem, evidenciando sintomas de uma histdria malformada e que talvez nunca tenha chegado verdadeiramente a ser. Acomposicao de parédia e alegoria, efetivada nas cangées tropicalistas ena Tropicdlia de Oiticica radicaliza um processo extremamente importante, algumas vezes antes ensaiado na arte brasileira mas nunca téo contunden- te: trabalho corrosivo de critica da arte e da cultura instituidas, em seus diversos matizes, desde o mito das raizes populares até as mitologias da cultura de mercado. Mas, ressalta Oiticica, tudo é feito segundo uma ati- tude experimental que redimensiona o que estava em curso na atividade artistica, mesmo de vanguarda: uma atitude experimental centrada no “atuar sobre 0 comportamento diretamente, nado num puro processo de relaxamento dessublimatério, mas no de estruturagao criativa, convocagio a transformacées e nao submissao conformista. E como uma trama que se faz e cresce etapa por etapa: a trama-vivéncia’."* 16 “A trama da terra que treme - o sentido de vanguarda do grupo baiano”. Correio da Manhé, Rio de Janeiro, 24/11/68. Reproduzido em Museu é 0 mundo. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2001, p. 122. 173

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