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OSCAR CORREAS

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ALcÀNTARA NOGUEIRA (prof. da Universo do Ceará)
Poder e Humanismo (Humanismo em B. Espinoza, em Feuerbach, em K. Marx
AZEVEDO, Plauto Faraco de
Crítica à Dogmática e HermenêuticaJuridica
CAPPELLElTI, Mauro (prof. da Universidade de Florença, Itália)
Acesso àJustiça
Juízes Legisladores?
COELHO, L. F. (prof. Titular da Universo Federal do Paraná)
"
Teoria Crítica do Direito
CRESCI SOBRlNHO, Elício de
CRITICADA
justiça Alternativa·
FARIA, José Eduardo & CAMPlLONGO, C. (professores da Universo de São Paulo)
Sociologia Jurídica no Brasil-
KELSEN, Hans
IDEOLOGIA JURÍDICA·
Teoria Geral das Normas
MELO, Osvaldo F. de (Prof. da Universo da UFSC)
Fundamentos da PolíticaJuridica
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ODireito como Obstáculo àTransformação Social
OLIVEIRA Jr., A. 'de (prof da Universo Federal de St~ Catarina)
Bobbio e a Filosofia dos juristas
SANTOS, B. de S. (Prof. da Universidade de Coimbra)
O Discurso e o Poder - Ensaio sobre a Sociologia da Retórica
jurídica
SOUSA Críticas da ideologia jurídica
PaI
SOUTO
Ciê 00000038860 de Modernidade
WARAT 1111.11\ 1111111111 o Mestrado em
Direito ~
O Direito e Sua Linguagem \

Sergio Antonio Fabris Editor


CRÍTICA DA
IDEOLOGIA JURÍDICA
Ensaio
Sócio-Semiológico
ÓSCAR CORREAS.

CRÍTICA DA ;#

IDEOLOGIA JURIDICA
Ensaio
Sócio-Semiológico

Tradução:
ROBERTO BUENO

Sérgio Antonio Fabris Editor


Porto Alegre I 1995


'lfdiloração EJetrónk:a eFilmes:
GRAFUNE- Assessoria GráfICa e Editorial Ltda.
Rua Tupi, 205 cjs. 203/205 Volta do Guerino POA 9103Q.520/RS Brasil
Fone/FAX/Modern (051) 341-1100

Para Óscar Correas, meu pai

Reservados todos os direitos de publicação. total ou pardal, a


SERGIO ANTONIO FABRIS EDITOR
Rua Miguel Couto, 745 CEP 90850-050
caixa Posta14001- Telefone (051) 233-2681
Porto Alegre, RS - Brasil .
CEP 90131-970
APRESENTAÇÃO À EDiÇÃO BRASILEIRA

o grito de vitória do capitalismo, pronunciado com toda a pompa poso


sível ante a queda do muro de Berlim e a destruição da União Soviética, foi
acompanhado de sisudas disquisições sobre o "fim da história", que, parecia
então, terminava com esse triunfo.
Passados poucos anos do festejado triunfo, já o capitalismo, que não
consegue-se alimentar dessas fanfarrices - que agora não parecem tão severas
- volta a mostrar a sua face horrível. Este livro aparece quase ao mesmo tem-
po em que se conclue a Conferência de Desenvolvimento Social, convocada
pela ONU, em Copenhague, aberta pelo Secretário Geral Boutros Ghali, que
informou que não, menos da metade da população da Terra vive na misé-
ria. Qual é, então, o afamado triunfo do capitalismo? Ou será que seus
apologistas ~e atreverão a proclamar, cinicamente, que essa vitória consiste
na melhoria do nível de vida do primeiro mundo, unicamente?
Na verdade, poucos anos foram suficientes para demonstrar que o ideário
socialista não foi destruído com o muro de Berlim. Por pouco tempo, os
apologistas do capitalismo gozaram sua vitória. O fantasma do marxismo,
embora como bom fantasma seja hoje pouco conhecido, pouco lido, conti·
nua percorrendo, e corroendo, as entranhas do mundo opulento. As ilusões
de que as contribuições teóricas do marxismo tinham sido "superadas" pouco
duraram.
Este livro foi escrito entre 1989 e 1990 e publicado no México pela
primeira vez em 1993. Na época, o marxismo deixara de ser um corpo teórico
de grande presença nas universidades latino·americanas. Também, de pronto,
o discurso juridico deixou de postular que o estado moderno protegia os fra·
cos e começou a apresentar o capitalismo, e seu direito, sem o antigo rubor,
como "gestor do bem comum". De certa forma este livro desobedece esta
espécie de regra de trânsito, que parece indicar uma só direção correta. Ele
vem "pela contramão' como se diz em meu país. Contudo, atrevo-me a augu-

7
rar que o tempo da crítica marxista voltará muito antes do desejado pelos
apologistas do capitalismo.
SUMÁRIO
Recentemente, no Brasil, em 1991, ocorreu um fato significativo na his-
tória do pensamento jurídico latino-americano: o calor do escândalo que em
algumas "boas consciências" jurídicas causou o surgimento de um pequeno,
mas ruidoso grupo de "juízes alternativos" ocorrido em Florianópolis, no Pri- .
meiro Congresso Internacional de Direito Alternativo. A presença de profes-
sores, advogados, juízes, promotores de justiça e estudantes, foi inesperada·
mente numerosa. A partir de então foram realizados outros encontros, todos
com êxito e pode-se dizer que o Brasil é hoje o país latino-americano onde
menos deveriam contar vitória os juristas a serviço do capitalismo. Introdução
É nesse meio - e penso que graças às oportunidades que me foram ......................................................................................
15
concedidas nesses congressos -, que este livro é publicado hoje pela prestigio Capítulo Primeiro
osa editora dirigida pelo Sr. Sergio Antonio Fabris, a quem muito agradeço a A IDEOLOGIA E OS DISCURSOS
confiança e o destaque que, graças a isso, tem a partir de agora, o presente
trabalho. ~. ~s textos que contém ;·i·d~~·I~~i·~·j~ridi~~ .. 27·..........··.. 27
Trata·se de uma abordagem inspirada no pensamento Marx. Acredito . Sl~t~mas formalizadores ou linguagens
3. Codlgos, 29 '
28
que ele apresente algumas páginas originais e espero, fervorosamente, que
tenha alguma influência em juristas que não desejem colocar os seus conheci· 4. Os sis~~m~s formalizadores e os Conteúdos de
conSClencla, 30
mentos, nem enlamear sua vida, a serviço de um sistema social que condena
a metade do mundo à miséria. De seu êxito ou de seu fracasso, serei responsá- 5. ~deologia, ideologias, discurso e discursos 31
'.1. Ideologia,31 '
vel: permitir-me-ei, contudo, o entusiasmo de acreditar que seja bem recebi·
5.2. As ideologias, 32
do, e que contribuirá para demonstrar que o marxismo é um corpo teórico
5.3. Discurso, 32
que, melhor do que qualquer outro, pode explicar - e criticar - o direito
5.4. Os discursos, 33
moderno. Não sendo assim, nem por isso conseguirei crer no definitivo triun· 6.
fo do capitalismo. De qualquer forma, é necessário continuar insistindo em Os usos de "ideologia" e "discurso" 33
7. Ideo~ogia em significado amplo, 34 '
que os ideais socialistas permanecem, tanto ou mais vivos que antes, na medi- 8. A unl~a~e de uma ideologia, 36
da em que esta sociedade é tão ou mais injusta que antes. E em que os juristas 9.
têm um importante papel a cumprir na transformação deste em um mundo Coer~nc~a sintática dos textos, 37
10.
melhor. II.
~oerencla semântica ou de sentido dos textos 38
SIstemas significantes, 40 '
12. Denotação e conotação, 42
Barcelona, março de 1995. Capítulo Segundo
O DIREITO COMO DISCURSO PRESCR.rI1V<
1. As palavras do discurso do direito ~5"'''''''''' .. 45
1.1. O signo, 46 '
1.2. O significado, 46
1.3. O referente, 47
2.
O sentido dos discursos, 48
8
9
3. Sentido e ideologia, 50 Capítulo Quinto
4. Uso descritivo e uso prescritivo da linguagem, 50 AS CffiNCIAS jl.JlÚDICAS , . 89
4.1. A diferença desde o ponto de vista 1. O uso dos critérios teóricos, 89
semântico, 51 2. O discurso da ciência, 90
4.2. Avontade do produtor do discurso, 51 3. Ciência e política, 91
4.3. A diferença desde o ponto de vista 4. Aeleição de uma teoria, 95
pragmático, 52 5. As ciências do direito, 96
5. Discursos com sentido prescritivo, 53 ;.1. Dogmática jurídica, 97
6. Os discursos e os operadores lógicos, 54 ;.2. Sociologia jurídica, 97
;.3. Psicologia jurídica, 97
Capítulo Terceiro ;.4. Análise do discurso do direito, 97
O CONTEÚDO DO DISCURSO DO DIREITO . 57 ;.5. Análise dos discursos jurídicos, 98
1. O direito como discurso organizador da violência, 57 6. A Dogmática]urídica ou]urisprudência Normativa, 98
1.1. O direito como discurso que ameaça com a 7. O reconhecimento do direito como atividade
violência, 58 intelectual, 99
1.2. O direito como instrumento de resolução de 8. AMetodologia]urídica, 104
conflitos, 61 8.1. Adescrição de normas, 106
1.3. O direito caracterizado pela possibilidade de 8.2. Ainterpretação, 106
submeter algo a justiça, 62 8.3. O estudo do ato produtor do discurso do
1.4. O direito como modelo para julgar condutas, 63 direito, 107
1.5. O direito como unidade de dois tipos de
normas (Hart), 6; Capítulo .Sexto
2. A qualidade do produtor do discurso do direito, 67 A ANÁliSE DO DISCURSO DO DIREITO . 113
, 3. O direito como discurso autorizado, 69 1. Discurso do direito e discurso jurídico, 114
3.1. O sentido autorizado, 70 1.1. As fundamentações, 114
3.2. Avontade do produtor, 70 1.2. As exposições de motivos, 115
1.3. . As explicações, 115
Capítulo Quarto 1.4. Os discursos cotidianos, 115
O RECONHECIMENTO DO DIREITO .. 75 1.5. O uso do direito, 115
1. Os destinatários do direito, 7; 2. Aideologia no discurso do direito, 116
2. O reconhecimento do direito, 78 3. Sentido deôntico e sentido ideológico do discurso
3. O reconhecimento do funcionário, 80 do direito, 117
4. O reconhecimento do sentido autorizado do 4. A ideologia do direito e a ideologia jurídica, 118
discurso, 84 5. Sistemas significantes, 119
5. O reconhecimento generalizado do direito, 85 6. A análise do discurso como ciência, 121
6. O reconhecimento profissional do direito, 87 6.1. Discursos acerca da ideologia jurídica, 121
6.2. Discursos acerca do sentido ideológico do
direito, 122

10 11
7. As ciências jurídicas, ciências acerca do exercício do 2. A causa na Sociologia]urídica e na CríticaJurídica, 175
poder, 122 3. "Causa" no pensamento grego, 176\
3.1. Aitía como geração, 177
Capítulo Sétimo 3.2. A homogeneidade entre os termos, 179
A CRÍTICA JURÍDICA .. 125 4. "Causa" como atividade de um sujeito, 181
1. ACrítica]urídica na França, 125 5. "Causa" como razão, 183
1.1. A concepção científica de Critique du Droit, 126 6. "Causa" como ficção, 184
1.2. A negação do jurídico universal, 128 7. "Causa" como função, 185
1.3. O direito, seu uso, e a Sociologia]urídica, 129 8. Causa sistêmica, não linear, 186
1.4. O direito como discurso, 131 9. O uso científico da palavra causa, 186
2. ATeoria Crítica do Direito, 133
3. Acrítica do direito como análise do discurso, 136 Capítulo Décimo
3.1. "Crítica", 136 A CAUSA NA SOCIOWGIA JURÍDICA .. 191
3.2. A crítica do direito desde o ponto de vista 1. A "causa" em Sociologia, 191
interno, 138 2. O discurso como causa do discurso, 195
3.3. Acrítica do direito e dos discursos jurídicos desde 3. A origem das ficções do sentido ideológico do
um ponto de vista externo, 140 direito, 199
3.4. Acrítica científica dos discursos não- 4. As descrições nO discurso do direito, 204
científicos, 140 5. Causa e referência fictícia do direito, 205
4. O problema do fundamento do discurso crítico de
outro discurso, 141 Capítulo Décimo-Primeiro
5. A cientificidade da Crítica]urídica, 142 AS RELAÇÕES SOCIAIS E O DIREITO . 209
1. O direito, as relações sociais e suas descrições, 209
Capítulo Oitavo 2. As relações sociais e o referente do direito, 212
O REFERENTE DO DISCURSO DO DIREITO .. 145 3. Aapologia do direito, 214
1. Os fatos e o sentido, 145 4. Uma teoria sociológica geral, 216
2. O sentido e seu referente, 149 5. Os modelos em ciências sociais, 217
3. O discurso do direito, seu sentido ideológico e as 6. Relações sociais e condutas, 219
relações sociais, 153 6.1. As condutas, 220
3.1. O direito para o usuário, 154 6.2. As relações sociais, 221 .
3.2. O direito para o sociólogo, 156 6.3. O discurso do direito e as relações sociais, 222
3.3. O direito frente a análise do discurso, 157
4. Causa e referente, 160 Capítulo Décimo-segundo
5. Os códigos e o deciframento do discurso do direito, 167 A ClÚTICA JURÍDICA . 227
6. Denotação e conotação de ficções, 171 1. ATeoria Sociológica do direito, 227
1.1. A descrição de um modelo sociológico e as
Capítulo Nono normas, 227
A EXPLICAÇÃO CAUSAL ~ . 173 1.2. O modelo normativo, 228
1. A necessidade da explicação causal, 173 1.3. A "necessidade" das normas, 228

12 13
1.4. Anecessidade da coerção, 230 INTRODUÇÃO
1.5. Modelo e sociedade, 231
2. ASociologia Jurídica, 233
3. ACrítica do Direito, 239
4. ACrítica do Direito como análise do discurso, 242
4.1. Denotação e conotação, 243
4.2. Sistemas significantes, 244
4.3. Categorias e técnicas jurídicas, 250

Capítulo Décimo-Terceiro
EPíLOGO E BALANÇO . 259 O presente ensaio tem por objeto propor fundamentos para a Critica do
1. As perguntas e atitudes iniciais, 259 Direito e, principalmente, para a crítica da ideologia jurídica. Apretensão de
1.1. Apergunta pelo ser assim do direito, 260 oferecer uma proposta provém de que considero de escasso valor os funda·
1.2. O estado dos exploradores, 260 mentos deste trabalho, tal e como foram propostos até o momento. Esta afiro
1.3. Aideologia jurídica, 260 mação implica, por suposto, em explicar por qual motivo me parecem insufi·
2. Acrítica da ideologia jurídica, 261 cientes (II). Mas antes será necessário precisar muito mais o que se entenderá
3. As contribuições, 263
por "Crítica do Direito" e crítica da ideologia jurídica (1). Como veremos, a
3.1. O marxismo como hipótese, 263 proposta que desenvolveremos nesta pesquisa conduz àconsideração da Cri-
3.2. ATeoria Geral do Direito, 264 tica do Direito como análise do discurso, instalada no espaço das ciências
3.3. O direito como discurso, 264 sociais (III), mas com os fundamentos críticos do pensamento de Marx que,
3.4. ATeoria Sociológica do Direito, 264 contrariamente ao que parece, não foram enterrados junto aos cimentos do
3.5. Acausa do discurso do direito, 265 muro de Berlim (IV).
3.6. As categorias utilizadas, 266
3.7. Apluralidade de discursos, 267
3.8. O reconhecimento do direito, 267 I. A Crítica do Direito e da ideologia jurídica
3.9. Acrítica do conceito de causalidade entre
relações sociais e direito, 268 O que seja "crítica" do direito, ou da ideologia jurídica, tem relação
4. Acrítica do direito moderno, 269 com o conceito de direito. Com efeito, não parece sensato realizar a crítica de
4.1. O direito privado, 269 algo que não foi definido previamente. Isto explica que para conseguirmos
4.2. O direito do 'trabalho, 271 que esta pesquisa seja, à medida do possível, completa em si mesma, deve
4.3. O direito econômico, 273 lograr·se previamente uma definição aceitável daquilo que constituirá o obje·
to da crítica, ainda que nosso interesse ao tentar obter um conceito de direito
seja isolar o que é a ideologia do direito e não as normas. Para o tratamento
disto estão dedicados os primeiros capítulos.
Por esta razão, tendo sido impossível evitar a discussão sobre o que,
para este trabalho, será considerado direito, foi necessário adentrar neste
tema que c,?nstitui o objeto da Teoria Geral do Direito, da qual se extraíram
as conclusoes a que chegamos. Como se sabe, a definição do significado da
palavra "direito" é um dos temas presentes em todo estudo sobre este fenâ-

15
14
meno normativo. Sobre este problema, desde há muito tempo, e precisamen- Mas bem, porque é necessário distinguir a parte não normativa deste
te por força da falta de entendimento na discussão entre positivistas, marxis- discurso? Em realidade, isto está determinado pela intenção do estudo. Com
.tas e outras correntes de origem sociológica, ficou claro que o estudo do direi· efeito, se do que se trata é de saber como é que este discurso consegue sua
to não se esgota no estudo das normas, ainda que se possa aceitar que estas eficácia, como é que consegue controlar aos indivíduos, como é que se pro-
constituem sua própria essência. Mas, precisamente, este último ponto é atu· duz a regulação jurídica, então, talvez não tenha muita importância saber qual
almente duramente discutido. parte está constituída por normas e qual parte por outros discursos não
Mas bem, se existe esta discrepância, e se bem é possível aceitar que o normativos, como definições, nulidades, etcétera. Como veremos, este é o
direito não é somente norma - sob condição de que se explique esta afirma· rumo atual de uma parte da crítica francesa, precisamente aquela que esta
.ção -, de todas maneiras há um ponto de acordo absoluto: nunca ninguém pesquisa reconhece como um de seus principais interlocutores. Trata-se de
negou que o direito contém normas, embora alguns considerem que contém um tipo de pesquisa sociológica interessada no que ocorre depois da produ·
algo mais que isto. O ponto de convergência está em que todos aceitam que ção do direito. Em troca, a presente pesquisa pretende oferecer fundamentos
o direito contém normas. para responder a outra pergunta: "Porque o direito diz isto que diz e não outra
Mas, então, resulta imprescindível lograr um conceito de "norma" ou da coisa?" Ou seja, perguntamos pelas causas do direito e não pelo como se pro-
parte do direito que é normativa, que permita separar, distinguir, estaj)ãrte duz a dominação através dele. Neste aspecto se trata também de Sociologia
da outra que não é normativa, e que é a parte para cuja crítica este trabalho Jurídica. O que acontece é que, e aqui é onde devemos fazer intervir outras
pretende oferecer fundamentos metodológicos. disciplinas além das sociológicas, a pergunta pelas razões que explicam que o
Mas bem, no mesmo momento em que se propõe que contém algo mais direito diga o que diz não pode ser desvinculada da pergunta acerca do que, e
que normas, o direito deve aparecer como um discurso mais entre outros sobretudo do como o diz. Neste aspecto já não se trata de Sociologia senão do
muitos, dentre os quais deve, por sua vez, ser diferenciado. Enquanto o direi· estudo do próprio discurso, de seu sentido imanente, e isto pode ser visto
to era somente norma, definindo "norma" o problema tinha terminado. Mas, como aná/içe do discurso do direito. Para a concepção que preside este tra-
tão pronto é considerado como um conjunto de normas e outros enunciados, balho é nisto que consiste a Crítica do Direito. Por isto é que este ensaio pode
o que é direito fica instalado em outro nível distinto, "superior", como uma ser considerado como uma tentativa de insistir no mesmo ponto que há dez
estrutura que contém diversos elementos, e que coexiste junto a outros fenô- anos, isto é, na crítica jurídica.
menos discursivos também complexos. Enquanto o direito eraiOmente nor· Neste exato ponto, a tarefa está a meio caminho entre a Sociologia e a
ma parecia demasiado determinado por sua relação com a moral: o problema análise do discurso. Por um lado está apergunta: "Porque o direito - o Código
consistia em saber qual era a diferença entre normas morais e normas jurídi- Civil, por exemplo - diz isto que diz e não qualquer outra coisa?", ou seja,
cas. Não obstante, tão logo o direito deixa de ser unicamente norma sua dife· "porque este discurso é assim e não de outro modo?" Por outrO lado está a
rença com a moral perde o caráter de ser a diferença definitória. Com isto o pergunta: "Qual é o sentido deste discurso?" As duas perguntas permanecem
direito ficou instalado, junto com a moral, no nível de todos os demais dis- juntas porque é impossível perguntar·se porque o discurso é este e não outro
cursos existentes na sociedade, e· agora é do resto deles dos quais deve dife· sem responder também como (ou qual) é o sentido deste discurso. Mas, por
renciar-se. Outra parte, é impossível tentar averiguar o sentido de um discurso sem per·
À primeira vista poderia parecer que, então, já não tem sentido pergun- guntar·se por aquilo que constitui oreferente deste discurso. Com efeito, como
tar·se pelas notas distintivas deste discurso. Mas não é assim, e isto precisa- conhecer o sentido de um discurso sem perguntar·se sobre aquilo ao que se
mente porque o direito já não é somente norma, embora, de qualquer ma- referem as palavras que o compõe ou, como veremos que é o nosso caso,
neira, também compreenda normas. Por isto mesmo, agora é o momento sobre aquilo ao que reputa referir·se o usuário? Como pode ser visto com
em que se faz mais necessário dispor de um conceito da parte normativa deste facilidade, o núcleo da questão se instala na confluência da causa e o referente
discUrso. Contudo, este conceito não seria utilizado para distinguir o direito d? discurso. Ao exame destas antigas questões estão destinados os capítulos
da moral, mas sim para distinguir, no interior do próprio direito, qual é sua OItavo, nono e décimo.
parte normativa e qual sua parte não normativa.

16 17
Mas, voltando à pergunta "porque é necessário estabelecer uma djfe- IL A causa, a função e o referente do direito
rença entre a parte normativa do direito e a que não o é?", nos encontramos
com o objetivo da Crítica do Direito. Com efeito, esta não é uma crítica da Partindo do pressuposto de que temos uma definição aceitável do que é
justiça das normas. Não se trata de apontar a notória injustiça do capitalismo direito enquanto norma, e do que acompanha o direito mas não é norma,
e, portanto, da maldade intrínseca do direito que o reproduz ao contribuir a podemos perguntar-nos pela causa de que sejam assim as normas e a ideologia
reproduzir as relações em que consiste aquele. ACrítica do Direito se propõe que as acompanha. Quando nos perguntamos pela causa das normas estamos
algo distinto, e a revisar esta questão está destinado o capítulo sétimo. Para a em plena Sociologia Jurídica, o que também ocorre quando nos pergunta-
Crítica do Direito o importante não são as normas em si mesmas enquanto mos pela causa da ideologia do direito.
tais, mas sim a ideologia que elas reproduzem cotidianamente ao ser usadas, Em uma primeira etapa a crítica francesa se propôs este problema sob a
ainda que para estudar a ideologia contida nas normas seja necessário poder forma da pergunta pelafunção do direito.
identificá-las: a dogmática é ineludível, é necessário conhecer o direito. Dito "En primiere aproximation, en effet, ce droit a au moins une double
de modo mais simples, é necessário ser jurista, e possivelmente isto tenha fonction il protege avec ostentation mais réelIement la classe ouvriêre d'une
contribuído para que os sociólogos, a menos que tenham a cultura de um exploitation effrené, mais ii organise non moins réellement cette
Weber, não estejam capacitados para dizer coisas interessantes a respeito. exploitation... "(1)
Isto, por sua vez, conduziu a esta lamentável clausura que, como uma maldi- Perguntar-se pela função é uma maneira de perguntar-se pelas causas do
ção, pesa sobre os estudos jurídicos. Em resumo, o que interessa à crítica que direito. Com efeito, a causa de que o direito diga isto que diz consiste na
este trabalho pretende apoiar teoricamente não são as normas, mas sim, pre- necessidade de que se cumpra talou qual função. Quando não cumpre sua
cisamente, o outro das normas, o que chamaremos, no capítulo sexto, senti- função os sociólogos dizem que o direito não é efetivo ou que é ineficaz, ou
do ideol6gico do direito e ideologia jurídica. Eé justamente porque isto nos ambas coisas. Esta é uma maneira de ver o problema da causa, mas não é a
interessa que se torna necessário saber que parte deste discurso é norma e única maneira de,perguntar-se pelas causas do direito. Como veremos no ca-
que parte não é norma. ACrítica do Direito, como aqui a definiremos, não se pítulo oitavo.;o~ e os sociólogos chamam causa do direito, desde o ponto de
interessa pelo como se produz a regulação jurídica, mas sim pela ideologia vista da análise d discurso, é seu referente.
cujo uso reproduz a sociedade capitalista. Uma coisa é esta ideologia e outra A Crítica o Direito tal como foi proposta há dez anos no México (2)
coisa seu uso. Quando o que interessa é a critica da ideologia jurídica e da utilizava diversas palavras, entre as quais "causa" e "função" apareciam de
ideologia do direito (estabeleceremos esta djferença no capítulo sexto), e modo mais esporádico que outras como "expressão" e "forma". Contudo, a
seu estudo constitui o objetivo das propostas metodológicas deste trabalho, releitura deste texto mostra que não fomos conscientes de que o problema é
então a djferença entre as normas e os outros discursos incluídos no direito se que o direito "fala" -das relações sociais. O livro está repleto de expressões
converte em essencial, porque nem todos cumprem a mesma função ou, tal- 'como:
vez, cumprem a mesma função mas não são os mesmos discursos.
Este último ponto é da maior importância, posto que quem produz as
normas pretende conseguir determinados efeitos. Mas, apesar de tudo, "o 1 - JEAMMAUD,Antoine, "Lesfonetionsdudroitdutravai1" emCOlliNF.,etal.,Ledroitcapila/isle
outro" do discurso do direito pretende conseguir outros efeitos ou, então, o du travail, Grenoble, Ed. PUG, 1980, p. 152. ar.: "Laconditionessentielledel'ejJicadtédudroit, dilns
lalondion idéoIogique, estqu 'ii apparaisseromme indépendtmt de 11Ul1lipukItfongrossieres etsemble
mesmo efeito, isto é, o controle social ou regulação jurídica, embora de modo juste", p. 201.
djferente. Eisto é algo que, sem dúvida, é digno de estudo. Não obstante, ao °
2 ,- Consegui não citar no corpo do ensaio nenhum trabalho anterior. Somente fIZ ao finalizar,
estudar o efeito, a regulação que se alcança com "o outro" das normas, impli- para t~tarfazer um balanço. Mas neste ponto permitido referir-me auma obraanterior, porque, caso
ca conhecê-lo, e nisto consiste, creio e defendo, a Crítica do Direito. COntrário, seria ininteligível a razão pela qual creio que aquela critica tinhafundamentos de escasso
;:t0r, que é o que justifica este novo trabalho. Aobra é CORREAS, Oscar,lntroducción a la critica
et ~erecho moderno (Esoozo), Puebla, Ed. Universidad de Puebla, 1982, embora o livro tenha sido
~~~o em 1978. Há uma segunda edição, da mesma editora, de 1986. Me refiro a esta edição na
,_o.

18 19
Note.se, por último, que o direito civil opera como se as merc~dorias Por outra parte, este estudo é também sociológico, porque é evidente
que circulam tivessem sido produzidas segundo o modelo da produçao mer- que o referen_te do d.ir~ito é .?m~ém sua causa. O direito é um discurso "que
cantil simples. Em outras palavras, que opera supondo que o portador das fala" de relaçoes SOCiaiS, e nao ha nenhuma SociologiaJuridica que não pre·
mercadorias as produziu ele próprio, de forma autônoma, com meios de pro- tenda que tais relações sejam a causa do direito (salvo que alguém pretenda
dução que "possui", que detém materialmente. Mas, atentemos, o direito civil que a causa é deus ou algo assim). Por isto a Critica do Direito está na metade
faz disto um suposto tácito, em nenhuma parte fala deste problema... Mas de do caminho entre a Sociologia e a análise do discurso ou, talvez, a Semi6tica
nenhuma maneira o direito civil faz referência a eles como meios de produ· Jurídica.
ção. Ao direito civil não importa que produzam ou que nã~ produ~m ... o Certamente que a crítica francesa também entendeu que o direito "fala·
único que lhe interessa é designar um "dono" que possa ou nao vende·los (p. van de um referente:
49). "Par réaetion contre la représentation dominante du droit qui laisse croire
O tipo de palavras usadas informa perfeitamente sobre esta clara falta de que les rapports sociaux son réllement ce que le droit en dit et qu'i1s son
consciência: o direito é um sujeito que "fala" de outra coisa, que são as rela· 'justes' dans la mesura ou i1s lui son conformes, ..." (idem, p. 153X3)
ções sociais tal qual as descreve Marx; o direito civil "opera", "supõe", "faz OU seja, também na crítica francesa aparece esta clara consciência de
disto um suposto tácito", "em nenhuma parte fala", "atende", "designa", e, que o direito é um discurso que "fala" de algo que é seu referente. Contudo,
principalmente, a idéia que logo se torna central, "faz referên~~". ~isto desde me parece que há uma diferença: no texto francês comentado há uma certa
o presente ensaio, o que havia era uma clara falta de consclencla de que o reticência em considerar o direito plenamente como discurso. Por exemplo,
.direito é um discurso - palavra também utilizada muitas vezes - que tem logo depois da citação anterior, o autor continua:
como referente as relações sociais. "...conformes, on peut être tenté de dire que le droit du travail (comme
Ehavia, também de modo claro, uma confusão entre as descrições, que toute autre branche) releve de l' 'ideologie'. C'est-à-dire d'un corps de
podem ter referente, e as normas que não podem tê·lo. Es:es são os dois pon· répresent~~tio des rapports sociaux destinées à les rendre acceptables en les
tos frágeis daquela proposta: a inexistência de uma reflexao sobre os proble- naturalisant et n édulcorant leur realité. A I'évidence pourtant, ce n'est pas
mas advindos da consideração do direito como um discurso com,referente, seulemen tant que représentations de I'ordre social que les institutions
real ou pretendido, e a indistinção entre o que agora chamaremos sentido juridiques contribuent au maintien de cet ordre, mais aussi comme faeteur
deôntico e sentido ideol6gico deste discurso com referente. Em outras pala· 'matériel',". (idem, p. 153)
vras a diferença entre as normas e os outros discursos coexistentes no mes- Esta espécie de retirada - mais aussi commefacteur matérlel- ante a
mo ;exto. Este segundo problema aparece tão logo adquirimos clara consciên· consideração do direito plena e totalmente como discurso, talvez explique a
cia, agora sim, de que introduzimos as questões da referência dos discursos, posterior inclinação desta parte da crítica francesa para o trabalho
posto que, como creio que com toda razão a Teoria Geral do Direito afirma, as preferentemente sociológico, para o estudo da regulação jurídica. Enquanto
normas não tem tal referente, nem real nem pretendido. Somente podem ter isto, a explicação de que hoje a variante mexicana se incline pela considera·
causa, isto é, podemos perguntar·nos legitimamente porque a lei ordena pa· ção do direito plenamente como discurso possivelmente se deve à intenção
gar pelo trabalho ao menos o salário mínimo estabelecido pelo estado, en· inicial de crítica ideológica. A idéia de que o direito é um fator "material", a
quanto que é algo totalmente distinto p~rguntar.se p~l~ re~ere~te ~as pa~av~ menos que se deixe claro em qual sentido um discurso pode ser matéria, não
"trabalho" e "salário". O primeiro, que e uma prescnçao, obngatorio p ,nao
tem referência, e vamos chamar·lhe sentido deôntico do discurso do direito.
Mas o segundo, as palavras "trabalho" e "salário", têm referente e são discur· 3 - ar.: "Le droit ne parle évidement pas d'exploitation de la force de travailpar te capital.
sos que transmitem uma ideologia precisa, qu~ chamare?,o~ sent!d?ideo~6­ A bien des égards, ii 'dit' les rapports de production en les déguisant et ce travestissement est
Itl Prlncipale moda/ité de leur expressionjurldique~ p. 172. Este livro também contém diversas
gico do direito. O objeto da Critica do Direlt~ e este sentido Ideologlco e nao :sagens nas quais o direito "diz·. cfr.:pp. 175, 158. Na p. 176: 'Toutsepassecomme si la question
o estudo ou a crítica das normas ou seu efeito, como se fosse o estudo de ~ P,roPriété était étrangere à la question du trava{/~ "Tudo ocorre·, como na versão mexicana
como é produzida a regulação jurídica através do seu uso. Odu'eitOcivil·operacomose..... nap. 49.

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é compatível com a convicção de que existe uma distância insuperável entre Quando o objeto de trabalho muda, quando o auditório não está com·
os fatos e o sentido atribuído aos fatos, tema que será tratado no capítulo posto por sociólogos mas sim por jovens juristas e estudantes de direito de
oitavo. espírito crítiCO frente a sociedade capitalista, é necessário uma aproximação
Para evidenciar esta diferença de objetivos para o qual parecem apontar distinta.
as variantes francesa e mexicana desde o princípio desejo assinalar que a incli· É certo que, como eu desejava na primeira apresentação, a Critica do
nação desta última, desde seus primeiros escritos, era preferentemente para a Direito pode ser instalada no nível dos discursos políticos sem fazer maiores
crítica da apresentação do direito moderno feita pela ideologia universitária esforços para instalar·lhe em competição com a ciência tradicional do direito.
corrente(4). Naquele caso o auditório está composto por pessoas que, por motivações
Adebilidade da apresentação anterior consiste em que, conforme o fun· éticas plausíveis, são proclives a um discurso crítico de um direito que prote·
damento teórico aceito, que é a teoria marxiana da sociedade capitalista, re· ge umas relações sociais injustas, ou seja, se tratava de uma crítica dirigida
sulta que o direito moderno, seu sentido ideológico, oculta as verdadeiras aquelas pessoas que já estavam convencidas.
relações sociais(5). Para explicar o ocultamento, Marx proporciona uma au· Mas tão logo tentamos instalar a crítica inspirada em Marx em franca
têntica teoria, condensada no que ele denominoufetichismo da mercadoria e competição com outras teorias, quando nos propomosprovaro que dizemos
que em sua juventude chamou "alienação". Mas a explicação marxiana mostra do direito moderno, que é mentiroso, ocultador e diversionista, o aspecto do
somente o fetichismo que a relação mercantil produz no portador de merca· problema é outro. Quando nos propomos convencer, mas instalando·nos no
dorias quando este considera que as coisas são naturalmente mercadorias ou espaço discursivo das ciências sociais, algo muda.
o valor delas lhe aparece como uma virtude tão natural como o é que sejam O que muda fundamentalmente é isto: quando o auditório está compos·
"coisas". Até aqui Marx. Ese se aceita isto, resulta também aceitável que quan· to por juristas e quando a sede da discussão é o espaço das ciências jurídicas,
do o direito - seu sentido ideológico - "fala" de, ou se refere às relações dizer que o direito se refere a relações que oculta é, no mínimo, pouco claro.
mercantis, e o faz de uma maneira que não é coincidente com a descrição Com efeito, neste.âmbito, a resposta forte é: Como se sabe que o direito tem
marxiana, então, o direito "oculta", "encobre", "desvia a atenção", "distorce", como referente as relações capitalistas se ao mesmo tempo as oculta? Como
"mente". Isto me parece válido para um sociólogo, mas não para estudar o podemos saber que o referente é algo que não aparece no discurso, posto que
direito. é ocultado por ele? Não é uma contradição dizer que o referente é precisa.
mente o que não está no discurso? Quando dizemos que o contrato de traba·
lho se refere ao intercâmbio entre capital e força de trabalho mas que este
4 - Visto desde esta distância me parece evidente esta leitura de um trabalho datado de abril de último fica oculto, como provamos tal afirmação?
1978 mas publicado um ano após: Correas, Oscar, "E) contrato de compraventa de fuerza de trabajo" Tudo isto, desde logo, quando nos instalamos em um espaço onde seja
em Revista dei PoderJudicial dei Estado de naxcala, ano II, número 6, abril·junio, 1979. É necessário "provar" indicando algum dado empírico que possa servisto como
surpreendente asimilitude deste trabalho com o citado de Critique du Droit, embora seja evidente o referente do enunciado. Quando um sociólogo fala de uma classe social, por
que a preocupação principal era a de combater a ideologia dos professores de direito do trabalho
muito mais do que explicar algo sobre ele. Quero destacar que este artigo antecede em dois anos a exemplo, para que seu discurso seja considerado científico ele deve estar em
publicação do texto francês, e que o contato entre os autores não aconteceu antes de 1981. Isto condições de indicar algum dado empírico que se constitua no referente da
revela que as preocupações latino-americanas e francesas eram parecidas, mas não idênticas. expressão "classe social". Quando um economista fala de tendências de inves·
5 ..,. O tema do ocultamento é também surpreendentemente similar entre as versões francesa e timento de capital deve estar preparado para indicar, por exemplo, com um
mexicana. No texto francês, veja-se p. 167 ("L'expression déformante de ces rapports par les
relarions de travail teUes que le droit les agence..."), p. 173, la "nature vérltable du contrat de gráfico representativo de dados empíricos algum referente da expressão "ten·
travai~ qui estforme jUridique d'un achat de force de travaf~ se trouve escamoté), idem, le dências de investimento de capital". Por sua vez, quando o jurista crítico diz
"rapport social capital-travaiIsalarié est donc parfaitemente dissimulé dons et par le contrat de qUe a palavra "salário" na realidade se refere ao preço da força de trabalho,
travail". Definitivamente, o único traço diferencial é esta caraeteóstica inicial da versão mexicana de como pode provar que é assim se o próprio discurso do direito diz outra coisa,
privilegiar a questão da ideologia juódica como discurso acerca do direito sobre qualquer outra. É
também a única explicação de que o presente trabalho tenha desembocado na cótica juódicacomo por exemplo, que é a contraprestação do trabalho entregue pelo trabalhador?
análise do discurso e não no estudo da regulação juódica. Como provar que com os contratos o direito civil se refere à circulação mero

22 23
cantil se o próprio discurso diz que se refere a acordos de vontade? Em todo Este tema me pareceu ineludível em um ensaio que se propõe fundamentar
caso, é necessário provar que a expressão "acordos de vontade", contra toda esta disciplina.
a tradição jurídica e toda a tradição semântica, não se refere a isto que todo Aconclusão será que a Crítica do Direito pode constituir-se como uma
mundo entende quando se diz "acordos de vontade", mas sim que se refere a disciplina mais entre as que se denominam, acredito que ainda de modo
algo que ninguém se refere com esta expressão: a circulação r:nercantil. incipiente, como "análise do discurso". Aesta proposta se dedica o capítulo
O presente ensaio pretende oferecer uma resposta a esta perplexidade. sétimo.
Esta resposta é a seguinte: a prova de que o sentido ideológico do direito Mas antes das propostas que constituem o objetivo deste ensaio, é ne-
moderno se refere a circulação mercantil, a produção capitalista de mercado- cessário examinar o ponto central deste assunto, a questão da referência e da
rias e a circulação do capital, é que o sentido deôntico do discurso do direito causa nas ciências sociais em geral, e naSociologiajurídica em particular. Os
é o que corresponde ao modelo da sociedade capitalista proporcionado por capítulos oitavo, nono e décimo se dedicam a discutir esta questão.
Marx. Aclarar isto é o objeto do ensaio.

IV. O marxismo comofundo teórico


III A Crítica do Direito como ciência
As mentiras sobre a decadência do marxismo devido aque aUnião Sovié·
Apretensão de instalar a Crítica do Direito no mesmo espaço das ciên· tica, finalmente, confessou que não era socialista, são flor de um dia. Tão logo
cias sociais tem algumas conseqüências que devem ser analisadas. os trabalhadores russos e poloneses terminem de descobrir que no capitalis·
Em primeiro lugar penso que deve ser estabelecida sua posição entre as mo os supermercados estão abarrotados de mercadorias que não são acessí·
ciências jurídicas. Não obstante, isto torna inevitável uma reflexão sobre a veis a todos eles terão de voltar a suas eternas lutas pelo salário que os próxi.
ciência em geral e sobre estas ciências em particular. A isto se destinam os mos donos também lhes negarão.
capítulos cinco e seis deste trabalho. Esta discussão é inevitável porque a po- De qualquer modo, é perfeitamente possível que, por algum tempo, o
sição epistemológica adotada, que é evidente desde o primeiro capítulo, de· estudo do direito e da Sociologia jurídica, principalmente, esteja ofuscado
clara que a ciência nada mais é que um discurso que se propõe a si mesmo pelas teorias que superaram ao marxismo na explicação da sociedade capita.
regras especiais, e é este último ponto o único que o diferencia de qualquer lista, que é o que está ocorrendo atualmente. Isto faz com que este ensaio
outro. Isto significa instalar a ciência no espaço dos discursos dirigidos a um surja, sem dúvida, um tanto quanto fora de contexto. Contudo, quem queira
auditório, isto é, instalar·lhe neste espaço em que os discursos convencem ou deixar de lado o marxismo como teoria fundamental para a Sociologiajurídi.
não. Com isto, o discurso dos cientistas já não pode propor-se como o que se ca terá que responder as mais simples perguntas com maior plausibilidade do
diferencia dos outros porque enuncia a verdade. Se realmente a enuncia ou que se pode fazer desde o pensamento de Marx. E aqui é onde aparece o
não, se convence ou não, será resultado de outros fenômenos como, por exem· inevitável caráter político desta ciência: as teorias hoje estão em competição
pio, da eventual comprovação empírica que somente ocorre com o tempo, e de nenhuma se pode dizer que tenha todas as respostas. Este ensaio preten·
mas também das possibilidades de divulgar o pensamento, do espaço conce· de defender uma teoria com plena consciência de que há outras e que a ado·
dido em revistas e editoras, em institutos e universidades. Aciência não é um ção de alguma requer o convencimento do cientista. Esta é aúnica justificativa
discurso à margem da política. deste trabalho.
Mas isto, por outro lado, não quer dizer que não seja possível aceitar Resta dizer que a presente obra é a versão em português, com algumas
certas regras às quais se deve sujeitar o discurso que se pretende científico. reduções, da tese de doutorado defendida em junho de 1992 na Universidade
Estas regras são relativamente conhecidas e mais ou menos aceitas, e se deno- de Saint Etienne, frente a banca examinadora composta porAntoineJeammaud,
minam "regras do método científico". O desafio, para a Crítica do Direito, é, como presidente, André-]ean Arnaud, Michel Miaille, Evelyn Serverin e Marie·
agora, o de instalar-se neste ambiente e competir com os discursos emitidos Claire Rondeau-Riviere.
por aqueles que são reconhecidos oficialmente como cientistas do direito.

24 25
Capítulo Primeiro

AIDEOLOGIA EOS DISCURSOS

SUMÁRIO: /. Os textosque conléma ideoIogiajurídica;2. Sistemasfomudizadoresou


linguagens; J Códigos; 4. Os sistemasformalizadoreseos conteúdosde consciêtuia;
5. Ideologia, ideologias, discurso e discursos; 5. 1. Ideologia; 5.2. As ideologias; 5.3.
Discurso; 5.4. Os discursos; 6. Os usosde "ideologia" e "discurso"; 7. Ideologia em
signijicadoamplo; 8 A unidadede uma ideologia;9. Coerênciasintática dos textos; 10.
Coerénciasemântica ou desentido dos textos; I 1.Sistemassignificantes; 12. Denota-
çãoeconotação.

1. OS TEXTOS QUE CONTÉM A


IDEOLOGIA JURíDICA

Em primeiro lugar, denominaremos "textos" a quaisquer objetos cultu-


rais, ou seja, objetos nos quais se manifesta o trabalho humano, enquanto que
"cultura" designará qualquer produto do trabalho humano. Denominaremos
"textos" a estes objetos para destacar o fato de que transmitem - ou que neles
se pode ler -, idéias ou pensamentos, no sentido amplo deste termo, isto é,
quaisquer conteúdos de consciência ou, como diremos em seguida, ideologia.
É óbvio que este conceito é conveniente ao tipo de objeto - textos jurídicos
- a cuja análise pretendemos oferecer elementos metodológicos.
Como veremos depois, podemos falar de discurso do direito e de discur-
so jurídico, ambos coexistindo no mesmo texto. Por exemplo, uma sentença
será um texto no qual coexistem o direito - a parte resolutiva - com o discur-
so fundamentador, que não é vinculante mas fala do direito, e que denomina-
remos "discurso jurídico".
Desde logo, os textos aí estão como tais porque alguém os cria, mas
também porque alguém decide tomar-lhes como tais. Deste modo, os leitores
fazem os textos tanto como os autores, embora a identificação de algo como
um "texto" dependa do leitor. Caso este último não aceite o texto, de nada
adianta a vontade do produtor. Em nosso caso, o dos textos jurídicos, sua

27
identificação dependerá do investigador e da teoria do direito aceita. Por Estes sistemas de signos que permitem às idéias ou conteúdos de cons-
exemplo, um código civil é, evidentemente, um texto que oferece em sua ciência aparecer sob uma forma são sistemas formalizadores porque outor-
própria materialidade - um livro -, sua unidade. Mas no caso das sentenças os gam "forma" aos conteúdos de consciência e, acrescente-se, sem esta forma
textos serão os protocolos que as contém ou cada sentença um texto em não poderiam aparecer.
particular? Em um tribunal o texto será todo o recinto ou apenas o estrado? No
caso das normas, serão as produzidas como tais ou as eficazes? Como se pode
observar, a identificação de um setor do discurso social como texto "jurídico" 3. CÓDIGOS
dependerá do investigador e da teoria aceita. Aqui ensaiaremos uma em parti·
cular, que conduzirá à identificação de certos textos como direito. O que permite que um conteúdo de consciência que aparece em uma
Os textos são compostos de signos, que consideraremos as unidades forma - linguagem - seja identificável por outra consciência é o fato de que
básicas dos discursos. Entenderemos por "signos" as palavras, que os especi· existe um código contido no texto que é conhecido pelo leitor do texto ou
alistas costumam chamar sememas, de modo que "compra·e·venda", " admi· receptor da mensagem. Sem a existência de um código não existe a manifes-
nistração", "salário", aqui serão signos. Contudo, estenderemos o nome de tação nem o entendimento de um texto. É possível que uma certa disposição
signos a conjuntos de palavras que tem um significado, tais como "pagamento ..de elementos não produzidos por nenhum ser humano sejam lidos como tex-
do preço" ou "relação de trabalho". Certamente com isto estaremos ignoran· tos por outro ser humano, por exemplo, porque tal disposição pode ser lida
do algumas precisões já desenvolvidas pelos semiólogos. O objetivo disto é como tal conforme certo código. Este caso não nos concerne porque o direito
que nos mantenhamos em um nível de significações que seja familiar para os não pode ser produzido por outro ser que não o humano. Pode ocorrer, por
juristas. Indubitavelmente, em outras oportunidades será necessário refinar outro lado, que um texto produzido segundo certo código, seja lido com a
nossa Iigguagem. Contudo, este trabalho não será afetado por estas impreci· utilização de um outro código. Este é, precisamente, um dos casos que nos
sões devido as suas reduzidas pretensões. interessa. Com efeito, a.realização da crítica de um texto jurídico implica que,
Cabe acrescentar que com estes conceitos de texto e cultura nos afilia· produzido segundo um código e portando uma mensagem, possa ser lido com
mos a certa concepção filosófica sobre o homem e sua relação com o mundo, um outro código segundo o qual a mensagem aparece distinta.
mas este não seria o momento apropriado para discuti·lo. Depois de tudo, não Mas bem, os códigos são apenas outros discursos que permitem enten-
é possível dizer absolutamente nada sem fazê·lo desde alguma concepção filo· der os textos que, por isto mesmo, podem ser mensagens. Para que qualquer
sófica prévia. Podemos, simplesmente, dizer que com isto aceitamos que o conteúdo de consciência seja transmitido a outra consciência é necessário
mundo humano é o mundo do sentido, do qual tentaremos uma definição. que se formalize em um sistema de signos, sistema cujo princípio de
inteligibilidade-é conheCido previamente por outro. O que permite conhecer
este princípio de inteligibilidade é o código. Em tal caso se estabelece uma
2. SISTEMAS FORMALIZADORES OU UNGUAGENS comunicação ou transmissão de sentido.
Diremos, conseqüentemente, que um conteúdo de consciência existe
As idéias ou conteúdos de consciência não podem manifestar-se, apare- em um texto na forma que lhe proporciona o sistema formalizador que embasa
cer, sem adquirir uma forma através de sistemas de signos que são os que este texto e que pode ser transmitido se o destinatário da transmissão conhe-
constituem estes textos. Estes sistemas de signos serão designados aqui com a ce o código do sistema formalizador.
palavra "linguagem". Entre estes estão as linguagens chamadas "naturais" (es- O tipo de textos que é objeto deste trabalho existe sob a forma de lin.
panhol ou francês, por exemplo), mas também outras linguagens, como a guagens naturais, isto é, do espanhol, do francês ou do inglês, que são siste.
musical, a màtemática, a lógica ou a ideográfica dos sinais de trânsito. Os mas formalizadores chamados linguagens naturais. Estes textos são produzi.
lingüistas falam de linguagens e lfnguas, mas este problema não nos concerne dos para ser transmitidos a indivíduos que conhecem o código da linguagem
neste momento. natural em que se formulam.

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Mas, como veremos, além do código constituído pelas regras da lingua- vras que se utilizam cotidianamente para fazer referência a estas relações. O
gem natural há outros códigos que permitem transmitir outros sentidos. Por "desmascaramento" depende, como se pode adivinhar, de que possa justifi-
exemplo, um artigo jornalístico sobre economia pode ser lido utilizando, pelo car-se razoavelmente que o uso cotidiano das palavras constitui um uso "in-
menos, dois códigos, o da linguagem em que está formulado e o da teoria correto" ou, então, que estas palavras se referem a ficções e não às relações
econômica na qual está instalado o autor do artigo. Já desde aqui podemos sociais as que pretendem referir-se.
indicar para onde apontamos: os textos jurídicos podem dizer muitas coisas
segundo os códigos com que sejam lidos.
5. IDEOLOGIA, IDEOLOGIAS, DISCURSO
E DISCURSOS
4. OS SISTEMAS FORMALIZADORES E OS
CONTEÚDOS DE CONSCI~NCIA Considere-se as seguintes expressões:
Aconseqüência do fato de que todo conteúdo de consciência - ou ide- 1) O texto conhecido como Minha luta, de AdolfHitler, expressa uma
ologia - possa existir somente em textos constituídos por signos qu~ perten- ideologia totalitária.
cem a algum sistema formalizador é que a ideologia é compelida a aparecer 2) O discurso fascista combinava uma ideologia nacionalista com uma
dentro dos limites deste sistema, ou seja, está compelida a aparecer dentro ideologia popular.
dos limites proporcionados pelo significado dos signos. Por exemplo, algu- 3) O discurso do direito civil expressa uma ideologia liberal.
mas idéias jurídicas não podem existir em certas sociedades porque estas não 4) O discurso estético do estalinismo é coerente com seu discurso
dispõem de palavras - signos - para expressá-Ias. Este é o caso da diferença político.
entre moral e direito, não existente no mundo grego porque este não dispu-
nha de palavras que a expressassem (1), assim como o conteúdo de consciên- Nestas expressões de uso comum entre juristas e outros cientistas so-
cia que a palavra nomos contém não poderia ser expressado em francês ou ciais podemos perceber a ambigüidade dos termos "discurso" e "ideologia".
castelhano, por exemplo. Como é impossível prescindir deles no tratamento dos textos jurídicos é reco-
Isto é muito importante se levamos em consideração que a ideologia mendável defini·los de maneira que seja possível manter o matiz que se perce-
expressada em textos na língua francesa ou espanhola está limitada pelo signi- be em seu uso comum. Para isto proponho aceitar, neste trabalho, o seguinte:
ficado das palavras da linguagem natural, que é o sistema formalizador destas
porções da ideologia que, por outras delimitações, logo qualificaremos de "do
direito" e/ou "jurídica". Da mesma maneira, o discurso do direito somente 5.1. Ideologia
pode existir sobre a base das palavras existentes na linguagem natural e com
o significado que as mesmas tem nesta linguagem. Precisamente disto se trata Proponho usar a palavra "ideologia" para fazer referência a qualquer
aqui, de analisar criticamente a ideologia do discurso do direito, esta ideologia COnteúdo de consciência, com o que lhe outorgamos a máxima amplitude.
que adquire forma no texto, mas adstrita ao valor semântico dos signos que o Por sua vez, nos colocamos fora da concepção do mundo segundo a qual
compõe. Resultará, esta é a hipótese, que a ideologia criada pelo grupo no existe a verdade à margem e acima dos discursos humanos. Desta maneira,
poder desfigura as relações sociais, mascarando-as com o significado das pala- "verdade" será uma propriedade adjudicada, convencionalmente, a certos
enunciados.
1 - "...0 léxico de Aristóteles não somente arece de um termo cujo sentido corresponda de modo
exato ao de "lei" como também de um vocábulo que possa ser traduzido corretamente pordireito
(seja no sentido objetivo ou no sentido subjetivo desta dicção)", GARcIA MÁYNEZ, Eduardo, Doctrlna
aristotélica de Itljusticia, México, UNAM, 1973, p. 131.

30 31
5.2. As ideologias discUrsos ou que a própria ideologia, a totalitária, por exemplo, possa existir
em distintos discursos, no jurídico ou no científico, por exemplo. Poderia
A mesma palavra, no plural, "ideologias", acrescendo-lhe uma qualifica- dizer-se que a diferença entre ideologia e discurso, conforme propusemos
ção, é utilizada de maneira distinta. Proponho, conservando este uso comum, aqui, é similar a diferença entre a matéria e a forma em Aristóteles.
usar a palavra "ideologia" acompanhada de um qualificativo para designar
uma porção da ideologia que é o conjunto dos conteúdos de co~sciê~cia exi.s-
tentes. Desta maneira, "ideologia jurídica" se refere a uma porçao da IdeologIa 5.4. Os discursos
diferenciável- segundo critérios que é necessário precisar - de outra porção
como a ideologia partidária, por exemplo. Proponho usar o plural "discursos" para fazer referência a formalização
das ideologias, de modo similar ao caso da palavra "ideologia". Desta maneira
poderemos usar a palavra "discurso", sempre que a acompanhe um qualifica-
tivo, para referir-nos a certa porção da ideologia, ou seja, a alguma ideologia
5.3. Discurso
em particular, que aparece em um setor do contínuo discursivo. Assim, por
Como já dissemos, a ideologia somente pode aparecer graças ao serviço exemplo, poderemos dizer que o discurso liberal é distinto do discurso fascis-
de um sistema formalizador como a linguagem natural. O mesmo pode ser ta ou que o discurso do direito é distinto do discurso da moral.
dito a respeito das ideologias. Proponho usar neste trabalho a palavra "discur-
so" para fazer referência a ideologia já formalizada.
Se o discurso é formalização de ideologia podemos usar, em geral, a 6. os USOS DE "IDEOLOGIA" E "DISCURSO"
expressão "contínuo discursivo" para referir-nos a totalidade da ideologia que
devido a estar fom1alizada, e somente por isto, pode circular na sociedade. Considere-se agora as mesmas expressões vistas anteriormente:
Deste "contínuo" indiferenciado logo será necessário delimitar seções para
proceder a sua análise, tal como um físico ou um biólogo devem delimitar l)O texto conhecido comoMinha luta, de AdolfHitler, expressa uma
dentro do conjunto dos fenômenos aqueles que se propõem estudar. O que "ideologia totalitária". "Ideologia totalitária" é, então, uma parte do
chamamos "natureza" é um "contínuo" de fenômenos dentre os quais é neces- conjunto de conteúdos de consciência existentes. Há, portanto,
sário determinar um setor. Dito de outro modo, o cientista deve estabelecer o outras partes que não são "totalitárias".
campo de sua atividade através de uma definição a partir do ~ontín~o qu~ lh: 2) O discurso fascista combinava uma ideologia nacionalista com uma
:oi oferecido. O resultado desta delimitação dentro do contmuo dIscursIvo e ideologia popular. "Nacionalista" e "popular" são duas ideologias,
'.l!!~ di;;eii'~,~~. particular, e por isto há infinita quantidade de discursos, onde ou seja, duas frações da ideologia. O discurso "fascista" é uma seção
cada discurso não é (nitra COisa quê O i\:~ultado de uma definição produzida - a delimitar - dentro do discurso ou contínuo discursivo circulante,
pelo analista. Não há discursos em si mesmos diversos uns àos vutros como na Itália, por exemplo. Este "discurso fascista" constitui a
não há fenômenos físicos em si mesmos distintos aos biológicos, a menos que formalização destas ideologias, a totalitária e a popular, em uma
sejam definidos como tais peio cientista, que, deste modo, os constitui em linguagem, neste caso uma linguagem natural como o italiano.
objetos delimitados de seu trabalho. 3) O discurso do direito civil expressa uma ideologia liberal. Neste
Vale a pena dizer que se, conforme propusemos, "discurso" tem como caso a seção do contínuo discursivo que delimitamos e denomina-
referente a ideologia quando esta aparece formalizada, e esta somente pode mos - de acordo com um método a especificar - "direito civil" ou
aparecer formalizada, então a ideologia não existe fora de um discur~o. ,Pode "discurso do direito civil", formaliza uma seção da ideologia que,
perguntar-se, então, porque não se equiparam ambos termos. A razao e que por razões a ser estabelecidas, delimitamos e denominamos "ideo-
teoricamente é possível pensar na diferença entre ideologia e discurso de tal logia liberal".
modo que seja possível entender que a ideologia pode existir em distintos

33
32
4) O discurso estético do estalinismo é coerente com seu discurso
político. Neste caso se trata de uma seção da ideologia, a qual deli- respeito da sociedade, então toda discussão se converte em uma competição
mitamos e denominamos (discurso) "estalinista", que forma parte de proclamação de epítetos contra os que sustentam a teoria rival, com os
do contínuo discursivo, e que se formaliza em um sistema membros de cada grupo reclamando para si a qualidade de cientistas e de
jormalizador, neste caso o castelha~~. Dentro ~~sta seção ~a ideo- "enunciados científicos" para suas afirmações. Isto tem o efeito de despolitizar
logia distinguimos os discursos politico e estetlco, que sao duas a disputa entre os apologetas e os críticos da sociedade capitalista. Adiscussão
seções deste contínuo. se despolitiza, apesar de que pareça o contrário, porque se instala no nível de
um discurso que supostamente está à margem da política. O nível discursivo
Poderemos dizer, assim, se oferecemos critérios diferenciadores, que o da ciência, quando se supõe separado da ideologia, leva a crer que os que
"discurso do direito" constitui a fomlalização de uma parte da ideologia, parte "falam cientificamente" estão fora da política, com o que conseguem fazer
que devemos delimitar como tal para diferenc~ar.da ~a~e que não seja "do qu~ ~ sua "ciência" pareça indiscutível. Mas como a ciência tem objetivos
direito". Epoderemos dizer que o discurso do direito CIVil, por exe~plo,.con- poht1cos, e como se desenvolve em espaços institucionais nos quais se con-
tém uma ideologia "burguesa" se dentro deste discurso pudermos Identlfic~r centra o poder, e já que o enunciado pelos cientistas é "verdade", então fica
uma seção da qual possamos dizer que faça surgir uma ide?l~gia que seJa justificada a repressão dos que não estão de acordo, dos equivocados, dos que
"burguesa". Ehaverá tal "ideologia burguesa" se pudermos delimitar, segundo somente fazem "ideologia", dos que querem "misturar a ciência com a políti-
certo critério por estabelecer, uma seção no interior da ideolo.gia da qual pos- ca", dos que, em conseqüência, há que expulsar das universidades, dos insti-
samos dizer que seja uma seção "burguesa". O problema, aSSim, se :o"~ve;t~ tutos, e, se ainda não tiverem ingressado, há que impedir-lhes o acesso. Com
neste outro: O que permite definir uma ideologia como ."bu~guesa: Jun~l. isto resulta que, sob o disfarce de ciência, se terá exercido o poder e reprimi-
do aos contestadores. .
ca" "totalitária" "nacionalista" ou "fascista"? O que permite diferenCiar o dls-
" "juódico" do discurso "cient!fico~, ou do ,d~scurso do parti'do nazIs
curso . t a:., Por outro lado, muitos dos que impropriamente se denominam marxis-
Para encontrar uma resposta plauslVel e necessano recorrer a outras. defint- tas procedem deste mesmo modo, ou seja, quando tem o poder dizem que
ções. Mas se não as encontrássemos não podeóamos analisar n~~ o dlsc~rso eles faze~ ciência e que os demais não passam de "ideólogos". Não obstante,
do direito nem o discurso do direito civil, nem qualquer outro discurso . quando nao tem o poder seu objetivo é desalojar os adversários do trono da
ciência, mas para que eles próprios se sentem.
Pelo contrário, do que se trata é, segundo creio e defendo, precisamen-
7. IDEOLOGIA EM SIGNIFICADO AMPLO te, de instalar a discussão no nível político, ali onde não tenha validez como
argumento a desqualificação a priori do outro, conseguida pelo simples fato
O termo "ideologia" geralmente não é usado no mesmo sentido ~~ que de possuir o poder nos institutos científicos. A discussão científica deve ser
foi proposto aqui. "Ideologia" significa, em seu uso corrente, o contrano.de instalada ali onde o que se deve fazer em matéria de decisões políticas depen-
ciência. É, portanto, um adjetivo que desprestigia o re:~rente d? ~~bstantlvo de da capacidade de persuasão dos argumentos. A discussão científica deve
ser instalada ali onde a verdade, como não pode ser de outra forma, e como de
ao que se aplica: tudo o que é qualificado co~ o te~o Ideol?gl~ e vaIorado
de modo negativo, contrariamente a valoraçao posItiva que e feita acerca do todos modos é embora queira ocultar-se, depende de uma competição entre
argumentos que podem convencer ou não.
que é qualificado com o termo "ciência".
O termo "ideologia" também é utilizado para denotar o camp~ do~ va~o­ Os ~lósofos da ciência, principalmente os neopositivistas ou analíticos,
res e em tal caso já não tem conotações pejorativas, embora tambem slgntfi· mas tambem os marxistas althusserianos, entendem que a ciência é irrefutável
qu~ o outro da ciência porque é um discurso não descritivo. . e que, por suposto, eles são os encarregados de decidir sobre a cientificidade
A dificuldade destes usos de "ideologia" consiste em que se aceitamos do que se diga. Não obstante, escondem que o fundamento de suas decisões é
que existe uma "falsa" consciência então terá de e,,!sti~ uma c_onsciência "ver- uma .~los.Ofi~ em particular, pois desejam conduzir à crença de que a definição
de Clencla e independente da história, que não é um produto social como
dadeira". Contudo, como cada teoria tem sua propna versao da verdade a
qualquer outro. Estão dispostos a aceitar a historicidade de tudo, exceto do

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fundamento da ciência. Assim como os racionalistas metafisicos sempre acre· terior do direit? constitui ~ objetivo principal desta pesquisa e, portanto, nos
ditaram que o conhecimento apreende o mundo porque o mundo coincide ocuparemos dIsto nos capltulos finais. Previamente a isto será necessário de.
com o pensamento, assim como pensam que este último é "verdade" indiscu· senvolver os temas do referente e da causa do discurso juridico.
tível, também os neopositivistas pensam ser indiscutível a definição da ciên· Uma seção da ideologia, uma ideologia particular, se destacaria do resto
cia que elaboram. Contudo, ocultam que a definição que fazem também é o sempre que pudesse ser considerada, arbitrariamente, desde logo, como um
produto da escolha de uma postura filosófica que podem "provar" de modo conjunto de elementos - "idéias" - cuja unidade esteja dada por algum ele.
tão insuficiente como os metafisicos podem provar sua definição de verdade. mento reconhecível que permitisse dizer que este conjunto é "coerente".
Ambas visões do mundo e da ciência coincidem em que por uma parte Definir este elemento seria construir um conceito que permitiria delimitar
existe a verdade e por outra a ideologia, e também no resultado que obtém, a certo setor da ideologia separando-o do resto. Caso não pudéssemos construí.
separação da ciência em relação a política. Ambos grupos pretendem excluir lo seria impossível a análise da ideologia jurídica ou a do direito tanto
das universidades, dos centros de pesquisa, das possibilidades editoriais, das como a de qualquer outra ideologia. A questão apresenta dificuldades sufi.
revistas prestigiosas, aos que fazem parte de um grupo contrário. Ambas posi- cientemente relevantes como para adiantar que, neste momento, qualquer
ções constituem uma des-historização do pensamento humano. Pelo contrá· tentativa de definir uma ideologia no interior de um texto jurídico, como ten.
rio, o uso de "ideologia" para fazer referência a todo tipo de conteúdos de taremos aqui, deve ser considerada apenas como um primeiro ensaio.
consciência, para referir-se, finalmente, a todo o mundo cultural, o mundo do
sentido, corresponde a uma concepção distinta das relações entre o pensa-
mento e o mundo. Este uso também se baseia em uma filosofia, mas não pre· 9. COERÊNCIA SINTÁTICA DOS TEXTOS
tende excluir a ninguém: pretende convencer. Mas voltaremos a isto mais
adiante. Deste ponto em frente, salvo advertência, o uso de "ideologia" será Os textos podem ser coerentes tanto desde o ponto de vista da sintaxe
este: conteúdo de consciência. como desde o ponto de vista dasemântica. Os textos podem transmitir qual.
quer ideologia porque são coerentes, inteligíveis, ou seja, tem sentido ainda
quando expressam mentiras. Os textos podem transmitir uma mensagem que
8. A UNIDADE DE UMA IDEOLOGIA pode ser recebida por um receptor distinto do emissor. Como se trata de uma
relação, isto é, da mútua posição que estabelecem entre si dois atores de um
A crítica da ideologia jurídica supõe que é possível determinar um setor fenômeno de comunicação, um texto é inteligível somente se o é para outro
da ideologia circulante em uma sociedade como distinta de todos os demais ator distinto do produtor, o que é possível devido a que o receptor dispõe do
setores, um setor que seria, precisamente, "jurídico". Por outra parte, a crítica c,ódigo necessário para decifrar a mensagem. Deste modo, ainda que um soli.
da ideologia juridica civilista (ou trabalhista, ou constitucionalista), por exem· loquio possa ser inteligível apenas para o emissor, de qualquer maneira este
pIo, igualmente estaria supondo que é possível identificar dentro da ideologia tipo de textos carece de interesse para nós neste momento. Somente interes-
jurídica um setor que pudesse ser plausivelmente denominado deste modo. sam aqueles textos dos quais se possa dizer que transmitem uma "mensagem"
Mas, e este é o problema desta pesquisa, também supõe que se possa dizer, desde o produtor até um receptor. Por isto é que a coerência sintática de um
plausivelmente, que nodireito civil, além da ideologia normativa propriamen· texto, que é o que lhe outorga sua inteligibilidade, é o que torna este texto um
te dita, que logo chamaremos de sentido deôntico, coexiste e se retransmite a produto cultural intersubjetivo, ou seja, em algo que possui a característica de
ideologia da circulação mercantil, isto é, a ideologia segundo a qual esta circu· poder servir de veículo para a transmissão de ideologia de um produtor a um
lação é natural, boa, etcétera. Portanto, para tornar plausível esta análise criti· receptor.
ca da ideologia jurídica é necessário propor os fundamentos da identificação Com a palavra "coerência" aplicada aos textos não desejo significar ou·
destes:distintos setores da ideologia. A identificação do direito em relação a tra coisa que obediência a certas regras. Um texto é coerente, em primeiro
outras ideologias constitui o tema clássico do conceito de "direito", do qual lugar, se seus signos estão organizados conforme a certas regras
nos ocuparemos nos capítulos seguintes. A identificação de ideologias no in· preestabelecidas e previamente aceitas. Estas regras constituem um conjunto,

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um sistema, do qual dizemos que é a sintaxe da linguagem em que se expressa tempo concedera a algum funcionário a faculdade de entrar em domicílios
a ideologia aparente no texto. A sintaxe de uma língua é um código que per- sem uma ordem fundada em sérias suspeitas da existência de provas da práti-
mite decifrar a mensagem que o texto contém. O código constitui, neste caso, ca de um delito em tal lugar.
-a descrição das regras e as regras para o uso destas. Portanto, é um outro Mas a palavra "coerência", nestes casos, não pode remeter à obediência
discurso, prévio, que tanto o produtor como o receptor do discurso reconhe- de regras de ordenação intersubjetivas do mesmo tipo que as das regras de
cem. Ambos o reconhecem como o conjunto de regras que foram seguidas sintaxe. Trata-se de algum tipo de ordem ou inteligibilidade que deve ser en-
para dispor a ordem dos signos que compõe o texto (2). contrada a partir do ponto de vista semântico. Tampouco se trata de coerên-
O que texto possui, em primeiro lugar, é coerência sintática, ou seja, cia lógica, pois a lógica sempre demon~tra que os textos relativos à política
seus signos estão ordenados conforme as regras sintáticas da linguagem de carecem quase totalmente de "lógica". E conhecida, por outro lado, a discus-
que se trate. A ideologia que o texto possui pode ser compreendida apenas são sobre a inaplicabilidade da lógica aos textos que pretendem derivar nor-
por quem conheça o código ou regras de ordenação dos signos. mas de outras normas, de modo que se a algo pode remeter-se a afirmação de
que no exemplo citado acima há "coerência" não é à Lógica.
Muito provavelmente um falante comum fique perplexo frente aos tex-
10. COERÊNCIA SEMÂNTICA OU DE tos que definem a evicção ou a anticrese, apesar de que compreenda o signi-
SENTIDO DOS TEXTOS f~ca?~ da maioria de suas palavras e de que note a correção no uso das regras
slOtatlCas. Os textos, para transmitir uma mensagem inteligível, devem pos-
Mas bem, um texto, que para sê-lo deve possuir um discurso sintatica- suir outro tipo de "coerência", que chamaremos de sentido, que será uma
mente coerente, pode conter distintas ideologias. Um exemplo disto são as coerência semântica e não sintática.
constituições modernas, que possuem algumas partes das quais freqüentemente Considere-se, por exemplo, os enunciados:
dizemos que expressam uma ideologia liberal e outras partes das quais dize-
mos que expressam uma ideologia socialista. Isto é perceptível tanto na Cons· " proibido matar" e "amanhã é quinta ".
tituição Federal do México como na de alguns de seus estados. Ali podem ser
lidas - pelo menos nas Constituições originais surgidas da revolução - pará· Ambos tem coerência sintática. Mas o conjunto
grafos inteiros de inspiração liberal e parágrafos inteiros provenientes das
fontes populares e revolucionárias fortemente influídas pelo socialismo. Nes· "Proibido matar. Amanhã é quinta"
te caso seria tão erróneo dizer que neste texto aparece a ideologia liberal
como dizer que ali aparece a ideologia socialista. Contudo, igualmente impró- não tem sentido e, ainda que sintaticamente seja coerente, não parece ser
prio seria dizer que se trata de uma ideologia "mixta" ou atribuir-lhe um nome nada mais que um solilóquio de alguém que não está em seu juizo. A razão
especial com o escopo de evitar a questão proposta pela convivência de dis· pela qual poderíamos dizer isto é que constitui uma expressão lingüística com-
tintas ideologias. posta por um conjunto de elementos que não mantém entre si nenhuma coe-
Ao mesmo tempo diríamos que é incoerente um texto constitucional rência de sentido. Se diz deste tipo de expressões "que não tem sentido". E
que, por exemplo, prescrevesse o respeito aos direitos humanos e ao mesmo como o estudo do sentido - ou significado: nem sempre ambos termos resul-
tam ~iferenciáveis - é a tarefa da semântica, diremos que estamos na busca
2 - "Os signos elementares configuram o léxico da linguagem. A ordem que lhes é imposta d~qutlo que permite dizer que certa ideologia ou certa fração do contínuo
combinand(}()s costuma ser denominada sintaxe. As regras que dizem respeito a ordem e aforma dos dlscu.rsivo possui coerência semântica, eis que não parece possível distinguir
signos, enquanto integram seqüências admissíveis em uma linguagem, constituem a gramática da um discurso jurídico de outro não jurídico, nem o discurso do direito do dis-
linguagem. Aseqüência de signos bem ordenada... tem apropriedade de servir de unidade transmissora
de uma mensagem nesta linguagem: dizemos que tem sentido", VERNENGO, Roberto J., Curso de curso do discurso de algo que não seja direito, nem o discurso do direito civil
teoria general deI derecho, Buenos Aires, Ed. Cooperadora de Derecho y Ciencias Sociales, 1976 p. do discurso do direito trabalhista, sem fazê-lo conforme um critério semânti-
23. co. Será, sem dúvida, um critério arbitrário, como todo critério científico de

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delimitação de parcelas do conhecimento. Mas, de qualquer modo, será um mensagem do conjunto do sistema seja recebida de maneira subliminal ou
critério que destacará os critérios próprios da semântica. Construiremos, para "inconsciente".
tentar esta identificação ou delimitação de ideologias, o conceito de "sistemas O princípio de coerência do sistema significativo será proporcionado
significantes". pelo discurso das ciências sociais ou, mais exatamente, pelo discurso da teo-
ria social aceita. Ateoria social produz um discurso que, segundo o sociólogo,
descreve as relações sociais objetivamente existentes. Este discurso será nos-
11. SISTEMAS SIGNIFICANTES so ponto de partida para construir o código ou princípio da coerência de
sentido dos outros discursos incluídos no discurso do direito. O resultado
Chamaremos sistemas significantes a conjuntos de enunciados perten- constituirá um sistema significante. Os problemas com os quais nos enfrenta-
centes a um ou a vários textos, que podem ser identificados como parte de remos são a qualidade do discurso científico do sociólogo (problemas da ver-
uma unidade conforme aos seguintes critérios. dade e da causa), a natureza do referente do direito e, principalmente, a refe-
A unidade que proporcionaria coerência de sentido a uma fração do rência fictícia, problemas aos quais dedicaremos capítulos especiais.
contínuo discursivo seria, em primeiro lugar, construída teoricamente. A or- Chamaremos tema ou princípio de coerência ao elemento unificador
dem pertence aos instrumentos teóricos produzidos para realizar este estudo dos enunciados que constituirão o sistema significante e que será proporcio-
e não aos objetos de estudo, ou seja, a ordem é, em realidade, um discurso. O nado pela teoria social. Para dar um exemplo, pensemos que fosse possível
mesmo ocorre com a coerência de sentido que se procura: é inteligível so- falar do discurso da ideologia "burguesa" em geral, e que dentro dela tenta-
mente na recepção do discurso. Que um discurso seja coerente depende da mos identificar um setor ou sistema significante, que chamaremos "da livre
ordem que possa proporcionar-lhe um código que lhe anteceda. "Descobri.r" empresa", suponhamos que devido a que em uma primeira análise nos pare-
o sentido de um discurso, sua coerência, é apenas uma forma de falar, pOIS, ceu possível identificar um tema que permitiria construir este novo objeto de
em realidade, não há "descobrimento", mas sim identificação entre sentido estudo. Suponhamos, simplificando, que chegássemos a conclusão de que
do discurso e sentido do código que o decifra ou "descobre". Por outro lado, esta ideologia está organizada em torno ao tema da "livre contratação". Intui-
esta identidade entre discurso e código de recepção é absolutamente subjeti- tivamente todos conhecemos o discurso que sustenta esta ideologia, mas se
va: deve haver "alguém" que receba, ou seja, que produza o discurso que diz não o conhecêssemos deveríamos defini-lo em um discurso que constituiria
que o sentido do discurso analisado corresponde ao do código ~tilizado. O um código.
máximo que se pode pedir é que esta subjetividade seja compartIlhada, que O tema, neste caso, seria a idéia de que o estado não deve intervir, em
seja "intersubjetividad~", ou seja, que "?U~ros" ~a.mbém identifi~~em a coe- absoluto, nos contratos que os empresários realizam. O sistema significante
rência do discurso anahsado com a do códIgo utlhzado para a anahse. estaria constituído pelo conjunto de enunciados cujo sentido é esta idéia. Es-
Um sistema significante seria, então, o resultado da atribuição de coe- tes enunciados poderiam ser organizados de muitas maneiras para seu estudo,
rência de sentido a um setor de um complexo discursivo em vista de que este e nada impediria que, construindo outro tema, pudessem pertencer a outro
setor possa identificar-se com o discurso que funciona co~o código. sistema significante. Diríamos, então, que este conjunto de enunciados per-
Mas bem, o código, por sua vez, deve ser construIdo como qualquer tence ao sistema significante da livre empresa, que é um setar da ideologia
outro discurso. Para o que nos interessa aqui, o código, se trata de um discur- burguesa. Contudo, isto apenas constituiria a definição de um tema encontra-
so construído desde o ponto de vista de outras ciências distintas da ciência do no próprio discurso. Suponhamos, então, que temos uma aceitável e pací-
que estuda o sentido normativo do discurso do direito. O que nos interessa é fi.ca definição do fenômeno que denominamos "circulação do capital" propor-
mostrar os outros discursos presentes no discurso do direito e propor que tais CIonado pela Economia. Desde o ponto de vista desta última ciência, este
discursos constituem sistemas significativos cuja origem se encontra nas rela- fenômeno é reputado como sendo o referente do conjunto de enunciados
ções sociais e que o objetivo de sua presença no direito é ~ostrar tai~ rela~ões q~e constituem o discurso da livre empresa. Com efeito, quando o usuário do

como naturais, justas, boas, etcétera. Como se trata de SIstemas, a IdentIfica- dISCUrso burguês se refere a livre empresa, em realidade, fantasia sobre fenô-
ção de apenas um de seus elementos pelo receptor do direito permite que a menos que não compreende e que constituem o que a Economia denomina

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circulação do capital. Se isto é aceitável, então o tema do discurso da "livre sa uma vez que este pôde ser construído. Sendo assim, é claro que a função de
empresa" está constituído pelo mO,delo, pa~ nós tem~ ?u~rincíp~o, ~enomi­ transmissão de ideologia pode ser cumprida com a presença de apenas um
nado "circulação do capital" que e construIdo pela ClenCla economlca, que elemento em um discurso, mas sob a condição de que o receptor conheça o
lhe reputa como referido a um fenômeno objetivo e independente. Neste código que serve para identificaI" este elemento como parte do sistema ausen-
segundo caso o tema organizador do sistema significante é exterior ao discur- te, ou seja, sob a condição de que na ideologia geral do receptor esteja conti-
so analisado e provém de outro discurso que é o da Economia. No caso do do o sistema significante ao que pertence o elemento presente.
direito pretendemos que possam ser identificados no texto jurídico os siste- Mas bem, estes sistemas significantes poderiam estar denotados ou sim-
mas significantes que possuem e transmitem ideologias plausivelmente plesmente conotados no discurso analisado (3). Diremos que um sistema
identificáveis que constituem ficções em relação às relações sociais. significante está denotado em um texto quando seus elementos estão presen-
Resulta mais que evidente a convencionalidade da identificação de um tes neste texto. Por exemplo, um texto no qual um empresário explica os
sistema significante. No exemplo do sistema significante da livre empresa aspectos generosos do f.10delo econômico no qual ele pode fazer o que quer
percebe-se imediatamente que apenas pode ser descrito como expressão da é um texto que possui um discurso que denota o sistema significante da livre
circulação do capital caso aceitemos a teoria do capital expressa por Marx. empresa.
Contudo, um empresário pensaria que tal descrição é falsa e diria que se trata Isto é assim porque o denotado - o referente - é sempre um discurso
somente da expressão da liberdade natural do homem: Quem teria razão? ou construção cultural, como veremos. O significado de um signo "denota"
Obviamente, então, o tema de um sistema significativo é obtido de um mode- um referente ou, então, o referente é o denotado pelo usuário do signo. Não
lo teórico descrito a partir de uma teoria social previamente aceita. Este mode· obstante, o referente é, em realidade, outro discurso, posto que nunca há
lo permitiria qualificar o setor de um discurso como coincidente com o mode; contato entre discurso e mundo empírico. A relação entre ambos está sempre
lo e proceder logo a sua análise. Como qualquer hipótese, o modelo revelara mediada por construções culturais. O denotado é, portanto, um discurso, pois
sua pertinência no êxito da análise que deverá ser contrastada empiricamente é sempre um resultado anterior da cultura, é sempre um sistema significante
ou oferecer novas hipóteses. que os usuários reputam como referido a fenômenos objetivos e independen-
Cabe acrescentar, finalmente, que a pretensão de encontrar tes dos sujeitos.
sistematicidade em uma ideologia poderia ser respondida por quem utilizasse Contudo, em um discurso que denota certo sistema significante podem
o termo em sentido estrito. Com efeito, possivelmente se dissesse que somen- coexistir um ou vários signos que pertencem a outros sistemas significantes
te cabe adjudicar sistematicidade à ciência. Não obstante, a sistematicidade, é que estão presentes apenas através deste elemento. Em tal caso diremos que
necessário advertir outra vez, pertence ao modelo criado ou aceito pelo ana- este ou estes signos "conotam" outros sistemas significantes, que, deste modo,
lista e nunca ao discurso analisado. O analista é quem decidirá estudar uma estão presentes no discurso analisado apenas através de um de seus motivos
ideologia a partir de um modelo que será um conjunto sistemático de enuncia- ideológicos, com apenas um de seus elementos. Neste uso específico dos vo-
dos, por exemplo, a sistematicidade no exemplo anterior é uma qualidade do cábulos "denotação" e "conotação", proposto somente para este trabalho,
modelo marxista de explicação da circulação do capital e não uma qualidade talvez tenhamos alterado um pouco o uso freqüente dos mesmos naSemiótica.
da ideologia da livre empresa. Nesta ordem de coisas pode dizer-se que no discurso jurídico do cientis-
ta está denotado o sentido deôntico do direito, posto que este discurso tem
~or objeto evidenciá-lo. Em troca, outros sistemas significantes, o
12. DENOTAÇÃO E CONOTAÇÃO Jusnaturalismo do produtor do direito, por exemplo, pode estar conotado

Dado que é possível identificar sistemas significantes no interior de um


texto, então também será possível identificar signos isolados que formam parte
destes sistemas. Um exemplo disto é a expressão "livre contratação", facil- 3 :-. Sobre esta questão, DELGESSO CABRERA, Ana Maria, "E! derecho, un discurso connotado", em
mente identificável como pertencente ao sistema significante da livre empre- CrztlCajurídica, número 12.

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· nos ue tem determinado significado neste discur: Capítulo Segundo
pela pr~sença de certos S;g se ~ma norma diz que "na sentença o juiz devera
so filosoficod:o~teX~~~a~os" há um sentido deôntico denotado, que é "obri-
res~e~tar os I.rtearl"ose o sentido'da expressão "direitos humanos", que conota, o DIREITO COMO DISCURSO PRESCRITIVO
gatono respel , . . .
e se apresente a ideologIa Jusnaturahsta. .
faz cO~e~~ivamente à transmissão de ideologia podemos dizer. qu~ se esta f,?1
cumprida através da presença de um e1e~ent? de um siste;a Slg~~~s~~d:a~
resente no texto é porque o receptor Identtficou acerta a~en ,
P, . o de ue dis õe a este elemento como integrante do SIstema ausente:
codlg Mas ~em c~mo'poderia sabê-lo o analista deste discurso? Como sa~en,a
SUMÁlUO:I.Aspalavrasdodiscursododireito; 1.1. Osigno; 1.2. Osignificado; 1.].
que o receptor'realizou esta identificação? Unicam.e~t~ pode~~mos aven~:s~ o referente; 2. Osentido dos discursos;]. Sentido e ideologia; 4. Uso descritivo e uso
lo com os rocedimentos habituais acerca da eflcaCla d~s Iscursos: prescritivo ela linguagem; 4.1. A diferença desde oponto de vista semântico; 4.2. A
suponham~ que realizar tal identificação deveria condUZI-lo a pr~d~z.lr u:: vontade doprodutordo discurso; 4.]. Adiferença desde oponto de vistapragmâtico;
conduta, a comprovação empírica da exis~ência da ~e.s~a ~onstltU1na u _ 5. Discursos com sentidoprescritivo; 6. Os discursos e os operadores lógicos.
comprovação da eficácia do discurso, isto e, nos permlttna dIzer que o ~~c~a
tor realmente identificou aquele elemento como pertencente a este SIS e
o que Marx chamou "superestrutura" hoje deve ser chamado discurso.
~;;~~:~~~~~o:~~l~~fi~~~i;u;e~e0ri~:~:~~:~:o~~~~~~~:e~:~::~:~:se;~~r: Marx esteve completamento acertado ao estabelecer diferença entre a base
econômica, que podemos ver como conjunto de fenômenos empiricamente
os estudiosos da ideologia, como as entrevistas, po~ exem~lo~r t
Desenvolveremos e utilizaremos estes conceItos maIs a lan e. verificáveis, e os discursos que versam, "que se erguem" sobres eles. A este
respeito disciplinas como a Semiótica e a Filosofia da linguagem oferecem
conceitos que podem ser utilizados pela crítica do direito. Na seqüência trata-
remos de esclarecer alguns conceitos tomados destas disciplinas e que nos
permitam encontrar a especificidade formal do discurso do direito (capítulo
segundo) em relação com o restante dos discursos de sua espécie e, finalmen-
te, diferenciar o discurso do direito dos demais discursos de seu tipo, mas
atendendo a seu conteúdo (capítulo terceiro).

1. AS PALAVRAS DO DISCURSO DO DIREITO

Os especialistas no estudo da linguagem não chegam a um acordo sobre


o significado da palavra "significado" e nem tampouco sobre a diferença entre
"significado" e "sentido". Tudo leva a crer que a discussão e a reflexão sobre
esta questão continuará durante muito tempo ainda. Por nossa parte, com o
objetivo de definir algumas das palavras utilizadas neste trabalho, deveremos
conformar-nos com conceitos úteis ainda que provisórios.
Aceitaremos, dentro dos limites desta pesquisa, que as palavras, indivi-
dualmente consideradas, possuem um significado, enquanto que os enuncia-

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dos têm sentido. Aceitaremos, além disto, que o significado é distinto de seu ção. Há muitas outras idéias, que ocupariam várias páginas, que constituem o
referente. sentido deste enunciado. A análise do sentido transmitido pelo discurso do
direito - que é um signo - é exatamente o objeto final deste trabalho, que
pretende oferecer um fundamento científico para esta análise mas isto sim
• - , • , t
1.1. Osigno com mtençao cntlca.

o signo, significante ou representantem, em geral, "é algo que, para


alguém, representa ou se refere a algo" (1). O signo está no lugar de outra I.]. O referente
coisa, que é sempre uma idéia ou uma construção cultural. Em nosso caso,
como nos referiremos somente a textos jurídicos escritos, podemos aceitar O referente ou denotatum das palavras é a parte do mundo exterior
que os signos são as palavras -sememas segundo outra nomenclatura -, que sobre a qual o emissor do signo acredita poder dizer algo. Não importa que
são as unidades básicas dos textos onde se encontra a ideologia do direito. seja falso ou que, em realidade, não exista tal referente ou que nada possa ser
Não obstante, também são signos os enunciados compostos por um conjunto dito sobre ele. Há umdenotatum toda vez que o usuário da linguagem acredita
de palavras que, conforme admitimos anteriormente, possuem significado dizer algo de algo que acredita existir. "Mundo exterior" não é aqui o mesmo
enquanto que os primeiros possuem sentido. que este "mundo material" exterior e distinto do sujeito que postula a ideolo-
gia realista ingênua. Em realidade, o referente é sempre uma construção cultu.
ral e não uma coisa ou um fenômeno (2). Esta questão se tratará detalhadamente
1.2. Osignificado mais adiante, no capítulo oitavo. Pensemos, por enquanto, como exemplo,
no referente da palavra "deus". Embora deus não exista, constitui, de qual-
O significado é a idéia, o conteúdo de consciência para usar nossa termi- quer maneira, um objeto exterior ao sujeito emissor, acerca do qual este pre-
nologia, onde se encontra o signo. Em palavras de Peirce, o signo "se dirige a tende dizer algo. O fato de que diga mentiras ou se refira a uma ficção não
alguéin, isto é, cria na mente desta pessoa um signo equivalente ou, talvez, un impede que o sujeito pretenda dizer algo acerca de um objeto que ele crê
signo mais desenvolvido" (idem). exterior. O referente da palavra "administração" - poradministraçãopública
O elemento de um sistema significante, então, é um signo que cria na - assim como deus, é uma ficção e, ainda assim, se trata de um objeto exterior
mente do receptor um signo equivalente, ou seja, um conteúdo de consciên- ao sujeito emissor sobre o qual este pretende dizer algo. Da mesma maneira,
cia, ideologia. O signo "cachorro" cria em nossa mente a idéia de um mamífe- tampouco existem os "acordos de vontade" aos quais o direito civil se refere,
ro definido por certas características. Desta mesma forma, a palavra "produ- mas sim apenas a circulação de mercadorias. Os chamados "acordos de vonta-
ção" se encontra no lugar das idéias sugeridas por esta palavra, a palavra "sa- de" são apenas aaparência dos intercâmbios de mercadorias e , não obstante,
lário" se encontra no lugar da idéia que temos desta transferência de dinheiro, o usuário do discurso do direito civil se refere a "acordos de vontade" quando
e a palavra "direito" se encontra no lugar da idéia sugerida pela palavra. Em usa a palavra "contrato", ainda que tais acordos sejam somente uma ficção.
síntese, as palavras são representações de certas idéias. Por sua vez, os enun- Em outras palavras, acordos de vontade são odenotatum ou referente de quem
ciados têm um sentido que está no lugar das idéias sugeridas por este conjun- usa a palavra "contrato" sem que importe que se trate de uma aparência do
to de palavras. Um exemplo disto é a assertiva "é obrigatório pagar o salário fenômeno intercâmbio.
estabelecido pela lei", que contém, entre outros, o sentido de que o salário é Esta diferença entre afirmar a existência de um mundo objetivo e a de
a contraprestação do valor que o trabalhador entrega e que a lei - aqui no afirmar que o referente é uma coisa ou fenômeno do mundo exterior tem a
lugar de "estado" - preocupa-se que o trabalhador obtenha esta contrapresta-
2 - Esta afinnação constitui wna afiliação auma concepção filosófica que foi resumida por Umberto
Eco no Tratado de semióticageneral, México, Ed. Nueva Imagem, 1978 (veja-se cap. 2.5 e 2.6, pp.
1 - PEIRCE, Charles Sanders, La ciencia de la semiótICa, BuenosAires, &I. Nueva Vi5ión, 1986, p. 22. 117 e 55.)

46 47
maior importância, como veremos, porque indica que realmente não há aceso No caso 2,
. a meu juizo, Kelsen quer dizer o mesmo que Weber, isto'e,
so a este mundo exterior chamado "relações sociais" tal como deseja o realis- qu~ ~o prod UZlr uma norma, quem o faz, pensa em - "quer", diz Kelsen _,
mo vulgar sustentado pela maior parte dos sociólogos. As palavras se referem dinglr a" con~ut~ de outro, quer que a conduta de outro "deva ser" (3). A
a elementos interiores tais como conteúdos de consciência ou construções palavra ~:nt~do, do mesmo modo q~e no caso anterior, significa conteúdo
culturais e não a elementos exteriores. Há relação entre o signo e o significado de conSClenCla. (Em Kelsen este conteudo de consciência é conteúdo de "von-
sem que o significado mantenha unidade ontológica com o referente. Sobre tade" e não de conhecimento. Nossa acepção de "ideologia" como "conte'd
esta convicção se baseia, e trataremos disto adiante, o fundo teórico desta de consciência" per;nite inc~uir estes atos de vontade de que fala Kelsen)~ o
pesquisa. Como veremos, as palavras utilizadas no discurso do direito e nos ,No ca~o 3 - quem da o se~tido tem o poder" - a palavra "sentido"
discursos daqueles que falam sobre ele provém da ideologia do produtor do tambem esta no lugar de um conteudo de consciência: o que é transmitido a
discurso e não das "relações sociais". outro que o entende e obedece. (Se não obedecesse não poderíamos dizer
que se deu "sentido" nem que se tem o poder). Mas o que o outro "obedece"
é um conteúdo de consciência, é um "dever ser". Recordemos que Kelsen diz
2. O SENTIDO DOS DISCURSOS que o dever "se encontra imediatamente dado a nossa consciência" (4).
~os casos 4 e.~ se.trata de normas. No caso da rua, "sentido" significa o
Considere-se os seguintes enunciados: conteudo de conSClenCla segundo o qual é obrigatório - "dever" como no
caso 3 - caminhar neste sentido e que é proibido fazê-lo em sentido'contrário.
1) O objeto da Sociologia é a ação com sentido. No caso da explicação do "sentido" da norma X se trata de transmitir um
2) As normas são o sentido de atos de vontade. conteúdo de consciência: o que é proibido, permitido ou obrigatório segundo
3) Quem dá o sentido tem o poder. a norma que se explica.
4) Esta rua tem sentido contrário. " No caso 6 se trata de explicar o que é uma norma, se diz que dá "senti-
;) O sentido da norma X é Y. do a nossas condutas, ou seja, permite um "conteúdo de consciência" em
6) As normas outorgam sentido a nossas condutas. relação a elas, permite dizer que são boas ou más, justas ou injustas devidas
7) O que Saul diz não tem sentido. ou indevidas. '
8) Não tem sentido proibir o que não é possível realizar. Nos casos 7 e 8 se trata, obviamente, de conteúdos de consciência. No
caso 7, onde ~ que Saul diz não tem sentido, "sentido" está no lugar do pensa-
Podemos dizer que este é o tipo de uso da palavra "sentido" que nos mento que nao se pode ter porque Saul não transmite nenhum. No caso 8
interessa porque é o tipo de uso com o qual nos enfrentaremos. Acerca destes "~en~ido" t:mbé~ está no lugar do pensamento que não se pode ter porque
usos seguramente é possível dizer uma enorme variedade de coisas. Para o nao e POSSI;el, nao o pensar a conduta descrita na norma, mas sim o fato de
que nos interessa bastará com advertir que se trata do uso de "sentido" para que e~ta seja "devida" ou "proibida". Neste caso o que não é possível é o
significar - para estar em lugar de - um conteúdo de consciência. c?nteudo de consciência"dever", embora seja possível o conteúdo de consciên-
Relativamente aos dois primeiros casos, notoriamente expressões de cia que descreve a conduta.
Weber e Kelsen, respectivamente, o sentido é um "conteúdo de consciência". .~ .Em síntese, em todos estes casos "sentido" significa conteúdo de cons-
No caso 1, a ação que tem "sentido" é aquela através da qual o ator pensa ClenCla segundo o sentido antes atribuído a esta expressão. "Sentido" é uma
dirigir-se a outro. O ator pensa, acredita, tem a idéia, de que com esta conduta palavra que significa um conteúdo de consciência muito mais complexo do
se dirige a outro - e Weber pensa, sobretudo, no poder, que para ele determi·
na a conduta de outro -. É possível que objetivamente não seja possível dizer
que "se dirige a outro", por exemplo, porque o outro não toma conhecimen- 3 - "Quemftxa uma norma, i.e., impõe,prescreve uma certa conduta, querque umapessoa (ou
Pessoas)t/eva (ou devam)conduzir-sede umadeterminada maneira" Teoria GeraJdasNormas Porto
to, mas isto não elude que o ator "pense" dirigir-se a outro. Este pensamento Alegre, Fabris Editor, 1986, p. 35. ' ,
ou conteúdo de consciência constitui o sentido de sua ação. 4 - KE1.SEN, H., Teoriapura dei derecho, México, UNAM, 1969, p. 19.

48 49
que o de "significado". Não obstante, com esta~ acepções a~bas palavras sigo de discurso do direÍLll. ':,au uostante, a diferenciação não deixa de apresentar
nificam o mesmo, ainda que com importante diferença relatIvamente ao grau dificuldades.
de complexidade.
4.1. A diferença desde o ponto de vista semântico
3. SENTIDO E IDEOLOGIA
Apesar de uma aparente simplicidade a diferença não é nada óbvia. Os
Apesar dos distintos usos de ambas palav~as, em realidade significa~ o critérios elaborados pelos especialistas são muito sutis mas não muito convin·
mesmo: conteúdos de consciência. Contudo, nao se usam da mesma maneIra. centes. Em uma primeira aproximação freqüentemente se diz que as descri-
Um exemplo disto é que não se diz "sentido" - por "ideol~gia" - ~as~ista, ções limitam-se a informar objetivamente sem tentar interferir no desenvolvi-
embora se diga "sentido" - por "visão do mundo" - burgues ou crtstao da mento do mundo, enquanto que as prescrições tem como objetivo mudar o
vida. Trata-se de usos mais do que almejar a busca de exatidão no significado. mundo, isto é, fazer que alguém faça algo. Contudo, o que aos especialistas
Neste trabalho utilizamos as expressões "ideologia juódica" e" ideolo- parece ser o fato determinante para que um enunciado seja considerado des·
gia do direito", sendo a primeira delas utilizada, como v~re~os, pa~ referir-se critivo é que ele possa ser qualificado de verdadeiro ou falso(5). Mas, observe·
ao "sentido" que os juristas conferem ao discurso d? dIreIto, sentl~o ~ue re· se, o fato de que possa ser verdadeiro ou falso não provém do próprio enun·
sultará apologético do estado caso transmita conteudos de consclencl~ que ciado, mas sim da consideração que o analista faça sobre ele. Depois de tudo,
sejam apologia do estado. Por outra parte, a cótica juódica tam?ém e um a verdade não é outra coisa que uma afirmação que alguém faz a respeito de
discurso que pretende mostrar o sentido oculto, mas eficaz, do dIscurso .d? um enunciado. Mas "alguém" o faz, e este "alguém" quase nunca é o mesmo
direito. Esta cótica juódica também tem seu sentido, ela pretende transmItIr que produz o enunciado qualificado de "verdadeiro". (Com efeito, não resulta
uma ideologia que contém o sentido de uma cótica do sentido ideológico, relevante afreqüência com que quem pensa dizer algo verdadeiro, além disso,
como diremos depois, do direito positivo. Estes são os usos, aqui, de "sentido" o repete). Dito de outra maneira, um enunciado é verdadeiro, mas para ai·
guém, e nem sequer se pode dizer que um enunciado é verdadeiro sem fazê-
e "ideologia".
lo desde outro enunciado. Esta é uma primeira dificuldade frente a definição
que quase sempre se encontra nos textos que falam da descrição.
4. USO DESCRITIVO E USO PRESCRITIVO
DA LINGUAGEM
4.2. A vontade do produtor do discurso
Até aqui vimos que os discursos, e o direito é um deles, tra?smitem um
sentido. Entretanto, também podemos dizer que o sentido dos dISCUrsos pro- Outra dificuldade é posta pelo fato de que há enunciados que tem forma
vém do uso dos signos. É o uso da linguagem de certa maneira o que permite descritiva mas que não o são. São realmente prescritivos, e devem ser conside·
transmitir determinado certo sentido através de seus signos, e por isto se pode rados, ao que parece, válidos ou inválidos, e não verdadeiros ou falsos. Produ-
falar, sem perda de sentido, de sentido descritivo e senti~? pres~ritiVo dos
enunciados como efeito do uso descritivo e do uso prescrttlvo da hnguagem. 5 - "As leis do estado são prescritivas. Estabelecem regulamentos... Não tem valorveritativo. sua
Na Semântica foi desenvolvida a diferença entre descrição e prescrição, finalidade é influenciara conduta", von WRIGHT, Go Henrik, Norma y Acción, Madrid, Ed. Tecnos,
1979, po 22oAssim mesmo: "Mentreteproposizionisono il contenuto di sign/ftccato di enunciati
ou entre enunciados descritivos e enunciados prescritivos, ou, mais pruden· Usati per formulare conoscenze e trasmettere inlormazion~ te norme (o rego/e) sono il
temente entre uso descritivo e uso prescritivo da linguagem. É óbvio que o contenuto di significado di enunciati usatiper dirigere i comportamenti egli atteggiamenti.
tipo de t~xtos que nos interessam são os de sentido presc~tivo: de modo q~e Le proposizioni sono dotate de la proprletà semantica di poter essere vere olalse, mentre te
a diferença entre ambos nos proporciona uma nova aproXlmaçao ao conceIto norma non hanno taleproprletà ~ GUASTIN1, Riccardo, "Regole costitutive e grande divisione",
em Lezionisullinguaggio giurldico, Torino, Edo Giappichelli, 1985, po 41".

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zimos enunciados dos quais, segundo sua forma, se poderia dizer que são A solução parece ser uma combinação de ambos pontos de vista, de
verdadeiros ou falsos e, no entanto, constituem ordens. Nestes casos é neces- modo que a Semâ~tica, estudo do sentido, implica a Pragmática, ou seja,
sário recorrer ao conceito de "sentido" dado pelo emissor ao enunciado e ao para que um enunciado possa ser verdadeiro ou falso previamente temos que
muito mais etéreo conceito de "vontade". Não há mais possibilidades que o saber se foi produzido como tendo a possibilidade de sê-lo, e isto depende da
recurso à forma gramatical, que codifica como "descrição" todo enunciado qualidade do emissor ou da situação de poder (8). Sendo assim, a grande divi-
que inclui o verbo ser e como "prescrição" todo enu~ciado que inclui ~ verb~ são na qual se baseia a identificação do discurso do direito tem, como base,
"dever" ou então o recurso ao produtor do enuncIado, quando entao sera por sua vez, o "contexto", de modo que para distinguir entre discursos descri-
descriti~o ou prescritivo segundo tenha sid<? o "s~ntido" q~e tenha "desejado" tivos e discursos prescritivos é necessário começar pelo "contexto" de sua
conferir-lhe o atribuidor de sentido. Isto propoe, tambem, o problema do produção, como veremos a seguir.
referente da palavra "vontade"(6).
5. DISCURSOS COM SENTIDO PRESCRITIVO
4.3. A diferença desde o ponto de vista pragmático
Mas bem, como nosso objeto é a ideologia do direito e esta se encontra
APragmática é adisciplina que estuda a produção de sentido em rela~ão em textos extensos e complexos, resulta que um texto pode incluir enuncia·
com o "contexto" em que se produz este sentido. Recorrer ao ponto de vIsta dos descritivos e enunciados prescritivos. Aceitaremos dentro dos limites desta
pragmátiCO para decidir sobre a natureza descritiva ou prescritiva de um enun- pesquisa que um texto que contém ao menos um enunciado prescritivoadmi-
ciado quer dizer decidir sobre a base do contexto em que se produz a te um discurso que tem sentido prescritivo. Portanto, um discurso descritivo
enunciação. O problema é que "contexto" é um termo não definido de modo é o que se expressa em um texto no qual todos seus enunciados são descriti-
unívoco, nem claramente, pelos semióticos(7). Desde logo, o problema da vCls. É evidente que o direito é um discurso prescritivo. Não obstante, se con-
"vontade" pode ser considerado também como objeto da Pragmática por- sideramos que o mundo cotidiano é o mundo ético, resulta que quase todos os
que, como facilmente podemos adivinhar, "contexto" é um termo dificil de discursos t;m sentido prescritivo. Com efeito, tem como objetivo "fazer fa-
precisar. Por exemplo, se o pai diz na presença do filho que "faz frio", prova- zer" algo. E dificil aceitar que se produzem "informações" que não tem ne·
velmente queira dizer "fecha a janela". Mas no mesmo "contexto", se o filho nhum objetivo prático.
diz o mesmo, muito provavelmente não ~ueira dize.r "fecha a jan~la". :~tão, Em última instância, apenas o discurso que artificialmente se propõe asi
"contexto" pode referir-se ao entorno fislco ou SOCIal, mas tambem a sItua- mesmo, e com muito cuidado, somente descrever fenômenos é um discurso
ção de poder" (expressão também não muito clara) em que se encont~m os descritivo. Este é o discurso que se autoqualifica de científico. O discurso
interlocutores. Além destas, muitas outras coisas podem entrar na conSIdera- científico é um discurso que se diferencia de todos os demais porque mantém
um~ determinada coerência entre seus enunciados conforme regras que o
ção pragmática da produção de sentido. ,
No caso do direito, no entanto, como veremos, resulta plauslvel e rela- e~ls~or estabeleceu (ou aceitou) e que se denominam em conjunto "método

tivamente simples aceitar que a qualidade de autoridade do produtor do sen- CIentIfico". Este conjunto de regras que o discurso científico deve obedecer
~ã? estabelecidas pelos próprios cientistas e, obviamente, eles são os únicos
tido pode fazer de qualquer enunciado uma prescrição.
JUIzes que podem qualificar um discurso como científico ou não científico.
6 _ Veja-seVERNENGO,RobertO)., "Fundanes nonnativas yvoluntad de signo·, em Critica, México,
volume XV, número 44, UNAM, 1983, pp. 27 e 55.
7 _ "o conceito de 'contexto' se caracteriza como a reconstrução teórica de uma série det~ços de 8 - "Pragmaticall)' expressions ofa naturallanguage used in concrete acts ofspeech have
uma situação comunicativa, a saber, daqueles traços que são part~ i~tegrante das,c~n~içoes que rnan)'functions. 71I;s multifundonality depends on the concretcontext in which an expression
fazem que os enunciados dêem resultados co~o at~ de fala. O obJetl~o da pragmatlca e fo~ular is USsed... 71Iis approach seems necessary for an)' semantics of natural language which is
estas condições, ou seja, indicar que vinculaçao eXIste entr~ os enuncIados e estecontexto .VAN basedonitspragmatics ~ WR6BLEWSKY,Jerzi, "Evaluativestatementsinlaw.AnAnalyticalapproach
DIJK, Teun A, La dencia dei texto, Buenos Aires, Ed. Paidos, 1983, p. 93. to legal axiology", RIFD, 4.1981,p. 605.

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52
Existem certas regras científicas comumente aceitas por todos os cientistas e
enunciados prescritivos com um maior grau de precisão do que o alcançado
regras que não são aceitas como tais por todos, ou seja, regras cuja
por estudiosos de outras ciências na determinação de seu objeto. Penso que
inobservância não desqualifica como "não científico" um discurso para todos
está claro que os enunciados prescritivos proíbem, obrigam ou permitem. A
os cientistas. Trata·se das regras próprias de cada ciência em particular. No
idéia geral de dever foi desdobrada nestes três operadores denominados
caso da Ciência Jurídica os discursos que são aceitos como "científicos" são
deônticos: proibido, obrigatório, permitido. O sentido prescritivo dos enun.
aqueles que cumprem os requisitos ou obedecem as regras metódicas
ciados é outorgado aos enunciados através destes três operadores. Pode dizer-
comumente aceitas nos centros universitários dedicados ao ensino do direito,
se que são enunciados prescritivos aqueles que podem ser traduzidos ou rees.
os quais, entre si, mantém exigências muito diferentes para r:conhecer os
critos de modo que algum dos operadores deônticos possa ser utilizado nesta
discursos como científicos. Além disso, as distintas concepçoes acerca do
nova escrita sem que o enunciado deixe de ter algum sentido sintático. Por
"método científico" é o que faz prudente a utilização de "ideologia" como exemplo, o enunciado
conteúdo de consciência em geral e não como oposto à ciência. Note-se que
o método "científico" não é cientificamente produzido senão que é anterior à
"será condenado à prisão de 5 a 25 anos quem... "
própria ciência, posto que é o conjunto de regras que diz como tem de ser
feita a ciência. Voltaremos a este tema.
é, desde o ponto de vista gramatical, um enunciado descritivo posto que des-
A dificuldade que apresenta a diferenciação entre descrição e prescri·
creve uma conduta utilizando o tempo futuro do verbo. No entanto, pode ser
ção é imensa. Caso somente aceitemos a ciência, e isto com muita desconfi~n­ reescrito como
ça, como discurso "informativo", que não tenta exercer nenh~m.ahege~onta,
que não tenta fazer fazer nada a outro, então o discurso do direito se dlferen· " é obrigatório condenar à prisão... "
cia pouco de qualquer outro. Não obstante, a Teoria Geral do Dir~ito con·
temporânea conseguiu produzir conceitos bastante cl.~ros. a res~e~to. ~o~
adquirindo assim um sentido prescritivo. Assim - deixando de lado outros
uma aceitável precisão, mais que em quaisquer outras ClenClas sociaiS, as Jun-
elementos, como os pragmáticos - pode dizer·se que este é um enunciado
dicas conseguem determinar seu objeto. Mas bem, como veremos, justamen-
prescritivo ainda quando gramaticalmente apareça como descritivo.
te esta precisão foi destinada a separar as normas, ou seja, o que chamare~os
Contudo, agora podemos observar que este critério, que é formal no
mais adiante "sentido deôntico" do discurso do direito, de todo outro sentido
sentido de que atende a seu caráter deôntico, nos oferece todo o tipo de
imanente ao texto. Por outro lado, aqui estamos principalmente interessados
enunciados prescritivos, de modo que sem necessitar maiores comprovações
no que chamaremos "sentido ideológico" do discurso do direito, que apresen-
sabemos que o discurso do direito é apenas um entre os discursos prescritivos.
ta esta irremediável dificuldade de que todo discurso, ou quase todo, tem um
Para avançar devemos apoiar-nos agora em outros critérios: não se trata de
objetivo prático: fazer fazer.
quaisquer discursos prescritivos, mas sim de discursos de um tipo especial,
para cuja delimitação é necessário recorrer agora a outros critérios coadjuvan.
teso Até aqui podemos aceitar, para o fim que nos interessa, que identificamos,
6. OS DISCURSOS E OS OPERADORES LÓGICOS formalmente, o tipo ou espécie de discurso que é o direito: um discurso com
sentido prescritivo.
Poderia aceitar·se sem oposições que todos os discursos que tem por
objetivo, que são produzidos com a "intenção" de.dominar~ f~zer com que
outro faça algo, são discursos prescritivos. Este sena, sem dUVida, o caso do
discurso do direito. Mas o desenvolvimento da lógica deôntica nos permitiu
um maior grau de precisão na definição dos discursos prescritivos desde o
ponto de vista semântico. Acredito encontrar no conjunt~ de regras que ofe·
receram os estudiosos da lógica os instrumentos que permitem reconhecer os

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55
Capítulo Terceiro

o CONTEÚDO DO DISCURSO DO DIREITO

SUMÁRIO: I. o direito como discurso organizador da violência; 1./. Odireito como


discurso qlleameaça rom a violência; 1.2. Odireitoromo instrumentoderesolução de
conflitos; 1.3. O direito caracterizadopela possibilidade de submeteralgo ajustiça;
1.4. Odireitoromomodeloparajulgarcondutas; 1.5. Odirei/oromounfdadededois
tipos de normas (Harl); 2. Aqualfdadedoprodutordodiscurso dodireito; 3. Odireito
romo discurso autorizado; J I. Osentidoautorizado; 3.2. A vontadedoprodutor.

Podemos aceitar que a caracterização do direito alcançada no capítulo


anterior éformal no sentido de que recorremos a um critério oferecido pela
lógica. No entanto, agora será necessário utilizar outros critérios. O primeiro
é o critério oferecido pela concepção segundo a qual o direito é um discurso
que organiza o uso da violência como monopólio de certos indivíduos, en·
quanto o segundo é oferecido pela qualificação do produtor do discurso, e o
terceiro é o oferecido pela qualidade de ser um discurso de conteúdo autori·
zado por outro discurso.

1. O DIREITO COMO DISCURSO ORGANIZADOR


DA VIOLÊNCIA

Aceitaremos aqui que o discurso do direito, entre todos os discursos


prescritivos, se caracteriza por organizar o exercício da violência em uma
sociedade. Isto constitui, sem dúvida, uma incursão na questão acerca da de·
finição do direito, que não é o objetivo deste trabalho. Não obstante, a trilha
nos conduziu até aqui e não é possível eludir ao menos um exame resumido,
ainda que rigoroso.

57
esta concepção porque a entendem empobrecedora em relação aexp ,A •

1,1. O direito como discurso que ameaça com a jUfl'd'Ica e dIas pOSSI'b'I'd
I I ades de dominação deste discurso, Por out ra enencla
. d d" part e,
violência
A

jUflstaS apo ogetas o Irelto veem-na como uma concepça-o que n- dá


'· h 'b'l'd d d ao ao
dIrelto nen uma pOSSI I I a e e ser visto como uma ajuda para a vida huma-
Como sabemos, esta é a concepção de Kelsen e também de Ross. Este na. Voltare~os.a tratar di~t~ ao abordar ambas concepções.
critério de distinção - que é aceito neste trabalho -, deve imputar-se àSemân- C~be Ju~tlficar ~ e1~lçao de uma concepção acerca do direito? Em todo
tíca. caso, nao sera uma Justificação "científica" porque a eleição se prod z
"Esta é a 'semantização' da qual falamos... e que, na minha opinião, cons- , Id 'T' • Gera l d " u. no
titui a diferença essencial entre o conceito do direito de Weber e o de Kelsen. ,. . aI eorta
Olve 'fi _ "o Dtreito, que e anterior aatividade científica ' AsSim, a
UOlca Justl Icaç~o PO~~IVel e de caráter ético: aderir a de Kelsen significa aderir
Esta semantização implica uma transformação radical da ciência jurídica, pois a uma concepçao cntlca do direito em geral. Esta eleição é de natureza ética
elementos que eram considerados alheios ao direito são incluídos nele." (1) porque. ~arte ~a valorização suprema da liberdade individual da qual toda
Com efeito, segundo Kelsen, não é que o direito se valha ou que "use" a normatividade e sempre uma limitação. Alguns certamente pensam que aTi ri
violência, mas sim que o direito é a própria organização da coação:
"O que distingue a ordem jurídica de todas as outras ordens sociais é o
Ge~~l Dir~ito
do não deve obter suas categorias a partir de nenhuma poe::u~
polttlca. Esta e uma afirmação sustentada por todos os reacionários de direita
fato de que regula a conduta humana através de uma técnica específica. Se que ~~nd~ a fazer pas:ar por apolítica uma posição política, ade que a filosofia
ignoramos este elemento específico do direito e não o concebemos como e a ClenCla podem nao ter objetivo político algum.
uma técnica social específica e o definimos simplesmente como ordem e or- Esta questão pertence ao tipo de reflexões que se realizam no nível da
ganização, e não como ordem (ou organização) coercitiva, perderemos a pos- Fil~sof~a P~l~tica, que depende, por sua vez, do que se denominavaAntropo-
sibilidade de diferenciá-lo de outros fenômenos sociais." (2) loglf} Ftlosóflca e que, sem maiores razões, desapareceu da reflexão contem-
Portanto, poranea, talvez por "metafisica". Mas seja certa ou não sua característica de
"Uma norma é jurídica quando ela própria estabelece uma sanção, e não ser uma ?as filosofias que são pejorativamente denominadas "especulativas",
porque sua eficácia esteja assegurada por outra que estabelece uma sanção. O o certo e que todos, confessem ou não, tem uma concepção do que é o ho-
problema da coação (compulsão, sanção) é um problema sobre o conteúdo mem e, portanto, de ~omo deve considerar-se o estado, ou o direito, Quem
das normas e não um problema de asseguramento de sua eficácia." (Idem, p. pensa que o homem e um animal originariamente gregário (o cristianismo
34) (3) p,?r exemplo) não tem dificuldade em aceitar que a sociedade e suas norma~
No mesmo sentido opina Ross: sao o lugar e o modo em que pode produzir-se a plena realização humana.
"Um ordenamento jurídico nacional é um corpo integrado por regras Qu~m ~e?sa,. ao contrár~o, que o homem é um indivíduo cuja mais primitiva
que determinam as condições sob as quais deve ser exercida a força fisica ~,ssencla e a hberdade, nao po~e~ deixar de, ver com toda desconfiança pos-
contra uma pessoa... Sinteticamente: um ordenamento jurídico nacional é o IVel qualquer forma de normatiVIdade, e mUlto mais se se trata desta inconsis-
conjunto de regras para o estabelecimento e funcionamento do aparato de t~nte form~ cha~~da "estado". Entre estes se encontram os anarquistas e o
força do estado." (4) genero de Itbertanos entre os que há que incluir a Kelsen. Marx, e sobretudo
Esta concepção é atualmente debatida por duas tendências que são di- Eng~ls.' que demonstraram uma violenta aversão ao estado, embora seja ne-
vergentes. Por uma parte, alguns juristas críticos do direito confessos, rechaçam ~e,ss~n~ reconhecer que ~eu ideal comunista pertence ao mesmo ideal do
nstlanlsmo (desde logo nao me refiro ao cristianismo abertamente capitalista
de João Paulo II), e por este aspecto podem ser vistos como quem pensa que
1 _ SCHMILL oRDÓiiIEZ, Ulises, "EI concepto de derecho en las teorias de Webery de Kelsen", em
a verdadeira realização do homem somente pode dar-se em sociedade o que
O. CORREAS, (comp.), El otro Kelsen, México, UNAM, 1989, p.188. - aIgum tipo de normas, Por outra parte quem pensa que o homem '
2 _ KELSEN,H., Teoria GeneraldelDerechoyelEslado, México, UNAM, 1969,p. 30. P, re ssupoe
3 _ Cfr. BOBBIO, NoJberto, "Derechoyfuerza",emConlribudónala TeoriadelDerecho, Valencia, eo" , '
ngmanamente um ser bondoso mas corrompido pela sociedade (ou outras
Ed.F.Torres,1980,pp.335 ess . formas de pecado original), como Rousseau, Marx, os anarquistas ou o cristi-
4 _ ROSS, A1f, Sobre el derechoylajusticia, Buenos Aires, EUDEBA, 1963, p34.

59
58
· o mantém a esperança de um regresso ao estado anterior atal corrupção. dern~, e não d? di~eito em geral, é sustentar que este ordenamento jurídico
amsm, . dd b ..
Entre estes, aqueles que privilegiam o instinto de hber. a ~ so. re o mstmto permIte a domma~ao das classes poderosas - a burguesia em geral, mais exa.
ocietário como os anarquistas e alguns marxistas - Lenm dIsse Isto expressa- tamente a financeIra - sobre os que trabalham. Isto quer dizer que existe uma
~ente -, ~onservama esperança de que neste regresso se fundará uma s?cie. Teoria Geral do Direito de concepções críticas e uma Crítica do Direito mo-
dade humana sem estado. Por outro lado, os que pensam que o homem e um derno e, desde logo, que esta última inclui a primeira, embora não ocorra o
animal individualista, libertário, mas beligerante e anti-social, como Kelsen, mesm? pa~ o caso inverso. Ameu juizo, mas sei que há outros, a justificação
Freud ou Nietzsche, estão incapacitados para manter a esperança na utopia da aceltaçao de umas ou outras modalidades no interior da Teoria Geral não
dos homens sem normas, e sustentam desesperançadamente a necessidade pode argumentar-se melhor.
da repressão, colocando a utopia em u~a forma de ?i~eit?, produzid~ d.e~~­ Cabe acrescentar que embora o direito seja um discurso que organiza a
craticamente, como única forma pOSSIVel de convlvencla humana. E muttI violência e, portanto, está dirigido em primeiro lugar aos funcionários que
escapar a este fatal e residual jusnaturalismo que todo~ pr?fessa~o~. Nossa devem exercer a força contra os infratores, não seria sensato ignorar que o
concepção do direito, a simpatia ou rebeldia que nos msplra o dIreito, pro- destinatário do sentido é o indivíduo ameaçado, e isto é válido em relação aos
vém desta nossa oculta Antropologia Filosófica que não queremos reconhe- cidadãos mas também aos próprios funcionários. Trata-se de um discurso que
cer. Em última instância, a concepção do direito que adjudicamos à Teoria se por uma parte organiza a violência indicando quais membros da sociedade
Geral do Direito que aceitamos, em realidade, provém de nossas concepções devem a~licá-Ia, e também como, quando e em que medida, por outra parte
éticas. Os espíritos libertários não podem aceitar nenhuma asserção que adju- parec~ nao fazê-lo. Eparecendo não fazê-lo transmite ideologias de aceitação,
dique alguma bondade imanente às normas. O máximopossível é uma r~s~g­ como Justas, das relações sociais descritas em seu sentido ideológico. Caso
nada e vigilante aceitação da menor normatividade POSSIVel, e sob a condlçao não estivermos sempre vigilantes a partir de uma atitude crítica o direito pode
de que seja consentida pelos dominados. Por isto a concepção que vê no aparecer como um discurso inocente, organizador de condutas socialmente
direito a organização da violência, que não permite ver nele nenhuma bonda- benéficas, que parece dirigir-se aos cidadãos oferecendo possibilidades de
de intrínseca, que nos coloca de sobreaviso contra toda forma jurídica, que produção de condutas, escondendo seu rosto repressivo. Mas isto é apenas
reivindica para o homem o máximo de liberdade possível, é uma convicção uma ma~obra di~ersionista, a violência organizada está ali, a serviço de quem
filosófica que marca irremediavelmente nossa concepção do direit~. pode faze·la funCIOnar utilizando a legitimidade que lhe empresta este discur-
Este jusnaturalismo silencioso não implica nenhuma afirmaçao de algu· so repressivo.
ma bondade de algum conteúdo normativo, como é o caso do jusnaturalismo A concepção kelseniana que adotamos aqui é rebatida por outras ten.
que proporcionou a base filosófica de todas as ditaduras que existi:am. Este dências contemporâneas, como as seguintes.
jusnaturalismo apenas implica que de acordo com nossa concepçao ~o ho·
mem, acreditemos ou não, avida social requer alguma forma de repressao. As
consciências libertárias e democráticas sustentam que desde o ponto de vista 1.2. O direito como instrumento da resolução de
ético o único conteúdo de normas aceitável é o produzido democraticamente conflitos
com o acréscimo, que não tem nada de jusnaturalista porque é muito históri·
co, de que nem sequer as normas produzidas democraticamente podem. ate_n-
Segundo uma concepção difundida, principalmente entre alguns soció.
tar contra os atualmente denominados "direitos humanos", entre os quaIs nao
logos, o direito é um instrumento de resolução de conflitos. Já à primeira vista
está incluído o da apropriação privada dos meios de produção.
resulta impossível pensar na eficácia do direito moderno, ou seja, no controle
Isto é válido em relação a concepção crítica do direito em geral, ou seja,
que se exerce sobre mais da metade da população mundial que é mantida na
de todo direito. Outra coisa, não contraditória, é sustentar que a normatividade
miséria, como "resolução" de conflitos. Claro que se pode dizer que "conflito"
é necessária para manter o controle social, sem o qual seria impossível a so-
P?de ser entendido como incluindo a "luta de classes", o que é correto, mas
brevivência da espécie. Algo distinto do anterior, não somente não contradi·
nao podemos entender "dominação" como incluída em "resolução". Isto por
tório como complementar, e que constitui uma atitude crítica do direito mo-
um aspecto. Mas, além disto, que o direito "resolva" conflitos não passa de

60 61
uma caracterização dos efeitos de seu uso. Em outras palavras, se trata da ~ifeito ~ermite exer~er a domin~ção. Afunção do direito é a hegemonia polí.
definição de um objeto próprio da Sociologia e não da definição de um objeto tlca e nao a resoluçao de conflitos. E se alguém diz que é a mesma coisa
próprio de alguma ciência do discurso. Com isto deveria bastar para justificar porq~e ao "r<:,solver" co~it~s se "domina", então proponho que se deixe d~
o rechaço, ao menos neste trabalho, desta concepção. usar resoluçao de conflitos e que se regresse a "exercício da dominação".
Caso realmente seja a mesma coisa não haverá dificuldade alguma.

1.3. O direito caracterizado pela possibilidade de


submeter algo a justiça 1.4. O direito como modeloparajulgar condutas

Também é próprio da Sociologia caracterizar o direito pela possibilida· Aconcepção anterior aparece como parte da Teoria do Direito e não
de de submeter algo a justiça em lugar de caracterizá-lo pela qualidade das da Sociologia, quando a argumentação parte da análise das próprias no~as e
normas que o compõe. não de seu uso. Contudo, se trata da mesma concepção em outra variante que
"L'eventualité du jugement, I'eventus judicii, constituerait donc le trait não é ~o~traditória a c~ncepção sustentada neste trabalho. Para alguns juris.
spécifique de la régulation juridique... C'est ·à-dire que présence de juridicité tas o direito deve definlr·se por sua relação com sua utilização, o que não é
n'est pas synonyme, au contraire d'une idée tres répandue, d'existence de criticável, salvo quando tal definição é apresentada como pertencente à Te.
regles préétablies gouvernant en particulier les jugements provoqués par les oria Geral do Direito e não à Sociologia jurídica. Certamente, o direito é
éventuels Iitigies et mises en questiono Autrement dit, la normativité n'est um discurso ameaçador e se usa para medir condutas, mas não há nenhuma
nullement de I'essence de la juridicité: la regle de droit n'est pas logiquement razão que mostre a inconveniência ou a impossibilidade de efetuar adistinção
premiere dans la manifestation d'une juridicité, pas plus sans doute qu'elle n'a entre o que é o direito e o seu uso, ainda quando se trate do único uso possí-
été historiquement premiere." (5) vel. Um exemplo desta ausência de distinção é o seguinte:
É fácil observar que se trata de uma variante da posição anterior, apenas "La nature logique d'une regle de droit n'est sans doute, au contraire de
com o acréscimo de um ingrediente histórico: a juridicidade apareceu antes ce qui est couramment professé, de prescrire, prohiber ou permettre une
que as normas. Nesta variante se produz um sutil deslocamento desde a "reso· conduite (sous la menace d'une sanction maniée par I'autorité sociale). Par
lução dos conflitos", que é com toda obviedade um efeito do uso das normas, son appartenance générique, elle est un modele idéel, c'est·à-dire un instrument
à "juridicidade", que é o mesmo, mas, por tratar·se de um substantivo, o que de mesure, de référence, permettant d'apprécier chaque fois que ses conditions
era "efeito" - submeter algo a justiça -, passa a ser "essência" devido a muta· d'application san réunies comment les choses doivent être." (6) .
ção do verbo em substantivo. Com isto é aberto caminho para a idéia de que Esta posição também aparece em um texto que para muitos constituiu a
"juridicidade" é distinta de "direito" ou de "conjunto de normas". Em realida· t~oria da Critique du Droit, e que possivelmente se possa dizer que é comparo
de, sustentar que o direito é um discurso que ameaça com a violência não é tJ1hada pelos juristas que constituíram esta corrente (1). É certo que o direito
contraditório com uma posição que queira destacar o fato de que este discur·
so é usado, entre outras coisas, por exemplo, para dominar, para pôr termo a
discrepâncias ou julgar condutas. Sobre a verdade do enunciado que diz que
o direito é usado para isto não implica que em essência não seja um discurso
ameaçador. Em troca, se por um lado o direito "resolve" conflitos, por outro
lado ele é uma distorção em relação a verdade do enunciado que diz que o 6 - Groupe Stephanois, "Les mutations....,cito p. 11. C/r., porque o próprio artigo o faz na nota 16,
~AMMA~, Antoine, "Norme et Regle de droit", emAnnales de la Faculté de Droit~t de Sc/ences
,conomtques de Lyon, 1972-11, pp. 105 e ss. O tema foi retomado pelo próprioJeammaud em "La
I'égle de droit oomme modele", emRevueInterdisciplinaired'Etudesjurldiques, 1990.5, pp. 125ess.,
5 - "Les mutationsdesformesdudroit", em Proces número 9, p. 9. Otrabalho aparece assinado por no qUal o autor desenvolve estes pontos de vista mais detidamente. Aconcepção não foi alterada
Groupe Stéphanois de Recherches, dirigido na Universidade de Saint·Etiene porAntoine]eammaud neste novo escrito, de modo que podemos fOOll'-nos aque foi citada no texto.

62 63
é uma espécie do gênero dos modelos ide~is, ou seja, dos in~trument?s de 1.5. O direito como unidade de dois tipos de normas
medir, que permitem apreciar como as cOI~as devem ser. Nlst? cor:slste a (Hart)
função do direito e de todo discurso normatlv~ de: dar s~ntido as. açoes hu·
manas. O que tratamos de dilucidar aqui, preCI~ame?te, e que o dls~urso do Mas existe diferença, e agora essencial, entre o proposto nesta pesquisa
direito é um discurso prescritivo, além do que e mais um entre os discursos e aqueles que definem o direito como discurso composto de dois tipos de
normativos. O discurso do direito se distingue entre eles, como veremos, por normas. Existe uma diferença de fundo com aqueles que querem estender o
estar autorizado, por ser emitido por funcionários e por ameaçar c~m a vio- uso do signo "direito" até incluir "normas" não ameaçadoras, mas com a inten-
lência. O que ocorre é que sempre está acompanhado de outros discursos, ção de mostrar uma parte benévola deste discurso do poder. Aqueles que
não normativos, todos incluídos no mesmo texto, o que pode fazer com que procedem deste modo já não deixam espaço para a definição de um fenôme·
o direito pareça ser algo maís que normas. Em realidade, se trata de normas no social expressamente destinado a organizar a violência. Não haveria tal
acompanhadas de outros discursos que não é necessário incluir na mesma fenômeno social salvo quando unificado com outro fenômeno cujo objetivo
espécie que a das normas que ameaçam com violência. Isto é tudo. _ não seja a dominação. Neste caso estamos frente a uma concepção contrária a
Aposição adotada nesta pesquisa foi motivada pelas mesmas ra~oes que sustentada aqui. Hart sustenta que o discurso do direito contém dois tipos
levaram outros a estender a qualidade de "direito" a muitos outros discursos distintos de enunciados ou normas, sendo que algumas, reconhece, ameaçam
que não são prescrições que ameaçam com a violência. Contu~~, a sol~ç~o foi com a violência enquanto outras não o fazem. Por exemplo, as normas que
distinta: consiste em aceitar que há muitos discursos prescrttlvoS, dlsttntos estabelecem como tem de ser redigido um testamento não podem ser consi·
dos descritivos mas reservando o nome de "direito" para os textos que inclu- deradas um discurso que ameaça com a violência, mas sim com a nulidade, e
em preSCriçõe; que ameaçam com a violência e que são emitidos por fun~i~­ nulidade não é o mesmo que coação. Relativamente ao exemplo do testamen-
nários reconhecidos como tais. É preferível aceitar que existe a "grande diVI- to, ou a qualquer outro similar, suponho que na Inglaterra, do mesmo modo
são" entre descrição e prescrição e que dentro desta última pode ser id~nt!fi­ que na América, um juiz ou um tabelião que aceite como válido um testamen·
cado um setor produzido por certo tipo de indivíduos e que organiza a vlOlen- to que não tenha sido elaborado em conformidade com estas normas deve ser
cia. O nome "direito", então, fica reservado para este tipo de prescrições. Isto castigado com as penas previstas para o delito de descumprimento dos deve·
não nega que existam outras, nem nega que possam coexistir outros discursos res de funcionário público. Estou certo de que um juiz ou um tabelião conde·
_ definições, por exemplo -, nos mesmos textos em que existe o discurso do nado por cometer um delito como este não diria que lhe aplicaram uma "nu·
direito. Por isto a utilidade do conceito de "texto" como produto cultural que lidade" . Em palavras de Hart:
pode suportar muitos ?iScurso~ ao mes~o.tempo'"Por isto, ta~~~~, o e~forço "Mas existem importantes tipos de normas jurídicas a respeito das quais
por produzir o conceito de "sistema slgnl~cante que pe~ml~tr1a Ide~tt~car, esta analogia de ordens respaldadas por ameaças não cabe, em absoluto, por-
no mesmo texto, diversos discursos. Em stntese, a questao e a defintçao de que elas cumprem uma função social totalmente distinta. As regras jurídicas
"direito" . que definem o modo de realizar contratos, celebrar matrimônios ou outorgar
testamentos válidos, não exigem que as pessoas atuem de modos determina-
dos, o queiram ou não. Tais normas não impõem deveres ou obrigações. "(8)
Certamente que com uma concepção como esta não se poderia delimi·
tar o discurso jurídico apelando à Semântica, segundo a qual o direito é um
discurso que organiza o uso da violência. Hart pensa que este tipo de normas
"não violentas", longe de constranger alguém - nem sequer aos juizes que
7 _ MIAlLLE, Miche~ Une !ntroductton critique au droit, Paris, Ed. Masperõ, 1978, p..1~3: ·Un devem julgar sobre estes contratos, matrimônios ou testamentos -, concede
sysreme normatif, comme ledroj~ es donc avanttoutun systemede mesure,..,1a ~~rmejuridtqUe est
instrumentde mesure... ': Oautor cita aqui o trabalho de A.JeammaudDes OPPOSltlons de nonnes en
droitprivé interne, mimeografado em Lyon, de 1975, que resu.lta um estudo ainda posterior, sobre a
mesma questão, ao citado na nota anterior. Ou seja, esta doutnna vem mantendo-se desde 1972. 8 - HART, H. L. A. ,EIconcepto de derecho, Buenos Aires, Ed. AbeJedo-Perrot, 1977, p. 35.

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facilidades aos particulares para levar a termo seus desejos, o que consegue
outorgando-lhes poderes para criar, mediante determinados procedimentos produzido por quem está autorizado pelo ró ri ' .
específicos e sob certas condições, estruturas de faculdades e deveres (idem). que ameaça com o uso da violência que a~u~ i~:lr~dlto, como ve~emos, e
outros. VI uos exercerao sobre
O direito proporciona as "facilidades" para que patrões cumpram seus
desejos de pagar o que desejam aos trabalhadores, para que os latifundiários
cumpram seus desejos de transferir a terra a seus filhos em precisos testamen-
tos, para que os empresários enganem aos trabalhadores transferindo ações 2. A QUALIDADE DO PRODUTOR DO
saudáveis a empresas falidas e, por suposto, para que os pobres possam cum- DISCURSO DO DIREITO
prir seus desejos de comer comprando algo cujo preço não conseguem pagar.
Ao contrário, com uma atitude crítica a respeito do direito, por exemplo, um Contudo, nem todos os discursos que o r ' .
sos do direito. Salvo encontrar-se outro critéri;~~I~a~ a.vlo~enci~ são ~iscur.
A

contrato aparece de maneira muito distinta a de outorgador de "facilidades"


para que os indivíduos cumpram seus desejos: sível distinguir qualquer outro discurso q e Imltaçao, nao sena poso
. ue ameaça com a violên . d I
"Um contrato, então, pode ser visto como a constituição admitida de que propr~amen~e nos interessa analisar. Este critério existe e é oticla .~que e
um subgrupo social, dentro do âmbito de grupos sociais englobantes... a rigor ~:i:s~~~slderaçao pragmática do discurso, trata-se da qualidad~r:~~i~1 p:~
o contrato não obriga: contratar é uma técnica de constituição válida de
subgrupos com pautas internas de comportamento de seus membros. O con- Poderemos dizer, então, que é discurso do direi d' ..
trole das mesmas - isto é, do desempenho dos papéis que as partes se distri- 9ue_organiza o uso da violência sempre que tenha ~~d~ pl~~~rs~~reSCrttlvo
buam e, por conseguinte, da redistribuição de bens e privilégios que as partes orgao do estado. Facilmente se descob' UZI o por um
estabeleçam, assim como das modalidades de reprodução do grupo - ficam, política de Kelsen. É direito o discurso ;~O~~~id~utra vez, a ades~o ~ fil~so.fia
autoriza a que o faça. por quem o propno direito
em princípio, em mãos dos membros do próprio grupo ou de seus represen-
tantes. Mas, ao fim e ao cabo, sempre é o grupo social englobante quem man- Não deixa de tratar s ' . . .
tém o controle de seus subgrupos, se é que há de subsistir como uma unidade Parece absurdo, em uma ~r~:n~f:~;:~:::a,- de uma petição de princípios.
social. " (9)
É necessário dizer que Hart também fala do direito desde o ponto de
~~~~e~~;.t~ ~o~~:~~~~rreel'ttioenn'ra:oset.ao direit~a~~~~:~e~~~~~~~i~~~ I~~~~~~:
Ivesse outro suporte qu
vista sociológico. Ele se refere ao uso do direito e, neste caso, à função social: se proporciona. E, com efeito é assim o direito n_ e o que e e mesmo
estas normas, como a dos contratos, diz ele, "cumprem uma função social
totalmente distinta". Apenas que, no caso de Hart, diferentemente do caso da ~:~e~~~~~ ~ ~~~~~~iae~eu:~:~~~~~~ii~u~~I~f:~~o~~;~t~::s~: ~~~~~~
concepção de normas como modelos para os mais diversos objetos, se trata se qu:~rap~o~~:nohde~imento do discurso do direito remetemos ao produtor:
de uma concepção contrária a que sustentamos aqui. Iscurso tem a faculdade de p d . I . ,
É importante distinguir entre o que o direito é e aquilo para que serve:
autorizado pelo discurso do direito p ' r~ UZI- o~ ou seja, se esta
do direito A questão de revlamente aceIto, entao este discurso é
É um discurso ameaçador que serve para dominar. Sendo assim, então pode· er" como se reconhece como "do direito" o discurso ue
mos dizer que o discurso do direito é, entre outros discursos prescritivos, ~ro~~~:e~~~~;~~ ~on~~ ~ue s~ja
do dtirleito atio produzido depois constit~i
o
_ men a que 01 teortzada por Kelsen.
diz K ~queles que estao autorizados pelo direito são os órgãos do estado como
9 - VERNENGO,ROOertoJ" "Obligadón y Contrato',em ConceptosDogmáticosy TeorúHlelDeredlO, e sen, ou, como aparece em outros autores, são funcionários públicos.
México, UNAM, 1979, p. 92. Ena p. 94: "Desta maneira, ofuncionamento de um importante mecanismo
de controle social fica, aparentemente, em mãos dos próprios sujeitos controlados, dos ocupantes
dos papéis socialmente atribuídos. Conferir a obrigação de assumir e cumprir as ações dos papéis
socialmente necessários, supondo a livre vontade dos ocupantes, é uma excelente técnica através da
qual umasodedade assegura sua subsistênda·.

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Como se sabe, Weber fala de quadro administrativo (lO) enquanto Engels
fala de funcionários públicos (lI). . ,. órgãos que compreendem desde os secretários de estado ou minis-
Os juristas estão acostumados a pensar nos juizes. co~o ~s funC1on~nos t~os até os humildes empregados, passando pelos temíveis polici-
ais.
"aplicam" o direito, mas não atentam a que a aphcaçao e, concomltan-
~~ente, obediência a normas e, além disso, ~riaçã~
de outras. ~~r out~o • Os juizes: também os juizes estão plenamente reconhecidos pelo
sistema jurídico. As resoluções que produzem em cumprimento de
lado, estão acostumados a deixar de lado a conslderaçao de que ~s JU1ze~ ,sao
apenas alguns dos funcionários, entre muitos o~tros, que tambem ~phcam sua obrigação de produzi-las constituem, confonne a nossa caracte-
rização, discurso do direito (13).
omlas ao obedecê-las e que constantemente cnam outras. Em reahdade, ?
~ireito é uma cascata de discursos que "baixa" através ~a hier~rq~ia
dos ~n~l­ • Os particulares autorizados: os cidadãos comuns são, por excelên-
onários, que são milhares, e não apenas os juizes,que sao a ml~ona: A ~alOna cia, os últimos destinatários da mensagem do direito. Não obstante,
dos produtores de direito são os funcionários da administr~çao yubhca e os em um considerável número de casos são também funcionários
próprios cidadãos. Esta "cascata" termina sua queda nos cldadaos comuns, autorizados a produzir um grande número de nonnas, como no
alguns dos quais - os pais, por exemplo, mas ta~bém os contratantes em uma caso dos contratos, da delegação de autoridade que o direito realiza
compra-e-venda -, estão autorizados a prodUZir algu~~s normas.. em favor dos pais, tutores, professores e, finalmente, nos casos em
Todos estes produtores de direito podem ser tipificados assim: que, inclusive, podem converter-se em policiais quando estão auto-
rizados a deter delinqüentes infraganti.
• O legislador: todos os sistemas jurídicos estabelecem ~xpressamen­
te quem são os atores sociais autorizados a prodUZir normas. de
obediência geral para todos ou alguns dos membros da com~tnlda­ 3. O DIREITO COMO DISCURSO AUTORIZADO
de (12). Este tipo de discursos do direito existe em textos facilmen-
te reconhecíveis -lhes denominaremos textos legislativos -, como Nem todos os discursos que ameaçam Com a violência _ critério semân-
é o caso do Código Civil. Em quase todos os estados modernos tico - e que são produzidos por pessoas autorizadas _ critério pragmático _
existe um jornal oficial onde, sem lugar a dúvidas, ou melhor, sem são direito. Em um mesmo texto podem aparecer outros discursos além das
lugar a dúvidas relevantes, se encontra o tipo de textos que, prove- nonnas, como no caso da fundamentação da parte resolutiva das sentenças,
nientes do legislador, nos interessa analisar. . ., . d~s "exposições de motivos" que precedem a muitas leis, ou certas justifica-
• Os funcionários da administração pública: em nosso sistema Jundl- çoes do negócio que podem ser escritas em um contrato ou, ainda, os longos
co existe uma caracterização mais ou menos clara dos funcionários e chatos discursos com que os pais se dirigem a seus filhos para culminar
ordenando-lhes lavar as orelhas.
cuja conduta está regida pelo Direito Administrativo. Trata-se de
Caso o critério fosse somente pragmático a diversidade de discursos do
direito seria: 1) Legal; 2)]urispmdencial; 3) Científico; 4) Comum (14). Em tal
1o - "Uma associação de dominação deve chamar·se associaçãopolitica quando ~ ar<;nas à me?i.da caso se incluiriam no discurso jurídico os que falam sobre o direito e não
em que sua existência, assim como avalidez de suas regul~entações, dentro ~e u~amblto ge()~"áflCO poderíamos distingui-los do próprio direito. Utilizando somente o critério
detenninado estejam garantidas de modo contínuo atraves da ameaça e aphcaçao da força tísica por pragmático resulta, por exemplo, discurso "jurispmdencial" do direito tanto
arte de seu quadro administrativo": WEBER, M., Economía y Sociedad, México, FCE, 1983, p. 43~
iI - p~m~iro.lu~r, ~I.a ~grupaçao
"Frente aantiga organização gentilíciao estado se caracteriza, em
de seus súditossegundo divisões territoriais... O segundo traço c~ctensuco e a tnS~ltU~Ç~O de uma
força pública... Donos da força pública e do direito de arrecadar Impostos, os funclonanos, ~?mo 13 - "Lenguaje jurisprudencial" é como llle denomina]erzi WRÓBLEWSKI. Adiferença entre oque
órgãos dasociedade, agora aparecem situados porcima desta": ENGELS, F., Elorigen de la famllla, la este autor propõe e o que propusemos aqUi consiste em que o critério seguido por Wróblewski é
propiedadprivaday elestado, Moscú, Ed. Progreso, s/d, pp. 170-71. . . ..." eXcI.usivamente pragmático. Então, desde logo, todo o corpo de uma sentença é linguagem jurídica.
12 - "Lenguaje legislativo" segundo]erzi WRÓB~~SKI; ~fr: "Los lenguaJes dei diSCUrso J~ndlCo Aqu~ P~opomos que somente o é a parte resolutiva, porque estamos agregando outro critério, agora
semanuco.
em Cuadernos delInstitutode Investigacfonesjunalcas, MeXlco, UNAM, 1990-14, pp. 357 ss.
14 - Como é o caso da tipologia proposta porJ. WRÓBLEWSKI no trabalho citado acima.

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pr;sente no t~xto. Se os contratantes "não expressam sua vontade cIaramen-
a parte resolutiva da sentença como todo o resto de seu corpo, a fundamenta-
t~ - com? no~, advogados, costumamos dizer -, não poderemos saber quais
ção, apesar de que em nosso sistema jurídico somente constitui norma - sao as obngaçoes das partes. Se o pai não é claro sobre o que deseja que seu
"vínculo", dizem os juristas - a parte resolutiva. Mas, como todo nosso esfor-
filho
, faça
... somente
fi .conseguirá confundi-lo. Deste mesmo modo ' tamb'emo
ço se dirige à análise do que chamaremos sentido ideológico do direito e
prop~? Junsta Icana sem saber qual foi a vontade do produtor do discurso, e
ideologia jurídica e não à análise do que as normas não são, resulta p~oce. o socIOI?go_sem sab,er se conseguiu ou não exercer sua hegemonia, assim
dente a busca de um outro critério que pennita separar de modo taxativo o
como nos nao podenamos saber qual é a parte do discurso que não é norma
direito de qualquer outro discurso que apareça no mesmo texto. que apela a outros setores da ideologia do receptor e não ao temor à sanção:
Para isto acrescentaremos um novo critério que tem dupla face: por
. Isto quer diz~r q~e. o direit~, além ~e ameaçar com violência e ser pro-
uma parte o sentido do discurso deve coincidir com o sentido autorizado e,
duzIdo pelo. funclOnano autorIzado, e um discurso cujo sentido está
por outra, o sentido autorizado deve ser especificado por seu produtor. pr~estabelecldo por outra norma que deixa à vontade do autorizado o estabe-
l~clmen~o .da norma desejada. Kelsen se refere a esta questão como a do sen-
tido objettVo da norma. Diz que um discurso prescritivo tem este sentido
3.1. Osentidoautorizado subjetivo, que é o que lhe confere o produtor do enunciado, como vimos
an~es. Mas este.di~curso não é direito, salvo que também seu sentidoobjetivo
Em primeiro lugar, direito é o discurso produzido por quem está autori- seja o de cons~ltUlr uma norma. Este sentido objetivo é adquirido porque ou-
zado para fazê-lo, mas somente se oseu conteúdo deôntico está previsto como tra norma o da:
o conteúdo que estefuncionário podeproduzir. Com efeito, os cidadãos não . "c? q~e faz_de~te acontecimento um ato conforme ao direito (ou contrá-
podem produzir contratos obrigando-se a cometer delitos,. nem os pa~s .po- no ao dIreIto) nao e a sua faticidade, em seu ser natural... mas sim o sentido
dem ordenar a seus filhos a produção de condutas imoraIS, nem os JUIzes objeti~o ligado ao mesmo, a significação com que conta. O acontecimento em
condenar à morte se esta pena não está prevista, nem o presidente pode pro- questao alcança seu sentido especificamente jurídico... através de uma norma
duzir regulamentos que revoguem as leis ditadas pelo parlamento, nem o mi- que se refere a ele com seu conteúdo, que lhe' confere significado em direi-
nistro da educação produzir circulares dirigidas às forças annadas, nem os to... "(1;)
legisladores produzir leis contrárias à constituição. Aqui já não ~e trata d,a Em outras palavras, a objetividade é conferida por uma norma. Contu-
qualidade do produtor do discurso - critério pragmático -, mas sIm do. pro- ?O, o que Kel~en deno~lin.a aqui "sentido objetivo" não é tão objetivo, se com
prio discurso, motivo pelo qual é um critério semântico: trata-se de avenguar IS.tO ~e quer dIzer que e eVIdente para todos. Que um discurso prescritivo seja
se o sentido do discurso nonnativo é coincidente com o sentido do discurso dIreIto depende de que outro, ou outros, ou todos, assim o considerem. Sem-
que o autoriza. Isto somente pode ser respondido através da interpretação de pre é necessária uma interpretação posterior, assim como diz Kelsen a respei-
uma norma, por exemplo, que ordene considerar "vinculante" apenas a parte to da norma fundamental, como veremos mais adiante. Mas quando dizemos
resolutiva da sentença ou a que proíbe contratar sobre certos objetos, tais que uma norma superior confere o sentido objetivo nem por isto podemos
como peças arqueológicas, por exemplo. prescindir da vontade do produtor, posto que as normas que autorizam a
pro~uzir o~tras deixam ao produtor destas a faculdade de decidir qual é a
fraçao do dIscurso que constitui a parte "vinculante".
3.2. A vontade do produtor Aparentemente esta terceira aparição de um critério semântico tem as-
pecto distinto da primeira e, inclusive, da segunda. Na primeira aparição se
O que dissemos anterionnente é apenas uma das faces deste necessário tratava de uma definição geral: o direito é um entre os discursos com sentido
terceiro critério, pois além disso é preciso saber qual é a parte do ~iscurso que
seu autor produz como nonna. Se o juiz não é preciso na redaçao da "parte
resolutiva" da sentença, ou seja, sobre o que ele quer produzir como nomla, 15 - KElSEN, H., Teoría Pura delDerecho, cit., p. 17.
não poderíamos distinguir o direito, neste caso, de qualquer outro discurso
71
70
prescritivo. À primeira vista este critério dá impressão de que sua utilização
2. Que ?rganiza ~ violência (critério semântico)
permite a identificação do direito de maneira clara e simples: os discursos
3. Que e produzido por um funcionário (critério pragmático)
prescritivos tem como objetivo fazer que alguém faça algo. No caso da segun·
4. Mas somente
da aparição de um critério semântico, o que se refere ao sentido de organiza-
ção da violência, também dá impressão de ser um critério que permite uma a) se o dis_curso tem o sentido autorizado (critério semântico)
identificação clara e simples do direito. Já esta terceira aparição de um critério b) na, fr~çao ou texto produzido como "vinculante" ( 't"
mantlco) cn eno se-
semântico - sentido preestabelecido por outra norma ao mesmo tempo que
especificado pelo produtor da nova - põe a ciência do direito em uma situa-
ção difícil, pois agora tudo depende da "vontade" do produtor do discurso, já Até aqui temos uma definição plausível do discurso do d' .
que dela parece depender qual é a parte "vinculatória" do texto e qual não é. analisaremos o problema que os analistas denominam "recepça:redlto. Agora
gem" Cert d .. o a mensa-
E, para culminar, parece que tudo se complica ainda mais porque o que é "d ame?te" e nada servIrIa ao poder produzir um discurso que na-o e'
rece b I o por nmguem.
"vinculatório" depende de que outro, que não o produtor, considere que o
produzido como "vinculante" pelo emissor é o que estepoderia - "deveria"- ~as. falaremos em reconhecimento e não em "recepção" p . t d
se do dlre t ' .' . , OIS ratan o-
ordenar. .. o, a clencla que o conhece cumpre um papel fundamental e
Em realidade não é assim. Tanto a primeira como a segunda aparição de reconheCimento como discurso que prescreve o que se deve não se de~ seu
critérios semânticos também põe a ciência do direito em uma situação difícil. se po?e fazer sem temor a uma sanção. Neste caso o dever pe~ence a ol~i;au
No prímeiro caso, também a prescritividade do discurso depende da vontade ~~~eJ~: me, r~fir? a ql~e o poder precisa da coerção ideológica, necersita qu~
do produtor: o que faz que um discurso seja prescritivo não é que "não possa es matanos Identifiquem "dever" com "bondade" e ". r " .
ser verdadeiro ou falso", mas sim que seja produzido com a intenção de diri- convicção generalizada de que o justo é o que está prescrit~u;~;~~e~:~~d~~
gir-se à conduta de outro para determiná-la ameaçando-o com a violência
(Weber e Kelsen). Isto é introduzir-se em insubstancialidades psicológicas?
Lamentavelmente sim. Então, em mãos de quem fica o estabelecimento do
que é direito e do que não é? A única resposta é, até agora, a de Kelsen, com
todas as "matizações" que se queira fazer: o direito depende de umaficção, a
norma "fundamental", que consiste nofato de que os receptores do discurso
do direito o aceitam como tal ao aceitar que aqueles que o produzem são os
que "devem" produzi-lo (16).
Conforme tudo o que dissemos anteriormente, o discurso do direito é:

1. Um discurso prescritivo (critério semântiCO)

16 - Que anonna fundamental é um "fato" - ou resultado de um fato, que não pode ser senão outro
fato -, para Ke1sen, veja-se na Teoria Pura dei Derecho, cit.: p. 218: "Com aaquisição da eficácia da
nova constituição se modificou anomla fundamental..."; p. 219: "Amodificação da nonna fundamental
básica se segue da modificação dos fatos que hão de ser interpretados como atos de produção e
aplicação de nonnas... <c/r. p. 209); eque é um fato existente na consciência da população em geral,
veja-se na Teoría Pura dei Derec//o, cit., na nota 122, p. 213: "Quem pressupõe a nonna fundamental
básica? Esta é uma pergunta respondida pela teoria pura do direito: por qualquer um que interprete o
sentido subjetivo do ato constituinte e dos atos levados atenno conforme a constituição, como seu
sentido objetivo...".

72
73
Capítulo Quarto

oRECONHECIMENTO DO DIREITO

SUMÁRIO: 1. Os desthwtários do direito; 2. O reconhecimento do direito; 3. O reco-


II/lecimenlo dofUlldol/ário; 4. Oreconhecimento dosentidoautOlizadododisatrso;
5. O reconhecimento gelleralizado do direito; 6. O reconhecimentoprofissionaldo
dirf?ilo.

Os discursos são assim reputados precisamente porque possuem senti-


do. Por outro lado, o sentido pode ser recebido ou não por um destinatário,
mas caso se trate de direito, que tem de ser efetivo, o destinatário deve
reconhecê-lo como tal. O que se reconhece é, desde logo, a norma, ou seja, a
modalização deôntica de uma conduta, embora não apenas isto. Mas para que
a nomla seja reconhecida como jurídica o seu produtor deve ser reconhecido
como funcionário autorizado, ainda que tampouco isto seja suficiente. É pre-
ciso que se reconheça a conduta do funcionário como a conduta que outra
nomla determina como sendo a conduta produtora destas normas (e não de
outras) e, finalmente, é preciso que se reconheça o sentido da norma como o
sentido que este funcionário pode produzir.
Este reconhecimento está entre as atribuições dos destinatários, que
são os funcionários, os cidadãos e os juristas.

1. OS DESTINATÁRIOS DO DIREITO

Sobre esta questão se discute de modo apaixonado. Aqueles que vêem-


vemos - o direito como discurso que organiza a violência preferem ver aos
funcionários como destinatários deste discurso ou, pelo menos, como desti·
natários primários. Ross é enfático a respeito disto: como o direito organiza a
violência, seus destinatários são estes funcionários especiais que estão autori-
zados a desenvolver um processo que pode terminar em violência física, e que
são os juizes (1). Kelsen, na mesma linha, distingue ~s ~o~as pr~má~i~s.das . . . Mas bem, o fato de que ameace com a violência não implica que esteja
secundárias. As primeiras são as que ameaçam com a vlOlenCla e estao dlOgldas d~n~ldo a~en.a~ ~os funcionários. Como qualquer discurso, em realidade, o
aos funcionários, enquanto que as segundas se dirigem aos cidadãos (2). dl;elto esta dtrlgldo a todo aquele que lhe preste atenção, que somos todos
Por outra parte, desde nosso ponto de vista, pode ser feita uma difer~n­ ~os. O fato?e que organi.ze.ou não a violência não tem maior importância se
ciação entre as perguntas "quem é o destinatário das normas?" e "qual e o e qu~ consldera~os _o direito como um discurso que circula por todos os
conteúdo das nomlas?" Alguns pensam que o conteúdo é a organização da canais de comufilcaçao. Que importa que esteja dirigido aos juizes se todos o
violência. Entre eles há quem acredita que caso o conteúdo das normas seja a ouv~m? Quando o direito, como fizemos até aqui, deixa de apresentar.se como
organização da violência então os destinatários são aqueles que devem exercê- c?n!un~o de norm.as pa~a passar a ser considerado como discurso a questão é
la. Mas não há implicação lógica entre o enunciado "o direito or~aniza a vio- dlsttnta: o que eXiste sao textos que possuem discursos que são ideologia
lência" e o enunciado "o destinatário da norma é o funcionário". E óbvio que J~rmaltzada. Entre os discursos contidos nos textos alguns deles são reconhe.
o direito indica quem deve exercer a violência e, claro, que a esta pessoa c~dos. como portadores de normas. Como se reconhecem? Isto pode OCorrer
também a ameaça caso não aplique o direito quando deve fazê-lo, mas isto não Cl~~tl~camente ou não cientificamente. Aqui estamos proporcionando um
quer dizer que não se dirija, também, aos possíveis objetos desta violência. cnteno para reconhecer normas que quer ser científico, embora neste mo-
Ainda mais, como se destacou muitas vezes, não somente a maior parte dos mento nos refiramos ao reconhecimento não cientifico das normas. Quem as
textos jurídicos não ameaçam com a violência como nem sequer estão redigi- r~conhece .ou descon~ece? Todos. Quem manda? Quem consegue que seu
dos na fomla que a lógica postula como canônica: "obrigatórioP". O discurso discurso seja reconhecido como norma, seja este reconhecimento científico
do direito é como o quero-quero, esta ave sul-americana que põe os ovos em ou não científico.
uma parte e vai cantar em outra, com o importante efeito de desorientar aos . Aqueles que querem ampliar o espectro de discursos que devem ser
depredadores de ninhos. consldera~os como jurídicos o fazem com a intenção, compartilhada pelo
É muito comum que aqueles que desejam indicar esta característica do ponto de vista deste trabalho, de incorporar entre os discursos a estudar todos
direito de estar redigido de maneira não canônica, inclusive quando o fazem a~ueles que, produ~idos por alguma autoridade, tem - ou podem ter _ eficá.
com intenções críticas, não vejam ali uma manobra diversionista mas sim a C1a~ E, claro, que nao somente as normas a possuem. Mas não vejo uma boa
melhor prova de que o direito não ameaça com a violência. Onde está a violên- razao p~ra, compartilh~~do tal preocupação, prescindir de uma distinção útil
cia nas normas que regulamentam a redação dos testamentos? A resposta é entre discursos prescrltlvos em geral e discurso do direito. A distinção não
simples: no código penal, no capítulo que organiza a violência contra os fun- ~o~~nte é útil, como pretendo mostrar, desde o ponto de vista da crítica
cionários públicos que não cumprem seus deveres, neste caso o de abster-se Jundlca como desde o ponto de vista de quem tenta falar do uso do direito.
de conferir validez às prescrições assentadas em um papel que, conforme à Porque, cotidianamente, observamos que os juizes e outros funcionários
lei, não cumprem com as inocentes regras sobre as formas dos testamentos. r~cha~am ~retensões de cidadãos fundamentando-se na qualidade de não jurí-
Uma manobra diversionista: o discurso se dirfarçou de inocência, ocultou seu diCO, IstO e, de que o discurso invocado pelo solicitante não é uma norma.
rosto repressivo e violento, e o fez com tanta eficácia que Hart tomou o exem- Nestes casos, ~ q~e ~ ~idadão tratou de utilizar foi um discurso, talvez jurídi-
plo como prova de que o discurso do direito nem sempre ameaça com a co, mas 9ue nao e direito. E o que ocorreu é que este discurso usado não foi
violência. efeti:o. E da m_aio~ i~portância saber se a falta de efetividade provém de sua
quahdade de nao direito ou de sua qualidade de direito. Além disto é da maior
importância saber quando o funcionário rechaça uma pretensão fundamenta-
da no direito mas a declara não direito. Para o estudo de todos estes casos a
1 - "... 0 conteúdo real de uma nonna de conduta é uma diretiva para o juiz, enquanto que adiretiva
diferença é necessária. Prescindir da diferença entre a eficácia das normas e a
ao particular é uma nonna jurídica derivada ou nonna em sentido figurado, deduzida daquela". ROSS,
A., Sobre el derecho y... cit., p. 33. e,ficácia de out~o.s discursos prescritivos não tem, a meu juizo, uma razão plau-
2 - Esta é uma corre<,'ão do último Kelsen, porque anterionnente havia dito que as nonnas primárias slvel. Ao cont!"ano, se perde um valioso elemento, que é o fato de que o pode-
eram dirigidas aos cidadãos. Cfr.: Teoria Geral das Normas, cito pp. 68 e 181. roso recorre a ameaça da violência, mas também a outros recursos que, não

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sendo a violência, de toda maneira são eficazes. Mas, como são diversamente curso do poder. É como se para desenhar a circulação do discurso do direito
eficazes, esta diversidade se perde quando se incorporam como objetos de fosse necessário desenhar ao mesmo tempo uma circulação, mas em sentido
estudo outros discursos que não são direito, mas se incorporam indiscrimi- inverso, dos discursos de aceitação, tal como para desenhar a circulação mero
nadamente, ou seja, sem marcar as diferenças. cantil é necessário fazê-lo mostrando o sentido em que circulam as mercado·
Mas bem, o discurso do direito organiza a violência mas seus destinatá- rias mas também mostrando o sentido inverso em que circula o dinheiro,
rios são todos, funcionários, cidadãos e, entre estes, os juristas. Na seqüência como na figura 1.
tentaremos incorporar ao conceito de direito que estamos elaborando a idéia
de "reconhecimento", isto é, a convicção de que convém ver o direito tam-
bém como um fenômeno de recepção e não apenas como um fenômeno de
enunciação. (A) - - - - 7 ) x (B) - - - - l I X (C) x(D)

(A) f-(- - - Y (8) - - - y (C)


1-( y(D)
2. O RECONHECIMENTO DO DIREITO
Onde (A) (B) e (C) são funcionários, x são normas produzidas
o único aspecto que permite entender porque um grupo no poder con- por eles, e y são os discursos de aceitação também produzidos
serva sua hegemonia é que na sociedade circula um imenso número de discur- por eles e que circulam em sentido contrário.
sos que reconhecem o discurso do direito. Pode tratar-se do filho que "por
boa educação" reconhece como vinculante o discurso do pai, ou do motorista
que, também por "civismo", reconhece a placa que proíbe jogar lixo na rua. Figura 1
Pode tratar-se do cidadão comum que responde as perguntas do policial com
traje civil, a quem reconhece como autorizado para ordenar a resposta tão
somente pelo fato de exibir-lhe uma credencial, ou do policial que acata a Mais além do costume dos juristas de pensar o direito somente como
ordem telefônica do juiz. Pode tratar-se do herdeiro que reconhece o contrato leis e sentenças, mais além da cegueira dos sóciopolitólogos incapazes de
assinado por seu causante, ou do cidadão que obedece ao empregado do observar o poderin situ, ou seja, ali onde o que os funcionários fazem parece
município que lhe ordena dirigir-se ao segundo andar para tratar de seu assun- - apenas parece - não ter nada que ver nem com o direito nem com o poder,
to, sem que disponha de outra identificação que o simples fato de estar parado o direito é o conjunto de todos estes discursos que outros discursos reputam
na porta. Pode tratar-se dos milhões de viandantes que durante vários anos discurso do direito. Dito de outro modo,para que um discurso seja direito é
obedeceram às ordens de um cidadão que não encontrou melhor forma de necessário que outro discurso assim o reconheça. Em realidade, o que faz que
solucionar o problema do desemprego do que conseguindo um uniforme de um discurso seja direito é outro discurso.
policial e posicionando-se em uma esquina, tanto para dirigir O trânsito como A qualidade que um discurso tem de ser prescritivo requer, agora o
para multar supostos infratores (3), ou ainda pode tratar-se de nós mesmos vemos, tanto que seja produzido como tal como de que seja reconhecido
quando regressamos de modo submisso a repetir nosso trâmite que, também como tal. Eeste reconhecimento não pode ocorrer senão em outro discurso,
de modo repetido e sempre com maldade, nos rechaça o burocrata que não quer seja ele oral ou gestual, seja científico ou vulgar.
tem faculdades para isto. Em todos estes casos o que ocorreu foi a produção e Podemos dizer, utilizando uma imagem, que o discurso do direito "que
circulação, "em sentido contrário", de discursos de reconhecimento do dis- baixa" de modo escalonado através da hierarquia descendente dos funcioná·
rios, é direito porque circula em sentido contrário uma corrente discursiva de
reconhecimento do mesmo. Os juristas têm o costume de considerar direito à
3 - Ainda que não possa proporcionar o respectivo documento, o exemplo corresponde a um fato
lei, mas esquecem que cada uma das ordens que "em cumprimento" desta lei
real sucedido no México, D.F.. produz cada funcionário dirigida a seu inferior também é direito. E também

78 79
tem o costume de considerar direito à sentença, esquecendo que cada uma
das ordens que, partindo do juiz, logo "se geram" da sentença, também são I. A norma Z diz:
direito, assim como também o são as ordens que o juiz dá ao secretário para
que organize o cumprimento da sentença como as que este dá ao oficial de 1) que proibido P (PP)
justiça para que realize certa atividade, como as que este, por sua vez, dá ao 2) como se nomeia o juiz
policial para que desenvolva sua conhecida brutalidade. Mas cada uma destas
ordens requer, para que tenha interesse falar de direito, que cada um dos
funcionários reconheça como tal tanto ao seu superior como ao discurso des· II. Os fatos são:
te.
O reconhecimento do direito, então, se produz em um novo discurso Juan, utilizando (interpretando) a norma Z, diz: "y é um caso de
que tem dois sentidos: reconhece ao funcionário e reconhece o discurso des· PP" (y é a ação de Pedro).
te.

III. A interpretação que faz um observador é:


3. O RECONHECIMENTO DO FUNCIONÁRIO
Como Juan é um juiz em virtude de haver sido designado con'
Cada discurso de reconhecimento de um discurso prescritivo como di· forme a nomla Z, o "fato" que produziu, seu discurso, é o dis·
reito tem o sentido de outorgar ao seu produtor o caráter defuncionário auto- curso de um juiz.
rizado, da mesma maneira que todo ato de nomear tem o sentido de outorgar
o nome a um referente. Neste discurso de reconhecimento o que seu produ·
tor realiza é uma operação mental em virtude da qual supõe - "supõe" porque Figura 2
geralmente não lhe consta -, que seu superior foi designado por alguém que
está autorizado para fazê·lo. Mas reconhecer isto é reconhecer que o fato
produzido por este superior é a parte de realidade prevista em um discurso Este enunciado que faz "cair" um fato dentro das "previsões" de uma
ainda anterior e que foi produzido anteriormente por outro funcionário de norma é uma interpretação, e sabemos que toda interpretação é um ato polí·
grau hierárquico superior. É, também, o que o juiz realiza ao qualificar um tico e que, portanto, é um ato que provém, ou é efeito, da vontade de poder
fato, como se diz no jargão do direito penal: o juiz produz um discurso segun· de alguém. Deste modo, é um ato arbitrário, tão arbitrário como os Iingüistas
do o qual, ou no qual se diz, que o fato y, suponhamos que a obtenção do dizem que são arbitrários os nomes atribuídos às coisas. A qualificação de um
dinheiro de alguém por parte do processado Pedro, é um caso do tipo de fatos fato confomle uma norma é, também, um ato de nomear.
Pp descrito no enunciado ou nomlaZ. No exemplo, Juan, que pela normaZ é No caso do reconhecimento do superior, o que se nomeia é o fato de
juiz, produz um discurso que diz que a ação de Pedro "cai" dentro das previ· produzir um discurso em virtude do qual alguém investe a outro com a quali·
sões do tipo penal descrito na normaZ e que, além disso, diz que e1e,Juan, é dade de emissor autorizado de certos discursos (não de quaisquer discursos,
um juiz. Com isto, Juan, que é funcionário e "juiz", reconhece a norma Z como vimos). Se nomeia este discurso atribuindo·lhe a qualidade de ser o
como válida, isto é, como produzida por alguém que poderia fazê·lo, sendo discurso·fato autorizado pela norma Z, ou seja, dizendo que ele constitui a
que o seu é um ato de reconhecimento, tanto do discurso como da capacida· ação prevista nesta norma. Mas todo discurso que interpreta que a ação des·
de deste indivíduo para produzi·lo (veja·se uma representação na figura 2). crita na norma Z é o tipo a respeito do qual o ato y é um caso, é um ato
arbitrário, como todo discurso em virtude do qual se diz que certo quadlÚpede
é um caso do tipo do significado "gato".

80 81
ordenar·lhe, ou seja, aJuan, posto que Juan é um caso de C. Nisto consiste a
DISCURSO DO DIREITO (discurso-modelo) produção de um discurso de reconhecimento do direito no que se refere ao
reconhecimento de seu produtor. (Em outra imagem, veja·se a figura 4).
Z autoriza a Apara nomear a Bque pode ordenar a C
Z 1-(- - - A f-(---- B t-(------ C

FATOS (discurso-fato) Norma Z: A pode nomear a B, que é quem pode ordenar a C


quefaçaP
designa que ordena a
Pedro - - - - , ) a Diego --------t) Juan Fatos: Pedro nomeia a Diego como B e Diego ordena aJuan que
faça p e Juan o faz
obediência
Diego f-(--------Juan Isto significa que Juan reconhece que:

1) Pedro é um exemplo do tipo A


O QUE OCORREU É QUE:
2) o discurso-fato de Pedro nomeando a Diego para que seja B, é
Juan, ao obedecer a Diego, reconheceu que este é o funcionário um caso do discurso-tipo que pode produzir A em conformida-
B previsto, criado pela norma Z. Arazão que Juan tem para fa- de com a norma Z
zer este reconhecimento é que Pedro designou a Diego como
tal conforme a norma Z.
Figura 4
Figura 3
O reconhecimento de uma norma, que somente podemos perceberatra-
vés de algum fato, por exemplo, a obediência, é um discurso no qual o emis-
No caso da produção do discurso de reconhecimento do funcionário, o sor reputa que o discurso que designou a seu superior é um discurso autoriza-
que ocorre é (figura 3) que o indivíduo Juan produz um discurso - o qual o do. Mas temos que levar em consideração que se trata de discursos que se
converte no funcionário ou cidadão C- que atribui ao discurso-fato do indiví- referem a fatos: reputam que ofato de um indivíduo é um "caso" do modelo.
duo Pedro a qualidade de caso do tipo de discursos·modelo que a norma Z São discursos que nomeiam, que indicam a um referente empírico - a um
prevê que pode produzir o funcionário A. Anorma Z é um discurso que diz discurso-fato - como passível de que se lhe atribua o significado do discurso
que A - o funcionário, não o indivíduo Pedro - está autorizado para produzir do direito. Portanto, quando dizemos "o discurso de seu superior", queremos
um discurso- modelo que designe a um indivíduo para que se constitua no dizer o discurso de um indivíduo ao que se reputa como superior. "Superior"
funcionário B que pode ordenar a Cfazer algo. QuandoJuan obedece a Diego é o funcionário, a conduta do funcionário, não o indivíduo que atua no papel
se converteu em Ce produziu inconscientemente, talvez, o discurso de reco· do funcionário.
nhecimento da legitimidade do discurso·fato com o qual Pedro designou a
Diego para que se converta no funcionário B e, portanto, reconheceu que
Pedro é um caso do modeloA, o que é razão suficiente para obedecer a Diego,
posto que, em virtude da nomeação, é agora um caso de B e, como tal, pode

82 83
4. O RECONHECIMENTO DO SENTIDO Dizer que o discurso é produzido por quem está autorizado (reconheci.
AUTORIZADO DO DISCURSO mento de seu produtor), e que o sentido de seu discurso é o autorizado e não
outro (reconhecimento do sentido autorizado), são discursos/ato de reco-
O discurso que reconhece o conteúdo do discurso do ~ncionárioe não nhecimento, discursos-fato que qualificamos como "autorizados" conforme
ao próprio funcionário pode ser analisado da mesma manel~a. Quando Juan critérios que são obtidos do sentido de um discurso prévio, que é o discurso
reconheceu que o que Diego lhe ordenou devia ser obedeCido, reco~heceu "autorizante". Este discurso prévio é direito, e faz que seja direito o discurso
ue o discurso·fato de Diego é um caso do discurso-modelo deB, ou seja, qu~ posterior. O sentido deôntico do direito, como diremos depois, é o que per.
~cai" sob as previsões da normaZ. Também podemos dizer q~e t~1 ~econ~ecl' mite qualificar como direito a um discurso produzido com posterioridade.
mento faz de Diego um caso de B, ou seja, o torna um funclOnano. (Ve~a-se Com efeito, como reconhecemos que o discurso do funcionário é o autoriza.
a figura 4). Igualmente pode ser dito que quando Jua~ reconhe~eu a Diego do e não uma "arbitrariedade" sua? Apenas porque um discurso anterior _ que
como funcionário, ele, Juan, se autoconstituiu em cida,dao oudonun~d? Caso aceitamos como "direito" - diz que este é o discurso autorizado. Como reco.
o tenha reconhecido como funcionário superior, tera se autoconstltUldo em nhecemos a "parte vinculante" do discurso do funcionário? Apenas porque
funcionário subordinado, também dominado. um discurso anterior - que aceitamos como "direito" - predetermina qual é
esta parte.
Mas bem, podemos dizer exatamente o mesmo sobre este discurso ano
terior, e assim até chegar, "subindo", a uma norma fundamental. Isto, ao fim e
A) DISCURSO NORMATIVO (discurso-modelo) ao cabo, permite ver que o direito está pendente de si mesmo ou que não está
fundamentado em coisa alguma.
A norma Z descreve e modaliza permissivamente: Mas antes da aparição da norma fundamental sublinhe-se que cada um
1) O discurso do funcionário A dos discursos autorizados estão autorizados porque "alguém" reconhece, aceita,
2) Como eficaz para nomear ao funcionário B que o discurso autorizante possui o sentido autorizado e não qualquer outro.
Isto também constitui uma circulação discursiva em sentido contrário que se
B) FATOS (discurso-fato): junta à circulação dos discursos de reconhecimento da autoridade do produ.
tor da prescrição. Neste caso, o que ocorre é que o receptor do discurso,Juan,
Pedro nomeia a Diego como B, que é quem ordena aJuan reconhece, como vimos, que Diego é um caso de B mas que, além disso, o
produzir o discurso D, e Juan obedece sentido do discurso-fato de Diego é um caso do discurso-tipo que pode produ.
zir a norma Z (figura 5).
C) SIGNIFICADO:

Juan reconheceu a Diego =reconheceu que 5. O RECONHECIMENTO GENERALIZADO


1) Pedro é um caso de A DO DIREITO
2) Além disto, que o discurso-fato com que Pedro nomeou
a Diego como B é um caso da norma Z. Como o discurso tem um receptor, fica a cargo deste de-cifrá-Io. Toda
3) Também pode ser dito que qu~nd?!uanre~onheceu a comunicação requer um de-cifrador que é necessário que seja outro. Porque
Diego o constituiu em funClOnano autonzado. se não fosse outro não haveria "comunicação" ou transmissão de sentido.
Portanto, a norma, que apenas pode estar dirigida a outro, requer que o outro
a reconheça como norma. Para isto, por sua vez, é necessário que o receptor
aceite que o indivíduo que a produziu é um funcionário, como vimos. Mas,
Figura 5 além disto, é necessário que aquele que aceita que quem produziu a norma é

84 85
um funcionário também aceite que o próprio discurso era o que estefunci- específico da SociologiaJurídica saber se o temor e o consenso coexistem e
onário poderia produzir. Isto é uma maneira de de-cifrar o discurs? que em que proporções).
autorizava ao funcionário. Assim, por cada discurso prescritivo que cIrcula Mas há algo mais: há um grupo social especificamente encarregado do
em uma direção há, pelo menos, um discurso de aceitação do discurso que reconhecimento do direito, o grupo social dos juristas.
autorizava ao primeiro. Mas bem, o que permite este de-ciframento de cada
discurso prescritivo como autorizado e de sentido autorizado é a presença; na
consciência, de outro discurso que é um código, sem o qual não seria pOSSIVel 6. O RECONHECIMENTO PROFISSIONAL
identificar a norma que autoriza ao produtor e o sentido do discurso que se DO DIREITO
reconhece. Cada recepção de uma mensagem normativa está precedida da
recepção de outra mensagem prévia que funciona como um código. Este có- Eu resisto em chamar "reconhecimento cientifico" precisamente pelo
digo é o que Kelsen chama nonna fundamental, do qual se pode diz~r que que segue.
é uma ficção (4). Esta ficção consiste em um discurso que tem o sentido de O que os juristas fazem é o mesmo que qualquer outro receptor do
que as prescrições produzidas por certos indivíduos são_"devidas" ou, di~o d; discurso do direito, isto é, o reconhecem ou o desconhecem, mas com a dife-
outro modo, que estas normas que autorizam a designaçao de novos funcIona- rença de que o estado os preparou e designou como funcionários especializados
rios e autorizam o sentido dos discursos destes são normas que "devem" ser em realizar esta parte da tarefa do exercício do poder.
obedecidas. Mas este "deve" não é o deve deôntico da lógica, o simples Desde que o estado moderno começou a ser isto que chamamos com
modalizador de descrições de condutas, mas sim um deve político introjetado este nome, começaram a ser organizados os registros desta profissão, e não as
na consciência da generalidade dos cidadãos ou da generalidade dos indivídu- faculdades de direito, que são anteriores. Neles consta quem são os indivíduos
os que tem o mando das forças encarregadas da rep~essão. É uma ficção por- que podem tomar-se funcionários a quem a lei autoriza a palavra. Não somen-
que não tem nenhuma base em nenhuma entidade. E como um presente dos te os registros estão controlados como, em alguns países, o discurso do direito
céus para o grupo que está no poder, instalado na consciência dos cidadãos determina até o que devem aprender. Certamente, não é a única profissão que
ou dos chefes das forças amladas. Observando bem, não se trata, em realida- o poder controla, nem os advogados são os únicos que tem a função de produ-
de, de um presente, mas sim do reconhecimento generalizado do conju~to zir condutas preestabelecidas. Também, por exemplo, os contadores públi-
dos discursos que constituem o direito, que foi trabalhosamente construIdo cos devem produzir certas condutas e não outras, se é que a sociedade capita-
pelo grupo no poder, da maneira como Gramsci propõe entender a constru- lista tem de reproduzir-se como capitalista. Mas há profissões das quais é difi-
ção de uma visão do mundo, a qual recordaremos mais adiante. . cil dizer que estão controladas devido a sua conexão com o poder, como é o
O que temos até aqui é que o direito existe em textos, que portam dIs- caso dos médicos e dos arquitetos.
cursos prescritivos produzidos como vinculantes por funcion~rios autoriz~­ Em outras palavras, os regulamentados não são apenas os advogados.
dos, que ameaçam com a violência, e que generalizadamente sao reconhecI- Estes são, isto sim, os únicos a quem o direito confere a tarefa, profissional, de
dos como tais, ou seja, como "obrigatórios". Por "obrigatórios" pode enten- designá-lo. Podemos dizer que o discurso dos advogados é um discurso atra-
der-se ou que os receptores crêem que se não obedecem serão reprimidos, e vés do qual o direito se refere a si próprio. Em todos os postos que os advoga-
obedecem por medo, ou que os receptores pensam que é "bom" obedecer, dos ocupam eles fazem o mesmo, reconhecer o direito. Mas, como vimos, isto
em cujo caso o fazem pelo que Gramsci chamou "consenso" (é um problema significa produzir um discurso no qual se diz que o discurso do indivíduo
Diego é um caso do qual a norma Z autoriza como o discurso do juiz, ou do
legislador, ou do funcionário B. Os juristas ocupam o lugar do indivíduo Juan
4 _ Que a nonna fundamental é umaficção e não uma nonna pressuposta ou ~ns:da com~ ~parece de nossas figuras anteriores.
tanto na primeira como na segunda versão da Teo,ría Pura dei Derecho esta em La ~nclOn,d~ ~a O mesmo ocorre se os advogados são juizes e, ainda mais, se podem
constitución", texto de 1964, publicado em MARi, Enrique E., e outros, Derecho y ps/coanallSlS,
Buenos Aires, Ed. Hacheue, 1987, pp. 81 e ss. Esta doutrina se repete quase integralmente em sua
decidir sobre o que se chama "constitucionalidade das leis". Mas isto também
ocorre com o humilde advogado, assessor jurídico em um escritório qualquer
Teoria Geral da Norma.

87
86
do mais humilde município: indica ao funcionário encarregado de produzir o
Capítulo Quinto
discurso autorizado qual é o sentido que ele, o funcionário, pode produzir. Os
advogados "particulares" também fazem a mesma coisa que os advogados que
trabalham como "funcionários", legitimar o poder. A diferença entre os advo-
AS CIÊNCIAS JURíDICAS
gados aos quais O estado paga e os advogados particulares, prestando o mes-
mo serviço, é que estes últimos devem prover seu próprio sustento. Cada vez
que um advogado "aconselha" ao cliente que o consulta, reconhece - tam-
bém desconhece - o discurso do direito. O que ocorre é que seu trabalho não
é percebido - mais outra astúcia do direito - como uma tarefa do exercício do
poder. Mas, como alguém poderia,' em um estado moderno, exercer o poder
se não existissem todos estes advogados? ?
S~MÁR[O:~. uso dos critérios teóricos; 2. O discurso da dência;3. Ciêllcillepolí-
A tarefa dos juristas é a legitimação do poder. Freqüentemente se diz tlca; 4. A elel~'Qo de uma teoria; 5. As ciências do direito; 5.1. Dogmáticajurídica;5.2.
que é o direito quem legitima o poder. Em realidade, se o direito é um discurso Sociologiajurídica; 5.]. Psicologiajurídica; 5.4. Análise do discurso do direito' 5S
Allálisedosdismrsosjurídicos; 6: ADoglnáticajurídica oujurisprndênciaNonll~tiva;
prescritivo, não legitima nada até que o mesmo seja reconhecido. Alegitimação 7. Oll!Conhecimentododireitocomoatividadeintelectua~·8.AMetodologiajurídica;
consiste no reconhecimento. Com a palavra "legitimação" nos referimos a um 8.1. A descrição de normas; 8.2. A illterpretação; 8.]. O estudo do atoprodutordo
fenômeno do qual cabe esperar que uma ciência, talvez a Psicologia Política, discurso do direito.
possa dar uma explicação plausível. Para nós, aqui, se trata é de uma destas
tantas palavras que estão no lugar de uma perplexidade. O certo é que perten-
ce à nossa experiência cotidiana o respeito "ao que disse o advogado", perten- 1. O USO DOS CRITÉRIOS TEÓRICOS
cem à nossa experiência cotidiana as condutas que chamamos "de obediên-
cia" ao discurso destes profissionais. Como no caso de qualquer outra ciência o objeto foi produzido - ou
Claro, também é válido o inverso, se os juristas reconhecem, também delimitado -, em realidade, pela teoria que o fundamenta. Não obstante, logo
podem desconhecer. Certo, em tal caso correm o risco de morrer de fome ou após haver produzido o conceito, toda ciência que tenta estudar seu objeto
ter que trocar de profissão. Mas, de qualquer maneira, permanece a questão: pressupõe que este é preexistente a atividade intelectual. O cientista apresen-
nenhum poder poderia sustentar-se sem o concurso dos advogados, pelo menos ta a convicção de que o direito já estava ali, ainda quando para descobri-lo
dos que formam parte das cortes supremas de justiça. O que teria ocorrido se tenha sido necessário um processo ideal. Normalmente quem pratica uma
Videla e seus cúmplices não tivessem encontrado um advogado sequer para ciência ignora que o objeto dela foi construído por uma teoria.
integrar sua Suprema Corte "de justiça", que reconheceu como direito o dis- O que realmente ocorre é que após construir seu objeto o cientista tem
curso destes assassinos? de identificar no contínuo discursivo alguma parte que, em conformidade
com o conceito, seja direito e tenha de ser analisado.
Mas bem, embora a atividade dos juristas dificilmente possa ser conside·
rada ciência, de qualquer modo, uma autêntica ciência do direito deve proce-
der, sob certo aspecto, como qualquer outro discurso que pretenda dizer que
um fato "cai" dentro das previsões de um modelo. O enunciado "este é direito
e este outro não é", por mais científico que seja não deixa de ser um ato de
"nomear", isto é, embora o cientista do direito não quisesse fazer o mesmo
que fazem os juristas em geral, de todas maneiras deve produzir um discurso
no qual reputará que certa parte do contínuo discursivo circulante é um caso
do modelo "direito". Dito de outra forma, o cientista do direito deverá produ-

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zir um discurso no qual usará o signo "direito" para atribuir seu significado a deve estar formado por enunciados que, por uma parte, guardem entre si uma
um referente que será uma parte do discurso total. Estamos, portanto, frente coerência lógica e que, por outra parte, permitam que pelo menos alguns
a uma prática consistente no uso do conceito ou da teoria do ~ireito. Estas :,ã~ destes e~unciados d~senhem experimentos que comprovem ou falsifiquem
as ciências jurídicas. Contudo, o resultado do uso dependera das caractenstl- as asserçoes. Aquestao de estabelecer a estrutura lógica destes enunciados o
cas do que seja utilizado. tipo de experimentos a que dão lugar e sua conexão com estes enunciados' e
Vamos referir-nos freqüentemente a alguns problemas da ciência em muitas ou~~s precisões, constit~i a ~arefa da Teoria da Ciência, discipli~a
geral, depois a certas ciências jurídicas e, finalmente, a uma disciplina que que pOSSUI dIversas outras denommaçoes (Filosofia da Ciência, Epistemologia,
chamaremos Análise do Discurso do Direito, na qual tentaremos esclarecer Teoria do Conhecimento). Esta discussão não é objeto desta pesquisa, embo-
alguns conceitos que usaremos na crítica jurídica que proporemos. ra, sem dúvida, aqui se adote uma posição filosófica específica. Mas não há
nenhuma justificação científica para adotar uma posição epistemológica e não
outra, já que esta é uma posição teórica quefundamenta a tarefa do cientista
2. O DISCURSO DA CIÊNCIA e, como tal, é prévia à prática da ciência. A posição epistemológica aceita
aqui, inspirada na filosofia de Hume, é uma assunção filosófica cuja justifica-
As ciências, todas as ciências, não podem ser outra coisa que discursos. ção está além desta pesquisa. De qualquer modo, é possível dizer algo sobre a
Podemos falar dos discursos científicos para referir-nos a certo tipo de discur- razão pela qual o presente trabalho é uma tentativa de fundamentar a crítica
sos que foram construídos conforme certas regras, além das gramaticais, que do direito sobre critérios científicos plausíveis.
foram estabelecidas pelos cientistas e que se denominam método científico.
O método científico é, também, por sua vez, outro discurso que pode ser visto
como o código que permite decifrar uma mensagem como "científica". Se o 3. CIÊNCIA E POLÍTICA
discurso não se deixa decifrar pelo código então não é ciência.
Este código não é "natural", posto que, como todos os códigos, é um Como a política é uma atividade humana através da qual alguém tenta
texto produzido por alguém. O produtor deste código é o conjunto dos indi- impor sua vontade a outro, qualquer coisa que isto seja, a ideologia cientificista
víduos de uma comunidade dedicada a uma prática especial, que é a produção tentou separar a ciência da política. Esta foi a tentativa do pensamento de
de discursos descritivos, cujo conjunto é a ciência adjetivada com o objeto direita na América Latina, embora, sem dúvida, não seja uma invenção dos
destes discursos: antropológica, jurídica, sociológica, econÔmica. reacionários americanos, posto não têm tanto talento. Esta é uma tentativa
Os corifeus da ideologia cientificista ocultam esta face humana - por sobre a qual se assenta o mundo burguês: a ciência, que fundamenta a técnica
"histórico" e "social" - da ciência. Pretendem que adoremos um novo fetiche, que permite a produção da mais-valia é "verdade" porque seus resultados per-
o método científico. Fetiche porque, sendo criação humana, como deus ou o mitem o desenvolvimento das técnicas fabris que são resistentes as disputas
estado, pretendem - pretendem aqueles que fazem o fetiche falar - que se políticas, basta observar que as bombas e os automóveis servem a uns e outros
volte contra seu criador para exigir-lhe adoração e dominá-lo. Antes pretendi- e que, no entanto, nenhum pôde evitar um dos evidentes resultados da ciên·
am que adorássemos somente a verdade, e agora pretendem o mesmo em cia, isto é, ter transformado o mundo em uma lixeira.
relação ao método, que, asseguram, conduz à verdade. Mas a ciência não é Em realidade, esta ideologia não é conseqüente com o fundamento filo-
mais que outro discurso ou ideologia formalizada, que se diferencia dos de- sófico desta mesma ciência que tenta pôr a salvo das disputas políticas. Com
mais apenas em que está construído conforme as regras do código - método efeito, a ciência da qual falamos tem seu fundamento em uma filosofia que, ao
científico - que pretende identificá·lo, compreendê-lo e aceitá-lo como "pala- contrário da antiga, privilegia a comprovação experimental em detrimento da
vra autorizada". "especulação" que não consegue provar-se "na realidade". Mas a ideologia da
Segundo uma das regras deste código, o discurso científico deve estar comprovação empírica tem seu fundamento precisamente na idéia de que os
composto por enunciados descritivos que permitam uma virtual - amai ou enunciados são sempre provisórios e inseguros: tudo depende de futuras ex-
futura _ comprovação empírica. Mais exatamente, o discurso de uma ciência periências. Precisamente a ciência moderna se baseia no ceticismofilosófico,

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cuja figura central, segundo minha interpretação da história da filosofia, é competir com o discurso do poder, resulta que este pode reprimi-la precisa-
Hume. menteporque é mentira, porque não é ciência, porque é ideologia.
Mas bem, se todos os enunciados dependem de experiências históricas, O autêntico corolário da filosofia modema devia ser outro, de que a
no sentido de que são produzidas no tempo e no espaço, então não existe a ciência se compõe de enunciados descritivos provisórios e sempre relativos
verdade, mas sim apenas enunciados aos quais, através de outros enunciados, em relação às experiências limitadas que os apóiam, enunciados que em sua
e sempre provisoriamente, adjudicamos verdade. Ese isto deixava a deus fora vida social se encontram freqüentemente em competição com outros que são
do jogo - posto que não há experiência deste personagem -, isto ~ra tudo o contraditórios com eles e que também se apresentam com pretensões cientí-
que a sociedade burguesa necessitava, ou seja, uma ciência que nao se ocu- ficas. Quem é o árbitro ou o deus encarregado de pôr termo às diferenças? "A
passe exclusivamente em proporcionar "verdades", mas sim a base da técnica experiência", respondem os corifeus do cientificismo. Sim, mas acaso aexpe-
que permite gerar mais-valia: as verdades são absolutamente desnecessárias riência não tem limites? Acaso a experiência não é de alguém? Acaso as expe-
para o mundo capitalista. riências não são limitadas no tempo e no espaço? E, finalmente, o que é uma
Acontrapartida deste mundo sem verdades é o estado. O capitalismo experiência senão um discurso com o qual "alguém" diz que sua experiência
necessita muito mais de normas jurídicas e de uma polícia eficaz do que de "comprova" um enunciado porque sua experiência estava prevista no enunci-
verdades, ou melhor, as verdades estão a cargo do estado, que educa e repri- ado? Se há algo que é intransferível é uma "experiência" ! Salvo que se parta da
me. Averdade absoluta é substituída pela técnica útil e o método científico, suposição, metafisica, de que todos os seres humanos dispõem do mesmo
enquanto que, por outra parte, a verdade foi convertida em nomla~. ~ ciê~. mecanismo sensorial, motivo pelo qual as experiências são idênticas, como
cia, portanto, a serviço da técnica, não tem nada que fazer em relaçao a poh· anteriormente supuseram os gregos, metafisicos por excelência, a existência
tica, a cujos atores corresponde estabelecer as normas que regem o uso da de um Logos do qual todos compartilhamos.
técnica e os regulamentos dos institutos em que a ciência é produzida. E, Os indivíduos que argumentam sobre o absolutismo da experiência pa-
então, toda reflexão que tende expressamente à crítica da sociedade e sua recem acreditar, ou querem fazer crer que acreditam, que a "objetividade" das
transformação é, por definição, "não científica". O argumento consiste em experiências, ou seja, sua intersubjetividade, não é produto da convenção
fazer crer que a intenção política impede a "objetividade". Com isto a ciência entre os cientistas, ou melhor, produto do enunciado, aceito pela comunida-
cria sua contrapartida, a ideologia, que ou consiste em erro ou em nomlas, de de científica, de que certas experiências pessoais são convencionalmente acei-
modo que toda "valoração" resulta não cientifica. Enquanto que, as nomlas, tas como extensíveis a outros e que constituem os fatos que comprovam cer-
o estado, deixam de ser verdadeiras ou falsas segundo a lógica, agora são, tos enunciados. Mas em nenhum momento saímos do mundo dos enuncia-
precisamente por isto, verdades absolutamente invioláveis: as que podem ser dos, do mundo do sentido atribuído ao mundo pelos homens, neste caso os
desmentidas são as leis que a ciência enuncia e jamais as que o estado enuncia, cientistas. Por qual razão, então, tanta turbação em relação a ciência e seu
como observou Kelsen (1). E, assim, de uma filosofia de intenções democráti- apoio empírico, essencialmente distinta da ideologia, isto é, da política? A
cas se obteve uma ciência que condena a toda crítica inconveniente a ser o única explicação é que os cientistas e os filósofos que os "fundamentam" com
outro, "ideologia". O que mais pode querer o poderoso como serviço de parte suas epistemologias estão plenamente instalados na divisão do trabalho entre
daEpistemologia? ciência e normas, entre o que fundamenta a técnica e o que permite seu apro-
Enquanto isto, o relativismo ético se transformou em razão de estado. A veitamento, o estado.
crítica, convertida em ideologia, expulsa do espaço do discurso científico, Mas esta é apenas um face da questão. Aoutra face é que a divisão entre
condenada a instalar-se no espaço discursivo do poder, agora é reprimida por enunciados científicos e normas é um artificio que oculta o poder que se
não ser científica! Acrítica é, obra da Epistemologia mediante, valoração não exerce no espaço supostamente anódino da ciência. Precisamente porque os
científica, e seu lugar é a política. Mas quando está neste lugar, disposta a enunciados científicos estão sempre em competição com outros que também
se apresentam com a mesma pretensão e devido a que a ciência está a serviço
da técnica e esta, por sua vez, a serviço da produção da mais-valia, a ciência
1 - KELSEN,H.,SociedadyNaturaleza,BuenosAires,Ed.Depalma, 1945. é um espaço ferreamente regulamentado. Mas, desde logo, como os

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positivistas fizeram notar, as normas são semprepositivas, ou seja, "alguém" centro.s de pesquisa que con~r~lam e não em que resistam em aceitar qualquer
as produz e outro "alguém" as obedece. O resultado é que a famosa ciência enunCla?o que ponha em duvIda sua mensagem principal: "este direito, este
não difere do "lugar" no qual ela ocorre, isto é, nos institutos científicos a estado, e o que corresponde a estas relações sociais e, portanto, éjusto".
quem o poder - o estado, as universidades, as editoras, as revistas - confere
a palavra. A ciência não pode ser "descontextualizada", ela somente existe
nos lugares designados pelo estado para o seu desenvolvimento e apenas como 4. A ELEIÇÃO DE UMA TEORIA
prisioneira das nomlas - e já não estou me referindo às regras do método
senão às regras de caráter jurídico que regem estes lugares - estabelecidas A ciência é um discurso como qualquer outro, que pretende ser descri-
por aqueles que dirigem estes espaços e ocupam tais postos nem sempre por tivo, e ao que seu autor tenta sujeitar a certas regras estabelecidas por outro
razões relacionadas com suas contribuições científicas. As normas da ativida- discurso chamado "método científico". Este discurso, segundo a filosofia mo-
de científica criam, como as normas jurídicas criam o espaço do estado, o der~a, deve poder ser contrastado com outros discursos aos que atribui o
lugar e os funcionários da palavra que dizem o que é ciência e o que é ideolo- carater de "comprovações empíricas". Mas como o objetivo de todo discurso
gia, o que se pode aceitar e o que se pode reprimir. Este espaço, estas nomlas,
científico é político, ainda mais tratando-se de ciências sociais, então a ciência
estas regras do jogo, existem, embora o lastime muito. Portanto, estamos au-
depende da teoria que a fundamenta. Existe alguma razão mais plausível que
torizados a eleger o campo da confrontação, o da ciência e o da política. Te-
outra para eleger uma teoria que não seja o convencimento subjetivo do cien.
mos direito a eleger instalar·nos no primeiro ao mesmo tempo que denuncia- tista?
mos seu radical sentido político. Não acreditamos na pureza da ciência, mas
No caso da análise da ideologia jurídica qual será o critério para dizer
nem por isto renunciaremos a medir-nos com outras posições científicas, e
que o direito é "mentiroso"? Não há outro critério possível que o de alguma
ainda aceitando suas condições. Esta é a tentativa. Não tem porque ser defini-
teoria sociológica prévia, e há algumas que são francamente apologéticas do
tiva, a última. Os únicos que tem a última palavra, há muito pronunciada, são
poder e do capitalismo assim como também há as que são críticas. A eleição se
eles, os juristas tradicionais.
Esta pesquisa, portanto, tem duas faces: por uma parte quer fazer com produz, finalmente, desde um ponto de vista ético. Aqueles que, como nós,
que seus resultados disputem com os da ciência oficial do direito, aceitando querem modificar o mundo porque o consideramos injusto, adotam teorias
suas condições metodológicas, mas denunciando sua mentirosa condição de d~ segundo tipo, mas sempre partindo do convencimento .de que o mundo
estar além da política. Por um lado não aceita que os enunciados científicos nao tem centro, de que o mundo, conforme esta posição ética, não tem um
estão fora do mercado e, por outro lado, pretende instalar-se neste mercado ponto central produtor do sentido. Isto significa que todos os discursos nave.
aceitando suas regras. Por um lado qualifica a ciência de discurso discutível g~m no terreno dapolítica, que seu prestígio depende dos próprios homens e
submetido a certas regras e, por outro, pretende discutir seus resultados sujei- nao da natureza ou de deus, e que aceitar um discurso em lugar de outro é,
tando-se a estas mesmas regras. Por um lado quer denunciar que toda ciência finalmente, uma opção ética.
está instalada na competição retórica e, aceitando isto, quer mostrar que a Muitos marxistas pensam que do que se trata é de provar que a única
ciência oficial é apologética - e não "mentira" - do estado: quer ganhar·lhe, ciência é a que eles professam, que a ciência social somente pode ser aquela
não desmenti-Ia. inspirada em Marx e, assim, tratam de desalojar a apologia do capitalismo de
Obviamente, esta tentativa não pretende reconhecimento por parte seu lugar de preponderância nos institutos universitários e na cultura em ge·
daqueles que, com infinita arrogância, se apresentam como porta·vozes divi- ral. Não obstante, isto mais parece uma ilusão, pois se pudessem fazer isto
nos da ciência do direito, ao contrário, tem claramente o objetivo de ganhar- seria porque já disporiam do poder. Éabsurdo, desde o ponto de vista marxis·
lhes o auditório e a convicção de que algumas afirmações podem ser refutadas ta, supor que uma ciência social inspirada em Marx possa ser hegemônica,
de modo plausível, o que os obrigará a entrar novamente em campo buscando pois como pode ser hegemônica uma ciência baseada em uma visão do muno
um novo Consenso. do que não é hegemônica? Então, não pode tratar·se de desalojar aos outros
A melhor prova do caráter político da ciência jurídica está na resistência do poder cultural, deve tratar·se de outra coisa. Deve tratar-se de uma luta
de seus mentores em permitir que os seus competidores tenham acesso aos ideológica que somente pode terminar com a transformação da sociedade

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capitalista em algu~a out~a coisa, qu~ Marx pensav~ que era o s_ocialis~~. tíficos. Isto nos permitiria desenhar o seguinte panorama das ciências "juódi.
Contudo, enquanto Isto nao ocorra, nao pode haver demonstraçao defimtl- cas", ou seja, dos discursos que tem como objeto o direito, o discurso juódico
van da verdade acerca da sociedade e do seu direito, ao contrário, em vez do e/ou suas causas e efeitos:
combate pelo triunfo final, do que se trata é de desmontar o fetichismo do
mundo com centro, dirigido pela razão, da qual a ciência é a porta-voz. Não
entendo porque alguns marxistas querem substituir uma razão por outra. Que 5.1. Dogmática jurídica
exista uma razão, mas agora "marxista", não é sinal alvissareiro para este mun-
do que supostamente desejamos construir. O que se deve procurar é precisa- Kelsen, certa vez, para diferenciá-la dajurisprudência Sodológica (2), a
mente denunciar que toda razão é uma construção que não tem nenhum direi- denominouDogmáticajurídica oujurisprudência Normativa. Este seria um
to melhor que outra para proclamar-se a única. discurso, prestigiado por sua sujeição às regras produzidas pela Teoria Geral
Portanto, o ponto central é que consigamos, sem desalojar ninguém, do Direito, cujo objeto estaria constituído, especificamente, pelo sentido
obrigar a competir na arena política. Trata-se de uma luta ideológica e não de deôntico do direito. .
uma ciência que descobre a razão melhor que outra. Partimos, precisamente,
do lado oposto ao que parte a ciência oficial e apologética do capitalismo,
partimos da proclamação do sentido ético da eleição capitalista e não de sua 5.2. Sociologiajuridica
negação. Quanto ao que resta, a tarefa é a competição com a apologia da
ordem capitalista. Trata-se é de baixá-los à política e não de desalojá-los da
O objeto desta ciência são as causas e/ou efeitos do discurso do direito
ciência para ocupar seu lugar.
e não o próprio discurso do direito, seu objeto são os "comportamentos reais"
ou condutas. Se em lugar de buscar as causas do direito conforme métodos
sociológicos - de alguma teoria sociológica admitida previamente - o fizésse.
5. AS CIÊNCIAS DO DIREITO mos conforme métodos próprios da História, então estaríamos em presença
da História do Direito.
Uma vez aceito um conceito de ciência como discurso socialmente pres-
tigioso porque respeita regras previamente formuladas em outros discursos
prévios, não há razão para não aceitar que possam existir discursos acerca do 5.3. Psicologiajuridica
direito que cumpram os requisitos estabelecidos pelo discurso prévio chama-
do "método científico", reconhecido pela comunidade de estudiosos dedica-
Esta ciência seria uma variante da anterior se a busca de causas e/ou
dos a esta atividade.
efeitos do discurso do direito se realizasse a partir de teorias e conforme pro-
Mas bem, sendo o direito um discurso, pode existir discursos científicos
cedimentos próprios de alguma tendência da Psicologia previamente aceita.
sobre ele - sujeitos às regras -, e discursos não científicos, ou seja, não sujei-
tos a estas regras, assim como entre os cientistas pode existir discursos acerca
das normas e discursos acerca das causas e/ou da eficácia ou dos efeitos destas
5.4. Análise do discurso do direito
normas. Também poderia existir discursos científicos que tenham como obje-
to os discursos acerca do direito, tanto os científicos como os não científicos.
Esta disciplina consistiria em um estudo do direito como discurso. Ao
Em ambos casos se trataria de ciências sobre a ideologia jurídica, mas no pri·
que parece, esta ciência deve ser considerada uma disciplina que apela adis·
meiro caso se trataria do discurso acerca da ciência do direito, e no segundo
caso se trataria do estudo da ideologia juódica não científica.
2 - •Ajurisprudência nonnativadescreveseu objeto particularcomo qualqueroutra ciência empírica.
Em outros termos, e isto é o que nos interessa aqui, poderiam existir Mas seu objeto está constituído por nonnas e não por tipos de comportamento real", Teoria General
meta-discursos científicos - ciências - acerca dos discursos juódicos não cien- delDerechoyelEstado, México, UNAM, 1969, p.194.

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· t ciências e paradigmas teóricos (3). Resulta prematuro qualificar este porque, como dissemos, o reconhecimento é a aceitação de que o discurso
tIO as S .1 . d autorizante ou normativo é, por sua vez, autorizado. Mas bem, como percebe·
tipo de trabalho, no qual se insere a present~ p~s~uisa, c~n:o emw O?t~ ~
Direito ou Semiótica]urídica, devi~o a propna IOde~ntçao destas dlscl~lt­ mos a aceitação do discurso autorizante prévio? O único dado empírico que
nas de recente aparição (4). O certo e que parte do obJeto deste trabalho e a nos permite tal percepção é a obediência a norma autorizada, e isto é a eficá-
produção de elemento~ ~etodol~gicos para ~m~ análise crítica do que cha· cia: o signo, empírico diríamos, aindicaçâo, de que quem produziu a norma é
maremos sentido ideologlco do dIscurso do dIreIto. aceito como autorizado pelo dominado, ou seja, como sinal de que o dominador
exerce o poder, de que tem hegemonia sobre o que obedece. Finalmente, o
discurso do direito, seu reconhecimento, sua diferenciação em relação a ou·
5.5. Análise dos discursosjurídicos tros discursos, depende da observação de condutas. Aqui é onde o
normativismo e o realismo se dão a mão.
Esta disciplina, como a anterior, seria uma investigação científica, mas Tudo o que dissemos anteriormente é um conjunto de critérios produ-
agora acerca dos discursos produzidos por aqueles quefalam do dir~ito, cien- zidos nesta sede teórica. Mas, como procede, como utiliza estes critérios, o
tificamente ou não, em relação ao qual valem as mesmas precauçoes que a cientista do direito ou o analista do discurso jurídico ou, finalmente, um críti·
respeito da análise do discurso do direito. Isto constituiria a análise crítica da co do direito com pretensões científicas?
ideologia jurídica. Para isto distinguiremos ideologia do direito - ou sentido
ideológico do direito - de ideologia jurídica. O interesse no estudo destes
meta-discursos acerca do direito reside em que também constituem formidá- 7. O RECONHECIMENTO DO DIREITO COMO
veis instrumentos políticos para aqueles que os produzem mas, sobretudo, ATIVIDADE INTELECTIJAL
para aqueles que os utilizam na tarefa diária de reproduzir a hegemonia que
possuem. Assim, o estudo destes meta-discursos, quer sejam científicos quer Tivemos a oportunidade de analisar a questão do reconhecimento do
não, constitui estudo do exercício do poder em uma sociedade. direito. Em primeiro lugar, o reconhecimento por parte dos receptores do
Neste momento, entre estas ciências, nos interessa a Dogmática]urí- discurso e a generalização deste reconhecimento. Vimos que o direito é direi·
dica e a análise do discurso do direito. Vejamos por qual motivo. to porque, como discurso, é aceito por alguém, ou seja, por cidadãos, por
funcionários e, especialmente, por estes órgãos estatais que têm o mando das
forças repressivas. Em segundo lugar, vimos a questão do reconhecimento do
6. A DOGMÁTICA JURÍDICA OU direito por parte dos juristas, que adotam o ponto de vista interno. Vejamos
JURISPRUDÊNCIA NORMATIVA agora a questão do reconhecimento do direito desde o ponto de vista científi-
co, que não é o mesmo. Aqui adotamos expressamente a atitude de negar que
ADogmática]urídica usa o conceito "direito" para indicar no contínuo seja científico o reconhecimento que os juristas fazem do direito. Mas veja-
discursivo qual fração pode ser assim denominada. Mas se o direito é tal ape- mos qual é a conseqüência social do reconhecimento intelectual- ou "cientí-
nas quando é reconhecido, e o reconhecimento é umfato, igual que a produ- fico" - do direito.
ção do discurso, ao que parece estamos frente uma ciência de vocação empírica O cientista do direito, tal como interessa a quem tem o poder e quisesse
seguir sendo hegemônico, tem como objetivo estabelecer "cientificamente"
qual é o direito "válido" - o que deve acatar·se -. Mas para dizer qual é o
3 - Veja-se Maingueneau, Dominique,Introducci6n a los métodos de análisis dei discurso, Buenos direito válido deve dizer ou indicar tanto o funcionário - "indivíduo autoriza-
Aires, Ed. Hachette, 1980. Na "introducción" encontro elementos para ser prudente na qualifICação do" - como o sentido "autorizado". Com isto indica o texto onde está "o que
desta tarefa intelectua1. se deve fazer". Depois virá alguém, se não o faz o próprio "cientista", que se
4 - As indecisões metodológicas destas disciplinas podem ser encontradas em um resumo de suas
distintas tendências em CARRIÓN WAM, Roqu<; Semi6ticaJuridial, México, UNAM (Coord. de Difusión encarregue de dizer que aquilo que se "deve" fazer é, além disto, moralmente
Culrural),1989. devido ou "bom".

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o analista do discurso jurídico que quisesse escapar da cilada ~ma ciência que procedesse deste mo~o seria uma ciência que interpreta:
apologética deveria atuar como um antropólogo que observa um grupo social Interpreta certos fatos como casos do tIpO de fatos descritos em uma norma.
ao qual ele não pertence para averiguar quais são as normas válidas. Adotará, Bem, e como toda interpretação é um ato político, também o reconhecimento
segundo minha compreensão de Hart, o ponto de vista externo. "científico" do direito é um ato político ou, dito de outra maneira uma ciência
Mas o crítico do direito age como o jurista, embora sua intenção seja jurídica dogmática, independente, objetiva, é impossível. '
precisamente não apologética, ou seja, crítica, tanto do direito como da soci· A Teoria Pura do Direito resolve o problema do reconhecimento de
edade que o gera. Não se supõe que o crítico do direito adote uma posição normas com o recurso a eficácia, isto é, uma norma, por exemplo, que auto.
externa porque, diferentemente do cientista que se autoprociama produtor riza o produtor do direito é válida se pertence a um sistema eficaz, o que
da verdade "objetiva", pense a si mesmo como sujeito as normas que quer devolve o problema da análise do texto em si ao contexto de produção.
denunciar devido a que as considera moralmente perversas. Aqui não há enga· "As normas de um ordenamento jurídico positivo valem porque a nor.
no. Mas, de qualquer modo, para identificar o discurso submetido à crítica é ma fundamental básica, que é a regra de base de sua produção, é pressuposta
necessário que faça o esforço de adotar a posição do observador que não é como válida e não porque ela seja eficaz. Mas aquelas normas somente tem
nem produtor nem receptor da mensagem. validez quando (ou seja, enquanto) este ordenamento jurídico for eficaz." (;)
É importante ressaltar que, qualquer que seja a posição do pesquisador, Em outras palavras, a norma que autoriza o presidente a ditar certo de.
de todas formas sempre será a de alguém que usa os critérios de identificação creta, norma em virtude da qual reconheceremos como discurso do direito
propostos aqui e que, além disso, tratando·se do uso dos critérios científicos aquele produzido pelo indivíduo que ocupa este cargo, é uma norma válida
estamos sempre frente a uma decisão do cientista ou do crítico. apenas enquanto é eficaz o ordenamento jurídico do qual forma parte esta
Esta decisão consiste em aplicar os critérios de reconhecimento a cer· norma autorizadora do discUrso do presidente. Mas bem, quando este
tosfatos. Estes fatos são: a) A produção de um discurso; b) A recepção deste ordenamento jurídico deixa de ser eficaz e, portanto, válido? A resposta pare.
discurso como direito. Vimos que aquilo que o observador faz é um ato de ce conduzir a uma petição de princípios: um ordenamento é válido quando as
nomear ou adjudicar sentido. Aqui, o que o observador "independente" faz é norn1as que o compõe são eficazes: "Um ordenamento jurídico é considerado
decidir se o fato de produção de um discurso "cai" dentro das previsões de um válido quando suas normas, em termos gerais, são eficazes, ou seja, quando de
discurso prévio. Se o observador decide que "cai", então terá adjudicado ao fato são acatadas e aplicadas" (Idem).
discurso a qualidade de haver sido produzido por um funcionário ou, o que é A aparente petição de princípios constitui precisamente a crítica do
o mesmo, terá decidido que este indivíduo é o funcionário que poderia produ· direito: o direito não se baseia em nada que não seja a ameaça de utilizar a
zi·lo. Se decide o contrário, então, ao não adjudicar tal sentido ao discurso, força. Quando a ameaça cumpre sua função estamos frente ao fenômeno cha.
nega ao indivíduo sua pretensão de ser funcionário ou sua pretensão de, seno mado eficácia do discurso do direito, e a eficácia, desde um ponto de vista
do funcionário, ter produzido o discurso que lhe estava autorizado. O cientis· inspirado em Gramsci, é o próprio signo ou indicador da hegemonia. Quem
ta toma esta decisão procedendo a uma observação e a uma adjudicação de consegue a eficácia para o discurso do direito que produz mantém a hegemonia
sentido ao fato observado. Não obstante, é necessário notar que outra coisa sobre aqueles que obedecem, quer sejam os cidadãos ou os corpos armados,
distinta é analisar o conteúdo do discurso, explicá·lo, explicitá·lo, comentá·lo, cuja possibilidade de violência - "capacidade de fogo" - é a que coage aos
ou outra das atividades que realizam os cientistas. primeiros. Onde há eficácia há hegemonia. Quem dá o sentido tem o poder.
Além de adjudicar sentido à produção do discurso o cientista deve pro· "Dar o sentido" é ter um discurso eficaz.
ceder a outra observação que é a da recepção. Se o direito exige reconheci· Desde este ponto é possível concluir que o reconhecimento do discur.
menta, então é necessário decidir quais fatos empíricos serão considerados so do direito será, definitivamente, sempre dependente de uma decisão a caro
pelo cientista como indicadores deste ato mental que é o reconhecimento. A go do cientista, do analista ou do crítico, que ficariam à mercê de um estudo
melhor possibilidade, até agora, é a de ver a obediência como o fato que
indicará o reconhecimento do discurso como direito. Isto foi chamado pela
teoria kelseniana como "eficácia do direito". O que desejo assinalar aqui é que 5 - KELSEN, H., TeOliaPuradelDerecho, cit p. 224.

100 101
sociológico acerca da eficácia do sistema jurídico. Este novo e, ao parecer, ~it~dura, por sanguinária q~e tenha sido, lhe faltou uma boa equipe de sábios
último critério ao qual nos convida Kelsen com sua proposta sobre a validez Ju?stas prontos para assumIr o cargo de magistrados, da suprema corte para
de um ordenamento jurídico seria também, ao que parece, um critério prag· baIXO.
mático. Não obstante, deixaremos para outros a resolução do problema dos Mas há algo mais, a ciência postulada por Kelsen é impossível porque
limites entre a Sociologia e a Pragmática. O que certamente parece que dizer que um enunciado é uma norma é reconhecer, neste mesmo ato, que
Kelsen propõe, contrariamente ao que se costuma dizer da Teoria Pura, é quem a produziu:
que a jurisprudência depende da Sociologia jurídica. Se o que é direito
apenas pode ser decidido após averiguar se um sistema é eficaz, como poderia • tinha a faculdade para fazê-lo e,
fazer-se Ciência do Direito sem antes fazer Sociologia do Direito? • atuou conforme estabelecem as normas que lhe davam esta faculda.
Contudo, estas dificuldades não são levadas em conta pelos cientistas de.
oficiais do direito. Eles dizem fazer ciência e, além disso, às vezes, dizem acei·
tar a Teoria Pura do Direito e descrever normas "sem misturar-se com polí- Porque se não tinha esta faculdade ou não procedeu como estava pre.
tica". Eles somente descrevem. Segundo eles. Mas a "ciência" que denomina- visto, (c/r. supra, capítulo terceiro) o que foi produzido não é uma norma.
mos "Dogmáticajurídica", e com as pretensões de objetividade que procla- Portanto, dizer que certo enunciado é uma norma é o mesmo que dizer que
mam aqueles que a cultuam, em verdade, não se pratica em nenhuma parte. quem o produziu poderia produzir este sentido porque é o indivíduo indica-
Se supõe que deveria ser uma ciência dedicada e limitada a descrever normas do, e que produziu o sentido autorizado através de condutas que eram previs-
jurídicas, sem julgá·las, como queria Kelsen. tas pela nornla superior. Isto é justificar o poder de quem pretende tê-lo. Já
Mas esta ciência é impossível por várias razões. Em primeiro lugar por- vimos isto. Mas os juristas acreditam que praticam esta ciência pelo fato de
que não é de esperar que os juristas renunciem alguma vez que - dizem -, descrevem normas sem pronunciar-se acerca de sua justiça ou
"ao arraigado costume de defender exigências políticas em nome da legitimidade, isto é falso. Apenas pelo fato de declarar a validez de uma nornla
ciência do direito... exigências políticas que apenas possuem um caráter se passa a dar por certo que quem ditou tal norma era o indivíduo que poderia
supremamente subjetivo ainda quando, com a maior boa fé, apareçam como ditá-la e que atuou "confornle o direito", como gostam de dizer. Isto significa
o ideal de uma religião, de uma nação ou de uma classe" (6) realizar um ato político de confirmação do direito ao poder de quem realmen.
Além disto, o próprio Kelsen, que postulava esta ciência "pura", mostra· te exerce o poder. TrJta-se de uma interpretação do discurso do direito, que
va em 1934 - data do prólogo à primeira edição - seu pessimismo acerca de é sempre um ato político.
que realmente pudesse desenvolver-se tal ciência: "O ideal de uma ciência Uma ciência como aDogmáticajurídica ou, mais tradicionalmente ain·
objetiva do direito e o estado somente tem perspectivas de um reconheci· da, jurisprudência, seria lima pretensa ciência que, com ajuda da Lógica,
menta geral em um período de equilíbrio social" (idem, p. 12). teria por objeto expor, tornar visível, revelar, o sentido deôntico do discurso
Sem dúvida, por "período de desequilíbrio" Kelsen pensava no nazismo jurídico que analisa. Mas aqueles que dizem realizar esta tarefa, em realidade,
iminente. Mas a situação parece não ter mudado muito, pois, ao menos, não não se limitam a isto, pois também produzem discursos sobre estas normas,
estamos em vésperas de nenhum período de "equilíbrio social", posto que o dando sobre elas a explicação que estimam pertinente, incluída a interpreta-
capitalismo parece dedicado a demonstrar que o mais longe onde pode che- ção que estimam correta. Com isto, se colocaram como possível objeto do
gar é a manter a mais da metade da população mundial em estado de fome. Por estudo da ideologia jurídica, já que produziram ideologias acerca do direito.
outro lado, os juristas parecem seguir sendo os mesmos de então, dos quais Talvez seja conveniente sublinhar que, pelo visto, existem dois tipos de
Kelsen disse que "não há, em geral, poder algum ao que não estejam dispostos Dogmáticajurídica, a que se pratica e a que deveria ser praticada, ou, talvez
a oferecer·se", coisa que conhecemos bem aqueles que vimos que a nenhuma melhor ainda, que existe uma que se pratica e que não existe a que seria
científica devido a que ao indicar as normas válidas, e apenas por isto, já esta·
ria interpretando o direito.
6 - Teoríapura..., cito p. 10.

102 103
8. A METODOLOGIA JURÍDICA ressados em fazê-lo. Porque não limitar-se, como Kelsen, a dizer como deve-
ria proceder quem quisesse fazer ciência?
ADogmáticajurídica constitui, ou deveria constituir, o discurso jurídi- Entretanto, a maioria dos autores que se ocupam desta questão come-
co-científico. Mas há outro discurso, o que desenhou as regras a que este çam sua argumentação buscando a ciência do direito na linguagem dos juris-
discurso deve sujeitar-se, que é o da Metodologia jurídica, um discurso pré- tas. C~meçam perguntando-se o que fazem estes personagens, como se de
científico que pretende estabelecer as regras às quais a Dogmática jurídica antemao soubessem que ali encontrarão a ciência do direito. Dito de outra
deveria sujeitar-se. maneira, dão por certo e seguro que os discursos dos juristas são científicos
Estas regras são obtidas a partir de concepções prévias acerca da ciência afirmação que não tem nenhum fundamento, e que não conduz a outra cois~
e do direito em geral, ou seja, daEpistemologia e da Teoria Geral do Direito. senão a mostrar este conhecimento como científico. Seria possível, ao contrá-
mas assim como há várias concepções epistemológicas e teóricas, também há rio, que fosse estabelecido o critério da cientificidade e logo utilizá-lo para
várias Metodologias. avaliar a cientificidade desta tarefa dos juristas. Porque não fazê-lo? Talvez a
Pode ser que para alguns aMetodologia não seja realmente uma ciência resposta seja a de Bobbio: é que com este procedimento o que se alcançou foi
porque éprescritiva do que se deve fazer para produzir uma Dogmáticajurí- uma separação lamentável entre o que se faz e o que deveria ser feito:
dica realmente científica. Em tal caso aEpistemologia é que seria "descritiva" "Trata-se do que anteriormente denominei típica 'duplicação' do saber
porque se limitaria a estudar o que os cientistas fazem (7), ao menos esta na esfera da experiência jurídica: aberto em um determinado peóodo históri-
parece ser a posição daqueles que falam da "ciência do direito" como sendo o co uma contradição - que parece irredutível - entre a concepção da ciência
que atualmente fazem os juristas. Se isto é assim, se a Epistemologia se limita e a prática do jurista, vai se desenvolvendo, por um lado, umajurisprudência
a descrever o que estes supostos cientistas fazem, então realmente parece ser que não é ciência e, por outro, uma ciência que em si mesmajá não tem nada
descritiva, embora se pudesse pensar que caso se ocupe do que fazem é para que ver com ajurisprudência (e com a qual os juristas geralmente não sabem
logo poder dizer como se faz e, portanto, teria um objetivo prescritivo. Por o quer fazer). Em outras palavras, com isto se quer dizer que no mesmo mo-
minha parte prefiro chamar Epistemologia a uma disciplina que tem como mento em que se reconhece a existência da contradição entre ciência e juris-
objeto a reflexão acerca do fundamento dos conhecimentos, entre os quais o prudência, esta contradição em vez de conduzir à tentativa de reduzir a juris-
científico. Em tal caso me parece um discurso prescritivo, posto que propor- prudência à ciência tem como conseqüência o traslado do ideal científico
ciona os elementos teóricos daMetodologia da Ciência. para além da jurisprudência, o que leva à construção de uma ciência do Direi-
Mas bem, se há um estudo do que os fazem juristas, e se o que fazem é to distinta da jurisprudência." (8)
denominado ab-initio "ciência", então parece um estudo dedicado a justifi- Sim, mas porque aquilo que os juristas fazem deve ser ciência nem que
car, dar status de ciência, aos discursos dos juristas. Isto parece mais a apolo- seja a força? Porque há que "tentar reduzir a jurisprudência à ciência"? Seria
gia da função social destes manipuladores do direito do que uma tarefa que bom que os juristas o conseguissem, mas caso não o consigam não seria me-
mereça algo distinto de uma cótica. lhor a cótica de sua prática apologética que proporcionar-lhes, além disto, o
Porque, com efeito, se pode observar que há uma tão obstinada quant? prestígio da ciência? Porque todos estes esforços não são conduzidos a mos-
inexplicável tendência a buscar a cientificidade da tarefa dos juristas. E trar que aquilo que os juristas fazem a cada momento não é científico, que não
inexplicável porque não se entende porque é necessário ver como ciência o há pureza possível tratando-se do estudo do poder? Não se entende porque
que fazem quando, de antemão, se sabe que não existe o tipo de juristas inte- tantos esforços para fundamentar uma ciência que ninguém quer praticar.

7 - "Correspondeà Filosofia do Direito elucidar os critérios de identificação que os cientistasutüizam


de fato para identificar os enunciados válidos, ou seja, os critérios efetivamentevigentes em uma dada
comunidade", ALCHURRÓN y BULYGIN, lntroducdón a la metodologia de las cienciasjurídicasy
sociales, Buenos Aires, Ed. Astrea, 1975, p. 121. Os autores denominan Filoso/ia do Direito e não
Epistemologiajurídica à disciplina encarregada de descrever - "elucidar" - o que os cientistas
fazem. 8 - BOBBI0, N., "Ciencia dei Derecho y análisis deIlenguage", em Contribución..., cito p. 175.

104 10;
8.1. A descrição de normas (não se compreenderia uma tarefa científica que não "determine" nada). Epor
determinar não pode entender-se uma mera exposição de possibilidades.
Se insiste que aDogmáticajuridicase limita à "descrição" e "sistematiza-
ção" de normas. Por exemplo:
"Os filósofos do direito parecem estar de acordo em que a tarefa ou, 8.]. O estudo do ato produtor do discurso do direito
pelo menos, a mais importante tarefa da ciência jurídica, consiste na descri-
ção do direito positivo e sua apresentação em forma ordenada ou 'sistemáti- O desacordo entre as distintas metodologias jurídicas vai mais além:
ca'" (9) para alguns aDogmáticajurídica inclui o estudo do ato de produção das nor-
mas a descrever, enquanto para outros não inclui tal estudo:
"Há que manter fimle aquela consideração do objeto com base na qual
8.2. A interpretação não há jurisprudência fora da regra e do regulado, e de que tudo o que está
antes da regra (fundamento ou origem) não pertence ao estudo do jurista."
Mas, além disto, para alguns, a Dogmáticajurídica também inclui a in- (lI)
terpretação do discurso do direito. O estudo deste ato é a confimlação - ou negação - de sua legitimidade.
"À primeira vista parece claro que a descrição do direito não consiste na Estimo que todas as tentativas de retirar da Dogmática a função de estudar a
mera transcrição das leis e das outras normas jurídicas, mas sim que com- origem das normas é uma tentativa crítica que deseja retirar do poder o auxí-
preende, além disso, a operação que os juristas denominam vagamente "inter- lio de uma ciência que se dedica a explicar que aquilo que "alguém" diz que
pretação" e que consiste, fundamentalmente, na determinação das conse- deve ser tem, além disso, o apoio do direito (a dizê-lo).
qüências que se derivam de tais nomlas" (idem). Entretanto, apesar desta tentativa crítica, o estudo do ato produtor do
Mas para outros, começando por Kelsen, a interpretação não pode ser direito está implícito no discurso daqueles que querem limitar aDogmática à
tarefa científica porque implica um ingrediente subjetivo e, portanto, é uma mera descrição. Vejamos outra vez o motivo.
atividade política: A Dogmática - se diz - deve estabelecer quais são as normas válidas,
"A interpretação jurídico-científica apenas pode limitar-se à exposição mas para isto é necessário contar com regras de reconhecimento ou critérios
dos significados possíveis de uma nomla jurídica... não pode adotar nenhuma de identificação deste objeto científico.
decisão entre as possibilidades expostas, tendo que deixar esta decisão ao "Para identificar os enunciados válidos os juristas usam certos critérios,
órgão jurídico competente... o escritor que em seu comentário caracteriza aos quais chamaremos critérios de identificação." (12)
uma determinada interpretação, entrevárias possíveis, como a única 'correta' Estes critérios de identificação compreendem as denominadas regras
não cumpre uma função científico-jurídica, mas sim uma função jurídico-polí- de admissão e de exclusão, das quais se diz que definem a noção de enunciado
tica" (lO). de direito válido (idem, p. 119), ou seja, um enunciado será considerado obje-
Mas como os significados das palavras são virtualmente indetemlinados, to desta ciência - isto é, é norma válida - se puder ser considerado como
a interpretação como exposição de possibilidades de significação é, em igual subsumível nas "definições" que constituem as regras de reconhecimento.
grau, impossível. Por outra parte, segundo Kelsen, o fato de que seja eleita Note-se que o critério de reconhecimento é apresentado como definição e
uma entre as possíveis interpretações já constitui um ato político. Em troca, não como norma de competência, e isto
para aqueles que sustentam que a Dogmáticajurídica inclui a interpretação, "porque na filosofia do direito existe certa tendência a identificar os
precisamente do que se trata é de determinar as conseqüências das normas critérios de validez com as normas de competência. " (idem, p. 120)

9 - ALCHURRÓN YBVLYGIN, Introducci6n. .., cito p. 113. II - BOBBIO, N., "Ciencia deI Derecho... ~ cito p. 185.
10 - KELSEN, H., Teoria Pura..., cito p. 356. 12 - ALCHURRÓNyBULYGIN,Introducci6n...,cit.p.115.

106 107
Mas há uma importante diferença: as normas de competência permitem válida se foi produzida por quem "devia" fazê·lo, ou seja, por alguém cujo
criar novas normas, enquanto os critérios de identificação são "definições" discurso, em virtude de outra norma, poderia ser imputado ao discurso do
que não introduzem novas normas em um sistema. estado. Então, alguém, qualquer um, que diga que uma norma é válida está
"Um exemplo aclarará o que dissemos. Uma regra de admissão que a reconhecendo que quem a produziu era quem devia fazê·lo. Mas o fazê·lo, o
legislação institui... como fonte de enunciados válidos pode ter a seguinte produzir o discurso, é um "fato", e somente é produtor de normas porque
forma: a) Todos os enunciados que pertencem ao conjunto C (vgr. uma Cons· alguém - outro - usa uma norma para qualificá·lo como tal, ou seja, qualificar
tituição) são válidos. b) Se existe um enunciadoválido que autoriza (ou permi- este "fato" de produção de normas é usar a norma para dar·lhe este sentido.
te) a uma autoridade normativa x formular o enunciado p, e x formulou p, Contudo, todo uso de uma norma é um ato político, e usá·la para dar o sentido
então p é válido. C) Todos os enunciados que são conseqüência (se inferem de juridicidade ao ato de um indivíduo é o mesmo que revesti-lo do prestígio
de) dos enunciados válidos, são válidos... Como se perceberá facilmente, a do que deve ser "conforme a direito".
regra b) faz expressa referência às normas de competência. Para estabelecer Em outras palavras, dizer que o ato de x é produtor da norma p é inter·
a validez de um enunciado é necessário, então, conhecer o conteúdo de cer· pretar que este ato "cai" ou pode ser subsumido dentro das previsões de uma
tas normas de competência. Mas as regras a), b) e c) são apenas meras defini· normay, e isto é o mesmo que o juiz faz quando qualifica como delito a ação
ções e não normas de conduta." (idem) de x: é aplicação do direito, que ao ser, no caso do juiz,produção de direito,
Efetivamente, há diferença entre critérios de reconhecimento e normas constitui um caso de ato político por excelência, segundo Kelsen. Se isto é
de competência, mas este não é o ponto. Aquestão é que ao usar o critério de "interpretar" uma norma, então não é científico, pois a interpretação cientí-
definição - que é o que o "cientista" do direito faz -se reconhece não somen· fica requer, como vimos, que o cientista não se pronuncie por nenhuma das
te a existência da norma de competência mas o quão apropriado é o seu uso. possibilidades, e de um ato de produção de normas sempre caberá a possibi·
Aprópria expressão destes autores o diz: "se x formulou p...". E, desde logo, lidade de dizer que o produtor do discurso não era o x indicado pela norma y,
que sep é válido é porque foi cumprida a condição - "se" - de terefetivamen- ou que a ação empiricamente verificável de x não era a descrita na normay.
te x formulado p. Mas, como para que o tenha formulado é necessário que Portanto, ao pronunciar·se por uma das possibilidades de interpretação, a que
tenha cumprido as nom1as do procedimento estabelecido para fommlar p - diz que efetivamente x fez o que a norma y dizia que tinha que fazer para
porque senãop não seria uma nom1a, mas sim apenas a tentativa de um crimi· produzir a norma p, o "cientista" incorreu no menos louvável dos atos políti·
noso de que lhe obedecessem - então, dizer que x formulou p implica dizer cos, o que justifica um ato de poder.
que efetivamente cumpriu as regras do ato de formular p, ou seja, há que Coloquemos tudo isto em termos mais claros. Os juristas, "cientistas",
aceitar que "a autoridade" fez o que tinha que fazer para formular p. que durante anos disseram que os discursos normativos de Videla e seus com·
"Quando ii vocablo "norma" eusato nel primo senso - nel senso di parsas eram normas válidas, em realidade, não estavam dizendo que este gru·
disposizione - l'enunciato significa: primo che quelia disposizione e stata po de assassinos eram x que produziam as normas p, que seus atos eram os
prodotta da un soggetocompetente secondo la procedura prescritta; secondo, que cumpriam os requisitos estabelecidos pelas normas y para produzir as
che quella tale disposizione non estata esplicitamente abrogata "(13) normas p? E, logo, o que se viu é que não passavam de criminosos comuns
Poderia parecer que isto passa despercebido para aqueles que susten· merecedores da pena máxima. O que fizeram estes cientistas senão sustentar
tam que "descrever" normas é uma ato desprovido de sentido político. Inclu· a juridicidade dos atos destes criminosos? Isto aconteceu a Kelsen. Caso con·
sive ao próprio Kelsen, sempre tão preocupado em que a ciência não sirva a trário teríamos que pensar que sua obra era, mais precisamente, uma tentativa
nenhum poder, este assunto parece que não se apresentou. Kelsen diz que de demonstrar o oposto do que parecia que queria dizer: que não há ciência
produzir uma norma é um ato de exercício de poder, e diz que uma norma é jurídica possível, se de apoliticidade é do que se trata.
Imagino a objeção: é que o direito ditado por Videla era direito, ainda
que não nos agradasse. Sim, mas se estes criminosos não tivessem encontrado
13 - GUASTINI, Riccardo, "Disposizioni enorme nel discorso dottrinale", em Lezioni sull nem um único "cientista" que dissesse que "é direito embora não nos agrade",
lillguaggio giuridico, Torino, Ed. Giappichelli, 198;, p. 132. O autor se refere aqui às disposições
que contém normas, mas não muda o assunto.
se todos os juízes e os professores de direito tivessem renunciado, não teriam

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podido dizer que o deles era direit? ainda que não agrad~sse a algué~. Mai~, advogado e resolve um juiz. Declarar a nulidade de um contrato é igual, tem o
não teriam podido governar um paIs moderno nem dez dIas, ou acaso e POSSI- sentido de que não existe esta norma, porque, por exemplo, as partes não
vel imaginar um governo de fins do século XX sem o apoio de nenhum jurista? podiam contratar devido a que uma delas não cumpria o requisito da idade
Me parece óbvio que os cientistas que usam os critérios de reconheci- mínima, ou devido a que não cumpriram os requisitos estabelecidos pela nor-
mento produzidos pela Metodologia (pela Teoria Geral do Direito ou pela ma para produzir este ato.
Filosofia do Direito, ou qualquer outra) produzem atos políticos, e estou de Finalmente, também é certo que nem todos os teóricos do direito sus-
acordo com Kelsen em que não há que legitimar-lhes com cientificidade. Pare- tentam que a Dogmáticajurídica é uma ciência que pode cumprir o requisito
ce muito mais apropriado, segundo penso, dizer que se trata de uma atividade da apoliticidade.
política, tratá-la como tal e respeitá-la até onde se deva, ou seja, até onde as "A dogmática jurídica é um tipo de saber que podemos caracterizar pelas
conclusões de outro não a contradigam, ou haveria que condenar como não seguintes notas: 1)... 2)... 3) A dogmática jurídica, em relação ao sistema jurí.
sendo cientistas aqueles que durante o período dos crimes de Videla denun- dico, cumpre as três seguintes funções: a) fornecer critérios para a aplicação
ciavam a não validez das normas p porque estes criminosos não eram x? das normas vigentes; b) fornecer critérios para a alteração do direito...; c)
Outros estudiosos incluem expressamente o ato de produção de nor- elaborar um sistema conceituaI com vistas a conseguir os dois objetivos ante.
mas entre os objetos da Dogmáticajurídica. riores. " (15)
"De modo elementar, me permito sugerir que os enunciados jurídicos Finalmente, cabe mencionar que há outro discurso, que expressamos
complexos descrevem fatos criadores e aplicadores de direito assim como as neste trabalho, e que fala sobre estas correntes daEpistemologiajurídica. Este
normas que estão relacionadas com eles... um enunciado jurídico completo... é ainda um outro discurso, que por versar sobre estas epistemologias, é Críti-
é verdadeiro se, e somente se, os fatos jurídicos criadores e aplicadores do cajurídica. Este discurso pretende dizer que estas tendências são apenas isto,
direito são produzidos e a norma facultativa (n-F) que institui estes fatos como tendências, mas que tão somente não querem confessá·lo. Umas são tenden-
tais existe ou existiu. " (14) ciosas porque incluem expressamente entre os enunciados científicos aque.
Esta concepção da Dogmáticajurídica enfrenta o problema admitindo les que adjudicam autoridade a quem dita as normas, e outras também o são
todas as conseqüências da pretensão científica desta disciplina: para poder porque pretendem que a Dogmáticajurídica somente "descreve", oferecen-
dizer que um enunciado é uma norma válida é necessário pronunciar-se acer- do sutilmente a possibilidade de que ao descrever "inocentemente", "objeti.
ca do ato de produção dele próprio, e somente será norma se pudermos dizer vamente", "apoliticamente", "desinteressadamente", os juristas confiram o pres-
que o enunciado foi produzido por alguém que tinha as características exigidas tígio da ciência ao discurso daqueles que exercem o poder. ACríticajurídica
e seguiu os procedimentos estabelecidos por outra norma. Em relação a esta pretende demonstrar que toda tentativa de falar do direito tem irremediável
última, por suposto, pode ser dito o mesmo. Finalmente, dizer que uma nor- caráter prescritivo, ou seja, político. Além disto, pretende dizer que todo aquele
ma existe é aceitar a existência de todo o ordenamento jurídico do qual se diz que queira falar do direito ocultando o caráter prescritivo de seu discurso é
que esta norma é parte. um apologeta do poder.
Esta concepção também implica aceitar que o trabalho do juiz é cientí-
fico, assim como o do advogado litigante, a quem expressamente Kelsen ne-
gou o caráter de científico. Com efeito, dizer que uma pretensa norma é
inconstitucional porque, por exemplo, produzi-la não estava dentro das atri-
buições do funcionário que a produziu é tipicamente o que argumenta um

14 - TAMAYO y SALMoRÁN, Rolando, La Cienciajurídica y su carácter empírico, México,


UNAM, 1988, p. 25. C/r, porque o mesmo texto o faz Raz,Joseph, El concepto de sistemajurídico,
México, UNAM, 1986,p.25gess. 15 - ATIENZA, Manuel,/ntroducci6n ai DeredlO, Barcelona, Barcanova, 1985, p. 276.

110 111
Capítulo Sexto

A ANÁLISE DO DISCURSO DO DIREITO

SUMÁRIO: 1. Discurso do direito e discurso jurídico; 1.1. As fundamentações;


1.2. As exposições de motivos; I.]. As explicaçeJes; IA. Os discursos cotidianos;
1.5. O uso do direito; 2. A ideologia no discurso do direito; j. Sentido deôntico
e sentido ideol6gico do discurso do direito; 4. A ideologia do direito e a ideolo-
gia jurídica; 5. Sistemas significantes; 6. A análise do discurso como ciênda;
6.1. Discursos acerca da ideologia juridica; 6.2. Discursos acerca do sentido
ideol6gico do direito; 7. As ciências jurídicas, ciêndas acerca do exercído do
poder.

É prematuro pretender uma definição desta disciplina. Os analistas do


discurso não atentam muito ao direito e os juristas apenas começam a pensar
na Semiótica e disciplinas afins e derivadas. Não obstante, é possível obter
destas disciplinas alguns conceitos úteis e inventar outros que nos permitam
aproximar-nos ao objetivo, isto é, da crítica do direito. Estabeleceremos algu-
mas diferenciações cuja utilidade se tomará evidente mais adiante.
O que sabemos até aqui é que existem textos que contém ideologia
formalizada que podem ser discursos prescritivos. Estes podem, ou não, ser
normas que, se ameaçam com a violência, são jurídicas. Claro que para isto é
necessário que o discurso esteja autorizado e seja produzido por um funcioná·
rio, para o que é necessário o reconhecimento generalizado. Isto quer dizer
que nos textos podem coexistir muitos discursos, alguns normativos e outros
descritivos, e dentro dos primeiros alguns jurídicos. Como o objetivo deste
trabalho é a crítica da ideologia jurídica foi necessário realizar esta introdução
que nos permitisse isolar o tipo de discurso no qual está localizado nosso
objeto de trabalho. É claro que se o objetivo fosse conhecer como se usa o
direito ou como este é exercido pelos denominados operadores através dos
instrumentos próprios para este uso, então realmente não seria de grande
importância estabelecer as diferenciações que seguem.

113
1. DISCURSO DO DIREITO E DISCURSO JURÍDICO 1.2. As exposições de motivos

Com a expressão "discurso do direito" ou, simplesmente, direit~~ ~os Uma boa parte do direito é antecedido, no mesmo texto, por amplas
explicações, às vezes, acerca do motivo da lei, das palavras usadas, das altera-
relenremos aos discursos que podem ser identificados conforme
t" •
. os Crltenos
h'
até aqui estabelecidos: prescriç~es 9~e ameaça",l com avlolenCla, reco.n eCI- ções feitas no caso de reformas, etc.
A.

das como produzidas por funclOnanos e autOrizadas confo~e u~ s~stema


normativo eficaz. Com a expressão "discurso jurídico" se fara referenCia, po~
outro lado, aos discursos prescritivos ou descritivos que acompanham o dlre!- 13. As explicações
to no próprio texto ou constituem ~eta-discurso~ a!espeito d~I~: Se tratara,
então dos fundamentos de resoluçoes, das aprectaçoes e descrlçoes dos pro- Os professores universitários falam do direito quando ensinam a seus
fesso;es dos funcionários, dos cidadãos, dos cientistas, mas também dos tex- alunos, e às vezes escrevem livros aos quais chamam "ciência". Amaior parte
tos que ~rovocam a perplexidade ~os juristas, como as definiç~e~ e as prescr~. das vezes são discursos prescritivos disfarçados de descritivos. Mas o mais
ções que não ameaçam com a violencia mas que tem uma efetlvld~de es?ecI- interessante para nós é que a maior parte das vezes são apologéticos, ou seja,
fica por estar nos mesmos textos que o direito. Um exe~plo disto sao as estão destinados a que conheçamos as bondades do estado e os beneficios
expressões que à primeira vista parecem somente expressoes de bons dese- que esta legislação significa para o povo. Onacionalismo mais vulgar tampouco
jos como as que conferem o "direito ao trabalho" ou o "direito a moradia" em está ausente aqui, pois quase sempre é ensinado aos estudantes que o direito
algumas constituições. Pelo fato de que não são normas, posto que não estabe- do próprio país é o melhor, o que legislou por primeira vez no mundo talou
lecem quem é o ameaçado caso tais direitos não sejam respeitados, se consta- qual instituição muito favorável, desde logo, para as classes inferiores, etc.
ta inúmeras vezes que são a causa direta de que alguns funcionários produzam Este tipo de discurso é o objeto principal da crítica jurídica.
normas fundamentando-se em tais discursos (1).
O que identifica os discursos jurídicos é que eles tem o mes~o ~~fere~­
te. Todos estes discursos se referem ao direito, que, por sua vez, Ja f01, Identi- 1.4. Os discursos cotidianos
ficado dentro do contínuo discursivo.
Dentro dos discursos jurídicos, podemos distinguir: Também os cidadãos comuns e os funcionários não especializados fa·
Iam de muitas maneiras do direito, opinando sobre sua interpretação e não
apenas de sua bondade. Isto pertence à nossa experiência cotidiana.
1.1. Asfundamentações
Em algumas legislações se prescreve que as resoluções dos funcionários 1.5. O uso do direito
devem fundamentar·se por escrito ou, pelo menos, devem produzir-se desta
maneira caso assim o solicite algum cidadão ou funcionário. Estas argumenta· Foram denominados "atos de fala" os discursos nos quais o produtor
ções precedem a uma norma, como no caso do fundamento das sentenças. "faz" algo. É possível dar múltiplos exemplos e, entre eles, os jurídicos: o uso
Mas também falam de outras normas anteriores às quais reconhecem como do direito, no ato de contratar, é um "fazer". Quem diz "concordo" produz, se
base da nova. diz, o ato de concordar. Isto não passa de uma banalidade, desde logo. Em
troca, quem descreve ao usar a linguagem não produz um "ato de fala". Em
realidade, o "ato de fala" no qual se usa o direito é um ato de subordinação ao
1 _ Veja-se um estudo deste tipo de deitos de discursos jurídicos en Centre de Recherches C~ti~~ dominador.
surle Droit sob a direção de AntoineJeammaud, Consécration et usagededroits nouveaux, Umverslte
deSaint-Etienne, 1987.

114 115
Em todos os casos referidos se produzem discursos sobre o direito, ou 3. SENTIDO DEÓNTICO E SENTIDO IDEOLÓGICO
seja, se formaliza uma ideologia que chamaremos "jurídica". Esta ideologia DO DISCURSO DO DIREITO
jurídica é o objeto principal da CríticaJurídica junto com a ideologia do direi-
to. Chamaremos sentido deôntico do discurso do direito ao sentido que
pode ser encontrado nos enunciados do discurso do direito através de sua
análise à luz de quaisquer dos três operadores deônticos. Quando um enun-
2. A IDEOLOGIA NO DISCURSO DO DIREITO ciado pode ~er reduzid~ à forma ~anônica dizemos que é uma norma, qual-
quer que seja sua redaçao. O sentIdo de um enunciado reduzido a sua forma
O que temos até aqui é um conjunto de critérios para delimitar o discur· canônica será, para nós, seu sentido deôntico, ou seja, o que é dado pela
so do direito a respeito de quaisquer outros. Mas o objetivo não era este, mas modalização deôntica da descrição de uma conduta. Desde logo, a identifica-
sim outro, para o qual já não há tanto apoio na Teoria Geral do Direito con· ção do sentido deôntico de um enunciado expresso em linguagem comum
temporânea. O objetivo era analisar as ideologias que estão presentes no dis- somente aparece na análise, que é precisamente a tarefa do jurista.
curso do direito e não apenas identificar tal discurso. No enunciado" é obrigatório pagar os impostos antes do dia primeiro de
Desde um certo ponto de vista, a tarefa de identificar o direito é uma abril" se descreve uma conduta que está modalizada pelo operador "obrigató-
análise da ideologia. Até aqui estamos em condições de identificar discursos rio". Não obstante, o discurso poderia estabelecer, por exemplo, "se denomi-
que tem como sentido, que expressam a ideologia, que alguém pode produzir na imposto a contribuição que os cidadãos realizam a tesouraria do município
certas condutas, definidas por outro alguém, sob ameaça de utilizar-se a vio- no mês de abril". Identificar o sentido deôntico é uma tarefa de análise que, às
lência. Podemos dizer que estes discursos tem, sem dúvida, coerência semân- vezes, resulta trabalhosa pelas ambigüidades e rodeios do discurso. Neste caso
tica ou de sentido, como buscávamos no primeiro capítulo. Este sentido lhes o sentido deôntico seria a obrigação de entregar uma quantidade de dinheiro.
é atribuído por sua qualidade de ser pertencentes ao direito: ameaçam com a Isto por um aspecto. Por outro, formulamos aqui a hipótese de que em
violência e são produzidos por funcionários que tem a vontade de poder e a todo discurso do direito podemos encontrar além de seu sentido deôntico,
intenção de reprimir em caso de ser desobedecidos. . um sentido ideológico, isto é, que o direito diz algo mais do que aquilo que é
Mas buscávamos algo mais, buscávamos o que permite outorgar unida· devido. No discurso do direito há outros sentidos além do sentido do dever.
de a um setor da ideologia, aquilo que permite reconhecer uma ideologia, e Utilizaremos a expressão sentido ideológico do direito para denotar a presen-
que não consiste neste reconhecimento do discurso do direito e sua delimita- ça de outros sistemas significantes em um discurso cuja função, ao menos
ção em relação a outros discursos. Buscávamos um critério para encontrar, aparentemente, é somente a de dar o sentido do dever às condutas dos cida-
dentro deste discurso do direito já reconhecido como tal, outras ideologias dãos. No caso do imposto municipal é fácil ver que a palavra "contribuição"
que já não são a ideologia de que uma conduta é devida. Queríamos saber conota um sistema significante cujo tema ou princípio de coerência é a idéia
como está dito neste texto que esta conduta é devida e, sobretudo, a ideologia de que o município é de todos e que todos entregamos algo para que nos seja
presente nesta forma de dizê·lo. Por isto podemos fazer, dentro do discurso retribuído em serviços. Este sistema significante conotado é o que chamare·
do direito, a distinção entre sentido deôntico e sentido ideológico do direi- mos sentido ideológico do direito.
to, que é uma das mais importantes deste trabalho e oferece um par de concei· Penso que esta distinção entre sentido ideológico e sentido deôntico do
tos-chave para as propostas finais. direito é compatível com a distinção entre enunciado e proposição em rela-
ção ao discurso descritivo. O enunciado é o texto no qual se expressam certa
ou certas proposições. Prefiro tomar a idéia de um jurista antes que de um
semiólogo.
"Frente a enunciados dotados de sentido advertimos duas coisas: por
um lado, que o fato de ter um sentido... não garante que o enunciado tenha

116 117
referência ou seja verdadeiro... E, em segundo lugar, advertimos que pode ajustado ~u não "a realidade", como Costumam dizer os juristas. Igualmente se
haver enunciados distintos... que podem ter o mesmo sentido... Para referir· trata ~o dlscu~o que, aco~panh~ndo o.direito, o explica, o fundamenta, aju-
nos, principalmente, à verdade ou falsidade das expressões... introduzimos da a mterpreta·lo, ~ maqUIla ou, mcluslve,~prescreve condutas que o poder
como expressão técnica o vocábulo 'proposição'." (2) espera que se acredIte que se produzem e nao que efetivamente se produzam.
Em outros termos, em um texto há muitos enunciados, e em cada um Isto não impede que, às vezes, de fato fundamente as resoluções de funcioná-
deles podem coexistir várias proposições que aparecem como porções ideo· rios de ideologia "não prevista", como os poucos juízes que, fundamentando-
lógicas diferenciáveis do enunciado em que se expressam. As proposições se na ideologia do direito presente em alguns textos constitucionais como o
somente aparecem, além do mais, na análise do texto. São "extraídas" dos "direito a moradia", produziram sentenças rechaçando a pretensão de desalo-
enunciados por um esforço analítico. jar os ocupantes pobres de imóveis pertencentes a ricos investidores em bens
Algo semelhante pode ser dito do discurso prescritivo. Ainda que sua de raiz.
função é "fazer fazer" e não a de transmitir uma informação, de qualquer Convém assinalar aqui algo sobre um tema ao que teremos de voltar em
maneira também informa algo sobre o mundo no qual alguém pretende que outra oportunidade. Trata·se do seguinte: no discurso do direito,se supõe,
outro faça algo. Portanto, na análise é possível separar, distinguir, a norma, a está o seu próprio sentido deôntico. Em troca, ao que parece, no discurso
conduta modalizada, e toda outra mensagem que possa existir (3). jurídico que fala do primeiro não há tal sentido deôntico. Mas vale a pena levar
A diferença entre o que propomos aqui e estas distinções que não são em consideração que o sentido deôntico do discurso do direitosomenteapa-
estranhas aos juristas consiste simplesmente em que os juristas as utilizam rece no discurso quefala dele. O sentido deôntico está nos textos jurídicos a
precisamente para isolar o seu objeto de estudo, que é o sentido deôntico, espera de que outro discurso o reconheça como tal. Este outro discurso é o
enquanto que aqui percorremos um longo caminho para fazer exatamente o jurídico, do jurista, por exemplo. O sentido deôntico, a norma, em realidade,
contrário, isto é, isolar e estudar o sentido ideológico, precisamente o que os é o discurso jurídico que a "faz aparecer". Se nunca ninguém pronuncia o
juristas tentam deixar de lado para saber o que é o devido em uma sociedade. discurso de reconhecimento do sentido deôntico do direito, este, em realida-
de, não existe ou existe inutilmente em um texto que ninguém lê. Existe uma
infinidade de nomlas dormindo em textos legislativos a espera de que outro
4. A IDEOLOGIA DO DIREITO E A discurso, o dos juizes, por exemplo, pronunciem o "levanta-te e anda", sem o
IDEOLOGIA JURÍDICA qual não tem nenhuma efetividade.

Chamaremos ideologia do direito ao sentido ideológico do discurso do


direito, ou seja, o que não constitui seu sentido deôntico. 5. SISTEMAS SIGNIFICANTES
Denominaremos, em troca, ideologiajurídica a ideologia expressada no
discurso jurídico, ou seja, no discurso que acompanha o direito como no dis· O material que sobra, que constitui o sentido ideológico do direito, para
curso de quem fala dele. Tal como o direito, também o discurso jurídico poso poder ser analisado deve ser organizado de alguma maneira. Aproposta deste
sui ideologias. Trata-se, por exemplo, do discurso que descreve normas, su- trabalho é que esta organização deve ser feita sobre a base de modelos pre-
postamente discurso "científico", mas também do discurso que, referindo·se viamente construídos, modelos que permitam a identificação de um ou vários
ao direito, o avalia como justo ou injusto, conveniente ou não conveniente, princípios de inteligibilidade presentes neste material que sobra. Aidentifica·
ção de um princípio de inteligibilidade que outorgasse alguma coerência de
sentido a este material permitiria considerá·lo como um conjunto de sistemas
2 - VERNENGO, Roberto]., Curso... cito p. 23. significantes.
3 - von WRIGIITdistinguiu "elltre lIonna ejonnulação da nonna. Afonnulação da nonna, o signo
ou símbolo (as palavras) usadas ao enunciar(fonnular) a nonna", von WRIGIIT, G. Henrik,Nonnay
Dito de outro modo: nesta pesquisa postulamos, como hipótese, que
acci6n, Madrid, Tecnos, 1979. p. 109. Isto quer dizer que existe a nonna ou sentido deôntico do nos textos jurídicos podem ser reconhecidos, além do seu sentido deôntico,
discurso, que é diferenciável das palavras, que podem transmitir algo mais que a nonna. ideologias organizadas em sistemas significantes. Estes sistemas somente po-

118 119
dem ficar claramente expostos em virtude de um trabalho posterior ao da 6. A ANÁLISE DO DISCURSO COMO CI~NCIA
averiguação do sentido deôntico do direito, ta~efa que corre~po?de aos j~ri~­
tas mas aquele tipo de juristas que Kelsen quahficava como Cientistas do direi- Vimos que não é possível um discurso puramente descritivo acerca do
to,' OU seja, os que limitam sua tarefa à descrição do discurso do direito. discurso do direito. Em todo caso, é mister aceitar que se há ciência jurídica
O trabalho de identificação destes sistemas significantes deve partir da esta não é a ciência jurídica limpa e pura que nos apresentam os apologetas do
identificação dos "temas" presentes nestas ideologias, como já vimos. Por outra poder. Em troca, os discursos que falam dos discursos sobre o direito tem
parte, como também propusemos no capítulo primeiro, estes sistemas mais possibilidades de ser uma descrição "científica", ou seja, os que consti-
significantes poderiam estar denotados ou simplesmente conotados no dis- tuem uma análise da ideologia jurídica. Trata-se de discursos de segundo e
curso do direito. de terceiro nível, sendo que podemos ter dois tipos distintos.
Os conceitos de "denotação" e "conotação" nos permitem abrir espaço
a consideração de vários sistemas significantes coexistentes em um mesmo
texto. Nada obsta a que um texto possa conter vários discursos que manifes- 6.1. Discursos acerca da ideologiajurídica
tem várias ideologias, tantas quantos sejam os princípios de inteligibilidade
que um receptor ou analista possa reconhecer. E mais, a análise dos discursos Em outros temlOs, discursos científicos sobre os discursos que falam do
constitui uma atividade de recepção na qual o analista busca ideologias ex- direito. Estes discursos de terceiro nível não tem a dificuldade da ciência do
pressadas em discursos cujo emissor pode que não seja consciente de que direito - de segundo nível - que se enfrenta com o problema de que, ao
existem. Inclusive se buscam motivos ideológicos ou frações de discursos indicar uma norma, ao mesmo tempo indica o seu produtor como a autorida-
incrustados em outros discursos, às vezes, apenas através de um signo. Pode- de competente. Em troca, os discursos (terceiro nível) acerca dos discursos
ríamos, conseqüentemente, falar de um entrelaçamento de ideologias mani- (segundo nível) do direito (primeiro nível), podem produzir-se como os de
festadas em um só texto que pode possuir vários discursos. Estes discursos quaisquer outras ciências da linguagem sem que estejam obrigados a procla-
manifestam, então, distintos sentidos dos quais poderíamos dizer que se orga- mar a legitimidade da palavra de ninguém.
nizam - ou melhor: podemos organizá-los - em distintos níveis. Poderíamos Isto é assim porque os discursos sobre a]urisprudência já não versam
falar da ideologia principal de um texto porque reconhecemos como de pre- sobre o sentido deôntico do discurso do direito. Já não se trata de estabelecer
sença dominante a coerência de sentido desta ideologia, enquanto que reco- quais são as normas ditadas, mas sim de saber qual ou como é a ideologia
nhecemos outras ideologias pela presença neste texto de elementos produzida pelo jurista, pelo economista ou qualquer outro falante cotidiano.
fracionários que pertencem a elas. Haveria, então, distintos níveis de sentido Este estudo versaria acerca daquela parte - em realidade, no estado
nos textos. atual de sua tarefa, é o todo - da dogmática na qual os juristas se afastam do
Mas também poderíamos falar de distintos níveis de prestígio das ideo- estudo puro do sentido deôntico do direito. Este seria um primeiro objeto de
logias que aparecem ao analista. É possível que um texto possua argumentos análise. Mas, desde logo, a ideologia jurídica também existe no discurso dos
de ideologias subordinadas ou ideologias menos prestigiosas que adquirem funcionários e juizes quandofundamentam as normas que produzem. E, final·
prestígio precisamente por estar incorporadas neste texto. Por exemplo, al- mente, também é objeto de estudo o discurso jurídico dos cidadãos que cum·
guns discursos sindicais contém argumentos fascistas que somente podem ser prem, ou não, com as normas: trata-se dos discursos espontâneos dos não-
aceitos, dado desprestígio desta ideologia, quando estão incluídos em discur- juristas acerca das normas.
sos democráticos ou socialistas. Desde logo, isto nos propõe outra vez o pro- Para dar um exemplo, este discurso científico seria o que se fizesse
blema da convencionalidade do sentido, ou seja, que uma ideologia seja fas- sobre os textos de Aubry e Rau ou quaisquer outros juristas que passem por
cista, e quais são os argumentos que a compõe, é algo completamente relati- cientistas do direito. Se reconhecerá que é um tipo de discurso que não é
vo. freqüente. Há muito poucos trabalhos dedicados a estudar a ideologia dos
autodenominados cientistas do direito.

120 121
6.2. Discursos acerca do sentido ideológico do direito pod~r. Penso que a~sim ~eja porque aqueles que detém o poder necessitam
precIsamente que nmguem preste atenção a esta descarada justificação que a
Estes seriam os discursos acerca do sentido ideológico presente no ~deologia jurídica faz de sua atividade. Se o poder está interessado em algo é
mesmo discurso do direito. Este discurso é de segundo nível, fala diretamente Just~mente em que se acredite em seus jUris~as, que tenham prestígio - embo-
~a .nao o mereçam - e, ~or outro lado, se ha algo que não interessa ao poder,
do direito. Mas não está comprometido com o poder porque não tem como
e Justamente que alguem se dedique a pesquisar sobre a ideologia criada
objetivo dizer o que deve ser feito, mas sim exclusivamente estabelecer qual
transmitida e defendida por estes juristas. Mas bem, se o poder está interessa:
é a ideologia transmitida além da ideologia que consiste em ordenar fazer
do ~m afastar o discurso de seus juristas de qualquer consideração científica é
algo. Se reconhecerá tanto a quase inexistência de estudos sobre o sentido
devIdo a que quem exerce o poder o faz porque mantém a hegemonia sobre
ideológico do direito como que os existentes foram produzidos por estudio-
out~os, e he~e.mo~ia n!o ~ outra cAoisa que conseguir a eficácia do direito que
sos que se apresentam como participantes de tendências denominadas, mais se dIta. Em ultlma mstancla, o fenomeno da dominação consiste em dar senti·
ou menos univocamente, crítica do direito. Por isto sustentamos que a ideo- do, isto é, em determinar a conduta de outros conseguindo que outros produ-
logia jurídica e o sentido ideológico do direito constituem o objeto próprio da zam condutas às quais aquele que exerce o poder e seus epígonos atribuem o
Crítica jurídica. E, também por isto, podemos dizer que esta é parte da tarefa sentido de dever.
da disciplina que pode chamar-se Análise do Discurso, do direito neste caso. Isto é importante porque freqüentemente os politólogos estabelecem
Esta disciplina tem mais possibilidades do que aDogmáticajurídica de distinção entre o exercício do poder peIa força e o exercício do poder por
cumprir os requisitos que uma ciência deve preencher porque seu objeto é "consenso", à qual atribuem virtudes explicativas de primeira magnitude. Tra·
um discurso e seu objetivo o estudo do sentido ideológico deste discurso. ta-se de uma falta de reflexão, como sempre, sobre o direito. À primeira vista
Contudo, nesta tarefa não necessita produzir nenhum reconhecimento do parece que boa parte do poder se exerce peIa força. Contudo, para exercer a
poder, pois esta tarefa já foi realizada pela Dogmática, que, aplicando os força é necessário ter o consenso, exercer a hegemonia nos corpos armados
critérios de identificação, já disse o que é e o que não é direito. Aanálise do que exercem a força. Assim, somente há possibilidades de exercer algum tipo
sentido ideológico do direito se limita a utilizar como objeto o resultado da de poder ou força caso se consiga que o ato de dar sentido seja eficaz. Isto
atividade da Dogmáticajurídica. quer dizer que o poder consiste na eficácia do discurso prescritivo, especial·
mente do denominado "direito". Por isto o estudo do sentido ideológico do
discurso do direito e do discurso jurídico é uma tarefa relacionada diretamen·
7. AS CIÊNCIAS JURÍDICAS, CIÊNCIAS ACERCA te com o sofrer as conseqüências da atuação do poder. Isto de deve a que
DO EXERCÍCIO DO PODER sempre tenderá a expressar claramente que a ideologia jurídica não passa de
uma ideologia, sempre contestável e sempre disposta a desfigurar a percep·
o objetivo das ciências jurídicas é completamente político, no sentido ção das relações sociais. A ciência que estude a ideologia jurídica será um
não desejado por aqueles que dizem que é possível uma ciência pura do direi- estudo sobre o poder em uma dada sociedade porque, outra vez mais, para
to. Se não fosse assim, os detentores do poder não estariam tão interessados exercer o poder é necessário constituir a outros em objeto do próprio poder,
em conservar o controle das escolas de jurisprudência. e o que constitui a outro em objeto do poder de alguém é a ideologia do
Parece claro o interesse político em saber quais são as normas conside· subordinado: é necessário que o objeto de poder faça sua a ideologia e, por·
radas válidas. Melhor, é óbvio que quem detém o poder necessita que os "cio tanto, os discursos nos quais ela existe, do sujeito do poder. Quem consegue
entistas" do direito digam que as normas que ele dita são as normas que devem dominar esta técnica específica chamada direito tem o poder. Mas é uma téc·
nica que tem dois momentos, o deôntico e o ideológico. Por um lado domina
ser obedecidas.
através do medo à ameaça para o caso de que não se produza a conduta devida
Em relação às ciências que se proponham o estudo da ideologia jurídica,
e, por outra lado, domina por intemlédio da ideologia assumida e do consen-
e não das normas, ou seja, dos discursos acerca do direito, sem dúvida que
so.
tem maior importância, mas, me parece, apenas para aqueles que sofrem o

122 123
Capítulo Sétimo

ACRíTJCA JURíDICA

SUMÁRIO: /. A Crítica jurídica tIa França; /. /. A concepção científica de Criti-


que du Dmit; /.2. A negação do jurídico ulliversal; /.j. O direito, seu uso, e a
SociologiaJurídica; /.4. O direito como discurso; 2. A Teoria Critica do Direito;
j. A crítica do direito como análise do discurso; 3. /. "Critica"; 3.2. A crítica do
direito desde o ponto de vista lntemo; 3.3. A crítica do direito e dos discursos
jlllídicos desde um ponto de vista extemo; 3. 4. A critica científica dos discursos
não científicos; 4. Oproblema do fundamento do discurso critico de outro dis-
curso; 5. A dentifiddade da CríticaJurídica.

o presente ensaio reconhece dois interlocutores principais, a crítica do


direito francesa e a Teoria Crítica do Direito argentina e, segundo penso, não
é devedor de nenhum deles. Não obstante, é óbvio que existem coincidências
muito importantes que são evidenciadas pelas citações das respectivas obras.
Entretanto, não parece necessário, ao menos por enquanto, estabelecer pre-
cedências entre estas e os trabalhos precursores do presente. Em troca, pro-
curarei detalhar alguns aspectos de ambas correntes que estão relacionados
com o tema desta pesquisa, para logo ocupar-me da concepção geral da críti-
ca jurídica que a inspira.

1. A CRíTICA]URÍDICA NA FRANÇA

Há divergências entre a crítica francesa e este trabalho e seus antece-


dentes. Penso que a principal divergência é que neste trabalho há uma expres-
sa adesão à Teoria Geral do Direito de origem kelseniana. Contudo, apesar
desta divergência, esta tentativa de instalar a Críticajuridica no espaço das
disciplinas analíticas do discurso teve origem no convencimento de que era
necessário responder à preocupação de que o direito é algo mais que um
conjunto de normas. Esta preocupação, vale a pena destacar, é anterior a

12;
própria fundação da associação Critique du Droit, como vimos em um capí- "... le dévoilement de ces obstacles, c'est-à-dire la dénonciation des
tulo anterior. Não obstante, a partir dela, a crítica francesa orientou seu inte- er~eu~s qu'ils font ~eser sur la dé?nition et le développement d'une pensée
resse para um certo tipo de SociologiaJurídica, enquanto que esta pesquisa SClentlfique, nerevet pas le caractere gratuit d'une simple "critique" négative:
se orientou para a confluência da Sociologia com as disciplinas analíticas do ii nous engage positivement à constituer autrement la science du droit." (1)
discurso, tendo a intenção de dirigir a crítica rumo a ideologia jurídica mais Esta nova e verdadeira ciência se fundaria no marxismo:
que dirigi-Ia ao uso da regulação jurídica. É possível observar, deste modo, "Opposé tout à \'empirisme... qu'à l'idéalisme... la théorie marxienne
que hoje existe uma importante diferença no objeto de trabalho. permet d'instituer une véritable science juridique." (Ibidem, p. 71)
Aconvicção de que o direito não poderia reduzir-se a prescrições que Aluta era, então, por fundamentar a ciência jurídica frente ao empirismo
ameaçam com a violência, levou a crítica francesa a confundir o direito com vulgar dos juristas tradicionais, que não passam de semipositivistas:
seu uso, como já comentamos em um capítulo anterior. O presente trabalho "... une investigation du champ juridique à visée scientifique se conduit
chegou ao convencimento da necessidade de aceitar a posição kelseniana nécessairement àpartird'hypoteses inspirant les questions à poser à I'objet."(2)
básica sobre a qualidade prescritiva do direito mas, isto sim, recorrendo a Ou seja, se tratava de uma ciência. Mas bem, nem por isto se reivindica-
distinções entre discurso do direito e discurso jurídico, por uma parte, e sen- va neutralidade tanto como se confessava uma adesão ao marxismo:
tido deôntico e sentido ideológico do direito por outra parte. Deste modo "... On ne peut en tout cas assurer la moindre 'objectivité' en pratiquant
pretende vencer a objeção de que o direito não contém apenas prescrições un empirisme qui ne peut rien apprendre de la nature profonde de la régulation
mas, desde logo, mantendo a posição crítica fundamental, ou seja, que o direi- juridique. Ce souci de ne pas se prévaloir d' une pseudo-neutralité sera d'ailleurs
to é um conjunto de nonnas que ameaça com a violência. Em outras palavras, aisément admis, puisque naus avouons emprunter principalement nos
frente a objeção de que o direito faz algo mais do que prescrever a violência a instruments de compréhension du droit du travail au matérialisme historique."
resposta é que, efetivamente, nos textos jurídicos não há somente prescri- (idem)
ções de violência, mas sim muitos discursos, um dos quais é o que prescreve Esta concepção da ciência jurídica é distinta da sustentada neste ensaio.
a violência, e este é o direito. No entanto, isto não exclui que existam outros Aciência, como dissemos antes, não é mais que outro discurso, mas sujeito a
discursos que o acompanham e outros efeitos que não são apenas os de gerar certas regras. Como tais regras foram estabelecidas pelos cientistas e como
temor à desobediência. Aqui se trata, realmente, do significado da palavra eles controlam os institutos, revistas e editoras que pennitem praticar a ciên-
"direito", de reservar seu uso para o tipo de discursos prescritivos, e entre cia, esta não é mais que outro discurso de poder: cientistas são aqueles que
estes para aquele tipo que ameaça com a violência. Não há discrepância em têm poder suficiente para ser reconhecidos como tais. Por sua vez, seu discur-
relação a aceitação expressa neste trabalho de que o direito além de produzir so tem a eficácia que lhe conferem os meios necessários para sua difusão, que
ideologia é usado para medir condutas. eles também controlam.
Isto não quer dizer que a ciência de caráter positivista não esteja assen-
tada em evidentes êxitos: o uso da ciência pôde transfonnar o mundo. Contu-
1.1. A concepção cientifica de Critique du Droit do, seus êxitos não são suficientes para apagar seu essencial caráter político,
isto é, o de ser um discurso de poder.
Critique du Droit, como se denominou a associação de juristas france- Omarxismo tem, então, dois caminhos: competir com a ciência em seu
ses que produziu a crítica jurídica na França, adotou uma posição teórica ins- terreno e/ou produzir a crítica da sociedade capitalista à margem dos espaços
pirada em Althusser. Por um lado rechaçava a simplicidade do positivismo científicos. Os dois caminhos são possíveis e, inclusive, compatíveis. Cada
tradicional dos juristas e, por outro lado, qualificava seu próprio trabalho como discurso tem seu público, suas regras, e seus espaços.
"ciência". Isto significa a aceitação de uma filosofia segundo a qual Marx havia
fundado a verdadeira ciência, e o que havia ocorrido antes dele era algo assim
como a protociência. Este é o motivo pelo qual a ciência fundada por Marx I - MlAIllE,M.,1lltroduction,cit,p.68.
devia ser a base, por sua vez, da verdadeira ciência do direito: 2 - COWN f.et al., Ledroitcapitaliste du travail, Grenoble, PUG, 1980, p. 16.

126 127
Isto é distinto que dizer, como fazem Althusser e seus seguidores, que o Trata-se, a meu juízo, de um exagero, pois uma coisa é que saibamos
marxismo é a ciência e qualquer outro discurso não é científico, que não passa pouco de "tal sistema jurídico" e outra distinta é que nada saibamos. Partindo
de mera "ideologia". Neste aspecto existe uma divergência entre este ensaio e da veraz asserção, que ninguém nega, de que o direito da sociedade capitalista
a crítica francesa em sua forma original. difere em algo, muito ou pouco, do direito romano, nada obsta a que existam
similitudes, por exemplo, no caráter prescritivo de ambos discursos. Acrítica
francesa confundiu a forma com o conteúdo das normas, como Pashukanis.
1.2. A negação dojurídico universal Uma prescrição consiste na modalização deôntica de (a descrição de) uma
conduta. Esta é a "forma". O "conteúdo" consiste na descrição da conduta que
Penso que o fato de que a crítica francesa tenha negado a importância pode ser, literalmente, qualquer uma. Alguns marxistas, na trilha de Pashukanis,
de responder a pergunta sobre o direito em geral se deve a ter seguido a teoria quiseram sustentar que "direito" é uma categoria exclusiva da sociedade bur-
de Pashukanis, a quem muitos reputam como o mais importante teórico mar- guesa porque é o único direito cujas normas igualam aos sujeitos. Mas o fato
xista do direito. Como outros marxistas, destacava que nada sabemos do direi- de que as normas capitalistas igualem aos sujeitos, e isto é de grande impor-
to se ele não está situado historicamente tância, não deixa de ser o conteúdo das normas, que os juristas denominam
"Il est nécessaire de construir un objet d'étude... Cette construction "âmbito pessoal de validez". Neste ponto a crítica francesa se distancia com·
de l'objet de notre science nous oblige donc désormais à abandonner toute pletamente da crítica latino-americana, posto que esta última não rechaça, em
conception universalisante du droit et à n'envisager que des instances juridiques absoluto, as aquisições básicas do positivismo e a corrente analítica contem·
théoriquement specifiées Oe "droit" du mode de productionféodal ou le "droit" porânea do pensamento jurídico (5).
du mode de production capitaliste) ethistoriquement déterminées Oe systeme
juridique de la France de 19760u le systemejuridique de l'Angleterre duXVI
siec/e)" (3) 1,3. o direito, seu uso, eaSociologiajurídica
Contudo, por pouco que nos detenhamos na observação do texto, "aban-
donar uma concepção universalizante do direito" é impossível salvo que se O discurso do direito é, sem dúvida, um instrumento de dominação.
disponha de um conceito de direito. Caso contrário, como saberíamos o que Esta dominação é possível conseguir, entre outras muitas maneiras, medindo
realmente é necessário abandonar? Como poderíamos saber que chegou o as condutas. Este é ouso do direito. Este discurso permite, em primeiro lugar,
feliz momento no qual se produz o abandono (se supõe que para passar a uma automedição de condutas, é o efeito repressivo por excelência e, além
outra coisa)? Apretensão de prescindir de um conceito de direito nem sequer disto, permite aos funcionários medir a conduta dos cidadãos e reprimi-los se
pode ser enunciada, pois para produzir o enunciado "não existe o direito em lhes parece conveniente. Quanto a isto não resta dúvida alguma. Não obstante,
geral" é necessário construir um conceito de direito em geral para logo negar quando esta verdade se converte na afirmação de que nisto consiste o direito,
sua existência. É como deus, se sabe que não existe, mas os ateus tem que então se produz um deslocamento do ser deste discurso a seu uso, e uma
conferir algum significado à palavra antes de negar sua existência.
Juntamente com a negação do direito em geral aparece a idéia da inuti-
lidade de formular este conceito:
"... nous nepourrons donner dujuridique "en général" qu'uneformule 5 - "Estabelecido que ateoria critica outorgaal1-inltio títulos suficientes àprática científica dos
juristas... tentaráapanirdisto construir uma epistemologia... Para estes efeitos, assumindoas criticas
vague dutype: ensembie de practiques et d'institutions organisant sous forme do materialismo onodoxo, serão aceitas algumas ferramentas teóricas da teoria jurídica tradicional
normative I'ordre social... Une telIe définition ne peut nous être utile pour que, como matéria.prima teórica, podem serúteís panlcu1annente em relação à análise da linguagem
connaitre tel systeme de droit. " (4) jurídicae à questão do funcionamento das formas lógicas desta linguagem, áSSim como também cenas
eategoriaseconceitosdateoriageraldodireito":ENTELMAN,Rlcardo, "Introducclón",emLegendre
P. et ai., Eldiscursojuridico, Buenos Aires, Ed. Hachene, 1982, p. 12. Observe«que mais além de
3 - MlAIllE, M., Une introductton..., cit., p. 118. cenadisplicênciacom que está dito, o que a teoria crítica aceita da teoriageral não é, absolutamente,
4 - MlAIllE, M., "La specificité de la forme juridique bourgeoise", emProces, número 9, p. 95. insignifteallte ou inttanSCendente.

128 129
confusão entre a ciência que estuda o discurso e a que estuda suas causas e "...formas de atuar deste discurso... da forma com que o direito realmen·
efeitos, que é aquilo em que consiste a Sociologia jurídica. te funciona na formação social considerada... compreender como os mecanis-
Em realidade, isto não deveria causar qualquer assombro, pois estamos mos e as representações jurídicas organizam e regulam as relações empíricas
falando de uma tendência que se intitulava marxista desde seus primórdios. dos indivíduos, grupos específicos e classes dentro de sociedades históricas...
Com efeito, o marxismo somente tem algo a oferecer ao estudo do direito (8) levar a cabo uma paciente reflexão, alimentada sem restrições com traba.
quando se trata de ciências sociais como a Sociologia, a Antropologia e a lhos empíricos sobre uma grande variedade de objetos, às vezes muito técni.
Psicologia. Isto se deve a que nada de novo tem para oferecer em termos de cos, com afinalidade de esclarecer um pouco mais toda acomplexidade desta
consideração de sua forma lingüística, que a Teoria Crítica do Direito adquire forma realmente singular de mediação das relações sociais... se centram na
junto à Teoria Geral do Direito. tecnologia e na prática da regulação jurídica a partir de temas cuja exploração
Mas, e quanto a isto não restam dúvidas, o marxismo é a posição teórica parece permitir·nos progredir no conhecimento de seus modos de ação... já
melhor dotada para oferecer bases ao estudo sociológico do direito. Quanto a não se trata de construir ou reconstruir uma verdadeira teoria geral... inclusi"
este ponto estamos absolutamente de acordo quase todos os que participa· ve se sugeriu a constituição de uma antropologia jurídica... (idem, p. 95) to-
mos neste amplo movimento denominado, talvez de modo muito genérico, mar os distintos aspectos técnicos da regulação jurídica como objetos concre·
Críticajurídica. Aqui não há nenhuma divergência real entre a crítica francesa tos de reflexões que permitam concomitantemente ir alémde afirmações muito
e a presente pesquisa, exceto que esta simplesmente não deixa de reconhe· gerais, cujos obstáculos e perigos já indicamos... me refiro aqUi às pesquisas
cer que a consideração do uso do direito, o estudo do "como" se produz a relativas as modalidades da produção social das normas jurídicas... assim como
regulação jurídica das relações sociais, é aquilo em que consiste a Sociologia às práticas observáveis nestes lugares, especialmente aquelas nas quais há
doDireito. uma grande variação de aplicações ou de invocação das regras ou direitos
Em realidade, a crítica francesa o reconheceu desde o primeiro momen· subjetivos. Trata·se, de certa forma, de fazer que a proposta crítica passe pelo
to. O que resulta estranho é a sua negativa em diferenciar entre direito e uso estudo cuidadoso da tecnologia e da prática do sistema de direito." (idem, p.
do direito: 96)
... tres évidemment, passer d'une pure spéculation sur la norma É pouco o que se pode acrescentar no sentido de destacar que a crítica
juridique à l'analyse des causes de l'apparition et du foncionnement de teIles francesa é atualmente uma das linhas mais interessantes daSociologiajurídica
normes juridiques dans teIle societé, c'est bien changer de terrain, c'est bien deste país.
se situer en un lieu fort de différent de celui d'ou parlent ordinairement les
universitaires. (6)
Realmente é assim, a crítica francesa sempre foiSociologiajurídica, ou 1.4. O direito como discurso
seja, o estudo das causas e dos efeitos - "funcionamento" - do direito (1), de
tal maneira que, atualmente, a crítica francesa pode ser vista como uma parti· Acrítica francesa nunca ignorou o fato de que o direito é um discurso.
cular tendência no interior desta disciplina, ocupada na investigação das Além disto, apesar de sua negativa em considerar o jurídico universal, de qual·
quer maneira utilizou o verbo "ser" em algumas oportunidades para dizer o
que o direito "é". Por exemplo:
6 - MlAIllE, M.,UneinlTOduction... cit, p. 381. ar.,idem, p. 75: "/lnesu/fitpasdeserontenterde
'~ .. }e définirai l'instance jurldique - plus précisement la région
laplatitudequeledroitesttojoursUéal'existencedelasociété:uneréjlexiónsclentiflquedoltaUer
plusloin etnousdirequel type de tiroitproduittel type de société opourquoiteldroitcorrespond à juridique de l'instance politico.juridique - comme le systême de
teUe société ".
7 - "Cet ouvrage n'es( pas un manuel supplémentaire de droit du travail... Son ambition est...
intetvention dans le débat sur Ies raisons d'être du droit en général, et d'uo 'droit du travail' en
particulierdansunesocietédominéeparlemodedeproductioncapitaliste",COUJNF.etal,Ledroit
capiUlUstedu travaU, cit. p. 7. Acaso aSociologiajuridica não tem porobjeto o estudo das causas, isto 8 - JEAMMAUD,Antoine, "l.acriticade1derechoenFr.Ulcia:dela~deunateoriamaterialista
é, compreender as "razões dela própria no capitalismo"? dei derecho ai estudio critico de la regulación jurídica", emCriticajuridica, número 4, p. 91.

130 131
communication formulé en termes de normes pour permettre la réalisation Por outro lado, a presente
, pesquisa está' on'entada especifiIcamente a
d'un systeme déterminé de productione d' échangeséconomiques et sodaux. " apresentar.fu?dame~tos teoricos, inspirados em Marx, para a análise do dis-
curso do
. direito e nao_para o estudo do uso ou dos cei_& 't
os do mesmo, Esta e'
(9)
Um sistema de comunicação somente pode estar constituído por dis- uma diferença, mas nao constitui uma incompatibilidade O prese t '
"t """ ,neensalO
cursos, ao menos conforme o conceito aceito nesta pesquisa desde o princí· 10SIS e na cntlca Jundlca como analise do discurso em razão de d'
& • • •• I" que acre ItO
pio. É possível ver na obra citada que a partir desta concepção do direito que Os eSlorços 10lClalS so ICltavam estes fundamentos.
como sistema de comunicação não se extraem todas as conseqüências possí-
veis nem se tenta aprofundar acerca do uso do termo "comunicação". Possi·
velmente isto se deve a que a tentativa era especificamente sociológica ou, 2. A TEORIA CRíTICA DO DIREITO
talvez, a que o reconhecimento desta característica universal do direito é de
alguma maneira uma inconsistência: se o direito "é" um sistema de comunica· E~ fr~nc~ coexist~n~ia com a Teoria Geral do Direito de filiação analíti-
ção, porque somente tem importância o direito situado historicamente pres- ca, coexlstencla que nao e de todo pacífica como levam a crer os escritos
cindindo das conseqüências universais de que universalmente seja um discur- sobre a democracia dos juristas analíticos, se desenvolveu em Buenos Aires a
so? Teoria Crí~ca do Direito, que deve ser considerada outra manifestação da
Por sua parte, a idéia de que o direito provém diretamente de discursos c~nfrontaçao com a a~ologia d~ direito. Pelo ambiente e pelo espaço acadê-
e não de relações sociais está claramente exposta na outra obra que tomamos mlc~ ocupado, que e o das catedras de Filosofia do Direito, ainda que
como representativa da crítica francesa: fr~~uentementeem seus níveis inferiores, posto que os superiores são férrea
"les normes et institutions positives procedent d'une certaine image du e 10Justamente controlados pelos "relativistas" da análisefilos6fica, sem dúvi.
corps social qu'elles entenden organi~er et des "valeurs" qu'elles prétendent d~ q~e se trata de uma autêntica Teoria do Direito e não de uma teorização do
servir." (lO) direito moderno como a que se inspira no marxismo de Pashukanis. ATeoria
Desde logo, uma "imagem" é um discurso ou, se se prefere, apenas Crítica do Direito não põe em discussão os resultados críticos da Teoria Geral
pode ter existência em um discurso, conforme o conceito que aceitamos aqui. do D~reito de inspiração positivista, mas sim avança sobre perguntas não res-
Por outro lado, entre os efeitos do discurso do direito está a produção de pondidas por esta e que, além disso, parece não querer responder. Sobre o
novos discursos ou ideologias formalizadas, do modo que convencionamos: fund~ co~um. da epistemologia moderna, com a clara aceitação da crítica
"ces normes et institutiones produisent elles-mêmes une certaine marxlana a sociedade capitalista, e com a bagagem própria das modernas ciên-
représentation du social ordonné para leurs soins (une société composée de ci~ da linguagem, a Teoria Crítica do Direito destaca a psicanálise como
personnes libres et égales, et organisée par un Etat serviteur du seul intérêt meio para responder ao que a teoria dominante não se atreve nem sequer a
général et dispensateur de justice); enfin, elles donnet liue à discurses sus p~rguntar, seguramente porque não há elementos "empíricos" que avalizem
leurs fonctions et leur finalité ... " (idem). tais perguntas, e nem falemos das respostas. No fundo, a questão é que a
Contudo, a crítica francesa não aprofundou esta linha de trabalho antes Teoria Crítica do Direito inquire com curiosidade ali onde o poder não tem
de dissolver·se como Critique du droit, ainda quando certas preocupações inter~ss~ em que s~ inquira. Caso fosse solicitado um resumo do que esta
sobre a representação oferecessem a perspectiva de uma mais clara inclina· tendenCla busca tenamos de dizer que está interessada pela resposta a seguin·
ção pelas chamadas ciências "da linguagem", a Semi6tica entre elas (lI). te pergunta: Como é que o direito consegue a obediência do dominado? Esta
é uma pergunta que vai além da resposta que a Teoria Geral do Direito de
caráter analítico, quando é crítica, alcançou: o direito é uma técnica de con-
9 - MIAIllE, M., Une Introduction..., eit, p. 109. ar. p. 117: "... uneautre manlere de retrouver trole social. Digamos que esta Teoria Geral do Direito da qual falamos estu-
lei la tendance hég~monlque du droil comme systeme de communication dans le mode de dou, sem concessões, a estrutura lingüística desta técnica, mas que se nega a
produetlon capitaliste ". perguntar·se como esta técnica atua na consciência do dominado.
10 - COWNF.,etal.,Ledroltcapltalistedu travail,... eit,p. S.C/r. pp. 153e 167.
11 - Proces, números 11-12, infonna de um es(orço neste sentido.

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Adiferença entre o objetivo da Teoria Crítica do Direito e a tentativa discurso "vinculante", que é o produzido pelos funcionários no uso de suas
da presente pesquisa consiste em que esta pretende oferecer elementos teóri- atribuições, de quaisquer outros discursos, quaisquerque sejam seus produto-
cos para a análise e a crítica de textos jurídicos positivos, ou seja, dos textos res. ATeoria Crítica do Direito, em troca, não estabelece esta diferença, acre·
jurídicos próprios de sociedades como a argentina, a mexicana ou a francesa, dito que apenas porque até agora não a necessitou. Ao contrário, o uso da
enquanto que a primeira oferece elementos teóricos para o estudo do direito palavra althusseriana "prática" indica que se interessou pelos efeitos ideológi.
em geral. Esta pesquisa entende que não diverge da Teoria Crítica do Direito, cos de todos estes discursos em conjunto.
a quem aceita totalmente. Poderia, de qualquer maneira, precisar-se o que Por outra parte, esta teoria crítica, também sem reconhecê·lo, funda·
segue. menta um tipo particular de Sociologia jurídica à medida em que concebe a
Nenhum simpatizante desta teoria desconhece, por suposto, a diferen- esta "prática social" como expressão dos conflitos sociais, ou seja, desde seu
ça entre um discurso e um fenômeno. Não obstante, os principais trabalhos início inclui na definição, que já não é do "direito", mas sim de "prática social
epistemológicos tentam dar conta do direito como uma prática social que específica", a origem ou "causa" dos discursos que integram esta prática. Mas,
inclui discursos efenômenos. Não se trata de que não os diferencie, mas além desta notável e justificada inclinação a considerar as causas do direito,
sim que deseja estudá-los conjuntamente. esta teoria se interessa também, e acredito que principalmente; pelos efeitos
"O direito é concebido na teoria crítica como uma prática social especí- "ideológicos" (em realidade não poderia haver outros) destes discursos. E é
fica na qual estão expressados historicamente os conflitos, os acordos e as aqui que aparecem os temas ausentes na teoria tradicional, tais como, por
tensões dos grupos sociais que atuam em uma formação social determinada. exemplo: a) que os efeitos do direito são a produção de ideologia, neste pon·
Esta tensão se manifesta nos modos de produção, circulação e consumo do to que é chamado "articulação do discurso jurídico com ficções e mitos"(14);
discurso jurídico, e será localizada tanto na produção jurídica levada a cabo b) o jogo produzido por este discurso através do par ideologia-repressão de
pelos distintos tipos e níveis de órgãos designados na instituição social como forma que a segunda chega a converter-se na ocultação da produção da pri·
também na produção teórica... deste modo se estrutura uma instância jurídica meira (15); c) a produção da ilusão e do mito (16); etcétera.
nas formações sociais, integrada pela produção do direito e pelo conhecimen- A Teoria Crítica do Direito se mostra como fundamento de umaSociolo-
to acerca deste..." (12) giajurídica principalmente quando diz que a ideologia tem "expressões mate·
É possível observar que apráticajurídica consiste na "produção, circu- riais" que excedem o imaginário, quando as práticas jurídicas adquirem "exis·
lação e consumo" de um discurso. Esta me parece uma diferença importante tência material" e para mostrá·lo indica os costumes, os hábitos e as regulari·
em relação a crítica francesa, e não porque esta última, como vimos, a ignora- dades de comportamento como sendo esta existência material (17). Neste
ra, mas sim porque não fez disto a definição do objeto chamado "direito". momento, a Teoria Crítica do Direito faz ingressar os fatos, as condutas, ao
Este discurso é produzido por: a) funcionários ("órgãos designados na conceito de "prática jurídica" que constitui sua definição do objeto de estudo.
instituição social O); b) juristas ("no nível da produção teórica"). Outro autor Neste momento esta é a teoria de uma Sociologia jurídica, a qual este ensaio
acrescenta, e também creio que falta, c) o discurso dos usuários ou súditos: também tenta fornecer ~lementos metodológicos. É por isto que o presente
" ...0 terceiro nível é onde se joga o imaginário de uma formação social. trabalho, a meu juizo, embora não sendo devedor da Teoria Crítica do Direito
É o discurso que produzem os usuários, os súditos, os destinatários do direi· não é incompatível com ela, ao contrário, é coincidente. Não obstante, é ne·
to, ..." (13) cessário ressalvar que aqui tratamos especialmente de diferenciar discursos
Em outras palavras, como na presente pesquisa, aqui também há o dis·
curso do direito - o dos funcionários -, e o discurso jurídico, o dos juristas e
o dos cidadãos. Mas em nosso trabalho temos procurado diferenciar entre o 14 - C/r. CÁRCOVA, Carlos, "Teorias]uridicas a1ternativas",dt.
15 - C/r. ENTELMAN, Ricardo, "Introducd6n~ dt., e "Aportes a lafonnación de una epistemología
juridicaen base aa1gunos análisis dei funcionamiento dei discurso juridico" emEIdiscursojuridico,
12 - ENTE1MAN,Ricardo, "Introducd6n",dt.p.12. cito p. 105
13 - CÁRcovA, Carlos, "Teorias jurídicas alternativas", em Correas, óscar, (ed),Sodologiajuridim 16 - C/r. RUIl, Alicia E., "La i1usión de lo juridico" emCríticajuridica, número 4, pp. 161 ess.
y Poli/1m enAmérica Latina, Oõati, Instituto Internacional de Sociologia]uridica, 1991. 17 - C/r. ENTELMAN, Ricardo, "Introducd6n" ,dto p. 14.

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de fatos, discurso do direito de discurso jurídico e sentido deôntico de sentido No exemplo a) a palavra "crítica" parece significar o mesmo que "aná-
ideológico, o que fizemos devido aos interesses particulares desta pesquisa e lise", ao passo.que Kant realiza um ex~me pormenorizado daquilo que acredi.
não porque existam incompatibilidades irremediáveis. ta ~~r a ma~el~a de proceder ~ razao (toda razão). Poderia ser dito que a
anahse do direito, do seu funcIOnamento, realizada por Kelsen resulta "críti.
ca", mas não somente pelo fato de ser uma análise, mas sim porque seus
3. A CRÍTICA DO DIREITO COMO ANÁLISE resultados nos mostram o direito como produto da vontade de poder, como
DO DISCURSO técnica de controle e domínio sobre os homens e como um discurso que
oculta tanto como mostra. Mas no uso kantiano do vocábulo não se soma à
Na seqüência procuraremos estabelecer a concepção e o objeto da Cri· análise, este sentido de inconformidade que aparece na crítica de Kelsen. '
ticajuridica a que o presente ensaio pretende contribuir definindo, em pri· No exemplo b) se faz referência ao subtítulo, zombador, que Marx e
meiro lugar, o sentido em que falamos de "crítica". Engels acrescentaram asua conhecida obra A sagradafamília. Os personagens
ACriticajuridíca deve ser definida tanto por sua qualidade de "crítica" criticados por estes autores, Bauer e companhia, haviam exagerado com a
como por sua relação com aquilo que é "crítica". utilização da tradição alemã a respeito da crítica e falavam agora da "crítica
crítica", tipo de sobreideologização que a Marx e a Engels parecia desagradá·
vel. Por isto o livro estava dedicado a criticar esta crítica crítica. Fosse o que
3.1. "Crítica" fosse esta atividade teórica Marx·engelsiana, parece que deve diferenciar-se
do que finalmente seria em Marx a crítica da economia política, ou seja, a
A palavra "crítica" é utilizada aqui com o significado que lhe atribuiu crítica, desde o ponto de vista que Marx entendia ser o da classe trabalhadora,
Marx e não com o que lhe atribuiu Kant. Pertence, portanto, ao discurso da ciência denominada, então, Economía Política.
político e não ao discurso epistemológico. Não se trata de, através da crítica No exemplo c), no caso de O capíta~ "crítica" significa a análise dos
do direito, submeter o direito a uma análise pormenorizada para estudá-lo resultados desta ciência, a qual Marx não deixa de denominar ciência ainda
cuidadosamente. Isto é necessário e prévio, mas a crítica pretende outra coi· que reconhecendo que é "burguesa". Isto significava que, apesar dos desco·
sa. Em primeiro lugar, acrítica, em sua acepção marxiana, é um ato de rechaço, brimentos de Smith e Ricardo, esta ciência ainda estava "envolta em sua pele
desde o ponto de vista ético, da organização social que utiliza este e não qual- burguesa", pois continuava escondendo fenômenos nos quais não se atrevia a
quer outro direito. Além disto, supõe que se compreende perfeitamente a penetrar porque se o fazia colocaria a descoberto a exploração em que se
função da ideologia jurídica como técnica de dominação: se critica este direito baseia o capitalismo. Adiferença entre a crítica da economia política e a críti·
porque este direito constitui uma técnica utilizada por este poder. ca da crítica crítica consiste em que a primeira implica o reconhecimento do
Parece oportuno explorar os possíveis significados desta palavra. Ob· caráter científico do criticado, enquanto que no segundo caso se trata do
servemos estes exemplos de seu uso: rechaço total do criticado. Parece que o significado marxiano do termo "críti-
ca" é o que se aproxima ao da utilização da palavra pelos críticos do direito, e
a) ACritica da Razão Pura de Kant isto em ambos sentidos, tanto quando se trata de criticar o que certos juristas
b) A "crítica da crítica crítica" de Marx e Engels chamam "teorias" como quando se trata de criticar a ciência do direito e seus
c) O capital ou a crítica da economiapolítica de Marx resultados.
d) Acrítica foi favorável a obra x No exemplo d) mostramos que a palavra "crítica" não é sempre utiliza·
e) Asentença N do juiz Y foi duramente criticada por não estar con- da como atividade ideológica que combate outra expressão ideológica. A"crí·
forme ao direito tica" pode ser "positiva", ou seja, o crítico pode estar de acordo, ver como
f) Alei N foi duramente criticada por ser injusta bom, belo ou verdadeiro, aquilo que critica. Parece que a crítica jurídica não
está obrigada a rechaçar tudo o que está sob sua atenção. Não parece impos~
sível que um crítico do direito possa referir-se a uma sentença para elogiar, e

136 137
não para atacar, por exemplo, o valor que um juiz deixa transparecer na defe- usaríamos esta expressão - Política do Direito- para referir·nos a fatos como
sa dos direitos humanos. Neste caso, como nos exemplos que seguem, a críti- jogar pedras contra os edifícios da câmara de deputados em uma ação que vise
ca tem como fundamento normas jurídicas e) ou valoresf). conseguir a aprovação de uma lei, por exemplo. Assim, não pode alegar.se
A expressão "crítica jurídica" é usada nesta pesquisa na acepção que a Crítica do Direito não pode coincidir com aPolítica do Direito porque
marxiana, ou seja, como crítica daquela que passa por ser ciência jurídica. I:sta é uma "prática" enquanto que a crítica jurídica é uma atividade intelectu.
Mas o significado da palavra "crítica" no uso dos juristas que militam nestes aI. Por isto que o chamado uso alternativo do direito pode ser visto como
movimentos chamados de crítica do direito também admite a polissemia e crítica jurídica desde o ponto de vista interno, pois este uso alternativo é
não se esgota em uma reflexão sobre a ideologia. Podemos falar, então, de sempre uma atividade que tende a conseguir a aplicação de normas ou sua
várias formas de Críticajurídica. Podemos falar de crítica do discurso jurídico interpretação de uma certa maneira e não de outra.
ou do discurso do direito assim como de crítica do discurso da ciência do Mas bem, nem toda ação de Políticajurídica poderia ser sensatamente
direito ou do que passa por ser esta ciência. Podemos falar também, por exem- qualificada de "crítica". O que tomaria uma Política jurídica uma parte da
plo, da crítica do direito desde o ponto de vista interno e desde o ponto de Crítica do Direito? Ou, dito de outro modo, o que converteria em "crítica"
vista externo. É oportuna uma reflexão sobre as relações entre estas duas uma Políticajurídica? Aresposta não pode basear-se na idéia de que a crítica
últimas possibilidades. jurídica tenha por objeto atransformação social porque toda Políticajurídica
tem por objetivo alterar o sistema jurídico, supondo que este seja o conjunto
de normas válidas: com a produção de cada sentença ou resolução administra-
3.2. A crítica do direito desde o ponto de vista interno tiva se "altera" o sistema. Mas ninguém se atreveria achamar Política do Direi·
to de sentido crítico a uma atividade que tendesse, por exemplo, a aumentar
Atendendo sugestão de Hart podemos distinguir a crítica que realiza um as penas previstas no código penal (salvo, talvez, que se tratasse de estabele·
jurista que se instala no interior de um sistema jurídico de algum outro tipo de cer penas para as atividades dos militares golpistas e torturadores).
crítica que se instale em um espaço teórico exterior a este sistema. O que poderia fazer de uma certa Política do Direito, e não de uma
Quase toda a atividade realizada em prol da defesa dos direitos huma- qualquer, uma atividade pertencente a crítica jurídica não é nenhum elemen-
nos, por exemplo, é crítica do direito desde o ponto de vista interno. É, tam- to científico, mas assim um elemento inteiramente ético, o rechaço ao atual
bém, o caso do que se chamou "uso alternativo do direito", que é uma ativida· sistema social. Isto consiste na tentativa de transformar nossas sociedades de
de política reivindicada pelos juristas críticos como ajustada a suas convic· alguma maneira que implique a redistribuição da riqueza, de modo que a Crí·
ções éticas. Desde o ponto de vista interno esta crítica deve enquadrar-se no tica jurídica está irremediavelmente ligada ao pensamento socialista. Os
que Kelsen chamava Política do Direito, que deve ser cuidadosamente dife- matizes dos conteúdos que podem ser chamados "socialismo" são muitos.
renciada da Ciência do Direito. Aprimeira é a atividade política que tende a Contudo, de qualquer ~aneira, não poderia haver algo com tal nome que não
alcançar a produção, aplicação ou derrogação de normas. implique alguma forma de redistribuição da riqueza, o que, por sua vez, é um
Mas bem, qualificar certa atividade política como "crítica do direito" objetivo ineludível de qualquer atividade de crítica do direito. Neste ponto a
pode resultar, à primeira vista, um tanto desconcertante quando se opine que Crítica do Direito se separa do pensamento liberal, que nestes anos está no
a crítica é uma atividade intelectual, enquanto que a Política jurídica é uma auge, postulando a democracia, e não o socialismo, como objetivo daPolítica
prática vista como um conjunto de condutas faticamente determináveis. Em do Direito. Isto não impede que o liberalismo possa contribuir com o melhor
realidade, não há tal incompatibilidade entre "crítica jurídica", enquanto tare- de seu pensamento teórico a respeito do direito - me refiro principalmente à
fa intelectual, e Política do Direito, enquanto prática política. Adiferença é filosofia analítica e, especificamente, no que toca à América, à chamada Esco-
inexistente se consideramos que a Política do Direito, por mais que seja da la de Buenos Aires - e que, além disto, nos escritos de seus pensadores mais
ordem das coisas "práticas", não deixa de instalar-se no plano da linguagem e, sensíveis seja autenticamente crítico das formas jurídicas antidemocráticas.
portanto, não deixa de ser um discurso. Aluta pela alteração do sistema jurí· Mas bem, ainda que alguns liberais participem de um pensamento crítico, de
dica não pode ser outra coisa que um discurso acerca de outro discurso. Não uma Teoria Geral do Direito de conteúdo crítico, isto é, que denuncia o

138 139
estado como dominação do homem pelo homem, isto não implica necessari-
amente a militância em uma Política do Direito como aquela a que aspiram os Em realidade, o ~ue tor:na ~ie~tífica a crítica da ideologia jurídica é, precisa·
ment~, ~ pretensao de clentlfi~l~ade do ~ue os juristas fazem. São precisamen-
juristas que se dizem pertencentes a corrente crítica do direito. Por vezes
ocorre justamente o contrário, ou seja, que tratando-se de marxismo ou sim· te os JUristas que, fazendo pobtlca com dIsfarce científico, tornam sua ativida.
d~ um objeto de crític~ cie?tífica e, ao mesmo temJ?O' política, posto que o
plesmente de socialismo, os juristas analíticos costumam perder sua
equanimidade de maneira verdadeiramente inesperada tratando-se, como se dIscurso que desnuda CIentificamente a natureza pobtica de seu objeto é tam-
bém um ato político.
trata, de intelectuais de grande prestígio. É neste ponto da redistribuição da
riqueza onde parece que posso ver a linha - não necessariamente reta nem
muito bem traçada (não faltam tampouco os liberais com passado socialista)-
de separação entre qualquer outra Política do Direito e uma de corte crítico 4. O PROBLEMA DO FUNDAMENTO DO DISCURSO
com a significação que a palavra "crítica" é usada por aqueles que se identifi~ cRíTICO DE OUTRO DISCURSO
cam com a chamada Crítica jurídica. Isto não parece necessariamente válido
em relação ao movimento crítico nos países do primeiro mundo. Suponho o problema da justificação teórica da crítica aparece, neste caso, apa·
que um jurista europeu, e talvez muito mais um norte·americano, possam ver rentemente pelo fato de quese trata de um discurso que se reconhece como
como compatíveis a crítica jurídica e o pensamento liberal tradicional, o que uma ideologia sobre outro discurso também definido como ideologia. Aceita·
não me parece possível na América Latina. mos anteriormente que todos os discursos manifestam ou formalizam uma
ideologia e, inclusive, definimos a ciência como uma ideologia formalizada
em conformidade a certas regras. Com isto aceitamos uma filosofia na qual
3.3. A crítica do direito e dos discursos jurídicos desde não existe o centro, ou seja, o ponto de partida unívoco, verdadeiro, bom,
um ponto de vista externo seguro. Portanto, trata-se de um ponto de partida que reconhece seu funda·
, • I
mento na etlca ao mesmo tempo que reconhece a relatividade dos valores.
Contudo, a tarefa mais importante da Crítica jurídica é a que se realiza Desde este ponto de partida poderíamos perguntar qual é o fundamento de
desde um ponto de vista externo, embora isto deva ser matizado com a aclara- uma crítica do discurso do direito? Porque acrítica de um discurso que descre·
ção de que se esta tarefa tem um fundamento ético, a exterioridade é relativa. ve um fenômeno observável parece, à primeira vista, algo simples, tudo de·
Esta crítica será, por sua vez, um discurso, que tendo a outro como objeto será pende de que o afirmado possa ou não ser comprovado através de um experi·
um meta-discurso. Acrítica que este trabalho pretende fundamentar tem como mento. Caso se comprove que o discurso criticado não se confirma através do
objeto tanto o sentido ideológico do discurso do direito como os discursos experimento que o próprio discurso previa como a experiência que devia
jurídicos, ou seja, tem como objeto a ideologia do direito e a ideologia jurídi- confirmá-lo, então o di~curso é falso, e, óbvio, é verdadeiro em caso contrário.
Mas aqui a questão consiste em que acrítica versa sobre discursos que tem um
ca. O objetivo desta crítica é a crítica da específica maneira de exercer o
poder através destes discursos, da técnica que permite tornar o homem con- duplo sentido, o deôntico e o ideológico, e sobre discursos que versam sobre
eles. A respeito do sentido deôntico do direito, como as normas não são ver·
temporâneo um objeto do poder daqueles que são os beneficiários da organi·
dadeiras nem falsas, a crítica somente poderia ter como objeto declarar a jus·
" zação social contemporânea, ou seja, da específica maneira de repartir a ri-
queza nesta sociedade. tiça ou a injustiça da modalização destas condutas. Não é disto que se trata
aqui, senão da crítica do sentido ideol6gico do direito e da ideologia jurídica.
O que será objeto de crítica é que estas ideologias pretendem descrever- não
prescrever -, e não de modo confesso, fenômenos sociais tais como estes
3.4. A crítica científica dos discursos não científicos aparecem e não tal como são.
Mas bem, dizer que o direito - seu sentido ideológico - descreve ape·
Nada obsta a que esta crítica seja científica, mas sempre e quando se nas a aparência dos fenômenos deve ter um fundamento. Como veremos em
proponha a aceitar e respeitar certas regras próprias dos discursos científicos. um capítulo posterior, isto conduz a que seja aceita uma teoria sociológica
140 141
geral que outorgue fundamento aos enunciados com os quais se critica as Desde logo, a ciência apologética do direito não encontra dificuldades
descrições do direito. Este problema deve ser resolvido com a adoção de uma para encontrar na lei este referente que a Crítica Jurídica busca em outro
Teoria Sociológica do Direito, segundo a proposta deste ensaio. lugar. Para aciência tradicional, se o código diz que o contrato é um acordo de
vontades, então o enunciado que o repete é verdadeiro. Para esta ciência
jurídica, para esta "Metodologia}urídica", entre os juristas e os papagaios não
5. A CIENTIFICIDADE DA CRíTICA JURíDICA há diferença significativa...
O próximo capítulo está destinado a explorar o problema que o referen·
Mas bem, o direito apresenta um problema adicional, o do seu referen- te põe à Crítica do Direito. Somente após será possível dar atenção ao proble·
te, pois a crítica jurídica não versa sobre discursos que confessam descrever ma da causalidade (capítulos 9 e 10) entre as relações sociais e o direito (capí-
fatos. Os discursos que descrevem fatos são criticados desde outros discursos tulo 11), para chegar finalmente às propostas científicas deste ensaio a respei-
que desmentem as comprovações empíricas dos primeiros. Como veremos to da CríticaJurídica.
no capítulo seguinte, uma comprovação "empírica" não é um acesso ao fenô-
meno, mas sim a comparação de um enunciado - a hipótese, por exemplo -
e uma experiência ou sensação, que é sempre interior ao sujeito e que so-
mente pode "objetivar-se" em um discurso. Deste modo, a "comprovação" ou
"falsificação" de um enunciado consiste, finalmente, em sua comparação com
outro enunciado que "enuncia" o experimento de que se trata.
Mas, como falsificar o enunciado de um código que diz, suponhamos,
que os contratos são acordos de vontade? Como se critica o sentido ideológi-
co de um código que não pretende - ou pretende fazer crer que não pretende
- descrever nada?
Caso se trate de um discurso que versa sobre o sentido deôntico do
direito, ou seja, de um discurso que descreve uma norma válida, então sua
falsificação ocorreria na confrontação do discurso com a norma válida. Em
realidade, ocorreria na confrontação com outro enunciado que repete a nor-
ma da qual se predicará validez. Mas bem, embora não seja nada simples dar
conta de semelhante comprovação da "verdade" do enunciado que descreve
uma norma, de qualquer maneira parece distinto que pensar na comprovação
de um enunciado que pretende dizer que não é certo, por exemplo, que os
contratos são atos de vontade. Porque, qual seria o referente em relação ao
que seria ou não verdadeiro o enunciado crítico que diz que é falso que o
contrato é um acordo de vontade que obriga as partes? Se supõe que o enun-
ciado que descreve uma norma é verdadeiro ou falso em relação ao referente
que é a norma. Mas qual é o referente do enunciado que está em um código e
que diz que o salário é a contraprestação do trabalho entregue pelo trabalha-
dor ou que diz que o contrato é um acordo de vontades? Para poder dizer que
tais enunciados são falsos a Crítica Jurídica deve ocupar-se do referente do
direito, como se verá no capítulo seguinte.

142 143
Capítulo Oitavo

O REFERENTE DO DISCURSO DO DIREITO

SUMÁRIO: J. Osfatos e o sentido; 2. O Sentido e seu referente; 3. O discurso do


direito, seu sentido ideol6gico e as relações sociais; 3. J. O direito para o usuá-
rio; 3.2. O direito para o soci6l0go; 3.3. O direitofrente a análise do discursO; 4.
Causa e referente; 5. Os códigos e o deciframento do discurso do direito; 6.
Denotação e conotação de ficções.

1. OS FATOS E O SENTIDO

Em algum momento Foucault recordou que Nietzsche atacou a crença


ocidental da correspondência entre pensamento e seu objeto, ou seja, entre o
que o pensamento pode alcançar e o que, por sua parte, seja o mundo exte-
rior ao pensamento. Recorda Foucault que, segundo Nietzsche, "não há, em
realidade, nenhuma semelhança nem afinidade prévia entre o conhecimento
e estas coisas que seria necessário conhecer" (1).
Com efeito, Nietzsche retomava uma antiquíssima tradição que se en· .
contra claramente expressa em Górgias:
"... em seu tratado Acerca do não ser ou acerca da natureza, dispõe em
ordem três coisas capitais: aprimeira delas é que nada existe, a segunda é que,
ainda que existisse, seria incompreensível para o homem, e a terceira é que
emb0f-l fosse compreensível, certamente seria incomunicável e inexplicável
ao vizinho· (2)
Certamente que com esta idéia Górgias se atrevia a tanto ou mais do que
Nietzsche. Górgias se enfrentava com uma tradição fortíssima que se remonta
a Heráclito e Pannênides. Não existem notícias de.que antes de Górgias algum
filósofo se atrevera a desafiar de maneira tão radical o convencimento de

I - FOUCAULT,M.,LaverdadyJasfonnasjuridicas,México,Ed.Gcdisa.I983,p.23.
2 - GÓRGIAS,Fragmentos, 3 (versão de Pedro C. Tapia Zúiiiga), México. UNAM, 1980. p. 1.

145
Heráclito e Pannênides segundo o qual o ser e o pensar coincidem e, segundo Como se vê, para Górgias não há nenhuma dúvida acerca de que é in·
Pannênides, ainda mais, são o mesmo. fundado o convencimento sobre o qual se baseia a teoria do conheCimento
Heráclito, por sua parte, utilizava a palavra "logos" para referir·se tanto mais difundida em nossa cultura. Uma coisa são os discursos e outra coisa é o
a lei que governa o universo como ao pensamento dos homens e aos seus mundo do qual os discursos falam ou ao qual pensam referir·se, mas com o
resultados, que é o discurso dos homens. importante acréscimo de que o discurso não reproduz o mundo do qual fala.
"Que quer dizer logos aqui? O tenno... significa "palavra", "discurso", Górgias parece cruamente sensualista:
"expressão oral ou escrita". Tem, pois,... uma acepção Iingüística... Mas seu "... do encontro de sabor se origina em nós a palavra pronunciada rela.
significado certamente não se esgota com isto. Como toda "palavra" ou "dis- tivamente a esta qualidade, e do deslizamento da cor, a relativa a cor. Sendo
curso", traduz um pensamento Assume, deste modo, junto a seu sentido assim, não é a palavra que explica o de fora, mas sim o de fora se toma signi,
"lingüístico" um sentido "lógico" No entanto, tampouco com isto fica tudo ficativo da palavra. " (idem, p. 5)
dito. Assim como com o sentido Iingüístico se conecta o lógico, com este Parece que Górgias estava entre aqueles que pensam que as palavras
último se vincula o sentido ontológico. Desta maneira o vocábulo logos passa que expressam sensações tem como origem estas sensações. Mas isto não é
a representar a própria realidade, o que real e verdadeiramente é, o que, em tão importante neste momento. O ponto central é que Górgias mostra uma
Heráclito, quer dizer a physis ou o fogo." (3) convicção verdadeiramente notável, caso se tenha em conta a força da filoso-
Acoincidência não podia ser mais completa, mas Górgias diz ex~tamen­ fia a que se opunha, acerca de que existe um mundo exterior que é inacessível
te o contrário, diz que não existe este tal ser governado por este tal logos. aopensamento, e que, portanto, a palavra, o logos, o discurso dizemos agora,
Górgias vai adiante e diz que caso aceitássemos que existe, de qualquer manei· não contém o mundo exterior, os/atos empiricamente verificáveis. Aqui há
ra seria ininteligível porque não é correto que o pensamento humano tenha uma redundância, pois se são/atos não podem não ser empíricos e, portanto,
tal coincidência com o ser e, ainda que tivesse, não poderia fonnular-se um verificáveis. A redundância, consciente, tem como objeto frisar o caráter
discurso inteligível para os demais. empírico do referente de "fato".
O enfrentamento com Pannênides é ainda mais óbvio. Este disse, ex- Aposição contrária é a que sustentamos cotidianamente: o pensamen-
pressamente, que ser e pensar são o mesmo. EGórgias diz: to, os conteúdos de consciência, podem conter os fenômenos, e com certas
"Em verdade, as coisas que se pensam... não são seres, ...; ... o ser não se precauções, podem contê·los de maneira confiável, ou seja, com verdade.
pensa. E, certamente, as coisas que se pensam não são seres, é evidente. Por- Não obstante, o argumento de Górgias parece irrefutável:· existe um
que se as coisas pensadas são seres, todo o pensado existe e como uma pessoa hiato, um distanciamento, uma ruptura, uma desconexão entre o discurso e
o tenha pensado. Isto é incoerente... Porque não é verdade que se uma pessoa seu objeto, entre o sentido e os fatos. Trata·se de duas coisas de distinta natu-
pensa, por exemplo, em um homem voando ou em uns carros correndo no reza, o que é óbvio, p()is ninguém se atreveria a dizer que os pensamentos são
pélago, imediatamente um homem voa ou uns carros correm no pélago. As· objetos empíricos. Então, de onde sai a pretensão de que duas coisas de distin·
sim, as coisas pensadas não são seres" (Idem, p. 4). ta natureza possam coincidir em algum sentido?
Quanto ao discurso tudo o que diz Górgias está em oposição a tradição É possível que se responda, e é fácil fazê·lo para quem nunca refletiu
de Parmênides e Heráclito: sobre isto, que é a própria experiência da humanidade que demonstra que há
"A palavra é o meio através do qual declaramos, mas as palavras não são coincidência entre ser e pensar, que é a história do homem que mostra a
substâncias e seres. Portanto, não declaramos os seres aos vizinhos, mas sim a capacidade deste de dominar a natureza valendo-se da aplicação de seu pensa-
palavra, que é distinta das substâncias, pois assim como o visível não poderia mento sobre ela. É correto, a história demonstra' isto. Demonstra que a huma·
chegar a seraudível, e vice·versa, assim o ser, já que subsiste fora, não poderia nidade conseguiu transformar o planeta em uma imensa lixeira, na qual mais
chegar a ser a nossa palavra." (idem, p.5) da metade da população vive abaixo dos níveis de pobreza, mas não demons-
tra que exista coincidência entre ser e pensar, entre os fatos e o sentido atribu-
ído aos mesmos. Aprópria história humana é um dos mais horripilantes equí.
3 - CAPPEIl.E111, AJ.,LaFtlosojuuleHeráclito de E/eso, Caracas, Ed. Monte Avila, 1969, p. 66. vocos.

146 147
o pensamento de Górgias foi quase imediatamente reprimido. Nada 2. O SENTIDO E SEU REFERENTE
menos do que com Platão e Aristóteles foi com quem lhe coube medir forças,
e perdeu, sendo aplastado por séculos. O que este pensamento significava, Depois de repassar os textos de Górgias de nenhuma maneira . resulta
simplesmente, era que não há nenhuma garantia da verdade. Portanto, não há assustador que os modernos estudiosos da linguagem recolham o problema
deus nem tampouco uma boa razão para obedecer aP6lis, e nem para acredi·
quase nos mesm?s_ te~~~, e~ que foi proposto na filosofia grega, embora
tar em sua justiça, que era o que desesperava a Platão. Depois, foram deus e a pareça que a tradlçao hngUlstlca destaque mais aos estóicos do que G' .
herdeira de sua verdade os que foram socavados em seus cimentos. E isto, 'd d - a Orgias,
que, e~ r~a lI a e, nao parece ter estudado a questão da diferença entre si .
desde logo, contrariava os mais antigos interesses da Igreja - o exercício do nos e slgmficados. g
poder - cuja sombra dominou - e continua dominando - desde imediatamen·
te após a parte final do pensamento grego.
Fortes traços de rebeldia contra o essencialismo próprio da tradição
grega se encontram em Occam. Mas é somente no século XVIII, com a filoso- B) Significado, idéia ou conceito
fia de Rume, que toma corpo definitivo este pensamento que coincide com o
de Górgias em alguns aspectos. Embora não se possa dizer que em Rume há
uma negação da existência do ser, de qualquer maneira há a negação de garan-
tias absolutas de que o pensamento coincida com o ser. Na filosofia de Rume
o único que resulta prudente, embora não seja absolutamente certo e seguro,
é aceitar que as afirmações que de alguma maneira podem conectar-se com A) Signo, significante
ou representantem C) Referente ou denotatum
alguma experiência passada oferecem probabilidades de previsões que tor-
nem eficaz a tarefa humana. Isto é tudo, convenções e probabilidades. Isto
fazia com que deus e as garantias da razão viessem abaixo. E, é claro, Kant
deveria sair a campo para enfrentá·lo, e com muito êxito, eis que grande parte
dos sociólogos são, saibam ou não, kantianos. Figura 1
Por isto Foucault diz que estes textos de Nietzsche constituem uma rup-
tura com o pensamento vigente no mundo ocidental:
"... considerarei - e de bom grado - a insolência e a desenvoltura de . Em alguns textos dedicados ao problema (5), a relação entre signo, sig-
Nietzsche ao dizer que o conhecimento foi inventado em um astro e em um mficado e referente que vimos aparecer anteriormente, é apresentada da se·
determinado momento. Falo de insolência neste texto de Nietzsche porque guinte maneira (figurá 1):
não devemos esquecer que em 1873 estamos, se não em pleno kantismo, ao Em relação a este quadro cabe dizer:
menos em plena eclosão do neokantismo." (4)
Embora levando em consideração a convicção de Parmênides, Foucault 1) Existe, em primeiro lugar, uma relação estabelecida entre A e B.
equivoca-se ao dizer que Kant foi o primeiro em manifestar explicitamente Trata-se de uma relação "direta" ou, desde outro ponto de vista,
que as condições da experiência e do objeto de experiência eram idênticas dois termos de um composto. É a relação entre a palavra (signo,
Cp. 23), pois nem Kant foi o primeiro em dizer isto e nem Nietzsche em dizer significante ou representantem) "cachorro" e o conceito ou o signi·
aquele outro. Trata·se de duas posições opostas, uma vitoriosa e a outra repri· ficado de cachorro que está contido na consciência de quem usa a
mida, mas que existiram desde a filosofia grega. . palavra. É uma relação de significação, isto é, a palavra "significa" o

4 - FOUCAULT,ob.ciL,p.19. 5 - Veja-se,por exemplo, Lyons,John,Semánlica, Barcelona, Ed. Teide, Barcelona, 1980, p.92.

148 149
conceito de cachorro, está no lugar do significado "cachorro". Des- to e não ao que neste trabalho denominamos sentido ideol6gico do
de já podemos observar o tipo de problema ao que se enfrenta a direito, que é o objeto da CríticaJurídica."
crítica jurídica como análise do sentido ideológico do direito: Qual 3) Esta atribu~ç~o de signi~cado é ar~itrária dentro dos limites pos-
é o significado de "contrato" ou "salário"? Aqual dos conceitos des- t?~ p~los codtgos, ou seja, quem ad!udica o significado a uma expe-
tes signos compreenderemos como sendo seu significado? A res- nencta que reputa do mundo extenor o faz como uma invenção ou
peito do primeiro, "contrato", o seu significado será um acordo de conforme uma convenção cultural-- "código" - prévia. Em ambos
vontades como diz o código civil e repetem os juristas? Forma par· casos existe uma radical arbitrariedade que impede qualquer possi.
te de seu significado "o real" escondido sob a aparência encoberta bilidade de que o mundo exterior tenha algum significado à mar.
pelo conceito vulgar? Arespeito do segundo, "salário", o seu signi- gem do que lhe outorga o uso da linguagem. Asignificação é uma
ficado será o da economia vulgar, isto é, contraprestação entre- atividade humana de apropriação do mundo, ou, se se prefere, um
guepelopatrão? Ou será que o "verdadeiro" significado serápreço ato de poder, o ato de nomear.
da força de trabalho? Dependerá do usuário do signo? Do recep- 4) O objeto cultural ao que é atribuído o significado aparece ao usuá-
tor? De ambos? Se trata de parônimos? rio como exterior, ainda quando realize tal adjudicação a uma sen-
2) Arelação entre Be C, a denotação, consiste em uma adjudicação sação pessoal. A exterioridade do mundo em relação ao conheci-
que realiza o usuário do signo. É uma atribuição de significado aum mento é uma convicção generalizada que ninguém, talvez com ex.
objeto do mundo. O produtor do signo, por razões que é necessá- ceção de Berkeley, jamais colocou em dúvida. Ninguém conside-
rio estudar, usa o signo para "falar de", para referir-se a um objeto rou necessário comprovar nem empírica nem logicamente - o que
que, em relação a ele, pertence ao mundo exterior. Quem utiliza a seria um disparate - que o mundo exterior existe como exterior. A
palavra "cachorro", por exemplo, para indicar o animal que tem este respeito pode ser feita uma reflexão filosófica de filiação
frente a si pensa que este animal possui as características desenha· humeana: em realidade, todo contato do homem com o mundo
das no conceito que existe em sua consciência, ou seja, atribui a exterior ocorre através das sensações humanas e não há, nem pode
qualidade de cachorro ao objeto. Isto é umaatribuição de significa- haver, garantia alguma da existência objetiva do mundo, pois o
do ainda quando, conforme uma epistemologia ingênua, o falante homem não tem acesso a nada que não seja mediado por suas pró-
acredita que o significado do signo "cachorro" re-presenta - ou prias sensações. Trata-se de uma filosofia profundamente materia·
"reflete" - algo, que os escolásticos chamam "essência", que está lista que afasta todas as possibilidades de tirania dos deuses e outros
fora do pensamento e que este o toma tal como é, em conformida- fantasmas que, como o estado, ficam reduzidos à criação humana, a
de a esta teoria do conhecimento que pensa na verdade como ade- ficções. Contudo, esta convicção filosófica não conduz à negação
quação do pensamento à coisa. Arespeito do direito, sem dúvida, do mundo como objetivo ou exterior, não necessariamente. Acon-
convém dizer que von Wright disse que vicção generalizada e "natural" de que existe realmente o outro,
"as normas que são prescrições não tem porque chamar-se a não necessita ser rebatida Não se vê a utilidade de negar o mundo.
referência nem o sentido (significado) da correspondente formula- Basta com que não seja possível afirmar a existência de deus e da
ção da norma. Asemântica do discurso prescritivo é caracteristica· verdade absoluta, basta com advertir que a denotação constitui uma
mente diferente da semântica do discurso descritivo (6), ou seja, as adjudicação de sentido e não uma apreensão de essências ou "abs-
prescrições não tem referência. Mas também convém notar que tração".
von Wright se refere aqui ao sentido deôntico do discurso do direi- 5) A respeito de A e C cabe dizer que não existe nenhuma relação
entre estes termos. Não há relação entre o signo "cachorro" e o
animal ou o objeto cultural ao que é adjudicado o significado, nem
6 - von WRIGlIT, G. Henrik,Nonnay Acci6n. Una investigaci6n 16gica, Madrid, Ed. Temos, 1979, tampouco entre o signo "salário" e a entrega de dinheiro que os
p.1l0 patrões costumam fazer aos trabalhadores.

150 151
6) Mas bem, quando abandonamos signos como "cachorros" para 3. O DISCURSO DO DIREITO, SEU SENTIDO
pensar em signos como "mercadorias" ou "trabalhador", algo muda. IDEOLÓGICO E AS RELAÇÕES SOCWS
Tais significados são verdadeiros "sentidos"(cfr. capítulo segundo),
ou seja, estão no lugar de conjuntos de significados, são proposi· Sendo assim, e se alteramos ligeiramente o esquema para adaptá·lo ao
ções, constituem afirmações, descrições, juízos, que podem ser problema da análise do discurso do direito, teremos o representado na figura
verdadeiros ou falsos. Por exemplo, "trabalhador" pode ter o senti· 2.
do de "pessoa que trabalha para outro em troca de um salário", o A primeira observação que cabe fazer acerca do representado nesta fi·
que é falso, posto que a verdade é que "trabalhador é quem vende gura é que, assim como há um irremediável hiato entre o sentido e o mundo
sua força de trabalho por um preço a um capitalista que usa esta empírico, ele igualmente é verificável entre o sentido ideológico do direito e
força para gerar mais-valia, da qual se apropria sem entregar o equi- as relações sociais. O direito, como diz Kelsen, é o que outorga o sentido
valente". deôntico ao mundo empírico:
7) Há uma absoluta ruptura entre o signo "trabalhador" e a relação "Casose analise qualquer um dos acontedmentosfáticosconsiderados
social. jurídicos,... cabe distinguir dois elementos: um é o ato sensivelmente percep-
8) Mas o falante reputa que o sentido corresponde com o referente. tível que por si próprio sucede no tempo e no espaço... o outro elemento está
Em realidade, adjudica o sentido a uma porção do que para ele é o constituído pela significação jurídica, ou seja, a significação que o aconteci-
mundo exterior. mento adquire pelo lado do direito. Se reúnem homens em um recinto, pro-
nunciam discursos, alguns levantam as mãos, outros não: isto é o que aconte·
O que isto significa para o que nos interessa aqui é que existe uma abso- ce externamente. Sua significação: se resolveu ditar uma lei. " (7)
luta ruptura - no sentido de Górgias -, entre o sentido do discurso do direito Neste caso se trata do sentido deôntico. O que ocorre no exemplo de
e o referente ou relações sociais. Aconexão entre ambos é uma adjudicação Kelsen é que o direito outorga o sentido de devido ou não devido - e, portan-
realizada pelo produtor do discurso. to, o de juridicamente censurável ou não - à conduta. Neste caso a absoluta
ruptura entre sentido e conduta é óbvia, ao menos para quem não é
jusnaturalista. Mas, no caso do sentido ideológico, a ruptura entre o mundo e
seu sentido não é óbvia para quem adote uma posição epistemológica ingênua
ou realista, que é a da maioria dos sociólogos. Não se trata de que o direito seja
B) 1. Sentido ideológico do direito uma defonnação ideológica, mas simplesmente de que não há contato entre
2. Sentido deôntico do direito sentido e mundo empírico. Na afirmação sociológica tradicional se supõe que
o referente - e se entende por referente às "relações sociais" - detennina a
linguagem do direito, ou seja, é sua causa. Aqui tratamos é de, precisamente,
destacar a dificuldade de chamar "causa" ao que é referente, sendo que a
análise da linguagem mostra um hiato entre direito e relações sociais. Como
pode ser causa de algo o que não tem contato com este algo? Como pode
A) Discurso do direito C) Relações sociais haver causalidade se há ruptura ontológica entre os termos que se pretende
conectar através desta relação? Ou, ainda, como podemos afirmar, com
plausibilidade, que algo a respeito do que não podemos dizer que tenha
homogeneidade ontológica com outra coisa seja a causa desta? Ou, dito de

Figura 2 7 - KELSEN, H.,TeoriaPuradelDerecho, México, UNAM, 1982,p.16.

152 153
outro modo, do que se trata é de destacar que a afirmação tradicional é uma O produtor do discurso do direito utiliza a linguagem comum - e excep-
hipótese que é necessário fundamentar com muito mais cuidado do que geral- cionalmente a obtida de algum discurso pretensamente científico oupseudo-
mente o fazem os sociólogos ainda que, devido ao irremediável hiato entre científico, como a economia, por exemplo -, modaliza condutas - ou me-
sentido e referente, de antemão se antecipa como uma fundamentação traba- lhor, modaliza descrições de condutas -, e pensa que com isto "se dirige" ao
lhosa. Além disso, note-se que chegamos a um ponto de confluência e confu- que chama "realidade social". Caso perguntássemos ao produtor, mas tam-
são entre referência e causa do discurso. bém ao usuário comum, a que se refere com a expressão "salário justo", por
O problema pode ser apresentado de outro modo. É necessário prestar exemplo, responderiam que "se referem", com esta expressão, ao salário "con-
atenção em que o discurso do direito tem vários emissores, é necessário levar forme ao direito". Mas caso ainda lhes perguntássemos, por exemplo, por
em consideração o ponto de vista do produtor do discurso, o de quem o usará qual motivo a lei ordena pagar um determinado salário em lugar de deixar que
posteriormente - os usuários comuns -, o cientista da Sociologia, e o da o montante seja estabelecido através de acordo entre patrão e trabalhador,
crítica da ideologia jurídica, que é o nosso. diriam que a experiência - isto é, a "realidade social" - demonstrou que deixá-
lo à vontade das partes prejudica ao trabalhador que, por ser a parte mais
fraca, acaba aceitando um salário muito menor do que aquele que merece. E
se lhes perguntássemos quanto é que merece, diriam que merece o equivalen-
I B) Normas I
te ao seu trabalho. Poderíamos dizer que estas idéias da relação social entre
patrão e trabalhador, segundo a qual cada um deles entrega valores equivalen-
tes, constituem - para estes usuários - o sentido do signo "salário justo", que

~~ é o sentido adjudicado a certos setores do mundo empírico. Estes usuários


reputam que estes fenômenos são exemplos, ou casos, do sentido "salário
justo".
A) Discurso do direito C) Relações sociais

B) Categorias da sociologia
Figura 3

3.1. O direito para o usuário


~~
.-----------...., ....----------,
A) Discurso sociológico C) Relações sociais
Com a palavra "usuários" nos referimos aos produtores do direito, aos
juristas pouco avisados e, por isto, apologistas do direito e aos falantes em
geral, sejam eles cidadãos ou funcionários. Tenha-se em conta que o discurso
Figura 4
do produtor, segundo nossa nomenclatura é discurso do direito, enquanto
que o dos outros usuários é discurso jurídico. Esta distinção é importante
quando necessitamos diferenciar o direito de seus meta-discursos. Neste capí- Caso perguntássemos pela causa de que a lei obrigue a pagar um "salá·
tulo prescindiremos dela, de modo que as figuras não representarão esta dis- rio justo", constataríamos que quaisquer destes usuários diria que foi a própria
tinção. Estes usuários tem uma percepção ingênua do referente do direito. Se existência do fenômeno, ou seja, a "realidade social", que conduziu os legisla-
pedíssemos que formulassem um esquema de significação o fariam como na dores a produzir normas com este conteúdo. Observe-se, então, que este se-
figura 3. tor do mundo ou realidade social é referente mas também "causa". Em outras

154 155
palavras, que estes usuários pensam a realidade social concomitantemente Relativamente ao direito o sociólogo não é tão ingênuo como em rela-
como referente e causa, mas com uma concepção ingênua de ambas catego- ção ao seu próprio discurso. Arespeito do primeiro diria que a "causa" - não
rias. Por isto na figura 3 desenhamos duas flechas indicando a dupla relação, o referente - da existência desta norma sobre o salário deve ser buscada nas
referência e causalidade. relações sociais capitalistas. E, por isto mesmo, diria que o usuário deste dis-
curso tem uma percepção distorcida - "ideológica", no significado clássico
de "falsa consciência" -, das "verdadeiras" relações sociais. Adistorção não
3.2. O direito para o sociólogo lhe apareceria nas normas - no sentido deôntico segundo nossa nomenclatu-
ra -, mas sim na ideologia oferecida claramente na proposição em que ela está
O cientista das relações sociais tem uma percepção distinta. É claro, o formulada, ou seja, no que nós chamamos sentido ideol6gico. Diria que esta
sociólogo está acostumado a pensar em termos de causas e não de "referen- distorção consiste em não ver que o entregue pelo trabalhador não é o traba-
te". Mas se insistissemos com o sociólogo acerca do referente e lhe explicás- lho, mas assim o uso de sua força de trabalho, uso este que proporciona ao
semos o que é isto ele mostraria em relação a sua ciência, em relação ao dis- patrão um valor maior do que o que custa a manutenção do trabalhador. Em
curso sociológico, por exemplo, uma percepção ingênua, pois pensa que o outras palavras, se é certo que há equivalência no pagamento porque se paga
referente do seu discurso são as relações sociais. Faria um esquema como o da o valor da força de trabalho, por outro lado há não-equivalência no valor en·
figura 4. tregue por cada um. Diria que o produtor do discurso do direito e seus usuá·
rios tem uma visão "ideológica" - aqui "ideologia" em significado tradicional,
isto é, não científica - das relações sociais. Uma visão que oculta sua verda·
deira face. Finalmente, terminaria sua análise dizendo que a distorção também
B) Sentido deôntico é causada pelas próprias relações sociais. O esquema que ele faria poderia
Sentido ideológico ser representado pela figura 5.
(versão distorcida) Como nosso sociólogo pensa em termos de causa e não de referente,
representamos o esquema da figura 5 de modo que a flecha entre sentido e
referente indica adireção causal. Para o discurso sociológico, efetivamente, as
relações de produção são a "causa" de que estas condutas, e não outras, este-
jam ordenadas e proibidas - sentido deôntico -, e também de que o produtor
ou usuário do discurso possua esta versão distorcida - sentido ideol6gico -.
A) Discurso do Direito C) Relações de Produção

3.3. O direitofrente à análise do discurso

Figura 5 O sentido deôntico do direito não tem referente. Não obstante, é possí-
vel estabelecer - ao menos é o que a Sociologia Jurídica pressupõe -, urna
relação de causalidade entre o sentido deôntico do direito e certas relações
Não obstante, também o discurso sociológico tem como referente um sociais. Esta é a hipótese que fundamenta a SociologiaJurídica, e se não partis-
mundo de sentidos e não "dos sentidos". Também entre as categorias da Soci- se desta hipótese esta ciência careceria absolutamente de objeto. O fato de
o!ogia e das relações sociais há uma absoluta ruptura. Mas esta é outra ques- que seja possível estabelecer relação de causalidade entre relações sociais e
tao, que corresponderia à análise do discurso sociológico e não à análise do sentido deôntico quer dizer que é possível explicar plausivelmente porque
direito. estas condutas, e não outras, se modaUzam deonticamente desta maneira e

156 157
não de outra. Porque, por exemplo, obriga·se ao devedor em mora pagar o • sociais a mesma que o sociólogo aceita. Deste modo, uma descrição que não
- se leh
preço acrescido de juros e, em troca, nao ' a que pague menos.?
autonza coincide com ela é ocultadora.
porque, porexemplo, se proíbe reduzir pessoas ao estado de escravidão e não
se proíbe reduzi·las ao estado salarial?
Estas relações sociais supostas pela Sociologia podem manter relação
de causalidade em relação ao sentido deôntico do direito, mas somente na B) Sentido ideológico B ') Sentido deôntico
forma em que estas relações sociais aparecem na consciência- no discurso- (distorção)
de seus produtores. Como o produtor do direito somente tem acesso a outros
discursos que descrevem as relações sociais, e não às próprias relações, são
estes discursos, e não estas últimas, os que podem aspirar a apresentar·se
como "causa". Acrença de que a família monogâmica é a célula da sociedade
é o que explica que esteja proibida a bigamia ou que seja obrigatório que o
"chefe" da família supra as necessidades do núcleo familiar. Eis aqui uma boa
/ Referência

A) Discurso do Direito
ICausa

hipótese para a SociologiaJurídica, embora para a Sociologia em geral, por


sua parte, seja mais apropriado perguntar por qual motivo o discurso domi· c) Discurso·ficção (aparência)
nante afirma que a família é a célula da sociedade.
O sentido ideológico do direito tem referente. Com as palavras usadas
para descrever as condutas que se modalizam os usuários se referem a algo
que para eles é "a realidade". Anorma que obriga a pagar o preço da força de
trabalho contém a palavra "salário" cujo sentido é contraprestação devida
pelo patrão em vista do trabalho entreguepelo trabalhador. Este sentido -
"salário" - constitui uma descrição: "o salário é a contrapartida do valor entre·
gue pelo trabalhador". Este enunciado é falso, claro, desde que julgado desde
certa teoria sociológica, mais plausível que a da economia vulgar. Figura 6
Mas bem, o problema consiste em como mostrar, plausivelmente, que o
sentido ideológico do direito mantém relação de causalidade relativamente às
relações sociais que não aparecem emseureferente. Como mostrar, por exem· Mas, por outro lado, diferimos da percepção do sociólogo em que con·
pio, que o sentido ideológico presente em "os contratos são acordos de von· sideramos que a causa desta distorção deve ser buscada nos discursos que
tade" (8) mantém relação de causalidade relativamente às relações sociais descrevem as relações sociais e não nas relações sociais, embora como fundo
denominadas "circulação mercantil" se o usuário do discurso não se refere- de tais descrições, e nisto voltamos a coincidir com o sociólogo, aceitamos a
não reputa referir·se - a tal relação social? existência de uma "realidade social". Adiferença está em que percebemos a
O ponto de vista da análise do discurso difere do ponto de vista que irremediável distância entre fatos e sentido.
compartem usuário e produtor do direito, mas coincide com o do sociólogo Arespeito da percepção que o sociólogo tem do discurso do produtor e
em que o sentido ideológico do direito constitui uma distorção, ficção ou do usuário do dirdto diremos que ele não nota que aquilo que chama "verda-
aparência, o que sabemos porque aceitamos como descrição das relações deiras" relações sociais são, em realidade, um discurso no qual está formulada
a descrição destas relações sociais que ele estima verdadeiras, cuja existência
objetiva, aceitamos, não vale a pena negar.
8 - An. 1436, Coo. Civil do Estado de Puebla: ·Convênio de direito dvil é o acordo de duas ou mais Arespeito do discurso do direito nosso esquema seria o da figura 6. Aqui
pessoas para criar, conservar, transferir, modificarou extinguirobrigações". a realidade aparece atrás, como o fundo ontológico que todos aceitam, e que

158 159
indicamos com a interrogação, mas a qual se tem acesso somente através de u~ texto que diz expressamente que o trabalho não é uma mercadoria, que
discursos. O discurso fictício, que descreve a aparência destas relações so- nao se pode comprar nem vender (9).
ciais, constitui o referente do sentido ideológico do discurso do direito. Com Assim, a pergunta pelas causas que explicam que o direito diga isto que
efeito, ainda que o usuário entenda falar das relações sociais, realmente o que diz e não outra coisa, conduzia quase naturalmente à pergunta pelo referente.
faz é falar a respeito das ficções ou ideologias nas quais se encontra submerso. Inclusive estava na maneira de expressá-lo: o Direito Civil "se refere" à circu-
lação mercantil, fala dela, mas com uma linguagem que distorce. Mas como
sabemos, se é uma distorção, que "se refere" a isto, se <> mais "lógico", e
4. CAUSA E REFERENTE sabemos a força que tem esta expressão no estudo do direito, é pensar que se
refere a isto mesmo que diz referir-se, ou seja, a atividade cotidiana dos ho-
Para uma Sociologia tradicional, ainda que de cunho marxista, isto é, mens, a vontade, aos acordos, a possibilidade de dispor dos "bens" materiais
que aceita a descrição marxiana da sociedade capitalista, o discurso do direito que satisfazem as necessidades lícitas e naturais?
se apresenta como causado - "determinado" - pelas relações sociais de pro- Vejamos isto com um exemplo. A pergunta que tenha por conteúdo
dução. Não obstante, a análise do discurso desde um ponto de vista semiótica questionar o motivo pelo qual o código diz que um contrato é um acordo de
oferece como resultado que a causa não pode ser o conjunto de relações de vontades parte do suposto de que a resposta está em um lugar denominado
produção entendidas como "fatos" senão que a causa deve ser buscada nos "relações sociais". Mas, como poderia ser respondida esta pergunta partindo
discursos descritivos destas relações. Mas como as descrições que aparecem das relações mercantis se, segundo o que sabemos delas, não requerem acor-
no direito não coincidem com a marxiana, para uma análise da ideologia do dos nem vontade? Com efeito, as mercadorias tem um valor que não depen-
direito inspirada no pensamento de Marx, estas descrições resultam ficções dem da vontade e os indivíduos não tem a possibilidade de "acordar", posto
ou aparência. Por isto a causa do sentido do direito é esta aparência e não a que estão obrigados a trocar sob pena de perecer. E, note-se, além disso, que
"realidade social". Desta maneira, a causa e o referente se confundem. Dese· no discurso do direito não aparecem as palavras "mercadoria" e "troca", mas
nhamos, por isto, duas flechas representando referência e causalidade (figura sim "bens" ou "coisas" em lugar da primeira, e "contrato" em lugar da segun-
6). da. Desta maneira, a mais simples das refutações de uma análise marxista do
Mas bem, como iniciamos esta busca das causas de um discurso que direito civil é que não há nenhuma prova de que este se refere ao intercâmbio.
finalmente conduz mais ao seu referente do que à causa? A Crítica jurídica Amais simples refutação da afinnação segundo a qual o Direito do Trabalho
inspirada no marxismo, que no fundo é uma crítica da sociedade capitalista, protege a relação capitalista e não aos trabalhadores é que em nenhuma parte
partiu da idéia de que as relações de produção são a causa - "detenninantes" deste ramo do direito se encontra uma afirmação que confesse isto. Ao contrá-
em última instância -, tanto das nonnas como da distorção da verdade. O rio, a ideologia trabalhista sustenta precisamente que o trabalho não é uma
objetivo da tentativa era o de combater, ali mesmo onde se reproduz adistorção, mercadoria e, portanto, que não pode haver um contrato em relação aele(lO).
ou seja, nas escolas onde se ensina o direito, esta apresentação que é uma
apologia descarada da sociedade capitalista. Em que pese os trabalhos, a meu
juízo, eles não convenceram ninguém mais do que aquelas pessoas já 9 - Alt. 2: As nonnas de trabalho tendem aconseguir oequilíbrio ea justiça social nas relações entre
convencidas. Enquanto isto, as pessoas inspiradas no marxismo e convencidas °
trabalhadores e patrões. Act. 3: trabalho é um direito e um dever social. Não é artigo de comércio...
(Lei Federaldo Trabalho dos Estados Unidos Mexicanos).
das teses socialistas facilmente compreendem que uma "relação de trabalho"
10 - "Insistimos, então, em negarque a relação de trabalho possa ter sua origem em um contrato";
é uma vulgar compra-e-venda de força de trabalho. Mas bem, há que estar de BUEN LOZANO, Néstor, La decadencta dei rontrato, México, Textos Universitarios. 1965, p. 2ff1.
disposto a vê-lo deste modo para encoritrar compraoe-venda de trabalho. em. . "Certamente sustenta o professor italiano (se refere a Camelutti. O. C.) que a energia humana
unicamente pode ser considerada como uma coisa e. em conseqüênda. ser objeto de um contrato
quando, ao exteriorizar-se, se objetiva. Mas embora suponhamos isto. sempre resulta que a energia
humana de trabalho teria que ser reduzida àcategoria de coisa, isto é.... é necessário umacondusdo
audaz. a qual. infelizmente. significa a degradação do trabalho"; Mario De La Cueva, Derecho
Mexicano dei Trabajo. Ed. Porrúa, México. 1969. t. 1. p. 449.

160 161
M~ esta busca, q~e cond~iu a~ referente, logo mostrou seus proble-
B) Sentido deôntico do Discurso do Direito mas. Efetlvamente, se ha uma dlstorçao, em primeiro lugar como sabemos
que há um~ distorção? E, em ~egun~o I~gar, como sabemos ~ue o "autêntico.
referente e, por exemplo, o mtercamblo, se precisamente nada no discurso
B) Sentido ideológico de idem denuncia, já que há "distorção", que este seja o referente? Isto significa que há
que mostrar: 1) que o discurso do direito "distorce"; 2) o que é "isto· que está

/
A) Discurso do
&fe~ctal\\ (
Causa
distorcido. Oprimeiro é fácil de demonstrar: podemos afirmar que um discur-
so contém uma .d~scrição distorcida, ou seja, falsa, porque a comparamos
com outra descnçao, do mesmo referente, mas verdadeira. Em outras pala-
vras, que para fazer esta afirmação deve haver um discurso que distorce e um
Direito discurso que é o verdadeiro. Contudo, para identificar a distorção é necessá-
1. Discurso que distorce rio saber do que é uma distorção.
Eo mesmo é possível dizer a respeito da verdade, é necessário saber de
que a descrição é verdadeira. E, finalmente, ambos devem sê·lo, cada um em
seu tipo, do mesmo. Arespeito da descrição verdadeira não há problema, pois
ela própria indica de que pretende ser descrição. Mas não pode ser dito o
mesmo a respeito do que é aparência. Aparência de que? Aaparência não diz
que o é, nem muito menos diz do que é. Portanto, há que submeter o discurso
E) Categorias da Sociologia à análise. É necessário mostrar que é ele mesmo quem reputa como seu refe-
rente à aparência da realidade social. O esquema da significação, portanto, se
apresenta complicado, como podemos vê·lo na figura 7.
Estafigura representa nossoponto de vista, enquanto que o do usuário
está representado na figura 4. O usuário reputa que o referente de seu
D) Discurso da Sociologia
discurso é o conjunto das Relações Sociais. Mas conforme a nossa análise, o
representado na figura 7, o referente não é outra coisa que o discurso que
descreve a aparência destas relações. É deste discurso da aparência de onde
o produtor do direito obtém - por isto é "causa" - os signos e os sentidos que
Figura 7 utiliza para construí·lo.Já os usuários posteriores, embora não tenham elegido
os signos e os sentidos, os atualizam ao usá·los retransmitindo, e por isto con.
seroando, reproduzindo, a ideologia mentirosa. Esté, que por estar construído
Para superar esta simples mas muito eficaz refutação da análise marxis· sobre a descrição de uma aparência, é um discurso que distorce, é distinto do
ta, embora seja muito pouco científica, era necessário mostrar que, ainda que discurso da Sociologia (que é aceito como verdadeiro).
com um discurso distorcido, o direito civil "se refere" ao intercâmbio e o Agora é necessário demonstrá-lo. Mas como demonstramos que esta
direito do trabalho à relação de compra-e·venda da força de trabalho. Assim, aparência é a das relações sociais, cuja descrição tomamos da Sociologia?
como o objetivo de todo aquele discurso como deste seu contradiscurso criti· Quanto a que o referente seja uma aparência, em realidade, isto não fica evi-
co é ganhar posições em uma luta ideológica, por mais que a refutação seja denciado através da análise do referente 1 (figura 7). Ao contrário, o usuário
leviana, de qualquer maneira há que enfrentá·la, justamente porque é eficaz do discurso jurídico reputa que está falando das relações sociais. Para que a
devido a sua superficialidade. Assim, seria interessante vê·la com o referente ficção apareça como o referente do discurso do direito e, por outra parte,
do direito. como ficção das relações sociais, é necessário

162
163
1) Que o sentido de outro discurso, o da Sociologia, E), se vê", ~ algo,que está "oculto" e que deve ser revelado pela atividade teórica
a) tenha como referente as mesmas relações sociais C) e pela a;tica. As vezes Marx fala de "ciência", por exemplo: '
b) que sua descrição possa ser consideradaverdadeira em relação
a este referente; ." d''" com aforma de manifestação "valor e preço do trabalh"
Ç _ . o ,ou "1'
sa a-
no - herentemente da relaçao essenCIal que se manifesta, isto é, do valor
2) Que a análise consiga tornar plausíveis as afirmações: e do preço da força de trabalho - ocorre o mesmo que com tol/, - fi
deman'.Jir.~staçao
- (l oS ormas
2.1. o usuário do discurso do direito se refere, em realidade, a uma e seu aspecto oculto. As primeiras se reproduzem de manei.
aparência (2) ra espontanea, como formas comuns e correntes dopensar, enquanto ooutro
2.2. que é aparição destas mesmas relações sociais C) tem que ser descoberto pela ciência." (11)
Em outras palavras, a relação social essencial é o valor e preço da força
Mas para isto não basta simplesmente com que desde a Sociologia se de trabalho, que se "manifesta" - aparência - como valor ePreço do traba-
descreva as relações sociais de modo diferente de como as descreve o discur- l~o. Esta aparê~cia se "ref!.roduz"- "ideologia ': em sentido defalsa consciên-
so do direito. Não basta porque isto não prova que este último se refira ao c~a -, de maneira espontanea. Mas a essência deve ser ~descoberta" pela ciên-
mesmo a que se refere a Sociologia. Por exemplo, se a Sociologia descreve a Cla-.
circulação mercantil como um movimento de mercadorias conforme seu va· Esta aparência, no entanto, não é uma "mentira" no sentido de ser uma
lor, isto não prova que o jurista se equivoca quando descreve a compra-e- fantasia. A aparênc~a é a forma de existência da relação social. Marx o explica,
venda como ocorrendo conforme a vontade dos indivíduos. Simplesmente conforme sua teona, desde logo, no famoso capítulo sobre o fetichismo da
pode ocorrer que na descrição do código civil não esteja conotada a descrição mercadoria:
de uma sociedade mercantil. Se o código descreve os contratos como acordos . "Se os objetos_ para o uso se convertem em mercadorias, isto se deve
de vontade, como provar que realmente se trata da descrição da aparência uOlcamente a que sao produtos de trabalhosprivados exercidosindependen.
dos intercâmbios mercantis? Como se prova que aquilo que o código chama temente uns dos outros... Como os produtores não entram em contato social
"contrato" é, na verdade, intercâmbio, se as descrições de ambas coisas não até o momento de intercambiar os produtos de seu trabalho os atributos
coincidem? especificamente sociais destes trabalhos privados não se manifestam senão
Aresposta deve ser encontrada no estudo do refetente do discurso do no marco de dito intercâmbio... os trabalhos privados não alcançam realidade
direito, é nele que deve poder ser provado que descreve uma aparência. Se c?mo partes do trabalho sociaL .. mas sim através das relações que o intercâm-
aquilo do que ele é uma distorção é o mesmo que aquilo ao que se refere a biO estabelece entre os produtos do trabalho e, através dos mesmos, entre os
descrição verdadeira, então, e unicamente então, se poderá confirmar que há produtores."
tal distorção das relações sociais. Apenas então será possível perguntar por- Eaqui o que quero destacar
que alguém distorce. Aresposta final conduzirá ao exercício do poder. "Aestes, por conseguinte, as relações sociais entre seus trabalhos priva-
No exemplo do Direito Civil dizer que há um discurso cujo referente é dos O! expõem claramente como o que efetivamente são, ou seja, não como
a descrição de uma aparência significa dizer que há uma "realidade" que é relaçoes diretamente sociais travadas entre as própriaspessoas... mas sim como
ocultada por esta aparição ou, o que é igual, que este ramo jurídico "distorce" relaçõespróprias de coisas..."(idem, p. 89)
a realidade. Mas não é que distorça a "realidade", o que não se pode fazer, mas ~ote-se que a relação social mercantil, que é uma relação entre pessoas,
sim que descreve a aparência de uma realidade que o discurso científico des- se manifesta a seus atores como o que são, como "relações próprias de coi-
creve de uma maneira distinta. sas", ou seja, são relações entre coisas. Mas isto é apenas a maneira de apare.
Neste lugar deveria ser feito um longo e minucioso exame sobre o pro- cer do que fica oculto, que é a relação diretamente social travada entre
blema da aparência das relações sociais. Isto faria com que este trabalho tives- pessoas. Isto tem múltiplas manifestações, além da citada aparência do valor
se que se estender consideravelmente, de modo que apenas farei uma breve
referência. Aidéia'marxiana é a seguinte: uma relação social é algo "que não
11 - MARX, K.,Elcapila~ cit, 1. 1, v. II,p. 660

164 165
da força de trabalho. Por exemplo, em uma visão superficial da sociedade no número 3, que está baseada no número 2, então, ela constitua uma prova
capitalista o que aparece é o operário movendo máquinas - ou, se se quer, plausível de que o Direito Civil esconde o que descrevemos no número 1.
programando computadores para que as mova -, mas o que "verdadeiramen·
te" ocorre é que o trabalho morto está utilizando o trabalho vivo (12). Aciên·
cia burguesa, diz Marx, em realidade não "mente" ao descrever o que vê, o
descreve "corretamente". O problema é que descreve "o que vê", e com isto B) Sentido deôntico
oculta o que está por trás da aparência. Marx diz que isto é produto da própria Sentido ideológico
forma mercantil (13).
Mas devemos deixar isto para voltar às descrições da aparência. Confor·
me a teoria marxiana, esta não seria "irreal" no sentido de não existente. E a
Código
descrição dela não é necessariamente uma descrição errônea. O problema é
que é descrição do aparente, da "superficie", como diz Marx.
Mas bem, no marco deste trabalho, a afirmação de que "o direito se
refere à descrição de uma aparência" deve ser posta em termos de hipótese e
não de conclusão. Esendo uma hipótese, devemos colocá·la em condições de A) Discurso do Direito
ser provada. No caso do Direito Civil, se a hipótese diz que este discurso
descreve a aparência do intercâmbio, será uma prova plausível um procedi·
mentoque:
FiguraS
1. Descreva o intercâmbio.
2. Descreva as normas que teoricamente correspondem ao intercâm·
bio. Deste modo estão postas as coisas porque a ciência requer que se dese.
3. Preveja, descreva, a priori, como hipótese, a forma que estas nor· nhe teoricamente a figura que, no caso de encontrar·se na experiência, de.
mas (sentido deôntico) adquiririam no contexto de um discurso monstrará a hipótese. Se previamente descrevemos o intercâmbio e méncio-
que descreve a aparência do intercâmbio. namos como iremos encontrá·lo em um modelo de discurso do direito civil-
4. Compare o discurso (sentido deôntico) do Direito Civil positivo hipótese - e logo - comprovação - assim o encontramos no direito civil
com o discurso previsto no trecho número 3. positivo, então se terá dado uma prova aceitável de que é o intercâmbio, do
qual possuímos uma descrição científica, que aparece neste discurso que é
Espero que se esta comparação alcance oferecer como resultado a coin· mentiroso porque não coincide com o verdadeiro. Deste modo se poderá
cidência do sentido deôntico do Direito Civil com a descrição já apresentada dizer que no caso do direito civil quem está protegida é circulação mercantil
e não o homem, e em demonstrá·lo, me parece, é no que consiste a Critica
deste conjunto de normas assim denominada.
12 - Veja-se deI BARCO, ÓScar, "Las raíces del'teoricismo marxista", em Elolro Marx, Culiacán,
Ed. Universidad Autónoma de Sinaloa, 1983, pp. 177 e 55. O trabalho morto mandando no trabalho
vivo constitui adantesca visão do capitalismo descrita em MARX, K.,EI Capital, livro 1, capitulo VI,
inédito, México, Ed. SigloXXI, 1975: "A dominação do capitalistasobre otrabalhadoré, porconseguinte, 5. OS CÓDIGOS E O DECIFRAMENTO DO
a da coisa sobre o homem, a do trabalho morto sobre o trabalho vivo, a do produto sobre o produtor,
já que, em realidade, as mercadorias que se convertem em meios de dominação sobreostrabalhadores... DISCURSO DO DIREITO
não são mais do que meros resultados do processo de produção, os produtos do mesmo (p. 19).
13 - Esta questão foi tratada por ÓSCardeI BARCO em Esencia y aparlenda en el capital, Puebla, Para levar a cabo este trabalho é necessário construir conceitos mais
Ed. Universidad Autónoma de Puebla, 1977, trabalho ao que me remeto por razões de espaço. precisos que permitam analisar o problema do referente do discurso do direi·

166 167
to e colocá-lo em contato com sua causa. Para isto faremos uma diferenciação nhamos que os pontos e as linhas representam os toques que constituem uma
entre os c6digos que pennitem usar signos e os signos que transmitem men- mensagem de S.O.S. em chave (ou c6digo Morse). Agora comparemos com
sagens (14). uma nonna que dissesse que "o empregador está obrigado a pagar o salário
estabelecido no contrato coletivo de trabalho", que resumiremos na fónnula
"obrigatório pagar o salário legal".
Para que a mensagem em morse possa ser entendida é necessário dispor
B ') Salvem-nos de um manual que indique como se traduzem os pontos e linhas ao alfabeto
espanholou francês, por exemplo. Dizemos que este manual contém a "cha-
ve" Morse. Facilmente se vê que o manual contém um conjunto de regras de
B) Obrigatório p conversão de uns signos em outros. Não obstante, somente no caso de uma
correta aplicação da chave é que o significado deste conjunto de pontos e
linhas, que constitui um texto que contém um discurso, será "salve-nos".
Código Morse ) Igualmente, para que possamos estabelecer que o texto jurídico signifi-
Regra de reconhecimento
( ca "obrigatório P" (obrigatório entregar certa quantidade de dinheiro...") é
necessário que, em primeiro lugar, o usuário disponha do código necessário
A') -- *** -- (s.o.s.) para entender o significado de "obrigatório" e, em segundo lugar, de "empre-
gador", "salário" e outras palavras. O código que lhe pennite de-cifrar o signi-
ficado de "obrigatório" é, além do gramatical, a regra de reconhecimento. O
A) Obrigatório pagar o salário legal código que lhe pennite de-cifrar o sentido de "empregador" e "salário" é a
pseudo-teoria que descreve a aparência das relações capitalistas, que são uma
ficção, a ficção de um mundo imaginário no qual os patrões "dão emprego" e
Figura 9 não compram a força de trabalho do trabalhador, a ficção de um mundo ima-
ginário no qual aquilo que o patrão paga é o "equivalente do valor" entregue
pelo trabalhador. Esta ficção é uma descrição da aparência das relações soci-
No esquema da significação é necessário introduzir mais uma complica- ais capitalistas. Mas para o usuário não é uma ficção, não é a descrição de uma
ção, a do c6digo. No esquema, tal e como o manejamos até aqui, não aparece aparência, mas sim uma descrição verdadeira destas relações sociais (veja-se a
figura 9).
o elemento que pennite estabelecer o significado de um significante ou signo.
Este elemento é ocódigo, que definimos como discurso constituído pelo con- Mas bem, o que pennite dizer que este texto possui um discurso jurídi-
junto de regras que permite entender os textos, ou seja, unir ou colocar em co, ou seja, o que permite afinnar que ali há um sentido deôntico é a norma
contato um signo - mas também um texto - com o significado ou com o fundamental, que é um código ou regra de reconhecimento. Com ela e com o
sistema significante ao qual o signo pertence (vide figura 8). código sintático da língua é possível estabelecer o sentido deôntico do discur.
O que pennite o uso inteligível de um discurso é o código, que, para o so do direito. Mas este sentido deôntico do direito não tem nenhum referente
caso de que tenha de ser trasmitida uma mensagem, deve Coi?cidir com o no mundo exteriorao discurso. Em troca, o sentido ideológico está composto
código usado pelo receptor. Assim, por exemplo, a representaçao da figura 9 de signos ou palavras que tem um referente. O que no caso de "obrigatório
(note-se que, neste momento, não precisamos de nenhum referente). Supo- pagar o salário legal" constitui o sentido ideológico é o significado de palavras
como "salário", a qual tomamos como exemplo. Para que o usuário comum
possa entender o sentido transmitido por esta palavra é necessário que dispo-
14 - o que segue é uma interpretação livre - ou que me foi sugerido por sua leitura - de Umberto nha de outro código além da regra de reconhecimento, de modo que lhe
ECO, Tratado de semiótica general, México, Ed. NuevaImagem, 1978. pennita unir este signo com um significado. Este código, neste caso, está cons-

168 169
tituído por um discurso especial que é o discurso que descreve a aparência da 6. DENOTAÇÃO E CONOTAÇÃO DE FICÇÕES
sociedade modema. Este discurso, por estar organizado segundo certa coe·
rência de sentido é um sistema significante, segundo vimos anteriormente. Retomaremos agora estes dois conceitos preparados com anteriorida.
Em si mesmo é uma descrição que reputa como seu referente às relações de. Dissemos anteriormente (capítulo primeiro) que um sistema significante
sociais modernas muito embora, em realidade, somente constitua uma descri· pode estar denotado ou conotado em um discurso. No caso do direito, seu
ção da aparência de.stas relações. No momento em que esta descrição de apa· sentido ideológico está constituído por descrições que pertencem a sistemas
rências é utilizada para o deciframento do discurso do direito este sistema significantes que podem estar ausentes mas, ainda assim, conotados pela
significante se converte em um código. Isto quer dizer que as teorias científi· presença, no mesmo texto, de um ou alguns de seus elementos.
cas são, em realidade, c6digos, ou, mais prudentemente, que se convertem Com efeito, se o usuário conhece a pseudo-teoria que agora se converte
em códigos tão pronto são usadas para "ler" a realidade a que temos acesso em código, que está conotada, o usuário do discurso do direito chama a sua
apenas através de discursos. consciência todo o sistema significante ausente. Quando o usuário "ouve" -
Este sistema significante (poderia chamar-se também sistema semânti- de-codifica - o signo "salário", se faz presente em sua consciência todo o
co) consiste em uma descrição da sociedade capitalista, mas uma descrição sistema significante, a pseudo-teoria que descreve a aparência da sociedade
mentirosa, que por isto constitui uma ficção. Em outros termos, 'o sentido modema. Se faz presente em sua consciência a ficção, a ilusão, o mito, o
ideológico do direito contém descrições da aparência de relações sociais. No "como se", se faz presente o imaginário social ao mesmo tempo que se re·
presente caso se trata deste sistema significante que descreve a sociedade cria(15).
capitalista como um conjunto de relações entre dois fatores da produção, o O sentido deôntico, por sua parte, é decifrado com outro código distin·
capital e o trabalho, que, juntos e harmonicamente realizam a produção de to, a normafundamentalou regra de reconhecimento.
coisas que "satisfazem" necessidades humanas. Estes dois fatores, querem que Em ambos casos, tanto no do deôntico como no do ideológico, o usuá-
acreditemos, participam em partes iguais do produto, e a parte do trabalho é rio dispõe do código gramatical necessário para o reconhecimento dos signos
constituída pelo conjunto dos salários pagos pelo conjunto dos capitais. Às como pertencentes a uma língua natural.
vezes realmente constitui a metade. No entanto, a metade pertencente aos O de-ciframento do sentido deôntico é, naturalmente, uma atividade na
trabalhadores se reparte entre os milhões que os constituem, enquanto que a qual se joga a sorte da jurisprudência como ciência. Supomos que a certeza da
metade pertencente aos capitalistas se reparte entre os poucos que os com- reconstrução do sentido deôntico é aquilo que converte tal de-ciframento em
põem. Tudo isto, que é bem conhecido, constitui uma descrição do funciona· uma atividade científica. Mas, de qualquer maneira, todo falante comum, todo
mento da sociedade "industrial". cidadão, realiza por sua conta esta mesma tarefa. Verdadeiramente triste seria
Apresença de palavras-chave como "salário" constituem o sentido ideo- a tarefa do direito se a mensagem deôntica somente pudesse ser recebida por
lógico do discurso do direito significando, neste caso, a "entrega de dinheiro juristas havidos como "cientistas"...
em quantidade equivalente". Esta palavra, portanto, tem um significado que Observe-se que nesta análise aparecem vários códigos:
denota, para seu usuário, um referente preciso, a relação salarial. Não obstante,
além disto, esta palavra, tão somente pelo fato de estar neste texto e de signi- I) O sintático-gramatical, para o deciframento de todos os significa·
ficar isto, conota outros setores deste outro sistema significante que não está dos.
presente mais que com um de seus elementos, neste caso a palavra "salário". 2) Aregra de reconhecimento ou norma fundamental para o reconhe·
Mas, pela presença deste único elemento pertencente a outro sistema, este se cimento do sentido deôntico.
faz presente no consciente (no inconsciente?) do usuário porque ele possui o
código no qual foi pacientemente educado, isto é, o código de deciframento
da mensagem que transmite esta conotação. 15 - Tomo "imaginário social" de ENRIQUE E. Marí, "Racionalidad e imaginario socia1 en eI discUrSO
dei orden", em ENRIQUE E. Marí Yotros,DerechoY Psicoaná/isis, Buenos Aires, Hachette, 1987, pp.
57 e ss; e tomo "ilusión" e "mito" de Alicia E. RUlZ, "La ilusión de lo jurídico", emCritícajuridica,
número4,pp.161ess.

170 171
3) O código que permite decifrar a conotação de um sistema
significante presente (descrição falsa ou ficção) com apenas alguns Capítulo Nono
elementos.
4) E o código, desta vez a descrição da sociedade capitalista aceita
como científica, que permite estabelecer que os significados de sig- AEXPLICAÇÃO CAUSAL
nos como "salário" constituem ficções.

Cada um destes códigos é usado para decifrar um sentido distinto e,


portanto, tem uma função também distinta. Aregra de reconhecimento cum-
pre a função de informar que há uma modalização de condutas e qual é o seu
sentido. Adescrição falsa conotada no sentido ideológico cumpre a função de
"O ato de reduzir algo desconhecido aalgo conhecido alivia, tranqüi-
obter a adesão do cidadão às descrições de sua própria condição social. E, Iiza, satisfaz, e proporciona, além disto, um sentimento de poder" (1).
relativamente a descrição científica, podemos fazer com que cumpra a função
de fundamentar a Crítica jurídica.
Mas bem, o problema continua sendo o seguinte: as duas descrições sUMÁRIO: 1. A necessidade da e:xpIicaçãocausal;2. Acausa naSodologiaJuridica ena
atuantes - os códigos 3 e 4, as descrições falsa e verdadeira - não coincidem. CriticaJuridica; 3. "Causa" nopensamentogrego; ].1. Aitía como geração; ].2. A
Então, como sabemos que a primeira constitui a descrição de ~ma aparência homogeneidade entre ostermos; 4. "Causa" como atividadede um sujeito; 5. "Causa"
da mesma sociedade que o discurso científico descreve? Podenamos respon- como razão; ú "Causa" comoficção; 7. "Causa"comofunção;8. Causa sistémica, não
linear; 9. O uso científico da palavra causa.
der que a descrição científica permite, por sua vez, descrever a falsa descrição
de sua rival. Isto pode ser assim mas, por exemplo, no caso do direito civil,
como saberemos se a palavra "contrato" oculta o intercâmbio? Como é pos-
1. A NECESSIDADE DA EXPliCAÇÃO CAUSAl
sível saber se um "acordo de vontades" é apenas uma ficção por "intercâm-
· "?
b10.
Esta pesquisa tenta colocar a crítica jurídica no nível das ciências soci·
Aproposta deste trabalho é, aceitando os pressupostos de toda Sociolo·
ais. Estas, por sua vez, lutam por produzir seus discursos submetendo-se às
giajurídica, que a relações sociais são causa do sentido deôntico do direito. Se
regras das ciências em geral, que estão pensadas mais para os discursos sobre
o sentido ideológico não enuncia como referente mais do que uma suspeita
a natureza do que para os discursos sobre a sociedade.
descrição destas relações sociais, que, por hipótese, são as mesmas que cau-
Mas bem, porque há que produzir discursos científicos, isto é, discursos
sam o sentido deôntico, o que permitiria dizer plausivelmente que o referente
que estejam sujeitos a certas regras? Quem diz que deve ser assim? Arazão é
é uma ficção destas relações, ou seja, que as oculta, é o fato da coexistência de
política (2): há que produzir este tipo de discursos porque são prestigiados, e
ambos sentidos no mesmo discurso do direito.
quem não consegue submeter seu discurso a estas regras perde um amplo
Isto coloca no caminho o problema da causalidade, especialmente nas
espectro de interlocutores que apenas estão dispostos a ouvir caso se trate de
ciências sociais e, sobretudo, na Sociologia jurídica. Deveremos, portanto,
ciência, que é um tipo de discurso que tem um espaço social específico e uma
estabelecer o significado que daremos a expressão "as relações sociais são
causa do direito", que é o problema inicial de qualquer tipo de Sociologia
juridica.
1 - NIETZSCHE, F., Crepúsculo de los ídolos, Madrid, Alianza Editorial, 1979, p. 66.
2 - "... 'Como são possíveis os juízos sintéticos a priori? Já é hora de substituir esta pergunta de
Kant por esta outra pergunta: ' Porque é necessário acreditar nesta espécie de juízos? É preciso
compreenderque pana consavação dos seres de nossa espécie estes juízos devem necessariamente
ser havidos por verdadeiros, o que não impede, claro está, que possam serfalsos". NIETZSCHE, F.,
Má.f aUá dei bien y dei mal, Madrid, Ed. Edaf, 1979, p.34.

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173
eficácia determinada. Por isto não há razão alguma para não tentar colocar a siderar recantos do mundo humano que, precisamente são o lugar onde é
Críticajuridica neste espaço. necessário buscar as respostas que a Sociologia não dis~e.
Mas isto não quer dizer que deva necessariamente sustentar·se que a Para fazer com que as formas fetichistas deixem de considerar a causali·
ciência é o único espaço do discurso, muito pelo contrário, a ciência não é dade e fundamentar a crítica do direito sem ingenuidades, na seqüência con.
nada mais que outra ideologia que aparece em um discurso regulamentado, sideraremos a idéia de causa tentando chegar a um acordo para usá·la sem
nada mais que isto. Aciência, como discurso regulamentado, não tem outro submeter-se ao seu indubitável atrativo místico.
título de prestígio que a eficácia técnica e política de seus resultados. Aciên-
cia não tem nenhum título proveniente de uma autoridade como a do Logos
grego, ou a de deus, ou a da Lógica, ou algo parecido ou, inclusive, não pare- 2. A CAUSA NA SOCIOLOGIA JURÍDICA E
cido. NA CRÍTICA JURÍDICA
O que foi dito antes também é válido para a explicação causal. Aidéia de
que a ciência deve deslindar as causas dos fenômenos que estuda provém da As normas jurídicas são estabelecidas por uma autoridade humana com·
idéia de que "como a causa é 'agente', 'sujeito', 'produtor', se o pensamento petente - qualquer coisa pode ser entendida como sendo este último -. Para
descobre ao agente e a técnica se apodera dele, então o sujeito que conhece a Sociologia a questão tem sido sempre saber se a autoridade estabelece as
consegue dominar o objeto". Trata-se da idéia enunciada por Nietzsche de normas jurídicas conforme certa maneira de ver ou de crer como é necessário
que conhecer pelas causas outorga segurança e poder, enquanto que "ao des- que os membros da comunidade se conduzam ou se as estabelece "determina·
conhecido acompanham o perigo, a inquietude, a preocupação, - o primeiro da" pelas relações sociais. Asolução parece ser que a autoridade produz um
instinto atua no sentido de eliminar estes estados penosos (3) -". discurso normativo conforme suas idéias, as quais, no entanto, não provém de
Aidéia de causa está acompanhada, por isto, da conotação de força: a nenhuma fonte inata ou revelada, senão que são geradas em um contexto
causa deve ter a força necessária para produzir o efeito. A causa deve ser cultural cuja explicação se encontra nas relações sociais. A maneira como
anterior e superior ao efeito, e em ciências sociais as relações sociais tem sua ocorra a influência destas últimas no pensamento é algo ainda por estudar.
causa em si mesmas e não nas idéias. Se há algo a que um sociólogo resiste é Para nós, neste trabalho, que as relações sociais sejam a causa do con·
em considerar a possibilidade de que as normas sejam causa das relações soci· teúdo das normas é uma hipótese de trabalho plausíve~ que, no entanto, a
ais. É a veneração da matéria, identificada com as relações sociais, que ocupa análise do discurso do direito do capítulo anterior contribuiu para tornar sus·
o lugar da veneração da idéia, que é a veneração dos juristas: peita. O presente capítulo e o próximo devem contribuir para demonstrar o
"Isto é, uma vez mais, apenas expressão do seu modo de venerar: ao sentido no qual resulta útil em ciências sociais.
superior não é lícito provir do inferior, não é lícito que provenha do nada... Já são poucos os que negam a Marx uma participação determinante na
conclusão moral: tudo o que é de primeira classe tem que ser causa sui. O elucidação do problema. ASociologia já não tem dúvidas de que esta maneira
proceder de algo distinto é considerado como uma objeção, como algo que de ver ou crer que as condutas modalizadas devem ser umas e não outras é o
põe em dúvida seu próprio valor." (4) resultado de algum tipo de presença das relações sociais na consciência, e não
Atarefa daSociologiajurídica é a de submeter a explicação das normas da existência de valores inatos nela. Isto é, dizendo de modo simplificado, que
à causalidade que supõe instalada nas relações sociais, as quais adjudica a a realidade social determina, é a causa - de alguma maneira que deve ser
força suficiente para explicar as normas. A Critica jurídica compartilha este precisada - do conteúdo das normas. Por "conteúdo" devemos entender as
suposto. Já a Teoria Critica do Direito, que é a teoria apropriada para fazer condutas modalizadas deonticamente em um sistema jurídico positivo. Este
crítica jurídica, não oculta a desconfiança que nutre a respeito do discurso conteúdo é o ser assim e não de outra maneira do direito, enquanto que o
sociológico e de certa ingenuidade que se manifesta em sua negativa em con· problema sociológico é o porque existe este conteúdo e não outro. O marxis-
mo chamou a isto de determinação da superestrutura pela base económi·
3 - NIETZSCHE, F., Crepúsculo , dto 66. ca. Aidéia, muito genérica, é que "algo", às vezes denominado base econômi·
4 - NIE1ZSCHE, F., Crepúsculo , dto p. 47. ca e outras vezes relações sociais de produção, é "determinante" do conteú·

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do das normas. Geralmente esta idéia é plenamente aceita em todo tipo de ria de q~e a causa é ~o que" !!Aro~uz algo ou, ~ntão, que causa é ·a" origem de
escritos sobre o direito que valha a pena levar em consideração. uma cOIsa. Com maIOr frequencla do que sena desejável a idéia de causaapa.
Mas, também geralmente, parece que não é levada em consideração a rece associada às de produção e origem.
dificuldade que oferece a heterogeneidade do que se apresenta como causa e Como quase todas as nossas idéias e palavras, a origem de seu significa-
o que se apresenta como efeito. ASoci%gia parece não notar que não é uma do, para conservá-lo ou para tergiversá·lo, está no mundo grego. Neste caso o
obviedade que um fenômeno empiricamente verificável seja causa de um antecedente do significado da palavra "causa" -aitía- tem dois aspectos q~e
sentido que não é verificável, assim como tampouco é óbvio como o sentido merecem s~r,~nalisados. Por. um lad.o, aitía não significa nada que se pareça
pode ter efeito sobre os fatos. É por isto que a relação de causalidade entre com nossa IdeIa de protagonIsmo cnador da causa em relação ao efeito e, por
relações sociais e discurso do direito é proposta como hipótese neste traba- outro lado, o antecedente de qualquer coisa ou fenômeno é, para um grego,
lho. Por isto, porque é uma hipótese, é necessário pensar em um procedimen· ontologicamente homogêneo em relação ao conseqüente. Vejamos as duas
to plausível que permita aceitar, como verossímil, que duas entidades hetero- questões.
gêneas, fatos e sentidos, possam estar em "relação de causalidade". Este pro·
cedimento deve levar em consideração tal heterogeneidaQe sob pena de
incorrer em ingenuidade epistemológica. 3.1. Aitía como geração
Para uma Sociologia Jurídica de inspiração marxista a pergunta pode
ser se aquilo que o marxismo chamou determinação equivale a causa, e a A palavra grega que se traduz por "causa" é aitia e provém do léxico
resposta deve ser afirmativa (5). Convém saber, então, o que entenderemos jurídico. Foi Kelsen quem investigou minuciosamente este ponto, posto que
por causa do conteúdo do discurso do direito, causa esta que de alguma ma· tinha interesse em diferenciar causa de imputação (6). Aitía significa, origi.
neira deve destacar a importância das relações sociais. Por exemplo, nos per- nariamente, que certo fato era imputado a alguém - ou a algo - que devia
guntamos porque o contrato é um acordo de vontades ou porque é obrigató' pagar uma compensação por isto. Conforme a visão grega do mundo, um
rio pagar o salário justo e, também, qual é o sentido ideológico do discurso delito é um atentado contra a ordem universal, uma desproporção que colide
que inclui entre seus temas a "vontade" ou o "salário". A idéia implícita na com o mundo proporcional, um distanciamento da "justa medida", ante o que
própria pergunta é que as relações sociais são a causa, "produzem", "fazem", corresponde uma reparação - nb sentido de regresso ao estado anterior -, da
que estas expressões estejam com seus sentidos ali onde estão, no direito. Eo ordem violada. Os filósofos tomaram esta palavra e, segundo Kelsen, somente
problema é o de como o que é heterogêneo pode ser "causa"? Se as relações na filosofia pós-socrática adquiriu um significado distinto do originado no léxi.
sociais são heterogêneas em relação ao discurso como é que são a "causa" co jurídico. Seja correta ou não a apreciação de Kelsen sobre o momento em
deste? De onde provém nossa idéia de causa? Ou melhor, qual é o significado que aitía começou a significar algo distinto de imputação na história da filo-
deste signo? Comecemos pela origem. sofia grega, de qualquer maneira é claro que não significa "fazer" algo a partir
da inexistência deste algo. Na ideologia grega não há lugar para a criação,
também não há lugar para o nada. O que chega a ser, em realidade, não
3. "CAUSA" NO PENSAMENTO GREGO "chega a ser", pois sempre foi. Ninguém "faz" coisa alguma que já não tivesse
seu lugar na existência. Portanto, aitía não implica o protagonismo criador, a
Caso perguntássemos o significado desta palavra a qualquer pessoa, mas possibilidade de "fazer" algo a partir do nada. No mundo grego não teria lugar
também à maioria dos sociólogos, resultaria que quase sempre a resposta se· dizer algo assim como que as relações sociais "fazem· que estes sentidos este-
jam ali onde estão, no discurso do direito, e muito menos ainda que a altia
possa ser heterogênea em relação ao resultado. Se Aristóteles enumera entre
5 - Veja·se as razões em Riccardo GUASTINI, "n diritto como sovrastrottura. ln che senso?"em
errad. esp., emCrittcajuridica,
MaterlaJtperunastoriadeUacuJturagiurldica, 1979-1, pp. 237 e ss.
nÚJnerol0). 6 - Veja-seKEISEN,H.,SociedadyNaturaleza,BuenosAires,DepaJma.1945.

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formas de uso da palavra a qualidade de aitia que o pai tem em rela~ã~ a u~ ~otro em ato ~as cav~o e~ potência. Assim, aitía é o telos, o que ainda
:~a prole, isto não deve ser interpretado como a id~ia: .imp~e~nada de, cn~tla- nao e mas que se~. ~ exph~açao,se remet~ pa~ mais adiante e não para trás.
.smo de que o pai é "criador" a partir do nada. Na Ideia cnsta a alma e cnada O exemplo de Aristoteles e notavel: a saude e a aitía do passeio pois se
~~ cada caso individual a partir da não existência prévia desta alma..0 passeia para ter saúde (9). '
deus judeu·cristão é criador; enquanto Zeus, o Logos, o fo~o, ou o ,~e se~a, Aina não designa outra coisa que o estado da physis precedente ao
não cria nada. Já em Aristóteles o pai põe a forma e a mae a matena. Na~ atual, inclusive no caso da atividade do artesão. O que ocorre, o que se gera,
obstante, a forma é sempre preexistente - nunca há "criação" -, e o filho ~ nunca é uma criação do ser que o gera. O ferreiro, por exemplo, é aitia da
apenas o desenvolvimento do que já existia "em potência". Portanto, o pai ferradura, segundo diz Aristóteles, pois também se usa a palavra para este
não é "origem" no significado de começo absoluto. Opai so~ente tra~s~ite o caso. Mas ser aitía não quer dizer que seja o ferreiro acausa - agora em nosso
que já existe, ou seja, para que "algo" se produza, se gere, e necessano que sentido moderno - da ferradura, não quer dizer que ele a tenha "feito". Para a
este "algo" preexista. Como preexiste? Depende do tipo de seres. No caso ideologia grega o ferreiro nada mais é que um colaborador daphysis: se apare·
dos seres animados, o que preexiste é a forma no pai que a entrega nesta ce uma ferradura é porque ela já estava dentro do pedaço de ferro, e o ferreiro
espécie de corrida que é o eterno movimento. circular da ppsi~. No caso_da foi apenas a ocasião desta transformação, interveio somente no momento
obra artificial, como a estátua, a forma preexiste na conSClenCla do artesao. propício para que o ferro se convertesse em ferradura mas, efetivamente, não
Esta concepção, distinta da nossa concepção de causa, é o que faz que a "a fez" (lO). Eesta é a chave da diferença entre a concepção grega do mundo
seguinte passagem de Aristóteles não seja um disparate:. _ . e a concepção implícita em nossa palavra causa. Porque não é produção nem
"... é evidente que, de alguma maneira, todas as COiSas sao_ produzld~s origem? Porque estas palavras supõem as idéias de criação e de sujeito que os
por um ser que tem seu próprio nome, como ocorre nas produçoes naturaiS, gregos não conheciam.
ou por uma parte que tem o mesmo nome, como açasa pro~ede,da casa,:.. P?r
esta razão como nos silogismos, o princípio de todas as cOisas e a substancia.
Assim co:Uo em todos os silogismos o princípio é a essência, também o é em 3.2. A homogeneidade entre os termos
toda ~rodução. Algo semelhante ocorre nas produções da Natureza, pois a
semente opera como as coisas que entram no campo da arte, posto que tem É necessário prestar atenção ao fato de que, por outro lado, a idéia de
em potência a forma do objeto e porque aquilo do que a seme~te ~u germem que acausa deve ser homogênea em relação ao efeito é uma idéia grega que se
procede tem, praticamente, o mesmo nome que o ser produzld? O! conservou, diferentemente da idéia de aitia, a qual o mundo cristão acrescen·
Observe-se que na geração natural ou artificial, tanto em blOl?gla como tou a idéia do protagonismo criador do sujeito "que faz". Ahomogeneidade é
em arte, ocorre o mesmo que "nos silogismos", onde o gerado, que e aconcluo um complemento de aitia, posto que esta não supõe a intervenção criadora:
são, já estava nas premissas. É que a palavraaitia não signific~P!oduÇão ne~ geração é gerar algo que produz a este mesmo algo, não há novidade nem
origem no significado que nós damos a esta palavra: para ~ns~oteles ~s ~eno­ criação E é esta homogeneidade entre causa e efeito quem oferece o proble-
menos da Physis não "são produzidos", mas sim que a propna Physts e um ma da Sociologiajuridica assim como também o problema da sociologia de
"processo" de uma geração e corrupção (8). Por isto, nenhuma pa.rte desta qualquer outro fenômeno cultural, segundo o que pareceria um disparate re·
physis tem uma "origem" , se com isto se quer dizer,"começo". ~ d~vldo a ~~e
não há começo no sentido de início desde o nada e que em Aristoteles attla 9 - Metajístca, cit., 1013 a: "...chamo fim aquilo em vista do que se faz algo. Assim, o fim do passear
também pode ser o telos, aquilo ao que tende a coisa ou ser. Por exemplo, ~ é o de conservar asaúde, pois quando perguntamospara que se passeia a resp0st2é de que o fazemos
aitia do potro é aforma "cavalo", que é aquilo ao que "tende" este ser que e para que uma pessoa possa manter sua saúde. Ao falar assim acreditamos ter dado a calljla disto".
10 - Veja-se "Trabajoynaturalezlenla Greclaarqua", em VERNANT,}ean-Plen'e,MlIoypensamiento
en la GreciaAntigua, Barcelona, Ariel, 1973, pp. 252 e 55. Também: "Aspectos psicológicos dei
7 - Metajístca, 1034 b, versão de P. SAMARANCH, Madrid, Aguilar, 1973, p. 959. trabajo en la Grecla antigua", em idem, p. 278: "Acausa motriz não é reaImenteprodutora, joga o
8 _ Para uma leitura de Aristóteles distinta da leitura escolástica veja·se, por exemplo, MOREAU, papel de um meio através do qual uma 'forma' preexistente se fazmatéria. Assim comoo homem vem
Joseph,Ari5t6teles y su escue/a, Buenos Aires, EUDEBA, 1972. do homem pela mediação da semente, a casa vem da casapela mediação do pedreiro.

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putar que relações sociais, definidas como "empiria", sejam a "causa" dos liberdade e vontade. Adúvida proposta por esta pesquisa também tem como
discursos definidos como portadores de ideologia. Mas poderia ter ocorrido ba~e esta idéia: Como é possível que as relações SOciais, que são fenômenos,
que ao converter-se aitia em causa "produtora" tivesse sido aberto caminho sejam a causa do conteudo das normas, que são sentidos? Como se prova a
à possibilidade da heterogeneidade entre. ~ausa e e~eit? mas, cu?o,~ame.?te, idoneidade dos fatos para ser causa suficiente das normas?
não foi assim. Acredito que nenhum soclologo aceltana que as IdeIas sao a . A,concepção de que.a causa deve ter a força necessária para produzir o
causa de fatos, nem vice-versa se compreendessem a irreparável heterogenei- efeIto e comumente aceIta pela Sociologia, em que pese suas origens
dade ontológica entre ambos. Embora, e isto também é curioso, estejam dis- metafisicas. Tendo em vista que esta pesquisa pretende instalar a CriticaJuri-
postoS a aceitar a causalidade das relações sociais relativamente as idéias sem dica no mesmo espaço que a ciência comum usaremos a palavra "causa" com
reparar em sua heterogeneidade, eles não têm a mesma disposição no que se esta conotação.
refere a causalidade das idéias em relação as primeiras. Em outras palavras,
que a concepção "hegeliana" segundo a qual as idéias são causa da realidade é
rechaçada, mas não em razão da heterogeneidade ontológica entre ambos 4. "CAUSA" COMO ATIVIDADE DE UM SUJEITO
termos da relação, mas sim por alguma outra razão.
A primeira notícia da idéia de que o semelhante se relaciona com o 9 fato de que algo seja "produção" de alguém significa que o produto é
semelhante está em Empédodes: feito. Eo resultado da atividade de alguém que se converte, assim, em sujeito
"Assim, o doce se aferra ao doce, e o amargo se precipita sobre o amar- que protagoniza um ato de criação. Para que tal idéia conseguisse seu lugar na
go, e o ácido busca o ácido e o quente se junta ao quente." (11) cultura ocidental, posto que, como vimos, não é grega, era necessário que
A idéia é que o conhecimento sensível se produz pelo contato entre aparecesse a idéia de criação no sentido, agora sim, de originar algo a partir
iguais (12), ou entre desiguais, porque há uma unidade de contrários que, na da não existência deste algo. Para os gregos, todos eles profundamente
cultura grega, ou são o mesmo ou um para o outro. Assim, os eflúvios que se parmenídeos, o ser não pode provir do não ser, de modo que a geração de
desprendem das coisas ferem o olho porque este é da mesma natureza que algo não é nada mais que a nova forma em que existe o que já tinha existência.
aquilo que o atinge ou, então, que o tato detecta o calor porque o corpo tem Portanto, não há "criação" nem "origem".
uma temperatura menor. O certo é que existe a idéia de correspondência Seria necessário buscar no pensamento judeu-cristão as protoformas da
ontológica entre o conhecido e o sujeito (13). Isto em relação ao conhecimen- idéia de um sujeito (14) que "faz" algo que antes não existia. Aqui seria possí-
to. Mas também a respeito da aitia a idéia é que para sê-lo é necessário que o vel encontrar a origem do significado de produção e origem da palavra "cau·
antecedente seja semelhante com o conseqüente C"a casa vem da casa", disse san.
Aristóteles). Também em nossa cultura a causa deve ser idônea para produzir Por seu turno, o sujeito "que faz" precisa possuir este atributo que lhe
o efeito e, por isto, se acrescenta à idéia de "suficiência" - idéia de "força" - permite distanciar-se da natureza e atuar desdefora e sobre ela. Este atributo
a de causa: quem queira provar que a escravidão foi causa suficiente da guerra é a vontade, companheira da liberdade. Entre ambas constituem o livre arbí-
de secessão terá poucos ouvintes, ainda que existam, isto sim, muitos crentes trio. Sem este ingrediente não há Mação" ou atividade "que faz". Na ideologia
na explicação que faz da natureza humana a causa de que o código civil fale de grega somente é possível uma colaboração do homem com a natureza, mas
não uma ação sobre ela. Indusive a língua grega, até o século I, não teve uma
palavra para designar vontade e muito menos livre. Esta palavra éautexousion
e autexousiontes, que logo seria traduzida ao latim comoliberum arbitrium.
II _ EMPÉDOClJiS, Fragmentos, fragm. 90, versão de MONOOLFO, Rodolfo, emElpensamtento
antiguo, Buenos Aires, Losada, Bs. As. 1983, t.I.,p. 96.
12 _ "Pois com a tem vemosa tem, com a água a água, com o ar o ar brilhante, e com o fogo o fogo
14 - "... todo acontecimento era para ela (para uma psicologia antiga, O.c.) um ato, todo ato,
destrutor"; EMptOOCLES,fragm. 109, versãodc RAVENJ. E. em KIRK G. S., e outro, Losfll6sofos
conscqüênda de uma vontade, o mundo se converteu para ela em uma pluralidade de agentes, atodo
presocráticos, Madrid, Gredos, 1981, p. 478. acontecimento foi imputado um agente (um 'sujeito')": NllITZSCHE, F., Crepúsculo de los fdolos, cit,
13 _ Rodolfo Mondolfu tratou esta questão em "La comprensión del sujetohumano en la cultura
p.64.
antigua",BucnosAircs,EUDEBA, 1986, pp. 146 e ss.

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ISO
A antiga palavra eleuthería designa tão somente a qualidade de cidadão ou 5) ARevolução mexicana pode servista como a causa da Constituição
não-escravo, mas não a idéia de liberdade (15). de 1917.
Aidéia de sujeito, que é a idéia-origem da idéia de causa como agente, 6) Arevolução causou muitas mortes.
do mesmo modo que a de aitía entre os gregos, apareceu na linguagem jurí·
dica antes que em qualquer outra sob a forma de direito subjetivo. O sujeito Nos exemplos 1, 3 e 5, "causa" éumsubstantivo. Nos exemplos 2 4e6
é o indivíduo, mas agora já não é o membro dapolisoucivitas, mas sim aquele "causa" é um verbo. Mas em ambos casos há um protagonista ou sujeito 'atuan:
que tem "o poder" de reclamar - ou renunciar - ao "seu" direito (16). No te: a imprudência ou o peso de Pedro, a lei ou sua má aplicação, a Revolução
direito romano a propietas é uma qualidade que a coisa tem e não a qualidade Mexicana. Em realidade, poderíamos trocar a palavra "causa" por "fazer" e o
de um indivíduo. É, isto sim, a qualidade da coisa segundo a qual lhe é inerente sentido seria o mesmo.
estar sujeita ao dominus (17). O sujeito do direito moderno, em troca, é o Note-se que o sujeito tanto pode ser um homem como uma coisa, tanto
indivíduo que tem o "poder" de usar ou vender a coisa. O direito subjetivo de o peso de Pedro como a lei. Há uma antropomorfização do mundo no uso
propriedade é uma qualidade do sujeito e não da coisa. Este homem, assim desta palavra, constitui uma hipostatização no sentido de que confere qualida-
concebido, agora é "sujeito" - "ator", "agente" - já que o mov:imento da coisa de humana ao mundo exterior, ou seja, lhe confere habilidade para criar.
é imputado agora a sua "ação". O sujeito é anterior a coisa, é "o que" a move,
ou seja, quem pode "acionar" alterando o estado de coisas. Este é quem "faz"
voluntária e livremente, ou seja, "cria", como agora a causa "produz" um 5. "CAUSA" COMO RAZÃo
efeito. O sujeito é portador do direito subjetivo assim como da liberdade
necessária para pecar e ser responsável, sujeitando-se as sanções. No significado de "causa" como produção e origem a questão se mano
Pois bem, causa como "produção" e/ou "origem" tem lugar neste mes· tém no nível do ser, ou seja, se supõe que antes do ser tal qual é agora havia
mo contexto cultural, na visão do mundo ocidental, nesta parte que é cristã e outro ser que "lhe produziu" ou "lhe originou". Porém, esta não é a única
não grega. A idéia é que há "algo", que jamais foi bem definido, mas que maneira de imaginar uma "conexão" entre o anterior e o posterior no tempo.
sempre é sujeito, que "faz" outra coisa que antes não existia. O uso da palavra Outra maneira de fazê-lo é afirmar que a causa é a razão de algo. De alguma
o indica: maneira isto estava presente no pensamento grego, que sustentava que o
mundo, a physis, é governada por uma "razão" eterna e imanente, designada
1) Aimprudência de Pedro foi a causa da morte de Juan. pela palavra Logos. Aphysis tem um logos e, desde logo, isto pode ser visto
2) O peso de Pedro causou a ruptura da grosssa corda que sustentava como a causa de todo movimento. Contudo, para expressar esta idéia não
aJuan. usaram a palavraaitía, mas sim a palavraarkhé, que também provém do léxico
3) Alei sobre expropriações foi a causa do desastre na produção agrí· jurídico e significa "poder". O arkhé é aquilo que tem o domínio suficiente
cola. sobre o mundo como para mantê-lo ordenado e sujeito dentro desta ordem.
4) Amá aplicação da lei causou a fuga de capitais. Em Heráclito, por exemplo, logos, arkhé e fogo se confundem em vários frag·
mentos, e é esta ordem universal o que logo permite falar deaitía. Em termos
modernos, seria mais ou menos como dizer que a ordem ou as leis da natureza
constituem a razão da causalidade, o que permite pensar na causa de todos os
15 - Veja-se VERNANT,]ean-Pierre, "Ebauches de la volonté dans la tragédie grecque" ,Mythe &
fenômenos.
tragédle, Paris, Maspero, 1981, p. 53, nota p. 20.
16 _ Veja·se os trabalhos de Michel VILLEY, especialmente "La génesis deI derecho subjetivo en Algo do arkhé soa familiar no uso do nosso conceito de causalidade: a
Guillermo de Occam", originalmente publicado emArchlves de Phllosophle du Drolt, número 9, causa também é a "razão" que dá conta de um fenômeno. Dar razões costuma
1964; em espanol emEstudlosen torno a la noct6ndederechosu1.Yettvo, Valparaíso, Ed. Vniv. católica entender-se com explicar pelas causas.
de Valparaíso, 1976, pp. 149 e ss. Nestes casos, o que acontece é que se transfere ao mundo exterior uma
17 - Veja-se"Acerca dei sentido de la expresión 'Ius ln re' en el derecho romano c1ásico", em
VILLEY, M.,Estudlos..., ctt., p. 116. característica da particular maneira de pensar dos gregos. Por razões que nun·

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ca foram totalmente explicadas, os gregos encontraram no pensamento os do com deus, retrocedendo a questão à Razão. Segundo Kant a causa reside
princípios da lógica e os transferiram ao mundo exterior. Ea metafisica justa- ef~tivamente, na mente humana. Esta é uma das maneiras de julgar, de faze;
mente consiste em supor que o encontrado na mente é um reflexo do mundo JUIZOS, que o homem tem, que sempre teve e que sempre terá. Com isto, a
exterior ou, mais em consonância com a maneira grega de ver este assunto, a causa parece ficar no mundo subjetivo onde Hume a havia colocado. Mas, em
metafisica consiste na suposição de que o logos humano coincide com o logos realidade, não é assim, porque se todos os homens julgassem desta maneira,
universal, que pode ser expressado no discurso que é designado também com com a categoria de causalidade, então teríamos algo assim como uma natureza
a mesma palavra: "logos". Este vocábulo tem, notoriamente em Heráclito, como humana universal, o que, novamente, faz retroceder a questão ao mundo ob-
já vimos, os três usos: pensamento, discurso e razão universal ou, se preferi- jetivo, à razão universal que governa o universo e da qual o homem faz parte.
mos, leis gerais da natureza. Deus volta a reger o mundo.

6. "CAUSA" COMO FICÇÃO 7. "CAUSA" COMO FUNÇÃO

Foi Hume quem, seguindo os passos de Occam, Bacon e Locke, realizou o positivismo contemporâneo e a filosofia analítica, tão reacionários a
a crítica definitiva da metafisica grega. Como se sabe, Hume criticou a idéia de reconhecer, com toda razão, qualquer tipo de Razão universal, preferiram
causa dizendo que o único a que temos acesso é a percepção de fatos antece- utilizar outras palavras, como "condição", "lei científica", "explicação" e, s0-
dentes e fatos conseqüentes, e que a "causa" não é mais que o costume que bretudo, "função". Se "função" pode substituir a palavra "causa" então tería-
adquirimos de chamar assim a sucessão de duas percepções quando ambas se mos de dizer que o conteúdo do direito "é uma função" das relações sociais ou
encontram sempre uma após a outra (18). Sendo assim, então a "causa" é um que "está em função" delas ou, ainda, que "a teoria marxista funcionaliza o
"invento" humano, o produto do discurso, umaficção. Apartir daí a causa se direito em relação a uma sociedade específica" (19). Mas quando pergunta-
converte na explicação oferecida por alguém sobre a existência sucessiva de mos o que quer dizerfunção, resulta que nos remetem aos matemáticos que,
dois fatos, se converte em um discurso, pois alguém, um emissor, produz o como costumam não saber filosofia, tomam palavras emprestadas dos filóso-
enunciado que possui o sentido de que O fato A é causa do fato B. Acausa já fos que, se são bons positivistas, costumam acreditar que os bons filósofos são
não é "origem" ou "produção". Contudo, este enunciado não tem nenhum os matemáticos. Assim, se obtém uma definição ao estilo de "função significa
fundamento no mundo exterior, percebido pelos sentidos, ou melhor, não correlação entre uma ou mais magnitudes (variáveis independentes) e outra
tem nenhum fundamento. Seu único direito a existir provém exclusivamente magnitude (variável dependente) de modo que, para todo valor das primeiras
de sua utilidade: o fingir que existe uma razão universal - as leis gerais da seja determinado ao menos um valor da segunda" ou, também, "quantidade
natureza - pennite fonnular novos enunciados sobre acontecimentos futu- variável em relação com uma outra, em tennos que aquela pode ser expressa-
ros. Mas, como sabemos, a história do mundo burguês mostrou que esta fic- da, ou da qual depende seu valor" (20).
ção pennitiu à civilização européia conseguir o planeta que temos hoje. A
ciência é um discurso que se assenta sobre esta ficção, mas que nem por isto
19 - Em sua particular e estranha forma de expressar-se U. CERRONI utilizava indistintamente a
é menos útil. metáfora "articulação" e apalavra "função" da seguinte maneira: "...é necessário não esquecerque a
É claro que uma concepção como esta põe abaixo a idéia do mundo explicação sociológica develevar-nosa compreensão da norma juridica moderna como aarticulação
ordenado por Deus. Kant tentou resolver o inconveniente que Hume pôs ao da sociedade moderna,... Em outras palavras, é indispensável explicar o momento ideal (normativo
mundo centrado desde o princípio e para sempre, do mundo criado, do mun- ou hipotético-atributivo) do direito moderno enquantohqJ6teseordenadora dasociedade modema,
que pode ordenar à medida em que se dê como/unção da mesma, ou seja, à medida em que seja
postuladapelaestruturadiferencialdetalsociedade";emMar.xyelderechomoderno,México,Grijalbo,
1975,p.87.
18 - A célebre análise se encontra em HUME, D., primeira parte, sec. IV, de seu Tratado de la 20 - Citado por Riccardo GUASTINI em "Ildirlttocomosovrastruttura. Inchesenso?" dt., p. 243,
natura/eza humana, Madrid, Editora Nacional, 1981, pp. 98 ess. nota 10.

184 185
Mas não tinha de ser eliminada a metafisica? Então, que quer dizer "de- estado de perplexidade que provocam palavras como "vontade", "liberdade",
pendência" dos valores de uma magnitude em relação a outra? O que significa "sensação", "experiência", "idéia", palavras que seguirão sendo usadas e que,
"correlação" entre duas variáveis? O mesmo ocorre quando o refúgio é a "con- precisamente por estar no lugar de uma perplexidade, mantém seu poder de
dição" e não a "função". Se diz, então, que aquilo que chamamos causa não é comunicação.
nada mais que a "condição",seja a necessária ou a suficiente, da existência de O uso das palavras que estiveram no lugar desta idéia pouco resistente à
um fenômeno. Mas não basta com alterar as palavras para suprimir o proble- análise corresponde às idéias acerca do papel da consciência na tarefa huma-
ma que, por enquanto, parece não ter solução. na. Por exemplo, os gregos não tentaram dominar o mundo com explicações
causais. O logos não servia para isto, mas sim para estabelecer um contato
com o ser, contato que tem muito mais de estético que de cognitivo porque se
8. CAUSA SISTÊMICA, NÃO-LINEAR tratava de contemplá-lo e não de dominá-lo. A escolástica medieval não se
propunha claramente o domínio do mundo material, que o fazia acerca do
Existem outros subterfúgios para evitar os inconvenientes postos por mundo das consciências: o que havia que fazer era justificar a deus e a igreja,
Hume a qualquer concepção do mundo centrado. Freqüentemente se diz que a tarefa não era produzir mais-valia. Mas tão pronto apareceu uma classe social
a crítica de Hume é simplista porque supõe a causalidade "linear" quando na no contexto cultural, uma classe cujo projeto histórico, como logo se com-
natureza, em realidade, mas muito mais na sociedade, as coisas ocorrem de provou, era apoderar-se de toda a mais-valia possível, então o intelecto teve
uma maneira muito mais complicada, e o que se denomina causa é na verdade como missão prever os "efeitos" de certos artificios que, postos em mãos de
um emaranhado de causas. Além disto, se diz que existem diversos tipos de trabalhadores, geram mais-valia. Para isto é necessário um conceito de causa·
causas. Por exemplo, dentro dos sistemas a explicação causal é de distinta lidade que tem estreita relação com o êxito produtivo, com a previsão acer·
natureza que aexplicação causal das influências entre os sistemas. Não obstante, tada. Desde logo, então, que basta com um conceito de causalidade que, não
estas concepções não escapam à concepção da causa como sujeito. Podem tendo nada de ontológico, serve.
ser atribuídas à causa inumeráveis características, mas a questão é que o subs- "A tarefa do cientista na Natureza é buscar leis que permitam deduzir
tantivo que recebe todos estes adjetivos sempre suporta o sentido de "sujeito predições," (21)
protagonista". Esta é uma idéia que a Aristóteles não lhe teria ocorrido, seguramente.
Seguiremos fazendo algumas elocubrações a este respeito mas, no en· Imaginemos como teriam ido mal as coisas para ele baseando-se em predições
tanto, a questão não se modificará se não for superada a idéia de sujeito. Isto fundadas em crenças como de que os corpos caem a distinta velocidade se-
não quer dizer, claro, que sejam inúteis todas estas complicações que fazem gundo seu peso. Os cientistas modernos, por outro lado, tem esta missão, e
da causalidade uma relação multilinear, complexa, muito pelo contrário, sua não porque seja a única maneira de satisfazer o intelecto, posto que Platão o
maior virtude é, sobretudo em ciências sociais, o enriquecimento que se al- fazia de outra forma, mas sim porque cada predição acertada que faz vibrar a
cança na explicação e, o que é mais importante, nas previsões e propostas um fisico, muito possivelmente faz dar saltos de satisfação ao que aproveita a
que se consegue formular. mais-valia obtida. Por isto, dar uma explicação causal de um acontecimento
quer dizer deduzir um enunciado que o descreve a partir das seguintes pre·
missas dedutivas: uma ou várias leis uviversais e certos enunciados singula·
9. O USO CIENTIFICO DA PALAVRA CAUSA res - as "condições iniciais" - (22).
As "leis" ou "condições" não afetam a sensibilíssima fibra de nenhum
Depois de Hume os filósofos da ciência se ocuparam de todas as formas positivista antimetafisico porque, afinal, do que se trata em ciência é de seguir
possíveis da desmitificação desta palavra, embora muitas vezes para cair em
outras palavras de reminiscências mágicas. Mas bem, toda crítica da palavra
"causa" não deve levar a pensar que se possa abolir seu uso. O final desta 21 - POPPER, Karl R.,la lógica de la investigaci6n'dentiftca, Madrid, Tecnos, 1971, p. 229.
história milenar ainda não se produziu. Atualmente as coisas estão no mesmo 22 - Idem, p. 57.

186 187
uma regra, que não está conectada à razão universal, mas sim apenas à pai- Mas bem, alguém poderia questionar: Será que uma ciência pode ba-
xão do cientista: sear-se em uma ficção? Aresposta é que, de fato, o certo é que todas as ciên-
"não abandonaremos a busca de leis universais e de um sistema teórico cias se baseam na ficção da causa criadora. Isto não impediu, em absoluto, que
coerente e nem cessaremos nossa tentativa de explicar causalmente todo tipo os homens tenham transformado o mundo com a ajuda de conhecimentos
de acontecimentos que possamos descrever." (23) que se baseiam nesta ficção. Por isto é que não há nenhuma razão para que a
Com efeito, é assim. Palavras, como "causa, "efeito", "relação", "condi- Sociologia jurídica e a crítica do direito também não recorram a esta ficção,
ção suficiente", "vontade", seguirão sendo usadas porque satisfazem uma ne- como quaisquer outras ciências, para falar da "relação causal" entre fatos e
cessidade, a de explicar para atuar. Ese a Sociologia serve para fazer políti- sentidos.
ca, para atuar sobre o mundo, como a Física para construir máquinas que
permitem obter uma quantidade crescente de mais-valia, seguiremos utilizan-
do a palavra "causa" como signo no lugar da idéia daquilo que permite predi-
ções úteis. Se algum sociólogo acredita que sua ciência não serve para a polí-
tica é pela mesma razão que os físicos dizem que se suas "pred\ções" estão na
base das armas atômicas eles não são responsáveis por isto.
Aconclusão é que a ideologia cientificista não tem muito do que orgu-
lhar-se em relação às idéias basilares da ciência. Se nada menos que a idéia de
"causa"; verdadeiro pilar deste discurso que se postula como verdadeiro é
uma idéia tão pouco respeitável, então cabe perguntar sobre a legitimidade
do seu desmesurado prestígio. Em realidade, tudo se reduz ao poder. O dis-
curso que justifica a ciência, a Epistemologia, tenta apresentá-Ia como o dis-
curso descritivo, apolítico, que é verdadeiro quando não é falso, que não ex-
pressa valores, que é objetivo e neutro. Definitivamente, este discurso somen-
te tende a desalojar outros e condená-los a prescritividade, a qualidade de
valorativos, com o claro objetivo de dominar pessoas e processos.
Dito isto, podemos aceitar que "causa" é, hoje, para umaEpistemologia
não ingênua, um signo sem referente empírico, que se utiliza para formular
enunciados nos quais um fenômeno aparece como "produtor" de outro, cien-
te de que "produzir" é outro signo sem referente empírico e que constitui
uma ficção, a ficção de que a natureza é como o pensamento, ou seja, que
pode criar, a ficção de que a natureza é um "sujeito" que faz. Esta ficção cum-
pre a função psicológica da qual fala Nietzsche, tranqüilizar e dar poder. Ou-
torga poder para aqueles que possuem a tranqüilizante explicação de que o
direito, por exemplo, é produto - é "causado" - da sociedade, da vontade de
proteger os indivíduos da voracidade dos maus capitalistas, pelo intenso dese-
jo de justiça. Acrítica jurídica pretende competir com esta tranqüilizante fic-
ção.

23 - Idem, p. 59.

188 189
Capítulo Décimo

ACAUSA NA SOCIOLOGIA JURíDICA

SUMÁRIO: 1. A "causa" em Sociologia; 2. O discurso como causa do discurso; 3-


A origem das ficções do sentido ideológico do direito; 4. As descrições no discur-
so do direito; 5. Causa e referênctafictícia do direito.

1. A "CAUSA» EM SOCIOLOGIA

o primeiro efeito produzido pela ficção da causa em uma sociologia


ingênua é a crença de que os enunciados acerca das causas das normas tem
um referente empírico. Conforme o que vimos acerca da causa entre enun-
ciados e fenômenos, é necessário levar em consideração que o enunciado que
afirma que certa norma tem como causa determinada relação social é apenas
isto, um enunciado. Portanto, a "çausa" nada mais é do que uma intervenção
intelectual. Isto resulta importante porque o uso da linguagem nos trai muito
freqüentemente e pode ocorrer que a forma do enunciado faça parecer que é
a "realidade" a que "faz" ou "sofre" efeitos. Isto em primeiro lugar.
Em segundo lugar, aclarado o anterior, é necessário dizer que esta pes-
quisa está explicitamente situada em uma posição que, atendidas as precau-
ções que analisamos, não encontra outros inconvenientes para perguntar pelas
causas do direito moderno. No que diz respeito a este trabalho, a confissão é
explícita: perguntamos pela "causa", nos mesmos termos de todas as ciências,
do conteúdo das normas. Perguntamos porque o código civil diz que os con·
tratos são acordos de vontade, porque é obrigatório pagar o salário, porque o
direito civil diz que uma pessoa é todo o ente suscetível de adquirir direitos e
contrair obrigações e não, por exemplo, todo ser humano maior de 18 anos.
Perguntamos pela causa do sentido deôntico mas, sobretudo, pela causa do
sentido ideológico do direito positivo. Aceitamos ahip6tese de que a resposta
deve ser buscada nas relações sociais. Não obstante, levando em consideração
as dificuldades oferecidas pela análise do discurso jurídico visto anteriormen·

191
te, esta pesquisa, de tradição sociológica, propõe que esta hipótese deve ser demo, ?u~c~ suas c~usas. Desde a famosíssimapassagem (1) onde a superes-
verificada conforme algum tipo de procedimento aceitável para um cientista trutura Jundlca ergUIa-se sobre a estrutura economica, o direito aparece como
social comum. Econfessa que isto deve ser assim porque quer instalar-se em causado, determinado, como sempre se interpretou este texto, pelas relações
competição com outras respostas científicas, com a clara intenção de tentar sociais. As dificuldades, aqui, prontamente se tornaram óbvias.Já o velho Engels
ganhar o auditório ou, ao menos, desta parte do auditório que não deixa de as havia notado e acrescentou, em uma também célebre carta, a idéia de deter-
sentir-se enganada cada vez que algum cientista lhe mostra que os contratos minação "em última instância "(2). Note-se que sempre estamos em uma con-
são acordos de vontade porque o legislador quis proteger a dignidade huma- cepção monista que supõe que relações sociais e normas não estão separadas
na. por uma ruptura absoluta, de modo que para esta concepção as relações so-
Abusca de causas, segundo o modo aqui proposto, poderia ser criticada ciais tem a força suficiente para ser causa das normas, ou seja, determinar seu
como "simplista", "positivista" - não duvido que muitos marxistas assim o conteúdo. Em um primeiro momento os marxistas pensaram que para evitar o
fariam -, "reducionista", marcada por uma "concepção linear de causalida- "determinismo econômico" a expressão do velho Engels era suficiente. Se-
de". Com efeito, a concepção de causalidade aqui proposta é a tradicional guindo sua teoria, sempre se disse que "as relações de produção determinam
porque esta pesquisa pretende tornar competitiva uma explicação inspirada o direito - são suas causas - mas somente em última instância", Isto por-
em alguns setores do pensamento de Marx, e se dirige ao mesmo auditório ao que não era possível acreditar que a economia fosse sua "única" causa e nem
que qualquer proposta científica que fale de sistemas - ou de estruturas - que que o direito fosse inócuo para as relações sociais. Deste modo, então, se dizia
produzam efeitos sobre outros - ou outras -, quer seja de fatos que os produ- que "há uma mútua influência" - dialética, claro - entre base e superestrutu-
zem sobre outros fatos ou, ainda, de normas que tem "como função" produzir ra, embora, em "última instância", aprimeira determine a segunda. Ao mesmo
certos efeitos ou variáveis que se "correlacionam com outras". A proposta tempo em que se mantinha a idéia de última instância e de influência mútua,
desta pesquisa não tenta competir com teorias sociológicas que tenham supe- se utilizou a idéia da "autonomia relativa". Mas, em realidade, seja primeira ou
rado a idéia de causa como "sujeito". última a instância, a situação não muda se a base determina o direito. O pro-
Com relação ao mecanicismo temos de dizer que esta palavra de que os blema é explicar como o determina e não em que ordem (primeira ou última).
sociólogos tem tanto medo, em realidade, não diz nada mais do que a palavra Igualmente, a relatividade da autonomia não ajuda muito porque simplesmen-
"causa". Se "mecanicismo" vem de "mecanismo", se isto significa que certos te introduz um problema de quantidade: com efeito, em que proporções o
elementos se movem "por causa" do movimento de outros, e que não podem direito é autônomo e em que proporções ele é determinado? Um texto de
deixar de mover-se, então "mecanismo" é sinônimo de "causa" porque isto é Poulantzas, praticamente ininteligível, nos dá conta desta perplexidade:
o que diz esta palavra. Os sociólogos temem a esta palavra porque temem que "Em resumo, os efeitos de uma estrutura (o econômico) sobre outra (o
os acusem de "economicistas". Por isto é que se aferram a palavras que pare- jurídico) se manifestam como limites que regem as variações destas estrutu-
cem atenuar as dificuldades, como "relatividade", "última instância", "ação ras assim como o modo de intervenção de uma estrutura sobre outra. Ainter-
recíproca", "não sempre", "sob certas condições". Em realidade, basta com a venção do econômico sobre o jurídico se exerce através das estruturas pr6-
crítica a palavra"causa". Sabendo que se trata de uma ficção não há razão para
matizá-la ainda mais: acaso podemos relativizá-la mais do que declarando-a
uma ficção? O que ocorre é que os sociólogos simplesmente não utilizam
criticamente a palavra "causa" e a pensam como coisa, como parte do mundo
1 - MARX, K., -Prefácio' a Contrlbuci6n a la critica de la economia politica, da qual existem
que estudam. inúmeras edições. Cito porMéxico, Ed. übrerias Allende, 1978. Otexto está na p. 37: "O conjunto
O marxismo, em que pese alguns esforços por utilizar exitosamente destas relações de produção constitui a estrutura económica da sociedade, abase real sobre aqual se
outras metáforas, pertence ao tipo de teorias que, em relação ao direito mo- eleva umasuperestrutura juridica...'.
2 - Carta de Engels aJ. Bloch de 21 de setembro de 1890, dto segundo MARX, Engels, Obras
EscogúJas, Buenos Aires, Ed. Ciencias del Hombre, 1973, p. 379: "Segundo a concepção materialista
da história o elemento determinante da história é, em última tnst4nda, aprodução e areprodução da
vidareal".

192 193
prias do jurídico originadas a partir dos limites estabelecidos pelo econômi· heterogeneidade mas, por outro, faz do econômico um discurso ou do jurídi.
co e pelo conjunto da estrutura deste modo." (3) co um fenômeno. Se adotamos a primeira posição tudo é discurso e não se
Este texto, que é típico do modo de dizer althusseriano, tem duas par· supõe o resíduo, que aceita a Sociologia, das relações sociais. Não se observa
tes, se entendo bem. Na primeira, a estrutura econômica - as classes sociais? um espaço concedido ao suposto ontológico. Caso adotemos a segunda o
_ produz efeitos - ou seja, é a causa deles - e tais efeitos são: direito é fenômeno como o econômico, o que contradiz a idéia da qual está
convencida a Teoria Geral do Direito contemporânea, segundo a qual o di·
a) Os "limites" (?) das variações destas duas estruturas, ou seja, que o reito é discurso. Penso que esta segunda possibilidade constitui a idéia da qual
econômico é causa de que ambos, o econômico e o jurídico, va· está convencida o althusserismo, que fala do direito como "coisa", sob os
riem, e é causa de como variam. nomes, sempre metafóricos, de "estruturas", "níveis", "instâncias", "lugares",
b) O "modo", ou seja, como o econômico "intervém" - produz efeitos "aparatos", e não como discurso.
- sobre o jurídico. ASociologiajurídica deve aceitar completamente anatureza discursiva
do direito tanto como a heterogeneidade a respeito das relações sociais. O
Em outras palavras, a estrutura econômica é causa dos "limites" das va· direito, então, se é de causalidade que se trata, apenas pode ser causado pela
riações do direito, e é causa do modo como o econômico é causa. Já na segun- própria ideologia, por outro discurso. Ecaso se queira estabelecer uma outra
da parte o texto diz que: relação de causalidade, agora entre as relações sociais e a ideologia, é necessá·
rio colocá-Ia como hipótese geral e propor procedimentos plausíveis de com·
c) o econômico causa - "intervém" - o direito, mas provação. Por exemplo, se é o discurso da sociedade mercantil o que explica
d) através do direito - de suas estruturas - e - "causa" - o ser assim do direito civil, esta afirmação deve ser considerada
e) a partir dos limites estabelecidos - ou seja, "produzidos", "causa- como uma hipótese e deve ser proposto um procedimento que permita dizer,
dos" - pelo econômico, que é o ponto a). plausivelmente que, em determinado país, o Brasil, por exemplo, a ideologia
mercantil é a causa - "explica" - que os artigos tais e quais deste código
A questão é a seguinte: que o econômico causa o direito através do digam isto que dizem. Este procedimento deve propor também uma prova
direito. Como o que causa, que é distinto do que recebe a força da ação, plausível de que no Brasil existem, objetivamente, tais relações mercantis
produz estes efeitos? O que quer dizer isto de atuar "através" daquilo mesmo que são a causa do discurso mercantil. Acausa imediata do discurso do direi·
que recebe a ação? Não se trata apenas da perplexidade que produz a to, portanto, é outro discurso.
heterogeneidade entre os termos da relação causal. Trata·se de que neste tipo
de texto, além do mais pouco claro, não se explica como ocorre a ação de um
termo sobre outro. E neste texto, além do mais, existe o problema de que o 2. O DISCURSO COMO CAUSA DO DISCURSO
econômico causa, mas "através" daquilo que se transforma, como pode ocor·
rer isto? Não é uma tautologia dizer que o não jurídico atua sobre o jurídico Se o direito é um discurso, o mais aceitável é que sua causa deve ser
através do jurídico? Qual é a parte que toca ao econômico? Apenas ftxar os buscada em outro discurso. Parece que a idéia de "causa" é mais viável caso
limites e estabelecer "o modo" (primeira parte do texto)? O modo, por outro exista homogeneidade ontológica entre ambos termos da relação causal. Por
lado, é exterior ao efeito? Acaso uma coisa é o "modo" e outra o efeito? isto é mais sensato dizer que o direito tem como causa os discursos que falam
Por outra parte, o althusserismo, com suas metáforas das instâncias e das relações de produção e não as próprias relações de produção. Que o direi·
dos níveis, faz do econômico e do jurídico dois entes homogêneos. Por um to diga o que diz é fato que tem sua causa na própria ideologia, e não em
lado poderíamos vê·lo como uma tentativa de superar o problema da realidades as quais não há acesso salvo através de outros discursos.
Além do mais, que a causa do discurso do direito consista em outro
3 - POuu.N1'ZAS, Nicos, "Marxyelderecho moderno", emHegemoniaydomlnact6nenelestado discurso não é uma novidade, desde logo:
moderno, Buenos Aires, Ed. PyP,1975, p. 157.

195
194
"les normes et institutions positives procedent d'une certaine image
du corps social qu'ellesentendent organiser et des 'valeurs' qu'ellesprétendent n?rm"as. Mas. bem, resulta que o direito é um discurso, digamos, "de segundo
re~~ro _ ntvel , ou seja, quem o produz não tenta descrever um obJ'eto que se . m
- . . . d ' , na as
Mas bem também é insensato renunciar a busca de alguma conexao reIaçoes socIaIs, mas sIm omina·lo. Para isto adota as ideologias que 'á .
t fi I d · , . J encon
entre as relaçõ~s sociais postuladas como ontologicamente existentes e os ra ormu a as em dIscursos prevlOs, ideologias descritivas. E portanto o d' .
discursos que reputam falar delas. Aqui se trata, em primeiro lugar, de ~os~u. curso do d"IreIto, a, me d'da ' ta b' , d IS
I em que utiliza estes outros discursos
. , memes-
lar como hip6tese, uma relação entre "realidade social" e discurso do dIreIto creve, amda quando o produtor não o repute assim. Se o produtor do d' 't
' . IreI o
e, 'em segundo lugar, encontrar na análise deste discurso elem~nt~s e cons~lente ~e produzir estas descrições, então reputa que seu discurso se
confirmatórios da hipótese. Este complicado procedimento torna-se obngato· ~efere as ~elaçoes sociais quando, em realidade, se é que há um referente, este
rio devido à tenaz irredutibilidade entre fenômenos e sentido. e.o.utro d~scurso, cujos produtores o reputam como referido às relações so-
ASociologia postula a existência de uma realidade social independente clal~ ..Por ISto o prod~tor d? discurso do direito não pode referir-se às relações
do pensamento que é geralmente denominada "relações sociais". Isto que socIaIS mas apenas a aparencia delas, que é uma construção ideológica ou
aqui convertimos em hipótese, isto é, que existe um objeto independ~nte ~o ficção. _Não há "mediação", e tampouco o direito se refere às relações de
pensamento, designado como "relações sociais", é universalment~ acelt~. Nao produçao, ao que ele se refere é aos discursos sobre estas últimas.
há boas razões para negar esta existência e quem o fizesse passana po~ msen· Este é o ponto de junção entre o referente e a causa do direito. Este é o
sato. Mas bem, a aceitação deste postulado não implica o desconheclmen~o ponto onde, insensivelmente, naSociologia se comete um erro em virtude do
da irredutibilidade entre o pensamento e esta realidade. Isto propõe a questao qual se reputa como sendo a "causa" objetiva dos discursos um fenômeno
acerca da verdadeira natureza das experiências que os dentistas reputam como com o qual o discurso do direito não tem contato. O sociólogo ingênuo que se
elementos capazes de provar seus enunciados. Em realidade,_um experi~en. pergunta pela causa do direito fica perplexo porque quer encontrar uma es.
to tampouco permite ao pensamento estabelecer uma conexao c.om o obJeto pécie de paralelismo entre (a descrição de) as relações sociais e as normas.
reputado como existente à margem da consciência. U~ expen~ento tam- Como não o encontra, busca mediações - "através de" -. O que não nota é
bém é um discurso, consiste em um conjunto de enuncIados em vIrtude dos que o produtor do discurso do direito se refere às relações sociais mas como
quais se descrevem certos movimentos a realizar. Posteriormente ?corre a ele as percebe, que é distinto de como o faz o sociólogo. Se este último as
realização de tais movimentos e, finalmente, se produz outro conJ~nt~ de percebesse da mesma forma que o primeiro, não estaria fazendo um discurso
enunciados que descrevem os movimentos realizados. Mas destes ultlmos d~st~nto - Cientí?co - do que faz o produtor do discurso do direito. Eé por ser
enunciados se pode dizer o mesmo que de quaisquer outros quanto a sua dlstmto que o dIscurso do direito aparece ao sociólogo como "mentiroso" e
radical heterogeneidade em relação ao mundo reputado como existente e "ocultador". O que o sociólogo não percebe é que o discurso do direito lhe
exterior. Como sempre, vale a pena repetir que uma coisa é que ninguém parece ocultador porque não coincide com o seu pr6prio discurso, e não
tenha interesse em negar a objetividade e independência do mundo exterior, porque inexista coincidência com as relações de produção. O sociólogo não
e outra coisa é ignorar sua radical heterogeneidade em relação ao pensamen- nota que está realizando uma comparação entre o discurso do direito e seu
to. As ciências - e as sociais mais do que quaisquer outras - devem confor· discurso sociológico, ao qual avalia como verdadeiro. Eaqui comete um erro
mar-se em aceitar que o contato entre enunciado e realidade consiste apenas pois reputa ~criticamente que a causa do direito - a que vê acriticament~
em outros discursos que descrevem as experiências que são reputadas como como fato - e o mundo objetivo e não os discursos dos quais verdadeiramente
o direito se nutre. Eesta adjudicação é acrítica porque não se propõe o proble-
"prova" de que o pensamento formula enunciados aceitáveis: ..
Em relação ao direito, se aSociologia aceita que as relaçoes SOClatS cons· ma da heterogeneidade dos termos da relação causal postulada e nem o pro-
blema de que a causa é uma ficção e não uma coisa.
tituem a causa da ideologia, aceitará que as relações sociais são causa das
Em nenhum momento podemos esquecer que as vemos com dois ato-
res. Por uma parte com o produtor ou usuário do discurso e por outra com o
4 - )EAMMAUD, Antoine, "Inttoduetion" ,Le droit capita/istedu travait, Grenoble, PUG, 1980, p. 8; sociólogo. O primeiro reputa que a causa do direito são as relações sociais, o
efr.Idem, p. 167.
que também faz o sociólogo, mas com a diferença de que pensa que estas
196
197
relações sociais não são como o produtor do discurso acredita que são. _O Cont~do, esta fi~ção é reputada pelo produtor do discurso, como vi-
sociólogo ingênuo pensa que as relações sociais são a causa tanto da des~riç~o mos no capItulo antenor, como sendo a causa do conteúdo da nonna que ele
distorcida do usuário - sentido ideológico - como do discurso e das propnas produz. A ficção a que o direito se refere neste caso é a seguinte pseudo-
normas _ sentido deôntico -. Contudo, desde o ponto de vista da análise do descrição do capitalismo: o capitalismo é uma sociedade onde salvo situa-
discurso apenas podemos dizer que as relações sociais são causa "indireta"- ções anômalas, o tráfico entre trabalhadores e patrões é equivaÍente, enten·
se é que isto quer dizer algo -, e na qualidade de hipótese, do discurso do dendo-se por "equivalente" que o trabalhador entrega um valor e recebe em
direito. Vejamos isto através de um exemplo que adiantará resultados que, no troca oytro igual, denominado "salário". Quem aceita esta descrição - obvia-
entanto, ainda será necessário fundamentar com mais vigor. mente mentirosa - reputa que o discurso do direito do trabalho se refere aela
Suponhamos que estamos interessados nas disposições que estabele· e que ela é a descrição das relações sociais que são, por sua vez, a causa destas
cem a obrigação de pagar um salário qualificado de justo ou "suficiente". O normas. Elhe resulta fácil entender tal coisa desta fonna, posto que o sentido
sentido ideológico destas disposições transmite ou constitui a idéia de que o ideológico do discurso do direito do trabalho, ou seja, adescrição das relações
salário devido é equivalente ao trabalho produzido pelo trabalhador. O senti- sociais, coincide com a ficção ou ideologia - também descrição de relações
do deôntico consiste em normas que obrigam a pagar uma qqantidade de sociais - produzida como dominante pelo grupo no poder. Eainda mais, esta
dinheiro. Perguntamos, então, porque o produtor elaborou um discurso que ficção costuma ser vista como a prova da "justiça" das nonnas: se a "relação de
contém estes sentidos, deôntico e ideológico, e não outros quaisquer. Por trabalho" - expressão criada para ocultar que se trata de uma compra-e-venda
exemplo, porque a norma não ordena pagar o dobro? Porque o salário não é de força de trabalho - é um intercâmbio de equivalentes chamados "salário"
visto como a quantia que o trabalhador necessita para viver com as mesmas e "trabalho" , como fica expressado no sentido ideológico do direito do traba-
comodidades que o patrão? lho, então é claro que a nonna que ordena pagar este equivalente, e não me·
Com a ajuda dos sociólogos sabemos que não é certo que exista esta nos - nem mais, desde logo - é justa. Quem se atreverá a duvidar disto?
equivalência nas prestações, o que neste caso é evidente. Mas existem outros É o legislador quem, em primeiro lugar, reputa esta ficção como causa
casos onde a evidência da ficção não é tão aguda. Em tais casos, para detectar do sentido do discurso do direito, embora não seja uma tarefa de sua exclusiva
a mentira é necessário recorrer à descrição - sociológica - das relações so- competência. Normalmente reputar a ficção como causa é a tarefa do discur-
ciais, descrição cujo valor de verdade depende da epistemologia aceita. so jurídico, do discurso que pronunciam os legisladores quando debatem as
Mas bem, se o sentido ideológico do direito é mentiroso e, além disso, leis no parlamento, dos professores, dos patrões, e de todos aqueles que estão
tem um referente, qual será este? Não parece que possa ser a relação social, já interessados em que todo o mundo acredite que o salário é a justa compensa·
que reputamos como mentira o que diz dela. O assunto deve ser visto como ção pelo esforço do trabalhador.
uma referência empiricamente inexistente, como ocorre com a palavra "deus":
obviamente não existe uma referência empírica. O objeto ao que se aplica a
palavra é uma aparência, umaficção. Da mesma maneira, a que realiza o pro- 3. A ORIGEM DAS FICÇÕES DO SENTIDO
dutor do discurso jurídico é uma adjudicaçãofictícia de sentido ou, dito de IDEOLÓGICO DO DIREITO
outra maneira, o referente é uma construção ideológica. Estamos, então, fren-
te a um referente fictício e não frente às relações sociais que, recordemos, são O discurso do direito se constrói, sem dúvida, baseando-se no discurso
conhecidas nossas porque aceitamos previamente a uma determinada teoria cotidiano. Seus termos, seus conceitos, o uso das palavras, são tomados da
sociológica como uma descrição plausível delas. Conforme tal teoria - neste linguagem comum, acompanhado, claro está, do jargão profissional próprio
caso a marxista - o sentido ideológico do discurso do direito não se refere à dos juristas mas que é quase universal, principalmente nos ramos tradicionais
"realidade", mas sim a uma aparência, a umaficção. Pode ocorrer, é claro, que do direito, como o direito civil ou o direito comercial. Também é necessário
para quem aceite outra teoria sociológica, o sentido ideológico se refira a "rea- considerar a contribuição de certos discursos técnicos, como o dos economis-
Iidade", e não a uma ficção. tas, mas sempre da economia apologética do capitalismo, esta que chama
"poupança" nacional ao fato de que os pobres não consumam.

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Sobre a origem dos discursos da economia que reputamos como não Desde logo, se trata de uma questão de fato que o pesquisador deve valorar.
científica e sobre a origem do discurso cotidiano, devemos remeter ao que Mas bem, que aGrundnorm comece aser desconhecida é um fenômeno cuja
sabemos acerca de como se constrói uma visão do mundo. Gramsci é a me- característica será o fato de que o sistema jurídico começa a ser ineficaz, isto
lhor ajuda para explicar como se constituem, a largo prazo, as idéias que é, quando em algum setor significativo suas normas individuais começam a
conformam avisão do mundo de uma classe dominante, que é a que constitui deixar de ser cumpridas. Um exemplo disto é este setor do sistema jurídico
os discursos cotidianos e os das ciências apologéticas das relações sociais que que ordena aos militares a que obedeçam ao poder civil... E isto poderemos
favorecem ao grupo dominante. saber através dos resultados dos estudos daSociologiaJurídica, entre outros.
Afeliz expressão bloco histórico permite pensar algo que não estava na Assim, podemos falar de dois tipos de "processos" de construção de um
metáfora originária de Marx, onde havia relações sociais sobre as quais "se bloco histórico. O primeiro é o processo de construção desta ficção chamada
erguia" a superestrutura. Nesta imagem as relações sociais aparecem como os norma fundamental, e o segundo são os processos de manutenção do bloco
cimentos. A mesma composição, estrutura-superestrutura, aparece na ima- histórico, que são os processos de hegemonia civil e estatal. São processos
gem de um "bloco" que é, segundo Gramsci, como um composto compacto porque a hegemonia é um conjunto de condutas que se sucedem no tempo e
onde o que funciona como solidificante é a ideologia, instrumento da que não pode ser considerada como um ato único. Por outra parte, se
hegemonia. Enós, juristas, podemos acrescentar que o elemento mais impor- hegemonia é "fazer fazer", isto pode ocorrer no interior do estado, ou seja,
tante desta ideologia solidificante é a Grundnorm, que é um discurso que através de ordens que vão sendo cumpridas por funcionários organizados hie-
indica o produtor do direito como sendo quem, além de produzi-lo, é quem rarquicamente, ou então no exterior do estado através das condutas dos cida-
deve fazê-lo. Se ter poder é conseguir que outros façam o que "alguém" quer dãos. Chamaremos processo estatal de hegemonia ao primeiro e processo
que façam, então ter poder é conseguir a eficácia para o próprio discurso. Mas civil de hegemonia ao segundo. Os processos estatal e civil de hegemonia tem
isto apenas ocorre se o emissor da prescrição, explícito ou oculto, é aceito lugar a partir do momento - "momento" em sentido lato, desde logo - em
como sendo quem confere o sentido, o que, por sua vez, significa que é indi- que aparece claramente uma Grundnorm, isto é, quando o reconhecimento
cado como tal pela Grundnorm. A norma fundamental distribui a palavra do grupo no poder, como autoridade legítima, é generalizado.
autorizada e a palavra autorizada, é a que expressa a ideologia autorizada (;). Os distintos momentos deste processo de construção podem ser vistos,
O bloco histórico, por sua parte, se constrói em um processo político, como disse o próprio Kelsen, desde pontos de vista não jurídicos. Mas podem
no sentido de que suas especificações, suas relações concretas, vão sendo ser estudados como momentos de um processo que culmina com a aparição
ajustadas em um processo consensual, em um processo no qual seus atores de uma norma fundamental, e, neste sentido, é um processo que pode ser
são dirigidos pelo grupo que, precisamente por conseguir dirigi-los, dizemos constituído como objeto de uma Sociologia Jurídica. Por isto o estudo das
que detém o poder, que mantém a hegemonia. Este processo de construção causas que explicam o conteúdo das normas é um tipo de estudo sociológico
de um bloco histórico culmina com uma Grundnorm. Entretanto, não pode- muito difícil de distinguir de um estudo histórico.
mos dizer que estamos ante um bloco histórico solidificado antes de uma Um excelente exemplo de construção de um bloco histórico, que com-
aceitação generalizada desta ficção que legitima a direção de um processo. preende a aparição de uma Grundnorm, é a Revolução mexicana de 1910-
Posteriormente a esta aceitação generalizada pode dizer-se que, enquanto 1917 que culmina com uma constituição. Entre 1910 e 1917 apareceu uma
se mantenha esta Grundnorm, se mantém um bloco histórico. Por sua vez, nova norma fundamental, que somente se constituiu ao cabo de todos estes
este começa a desintegrar-se, adesmoronar, juntamente com os prolegômenos anos e, ainda assim, não sem notáveis indecisões desta espécie de veleta que
de uma revolução, por exemplo, mas também com os de um golpe de estado. é uma Grundnorm. A Grundnorm mexicana reconhece os constituintes de
Nesta situação a Grundnorm começa a não ser aceita de modo tão geral. 1917 como "o primeiro constituinte histórico", como costuma dizer Kelsen, e
reconhece os órgãos estatais designados conforme o procedimento constitu-
cional como sendo os homens que ditam as normas válidas. Como diz Kelsen,
5 - Veja-se ENTELMAN, Ricardo, "Discurso nonnativo yorganización deI poder. Ui distribución deI
poder a través de la distribución de la palabra", em Critlcajuridica, número 4, pp. 109e ss.

200 201
"com a aquisição de eficácia da nova constituição se modificou a nonna funda- ro lugar, a argumentar sobre a legitimidade da transformação jurídica e, em
mental básica" (6). segundo lugar, a fonnular a nova constituição que os constituintes votarão.
Em todos nossos países, embora acredite que o México é quem demons- Nestes processos de fonnação de uma nova Grundnonn os juristas que se
tra isto com maior clareza, se construíram blocos históricos soldados ferrea- destacam são os constitucionalistas. Estes são os forjadores da ideologia das
mente por uma visão do mundo que amalgamou motivos liberais, nacionalis- "instituições nacionais", que são sempre "sólidas", "firmes" - os maus são os
tas e mitos católicos. homens, nunca as instituições - e pennitem a convivência. A constituição
Segundo minha leitura de Gramsci, o primeiro grande processo que tenn~na sendo, assim, a expressão do ser nacional. Quando isto ocorre, quan-
pode ser denominado "histórico", "fundamental", é a constituição do bloco do ha aceitação generalizada disto, a volubilidade foi detida (e os juristas se
histórico. Para chegar a construí-lo e dirigi-lo, primeiramente o grupo domi- convertem agora em ideólogos em relação às leis). Agora a nonna fundamen-
nante cria uma "filosofia". Esta filosofia é uma "visão do mundo", mas também tal está completamente clara, serão válidas as nonnas ditadas confonne esta
uma "visão do país" do qual se trata, que, obviamente, está inserida na primei- constituição e pelos homens designados em confonnidade com o disposto
ra. As filosofias "oficiais" de nossos países americanos, com suas diferenças por ela. Assim, há que seguir o estabelecido pelas nonnas válidas, que são as
em relação ao primeiro mundo e também entre si, de qualquer modo estão produzidas confonne a constituição (que é eficaz, já que o governo consegue
inseridas em uma mistura de filosofia liberal - "burguesa" - e "ocidental e fazer com que seja obedecida). Quais são as nonnas ditadas confonne a cons-
cristã", com seu ingrediente "nacionalista". tituição? Aquelas que em termos gerais se obedecem, as que são ditadas por
A filosofia própria da época a que Gramsci se refere é fonnulada por funcionários que são obedecidos, em primeiro lugar, pelos corpos repressi-
"filósofos" que reelaboram a filosofia "popular" e afilosofia "culta". Em nossos vos.
países também se fonnularam filosofias, visões destas sociedades, nas quais É neste processo de hegemonia que se constroem as ficções que, por
não somente participaram pensadores como Alberdi ou Vasconcelos mas tam- sua vez, se constroem sobre a ficção máxima que é o estado. Desta maneira é
bém poetas e romancistas "forjadores do ser nacional" - pense-se em Martín como as idéias dominantes em uma sociedade constituem a origem das fic-
Fierro -, os cineastas criadores do "cinema nacional" e o conjunto de intelec- ções que logo aparecem no direito.
tuais cuje função foi realizar a apologia dos processos que conduziram à for- Marx, por outro lado, se preocupou em mostrar que estas ficções cons-
mação do bloco histórico. O que resulta mais notável, no entanto, é a ênfase tituem a aparência das relações sociais. Sustentava que a economia política
destas ideologias em demonstrar que as "peculiaridades nacionais" são a ex- que criticava apreendia apenas a aparência dos fenômenos (7). Anterionnen-
plicação das "peculiaridades" do sistema político. O nacional resulta te sustentamos que uma crítica jurídica deve aceitar alguma teoria geral da
fundamentador do poder, do modo de exercê-lo. Se aGrundnonn reconhece sociedade capitalista, salvo que o jurista se dedique a produzir outra teoria. O
os governos é porque o "nacional" assim o pede. A herança caudilhesca, o mesmo é válido para a Sociologia jurídica. Esta questão da aparência fonna
fervor guadalupano, a particular "riqueza do pampa", a "tristeza própria do parte do núcleo da teoria exposta em O Capítal e que por razões que se encon-
altiplano" ou a desprendida alegria do trópico terminam sendo imagens que tram na ética este trabalho aceita como ponto de partida. O que Marx chama
justificam detenninada maneira de exercer o poder por parte daqueles que "aparência" é, em realidade, um conjunto de discursos dominantes - propa-
resultam favorecidos pela Grundnonn. Estas fonnas do imaginário latino- ganda que serve como meio - através dos quais a economia vulgar faz com
americano constituem outros tantos paradigmas da fonnulação da nonna bá- que o produtor do direito e o falante comum "pronunciem-se" acerca da so-
sica de nossos países. ciedade capitalista. O que pennite considerar estes discursos como discursos
Mas bem, entre os mais habituais e importantes "forjadores do ser naci- da aparência é o fato da prévia aceitação de uma teoria da sociedade capitalis-
onal" se encontram os juristas. Todo processo de fonnação de um bloco histó- ta. Uma vez mais vale a pena mencionar que aqueles que sustentam que a
rico deve contar com um razoável grupo de advogados dispostos, em primei-

7 - Sobre o tema da aparência dos fenômenos em Marx novamente remeto a BARCO, ÓscardeI,
6 - KELSEN,H.,Teoríapura.... dt.,p. 218. Esenciayapariencia en E/ capita~ dt

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Sociologia Jurídica ou a crítica do direito podem prescindir de uma teoria relação entre patrão e trabalhador é descrita como "relação de trabalho" e não
aceita de modo prévio o que pretendem, em última instância, é a despolitização c?mo ."contrato". ~om isto se quer informar que não se trata de um ínter-
da ciência social tanto como o desprestígio das teorias críticas da sociedade. O cambIO ~tre capital eforça de trabalho, o que é uma apologia do capitalis,
que realmente pretendem é fazer com que sua teoria passe por apolítica, mo, atraves da qual se oculta que o patrão realiza uma compra da força de
inocente, científica, objetiva, e todas estas outras palavras que servem para trabalho, pela qual paga menos do que esta mercadoria lhe produz.
denunciar a presença de um apologeta do poder e do capitalismo. . _ Caso as palav~s ou signos signifiquem idéias, como vimos, e não coisas,
e~t~o, se a palavra e entendida pelo receptor é porque, devido ao código
utilIzado, se faz presente nele o mesmo conceito significado ou ao menos
4. AS DESCRIÇÕES NO DISCURSO DO DIREITO um muito parecido que é conhecido por ele. Este conceito CO~Stitui um~
descrição de certa porção do mundo sempre que não se trate de palavras
Parece aceitável que todo texto no qual se encontre ao menos um enun- como "que", "como", "enquanto". Assim é como cada uma das expressões do
ciado prescritivo deva ser visto como um texto de conteúdo prescritivo em discurso jurídico constitui uma descrição, à medida em que significa um con.
sua totalidade. Isto porque, em caso contrário, poderia ser dito que se deseja ceito reputado como referido a certa porção da "realidade social" - já vimos
fazer passar por ciência o que é uma opinião política. Se isto é assim, em que.se trata ~e idéias geradas em descrições não científicas da aparência desta
princípio não cabe dizer que um texto de direito contém discursos descriti- realIdade -. Epor isto que cada palavra usada no direito constitui uma descri.
vos. ç~o, remete a uma idéia, a um conceito, que sempre é parte de uma concep-
Não obstante, esta afirmação tem como âmbito de validez a distinção çao do mundo e nunca isolado. Não se pode negar que isto constitui uma
entre descrições e prescrições, e como objetivo a busca de critérios para dis- descrição, mas se sustentamos que arelação de causalidade apenas pode esta-
tinguir o discurso da ciência em relação a quaisquer outros. Por sua vez, serviu belecer-se entre o direito e os discursos descritivos cotidianos podemos afiro
aos juristas para delimitar o objeto de seu trabalho: desde o ponto de vista mar que estas descrições da aparência são a causa das descrições que apare.
semântico, os discursos descritivos são os que não contém enunciados cem no direito. Isto não é tão difícil de provar já que a correspondência entre
prescritivos, ou seja, os que não podem ser verdadeiros nem falsos. ambas descrições igualmente não'Uferece maior dificuldade para ser detecta-
Isto está correto em relação ao sentido deôntico do direito, pois o seu da.. A resp~ito disto, o exemplo que venho utilizando, o salário, é eloqüente,
sentido ideol6gico transmite descrições. O direito não somente prescreve como pOIS este sIgno, usado tanto no direito como nas descrições cotidianas e na
também informa sobre as relações as quais tenta dominar. Desde logo, não economia vulgar, significa nestes usos a mesma coisa: equivalência do traba.
informa cientificamente, como já vimos, já que não se constrói a partir de lho entregue pelo trabalhador. Mas não é tão fácil mostrar que estas descri.
descrições científicas das relações sociais, mas sim que o faz a partir de descri- ções são a aparência de relações sociais que permanecem ocultas.
ções precisamente não científicas (8).
No exemplo do salário, que é o que venho usando, é claro que o sentido
deôntico é o de tomar obrigatório o pagamento de uma quantidade de dinhei- 5. CAUSA E REFERÊNCIA FICTíCIA DO DIREITO
ro ao trabalhador. Mas, além disto, se informa que o salário é acontraprestação,
o equivalente, do trabalho entregue pelo trabalhador. Caso observemos o que Ao postular que há uma descrição cientificamente não aceitável postula.
dizem os autores apologistas desta descrição, nos depararemos com que a mos, e há que demonstrá·lo, que há uma intenção do produtor do discurso do
direito de reputar - falsamente, desde logo - que o referente do sentido ideo-
lóg~cO está constituído pelas relações sociais quando, em realidade, está cons-
8 - "Uma nonna... Algo nos diz como é asociedade que a propõe. Temos que contar, então, com
uma função acessória de tipo infonnativo em toda a linguagem prescritiva". VERNENGO, Roberto j., t~tu~do po~ uma ficção. Isto remete a uma "intenção de enganar", que se cons.
Curso, cito p. 56. "Oenunciado imperativo não tem função primária infonnativa; ... não pretende tltUI também em causa do direito.
limitar-se a transmitir uma infonnação, embora não possa deixar de ter algum tipo de referência, O fato de existir uma intenção mentirosa não é algo inverossímil. O
talvez indireta, posto que toda linguagem é um tratamento com o mundo" ,Idem, p. 52. problema não é o engano, mas sim como algo enganoso pode verdadeiramen·

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te dominar aos homens. Em outras palavras, como é que utilizando descrições ções - visão do m~~do, equivalente ao nosso conceito de ideologia - são
enganosas, cujo referente não são as relações sociais nem tampouco descri- globalmente prescrttwas. Prescrevem condutas descritas falsamente. Pres-
ções verdadeiras, o discurso do direito consegue ser eficaz, isto é, como logra crevem, por exemplo, pagar um salário justo com o que estimulam a produ-
que os cidadãos, seus receptores, produzam as condutas requeridas? É algo ção da conduta de entregar o equivalente do valor de troca da força de traba-
assim como se caso o referente do direito não fosse a "realidade" então não lho, que é aquilo que constitui a relação social capitalista. Esta ideologia pres-
deveria ser apropriado para governá-Ia. É como se o direito, quando fala da creve o que descreve falsamente.
obrigatoriedade do pagamento de salário, descrevesse mentirosamente a rela- O problema de como é possível que o direito seja eficaz no domínio dos
ção entre patrão e trabalhador, hipótese na qual não teria aptidão para conser- homens caso se refira a ficções das relações entre estes homens não é o maior
var as relações que descreve incorretamente. problema para nosso objetivo neste trabalho. O problema fundamental con-
Em primeiro lugar é necessário dizer que é totalmente verossímil que o siste, uma vez aceito, que o direito se refere a ficções, em como saberemos de
produtor do discurso do direito, tomando como toma seus conceitos da eco- que são ficções? Se as postulamos como ficções, de que modo poderemos
nomia apologética do capitalismo, não tenha nenhuma responsabilidade na conseguir alguma conexão que nos dê elementos para a comprovação da hi-
construção das descrições incluídas nos textos de direito. Neste sentido não pótese da relação causal entre relações sociais e direito? Para isto necessita-
há algo assim como uma intenção maldosa, ao contrário, os juristas que cons- mos mostrar que aquilo que o direito descreve incorretamente é o mesmo que
truíram o discurso do direito do trabalho são, em sua maioria, advogados de a ciência sociológica descreve corretamente. Temos de mostrar que o direito
trabalhadores. se dirige a dominar relações sociais que não estão em seu discurso, posto
Contudo, tampouco se pode negar que quando o produtor do discurso que se estivessem se referiria as descrições verdadeiras da sociedade e não a
do direito, mas também seus apologetas, usam palavras cujo significado é aparências ou ficções. Em outros termos, temos de mostrar que as ficções que
descritivo, tem a intenção de referir-se à realidade social. Por isto reputam são o referente do direito, são ficções ou a aparência das relações sociais que
que as palavras que utilizam se referem a esta realidade. Ainda mais, não teria a sociologia aceita previamente descreve de modo distinto. Por exemplo,
sentido produzir normas que não tivessem por objetivo conseguir que cida- se sustentamos que o direito do trabalho tem como referente uma descrição
dãos e funcionários produzissem certas e muito bem definidas condutas. Em da aparência do capitalismo, o que é que nos permite dizer que é a aparência
outras palavras, que o direito, isto é, seu produtor, se dirige a realidade para do capitalismo? Ehá que considerar que a afirmação "é a aparência do capita-
dominar as condutas cuja repetição, sabemos, constituem estas relações so- lismo" é decididamente contestada por toda a ideologia jurídica trabalhista,
ciais reputadas como objetivas pela Sociologia. para a qual não se trata de uma ficção nem de uma aparência, senão que diz
Não obstante, é a própria ciência sociológica que permite afirmar que o precisamente o contrário, isto é, que o direito do trabalho é uma superação
referente do discurso do direito não é a "realidade" mas sim uma descrição deste capitalismo. Como resolvemos esta dificuldade se no discurso do direito
falsa das relações sociais. Como, então, o direito é eficaz? A resposta parece do trabalho nada denuncia que sua causa sejam as relações capitalistas? De
ser a de que as relações sociais, para reproduzir-se, necessitam esconder sua onde extraímos, como provamos, que a causa de que este ramo do direito
natureza aos próprios indivíduos cujas condutas as constituem. Em outras descreva uma aparência está nas relações capitalistas de produção? Para isto
palavras, se os indivíduos cujas condutas repetidas constituem as relações devemos mostrar quefingidas são as relações capitalistas, as quais não apa-
sociais, tivessem representações verdadeiras delas, eles não produziriam as recem no discurso do direito.
condutas necessárias para a reprodução de tais relações. Trata-se de um apa- O procedimento proposto nesta pesquisa para provar que o sentido
rente paradoxo cuja explicação se encontra na dilucidação do tema da ideológico do direito se refere a uma ficção e que, portanto, produz uma
hegemonia. Neste espaço somente é possível remeter a todos estes estudos representação deformada das relações sociais é o seguinte:
que mostram que as sociedades se conservam, se reproduzem, precisamente
porque um grupo no poder consegue exercer hegemonia sobre o resto dos 1) Deve ser demonstrado que é possível formular o modelo jurídico
indivíduos. Esta hegemonia se edifica com a construção de representações do apropriado a estas relações sociais capitalistas a partir da descrição
mundo aceitas pela maior parte dos membros da sociedade. Estas representa- marxiana do capitalismo;

206 207
2) Que este modelo contém a descrição das condutas necessárias para Capítulo Décimo-Primeiro
a reprodução do capitalismo;
3) Que o sentido deôntico do direito moderno modaliza estas condu-
tas; AS RELAÇÕES SOCIAIS E O DIREITO
4) Mas que o sentido ideológico descreve outras condutas distintas
das descritas pela teoria que nos ofereceu a possibilidade de des-
crever o modelo formulado no primeiro trecho.

Ou seja, postulamos como hipótese que no discurso analisado aparece-


rão, em realidade, dois discursos: SUMÁRIO: /. o direito, as relações sociais e suas descrições; 2. As relações soci·
ais e o referente do direito; 3. A apologia do direito; 4. Uma teoria sociol6gica
1) O deôntico, que propõe como obrigatórias as condutas necessárias geral; 5. Os modelos em ciências sociais; 6. Relações sociais e condutas; 6./. As
para a reprodução do modelo sociológico reputado verdadeiro. condutas; 6.2. As relações sociais; 6.3. Odiscurso do direito e as relações sociais.
2) O ideológico, que propõe uma descrição mentirosa das relações
sociais.
O problema da críticajurídica, e de sua fundamentação, se instala em
Consideraremos que se a análise constata a presença destes dois discur- um espaço teórico em que a Sociologia e a Semiótica são vizinhas. Relações
sos no mesmo texto, teremos uma boa prova de que o sentido ideológico do sociais e discurso jurídico devem ser pensados de modo tal que não culmine·
direito moderno é uma ocultação, umaficção destas relações capitalistas. Em mos na apologia do direito, o que ocorre quando se diz que o direito é um
outras palavras, o sentido deôntico do direito moderno, ao surgir como o produto social. Isto é apologia porque supõe que se foi produzido pelas rela·
sentido deôntico próprio do capitalismo, é prova de que o sentido ideológico ções so-eiais então é o apropriado para estas relações e, portanto, que é "jus-
constitui um ocultamento ou ficção que permite a dominação e a preservação to". A crítica jurídica, por sua vez, é a crítica da ideologia que transmite o
do capitalismo. Finalmente, a plausibilidade desta demonstração tomaria plau· direito e por isto, em realidade, é uma análise de discursos. Mas a análise, se é
sível em igual medida a veracidade da afirmação segundo a qual as relações crítica, tenta mostrar que o direito consegue ocultar as relações sociais que
capitalistas são a causa do direito moderno, que por isto merece o nome de são reputadas como sua causa. Antes de propor os fundamentos da critica do
direito capitalista. direito nos referiremos a estes pontos de contato entre o direito e as relações
sociais que, hipoteticamente, são sua causa.

1. ° DIREITO, AS RELAÇÕES SOCIAIS


E SUAS DESCRIÇÕES

Até agora apenas temos, e como hipótese, que a causa - indireta - do


direito é o conjunto das relações sociais. "Indireta", se é que uma causa pode
sê·lo, enquanto a Sociologia considere estas relações, postuladas como exis-
tentes, como sendo a causa de toda a ideologia e, portanto, de todos os discur·
sos, um dos quais é o direito, que é produzido no contexto constituído por
todos os demais que, assim, são sua causa "direta". Formular a hipótese de que

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208
as relações sociais são a causa de toda a ideologia, tem como base o conven~i­ cos, os do direito, sobre estas relações sociais. Por outra parte aceitamos que
mento de que, caso contrário, se a ideologia não tivesse sua causa em taIs há discursos que são científicos acerca das relações sociais. Mas o problema,
relações, então seria um resultado de si própria, o que seria um grande dispa- segundo penso, consiste em perguntar como é possível demonstrar que o
rate, algo assim como acreditar que se pode pensar o não ser. discurso do direito e o discurso jurídico ocultam as relações sociais ao mesmo
Mas bem, isto é uma generalidade que apenas serve como primeira apro- tempo que as dominam. Em outras palavras, como seria possível, partindo do
ximação, pois a questão não consiste em aceitar que as relações sociais são a discurso científico sobre estas relações sociais, utilizá·lo para refutar o discur·
causa da ideologia, mas sim que o interessante é saber como certas relações so não científico do direito sobre estas mesmas relações, ou seja, procuramos
são causa de certas ideologias e, além disto, prová·lo. ASociologia do Direito, mostrar como o direito transmite, em seu sentido ideológico, uma visão ou
mas também a sociologia de qualquer outro discurso, não pode deixar de descrição fictícia e maquilada das relações sociais.
basear.se sobre esta primeira e generalíssima hipótese para iniciar a tarefa da Por outra parte, como o direito é um discurso instrumental, no sentido
busca de conexões entre relações sociais e ideologias. Em nosso caso, a tenta· de que organiza a violência, legitimando a repressão que permite manter as
tiva é oferecer uma explicação acerca de como as relações sociais capitalistas relações sociais, resulta que seu sentido deôntico é apropriado para mantê-las
são a causa de uma ideologia jurídica que não se refere a elas, mas sim tão ainda quando o sentido ideológico seja uma ficção, isto é, quando o direito é
somente a suas aparências. eficaz embora seja mentiroso. O direito é eficaz tanto através do que seu seno
Como deixamos pouco clara a possibilidade de estabelecer tal relação tido deôntico permite, que é legitimar a repressão, como através do que seu
devido a irreparável ruptura entre fatos e sentido o que fizemos, mais precisa· sentido ideológico transmite, isto é, que a sociedade capitalista é a melhor
mente, foi propor que a relação entre discurso jurídico e relações capitalistas possível. Em seu sentido deôntico, o direito se dirige aos funcionários para
é uma hipótese que deve, ou não, comprovar·se através de mecanismos mais organizar sua atividade repressiva, ainda que para legitimar sua ação frente
complicados do que os geralmente supostos pelos sociólogos vulgares. aos dominados. Em seu sentido ideológico o direito se dirige a todos, mas sem
Como vimos, o sentido ideológico do discurso do direito se refere à ameaças, propondo condutas repletas do sentido do bom, inocente e justo.
descrição de sua aparência e não às relações sociais. Estas pseudo·descrições, Esta peculiaridade deste discurso é o que proporciona a hipótese de fundo: se
que desde o ponto de vista da análise do discurso são o referente do sentido as relações sociais se reproduzem é porque o direito é eficaz, e se é eficaz isto
ideológico do direito, desde o ponto de vista daSociologiajurídica são a causa se deve a que as condutas que promove são as que constituem estas relações.
deste sentido ideológico. Sob tudo isto encontra·se a hipótese mais profunda: Neste ponto sentimos a tentação de dizer que "as normas são verdadeiras".
o caráter capitalista da sociedade, cujo direito analisamos, é a causa de que Sentimos tal tentação porque estas normas conseguem promover as condutas
tanto o sentido deôntico como o sentido ideológico do discurso do direito cuja ausência levaria a que as relações sociais não se reproduzissem. Mas bem,
seja este e não outro. Assim, o sentido ideológico do direito não se refere às se temos descrições consideradas verdadeiras das relações sociais, e se estas
relações sociais capitalistas porque as está ocultando em beneficio da obscu· descrições não coincidem com as que aparecem no sentido ideológico do
ridade que convém aos poderosos. direito, mas resulta que este é eficaz, então tais descrições são a aparência, ou
O direito - seu produtor - toma das descrições da aparência das rela· uma ficção, das relações sociais. Se o produtor do direito logra êxito com o
ções sociais, não das próprias relações sociais, como vimos, os conceitos que conteúdo deôntico das normas - logra êxito quando são eficazes - e, não
utiliza para descrever as condutas modalizadas. Mas bem, a descrição científi- obstante, é possível notar uma distorção em relação a descrição verdadeira
ca das relações sociais é científica à medida que, além de descrever, proporci- das relações sociais, então a distorção é das relações sociais em relação as
ona meios de comprovação. Dito de outra maneira, proporciona elementos quais o direito é eficaz. Esta é a intuição fundamental que este trabalho tenta
que permitem que a descrição possa ser refutada por alguma experiência. desenvolver plausivelmente.
Desde logo, o que seja "refutar" e "experiência" é uma discussão constante-
mente aberta, mas aqui supomos que existe um acordo mínimo a respeito
porque se não fosse deste modo este seria um trabalho sobre epistemologia e
não sobre direito. O que nos propomos é o estudo de discursos não científi·

'210 211
2. AS RELAÇÕES SOCIAIS E O gundo certos discursos a sociedade está essencialmente constituída por um
REFERENTE DO DIREITO co~junto de uniões monog~micas perma?entes, que asseguram a reprodução
s~C1al. Portan~o, a s~paraçao d~s. cas~is e uma conduta que contribui para a
Não parece prudente, embora haja quem sustente, terminar a discussão nao reprod~ç_ao soclal._Se~ dUVIda, Isto constitui uma descrição que inclui
dizendo que como não há acesso direto às relações sociais, mas apenas atra· uma prescnçao que nao e uma norma, mas sim uma regra técnica: se a
vés dos discursos que as descrevem, então o direito nada tem a ver com elas sociedade é um conjunto de uniões monogâmicas, para que a sociedade se
ou como também se costuma dizer, que não há prova que tenha relação com mantenha é necessário que se repitam estas condutas monogâmicas. Como
e1a's, de modo que é melhor não perguntar. Para esta concepção, a Soc!o!ogi~ veremos, não é válido ver aqui uma passagem do ser ao dever no sentido
Jurídica é uma ciência sem objeto ou uma perda de tempo. Sem dUVIda, e proscrito por Rume.
melhor usá·lo em deslindar a estrutura lógica das normas... Contudo, outras descrições indicam'que a sociedade está constituída
Uma maneira útil de salvar o hiato entre relações sociais e discurso do por intercambiadores de mercadorias e não por famílias monogâmicas, moti.
direito uma tentativa de superar a dificuldade em atribuir relação de causali· vo pelo qual a separação de casais não atenta contra a reprodução social. O
dade a'realidades heterogêneas - discursos e relações sociais - é perguntar que conspira contra a reprodução desta sociedade é a não continuidade das
pelo referente do direito, do qual já sabemos que não está constituído pelas condutas de intercâmbio. Assim, observamos que existem várias e distintas
relações sociais mas sim por suas descrições. descrições das mesmas relações sociais, cada uma com seus corolários técni·
Partimos do pressuposto de que existe um substratum composto de co·prescritivos.
relações sociais ou, como também lhes chamamos, conjunto de condutas O que temos até agora pode ser resumido deste modo:
empiricamente verificáveis, verificação que não consiste mais que em outros
discursos. Sabemos, além do mais, que se produzem discursos sobre estas 1) Existem relações sociais independentemente dos discursos que as
condutas. Estes discursos as descrevem ou, ao menos, pretendem fazê·lo, ain· descrevem. Este é um postulado que nós, nem ninguém em perfei·
da que, conforme a teoria aceita previamente, estas descrições podem ser to juízo, acreditamos que deva ser demonstrado.
verdadeiras ou apenas ser descrições de sua aparência. Mas bem, note·se que 2) Os discursos que pretendem descrever estas relações sociais, repu·
se se descreve as relações sociais, ou se pretenda descrever, tais descrições tam que estas relações sociais são seu referente, ainda quando a
também constituem a descrição das condutas que é necessário que se repitam análise do discurso mostra que o referente está constituído sempre
constantemente para que estas relações se mantenham ou reproduzam. por uma construção cultural, ou seja, por outro discurso.
Estas descrições constituem modelos descritivos de uma sociedade e 3) Este referente, desde o ponto de vista da Sociologia Jurídica, é a
nada mais são que descrições de condutas humanas. Portanto, necessariamen· causa destes discursos. Para esta disciplina esta afirmação é seu fim·
te, a sociedade supostamente descrita apenas pode reproduzir·se caso se pro- damento.
duzam repetidamente as condutas que constituem esta descrição:.Isto equiva· 4) Em relação ao referente, os discursos são verdadeiros ou falsos.
Ie a dizer que as condutas cuja descrição constitui o modelo sao condutas 5) As relações sociais capitalistas (deste momento em dianteRSK) são
necessárias para o "real" funcionamento do modelo. Em outros termos, se o descritas de diferente maneira, ou seja, existem várias e distintas
modelo pode verificar·se empiricamente, é p?rque se ob~erva a repetição .d~ descrições das RSK.
condutas descritas no modelo e, ainda mais, e a observaçao de condutas slml' 6) Estas descrições constituem os discursos dos sociólogos e dos eco-
lares às descritas no modelo, o que permite dizer que o modelo se verifica nomistas. Chamaremos Teoría geral da sociedade capitalista (TGSK)
empiricamente. _ a estas descrições, que podem ter um sobrenome, "marxista", por
Mas bem, há descrições mais aceitáveis que outras, e algumas sao des- exemplo.
crições de aparências. Por exemplo, sabemos que existem discursos que poso 7) Estas TGSK constroem modelos cuja pertinência para representar
tulam como necessárias, para a manutenção de nossa sociedade, certas con· seu referente - a "realidade social" -, depende da Teoria do COo
dutas que outras descrições, mais aceitáveis, não consideram necessárias. Se-

212 213
nhecimento que se aceite, e aqui aceitamos, conforme os argu- estado atual da correlação de forças no exercício - ou na re artl -
poder em uma sociedade. Dizer que o direito é produto das PI _çao - do
mentos apresentados, uma em particular, 'd d . I - - re açoes sociais
8) Estas TGSK reputam ter como referente as RSK (ou como se cha-
tem o. c Iaro
, sentI o e .que. taIs re açoes nao poderiam exp".essar-se d e outra
maneIra. DIzer,que o dIreIto expressa o atual estado da correiaçw ti
- deo~~
mem nestas teorias).
9) As descrições que aparecem no sentido ideológico do direito tam- que lu.tam por Impor sua hegemonia, tem o claro sentido de que tais normas
bém reputam ter as RSK como referente e, portanto, são verdadei- podenam promover ou desestimular outras condutas igualmente reprod t
da VI'da SO-cIa
. I , se a h egemoOla
' fosse conquistada por outro grupo. u om
ras se coincidem com as descrições cientificamente aceitáveis ou
A apologia do direito provém, no primeiro caso, de identificar com
aceitadas e falsas se diferem destas descrições.
d~scrição ver?a~eira das relações sociais, a descrição que existe no próPri~
dIscurso do dIreIto. Em outras palavras, o grupo no poder cria uma visão do
O problema continua sendo como sabemos que são falsas, já que para
mundo que é disseminada por toda a sociedade, e se converte em ideologia
sê-lo é necessário que se refiram às mesmas relações sociais às quais se refere
dominante - aceita pela maioria da população - que, ao mesmo tempo que
a TGSK, e o discurso jurídico diz expressamente que não se refere a tais rela-
descreve, prescreve a necessidade de reproduzir certas condutas. O legisla-
ções. Por exemplo, o discurso jurídico do direito do trabalho mexicano diz dor reproduz a mesma descrição, em um discurso especial que organiza a
expressamente que o trabalho não é um artigo de comércio. Portanto, está violência, mas sob a forma de condutas que no mesmo ato discursivo modaliza
negando que se refira às relações capitalistas de produção. Para provar que o deonticamente, O discurso jurídico apologético é o que, sobre isto, sustenta
discurso do direito tem sua causa nasRSK, é necessário provar que se refere a que a descrição - ideologia dominante - é verdadeira e, portanto, o direito
elas ainda que o negue. como "produto social" foi gera~o pelas relações sociais cuja descrição é a que
Contudo, quando buscamos a causa não pretendemos terminar fazendo aparece no discurso do direito. Eo tipo de discurso dos juristas especializados
apologia do direito, motivo pelo qual o procedimento de comprovação deve na área trabalhista, que adotam como verdade a aparência de que o salário é
ser mais cuidadoso do que o comumente adotado. Antes de apresentar uma contraprestação, informação que obtém do discurso do direito e não de uma
proposta a respeito faremos uma digressão sobre os riscos de incidir na apolo- teoria sociológica. Para os juristas apologetas o que o direito diz é verdadeiro
gia do direito. e não lhes parece que exista melhor prova disto que a eficácia das normas. S~
um código diz que um contrato é um acordo de vontades então um contrato
é um acordo de vontades, e não há melhor prova disto d~ que a evidência de
3. A APOLOGIA DO DIREITO que o direito civil vem sendo útil há dois mil anos. No caso do discurso do
direito do trabalho os juristas especializados neste ramo, quando se trata de
Neste momento, estamos no limite a partir de onde a resposta pode explicar sua origem, simplesmente dizem que antes o capitalismo selvagem
constituir uma apologia do direito tal qual ele se apresenta, assim como da explorava sem misericórdia os trabalhadores, e que a luta destes últimos por
sociedade que o utiliza. Épossível que, como resultado de uma pseudo-Socio- condições de vida mais justas conduziu o estado, agora protetor dos trabalha-
logia, se chegue a concluir que todas, ou a maioria das condutas, são necessá· dores, a estabelecer normas que obrigam os patrões a entregar um salário
rias para a reprodução social promovida pelo direito, e que são prejudiciais conforme as necessidades da vida. Uma rápida observação é suficiente para
todas as condutas que proíbe, Esta conclusão pode parecer acertada já que o concluir que esta pseudo-explicação histórica constitui a descrição desenvol-
direito é uma ideologia cuja causa reside nas relações sociais. vida neste século para fazer crer que o salário é o pagamento justo pelo "ser-
Conforme esta maneira de ver o direito, as normas jurídicas são "boas" viço" prestado. Éuma descrição que se encontra em quaisquer livros, filmes,
_ inclusive "verdadeiras· - porque respondem às necessidades sociais. Este canais de televisão e cursos de "capacitação sindical". É uma narração que se
ponto de vista, que passa por teoria ou sociologia do direito, é muito mais encontra cotidianamente nos discursos das organizações patronais quando
comum do que parece, é um discurso que está presente em qualquer lugar explicam à população que eles pagam o salário que "corresponde·, Pois bem,
onde se diz que "o direito é produto da sociedade· ou que "o direito expressa o discurso do direito utiliza os mesmos termos, assim como o discurso jurídi-
as relações sociais·. Contudo, isto não é o mesmo que dizer que expressa o co, o dos professores, legisladores, "dirigentes· sindicais, ministros do "traba-

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lho e previdência social", partidos políticos também dizem o mesmo. Desde vada, como ocorre com qualquer outra teoria. As previs ~ d
logo, então, que ao encontrar narrada a mesma história no discurso do direito seguidores sobre a revolução proletária certamente não s:;'sode ~ e~
este resulta um "produto social" e, por conseqüência, justo. A origem desta fez com que legitimamente se desconfiasse de suas hipo'tese: s uz uam, c isto
apologia está na aceitação, como verdadeira, de uma descrição da aparência parti'do poI'ItlCO
. e c1asses sociais.
. . obreoCstado
Contudo, aqUi. não se trata deste as '
das RSK. A explicação que alcancemos deve evitar uma apologia tão grosseira pensamento de Marx, mas sim da descrição da sociedade capitalistapecbto do
da sociedade capitalista. na t eorta . I'la. Es te, e apenas este, e' o aspecto do pensam aseada
. da mals-va
Marx em que se basela · .. ~ . ento de
a sequencla deste trabalho.
_ Portanto, aceitamos que a descrição verdadeira -levando em conside.
4. UMA TEORIA SOCIOLÓGICA GERAL raçao as reservas feitas
Ma~. Por este.motlvo . ao conceito de "verdade" - das RSK é a oferecida por
outras descrições se convertem em falsas quando con.
A tarefa da análise do discurso do direito, conforme propomos aqui, tradlzem a aceita como verdadeira.
assim como a tarefa da Sociologia jurídica, constituem um momento poste- . Assim, todo trabalho de Sociologia jurídica requer uma teoria geral da
rior relativamente a uma teoria social geral. Do mesmo modo como é certo sociedade qu.e utilize o direit~ c~jas causas e efeitos se pretende pesquisar.
que a Sociologia necessita do conceito de "direito", construído no espaço da ~ale a pena,dlzer que esta aceltaçao de uma teoria sociológica geral do capita.
Teoria Geral do Direito para poder diferenciar aSociologiajurídica de qual· hsmo tambem constitui uma hipótese. Se a análise da ideologia do direito e da
quer outra sociologia, também o sociólogo do direito parte da teoria socioló- ideologia jurídica conduz a afirmações inverossímeis ou francamente falsas se
gica geral que aceita como válida para praticar uma ciência empírica que pro- terá dado novas razões para rechaçar o marxismo, sendo que o raciocínio
duza enunciados verdadeiros. Este é o nosso caso. inverso é igualmente válido.
Em termos gerais podemos afirmar que há um certo umbral sob o qual
não cabe de falar de "teoria da sociedade". Por cima de mínimos aceitados e
facilmente reconhecíveis, existe uma importante competição entre as distin-
tas teorias gerais da sociedade capitalista. Não se pode dizer que alguma teoria 5. OS MODELOS EM CIÊNCIAS SOCIAIS
tenha provado empiricamente todas suas hipóteses mas, em troca, se pode
dizer que algumas são francamente apologéticas do capitalismo, enquanto Para tornar aceitável uma aproximação científica a uma sociedade ou a
que outras são críticas. Entre estas últimas está a marxista, e este trabalho certos fenômenos parciais dentro desta sociedade, neste trabalho aceitamos
aceita expressamente a descrição da sociedade capitalista realizada por Marx que é necessário proceder à construção de modelos de funcionamento. Neste
em O Capital, nos Grundrisse e outros trabalhos preparatórios do primeiro. sentido entendo que O Capital de Marx proporciona um modelo de funciona-
Sobre a justificação de tal eleição pouco mais pode ser dito além do que mento - ainda que parcial, muito provavelmente - da sociedade denominada
já foi argumentado. Como se trata de postulações - discursos - prévias à capitalista, que, por certo, já demonstrou sua propriedade para pensar nosso
prática da ciência, então não pode tratar·se de discursos científicos. No fundo mundo sem apologias vergonhosas.
trata-se de uma justificação ética. Aaceitação de uma teoria crítica do capita- ,Segundo este modelo de funcionamento da sociedade capitalista, mas
lismo apenas pode estar fundamentada em razões políticas. Além do mais, os tambem ~egundo qualquer outro modelo, esta sociedade se reproduz devido
inimigos do socialismo afirmam que o marxismo não provou empiricamente a produçao de certas condutas, movimentos ou, como dizem os sociólogos,
suas hipóteses, como se as outras teorias o tivessem feito. Então, recorrem a rel~ç?eS_SOCiais, .qu,e o marxismo denominou "de produção". Estas relações
argumentos claramente políticos como, por exemplo, os fracassos do socialis- SOCiaiS sao constituIdas pelo que os juristas chamam condutas, ou, dito de
mo real, como se pudessem mostrar os êxitos do capitalismo real, que tam· outra forma, as relações sociais são conjuntos de condutas. Conforme todas as
bém diferem da doce imagem dos livros. teorias sociais conhecidas as sociedades se reproduzem à medida que se re·
Ameu juízo, e isto é impossível justificá·lo aqui, ao contrário, boa parte produzem as relações que as constituem, e como estas são conjuntos de con·
da teoria de Marx veio comprovando·se na história do século :XX, embora dutas, as sociedades se reproduzem ao serem produzidas repetidamente as
outra boa parte permaneça em estado de hipótese cuja falsidade não foi pro- mesmas condutas. Por isto, quando se diz que uma sociedade se reproduz, se

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quer dizer que certas condutas se repetem durante um certo tempo e em um firmar que na sociedade observada ocorre algo similar, poderemos dizer que
certo espaço. Este espaço se determina, não há outra maneira de fazê·lo, como se trata de uma sociedade mercantil e que sua reprodução como tal depende
a porção do planeta em que o discurso normativo de um grupo no poder é de que disponha de um direito que penalize as condutas contraditórias às
eficaz. necessárias para a reprodução.
Tudo isto permite dizer que para uma sociedade reproduzir-se é neces· É certo que as condutas contraditórias sejam assim entendidas desde o
sário que se produzam - que continuem sendo produzidas - certas condutas, ponto de vista do sociólogo que observa o direito positivo desde um ponto de
que são exatamente as que constituem as relações sociais. Neste caso o con- vista externo, enquanto que o produtor do direito, atuando desde um ponto
ceito "necessidade" quer dizer que se a sociedade tem de reproduzir-se é ne· de vista interno, tendo uma visão distinta, pode não coincidir com o sociólogo
cessário que se produzam certas condutas - que são as descritas no modelo. em relação a percepção das condutas que são ou não contraditórias com as do
Este uso da palavra "necessidade" é o mesmo que se faz quando se diz que se modelo. Os exemplos da dança para promover a chuva ou o da permanência
a água tem de ferver é necessário submetê-Ia ao calor. Trata-se de necessidade de casais monogâmicos para manter a coerência social no mundo capitalista
técnica que difere da necessidade a que, por extensão, se faz referência quan- são e1oqüentes, pois nenhuma das duas condutas são, desde o ponto de vista
do se fala de dever. Tal é O caso, por exemplo, quando se usa aquela palavra externo, necessárias para a reprodução social. Portanto, é óbvio que a per·
para dizer que para conseguir a intervenção do juiz é "necessário" propor cepção do produtor do direito seja distinta da percepção do sociólogo sobre
uma demanda. Com isto, em realidade, se quer dizer que se uma demanda é o que constitua impedimento areprodução de seu mundo social. Não obstante,
proposta então o juiz deve intervir, sob ameaça de que lhe apliquem a sanção a hipótese basilar da Sociologiafurídica se mantém em pé: se a sociedade
prevista para o caso de denegação de justiça. consegue reproduzir-se é porque não se produzem, em uma proporção eleva·
Mas bem, no interior de um modelo teórico as condutas que necessaria- da, condutas contraditórias às relações sociais, enquanto que se produzem
mente devem ser produzidas são aquelas cuja descrição constitui o modelo. contínua e majoritariamente as condutas necessárias para a reprodução des-
Isto permite dizer que se pudermos observar uma coincidência entre as con· tas relações. Em outros termos, se a sociedade se reproduz é porque o legisla-
dutas descritas pelo modelo e as condutas do grupo social observado, então, dor "logra êxito" quanto ao conteúdo deôntico das normas que produz, ainda
ou o modelo é apropriado para estudar esta sociedade ou a sociedade pode quando outro grande número de normas do mesmo sistema não possam ser
ser qualificada segundo o modelo estabelece ou permite. Quando isto ocorre, vistas como necessárias para a reprodução social.
o modelo, que era uma hipótese, aparece confirmado, ou "útil", se se prefere. Este é o caminho através do qual poderemos responder a pergunta so-
Dito de outra maneira, se o modelo é apropriado para pensar a sociedade em bre se é possível conseguir, para a crítica do referente do discurso do direito,
concreto então a descrição das condutas do modelo será similar a descrição um critério exterior ao direito. A descrição do modelo capitalista produzida
das condutas observadas empiricamente. O mesmo é válido em relação a ne- por Marx constitui o objeto do qual o referente do discurso do direito é um
cessidade das condutas: caso o modelo se revele útil para estudar uma socie- ocultamento.
dade também poderá ser dito que nesta sociedade é necessário que se produ-
zam as condutas descritas no modelo para que esta sociedade sobreviva.
Por exemplo, o modelo marxista de sociedade mercantil é descrito atra- 6. RELAÇÕES SOCIAIS E CONDUTAS
vés da conduta de "intercambiar as mercadorias conforme seu valor". Portan-
to, podemos dizer que para esta sociedade reproduzir-se deste modo é neces· Aqui é necessário fazer uma digressão sobre os conceitos de "relação
sário que se repitam as condutas de "intercâmbio...", posto que, caso contrá· social" e de "conduta" que utilizamos neste trabalho. Diremos que as condu-
rio, a sociedade não poderia reproduzir-se como mercantil é descrito, se con- tas constituem as relações sociais.
verteria em outro tipo de sociedade. Pois bem, se a observação permite con-

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empírico: sempre há um fato ao que se pode adjudicar o sentido construído
6.1. As condutas pelo discurso do direito. O que permite à Sociologia pretender-se ciência
empírica é justamente que ela possa referir-se a este fato que pode ser objeto
Para os juristas o signo "conduta" está no lugar da imagem de um movi- de alguma percepção sensível e ao que se adjudica sentido.
mento humano, embora em alguns casos a conduta seja, mais que um movi- Mas o que geralmente os sociólogos ingênuos não percebem é que a
mento, um discurso, como no caso das injúrias ou da "autoria intelectual" de existência de um discurso prévio é o que lhes permite usar signos para cons-
delitos. Este sentido é adjudicado a dois referentes distintos. Por uma parte, truir descrições, discurso este quase sempre do direito, que adjudica sentido
"conduta" denota esta descrição que é modalizada deonticamente na prescri- a estes fatos. Geralmente os sociólogos falam de objetos como "propriedade"
ção e, por outra parte, denota uma porção do m~nd~ exterior..Ta~t? dizemos sem notar que não falam do fato de colocar a mão sobre um objeto, mas sim de
que o direitomodaliza condutas como que os ctdadaos e funclOnanosprodu- condutas, isto é, de fatos aos quais se adjudica um sentido produzido pelo
zem condutas. Mas, observe-se, estas últimas são uma unidade de fatos e sen- discurso prévio. Por exemplo, alguns marxistas usam a expressão "formação
tido e não apenas fatos. As condutas de "matar", "testar", "contratar" e "pagar" econômico-social" reputando referir-se as relações "realmente" existentes em
são descritas e modalizadas deonticamente no discurso do direito, e este é o um país, em contraposição a expressão "modo de produção" que denota um
primeiro referente. Também as "verificamos" empiricamente quando produ- modelo. Mas não notam que "país" - porque não querem usar a palavra "esta-
zimos um discurso através do qual adjudicamos a uma porção do mundo exte- do", que pertence a quimera superestrutural -, somente pode ser definido
rior a qualidade, ou o sentido, de ser a conduta de matar, testar, contratar ou juridicamente. Falam de "relações" entre indivíduos sem notar que, como acer-
pagar. Em ambos casos é utilizado o signo "conduta" para denotar a descrição tadamente queria Weber, uma relação apenas pode ser definida a partir do
modalizada e para denotar a porção do mundo exterior a que se adjudica o sentido que os atores dão a sua ação. Por isto é que ação social não pode ser
sentido de ser esta descrição modalizada. E, naturalmente, o que permite ad- outra coisa que ação com sentido. No caso do marxismo é o mesmo, "inter-
judicar este sentido a um referente exterior é precisamente a descrição pre- câmbio" apenas pode denotar a ação do mútuo traspasso de coisas, mas con-
sente na norma. fonne a lei do valor. Não obstante, o valor somente surge quando alguém
Definamos "conduta" como movimento humano, como recurso cria uma coisa para, com a intenção ou o sentido de entregá-Ia a outro, quan-
discursivo que permita expressar a diferença entre, por um lado, osfatos em do alguém produz coisas como não-valores-de-uso.
relação aos sentidos e, por outro lado, as condutas que são fatos aos que se dá Mas o importante é que aSociologiajurídica dispõe de uma base empírica
o sentido. Isto porque antes estabelecemos a diferença entre fato e sentido, que são as condutas.
sendo o primeiro empiricamente verificável e o segundo apenas inteligivel-
mente apreensível. O discurso do direito não se refere a "fatos". "Contratar"
ou "testar", por exemplo, não são fatos. Fato é o dar a mão, produzir sons,
6.2. As relações sociais
deixar uma marca de tinta em um papel. Tampouco o "matar" da norma que
estabelece que "será condenado quem matar... "é um fato. Neste caso o fato é
O marxismo sempre teve como problema a "relação" entre relações
disparar uma arma, cravar uma adaga, introduzir uma seringa. O que está
sociais ou de produção e o direito. Mas este problema não é patrimônio do
penalizado é produzir estes fatos desde que se possa adjudicar-lhes o sentido
marxismo, pois, em realidade, está presente em qualquer parte onde apareça
de ser coincidentes com as descrições modalizadas deonticamente. Os fatos
a idéia de que existe um tema científico como é a "relação" entre "direito" e
de disparar, cravar e introduzir se convertem em condutas apenas quando são
"sociedade".
qualificadas por alguém em uso da norma, quando alguém produz um enunci-
A primeira idéia que pode ser expressada é a de que toda pretensão
ado adjudicando o sentido de matar, contratar, testar ou pagar a estes fatos,
sociológica deve postular a existência de um substratum independente da
não antes. Cabe dizer que o signo "prática" também é utilizado para denotar o
consciência em caráter de mundo objetivo. Estesubstratum é designado com
mesmo que denota "conduta" para nós.
o sentido da expressão ou signo "relações sociais" (ou de "produção" ou "rea-
O uso do signo "conduta" permite, então, a adjudicação de seu sentido
lidade social", etcétera). Toda sociologia postula isto.
a certa porção do mundo reputado exterior. Estamos frente a um referente
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220
Mas, como hipótese básica, a sociologia também postula que a explica- condutas, entendidas como tais graças aos ofícios dos discursos, entre outros
ção da ideologia deve ser encontrada no estudo deste substratum. Para che- o do direito, são acausa de que o direito modalize deste modo estas condutas
gar a falar dele com enunciados que pretendam a qualificação de verdadeiros, e não outras.
toda sociologia deve elaborar hipóteses e procedimentos de comprovação Isto quer dizer que o discurso sociológico não pode prescindir do dis-
apropriados para demonstrar a difícil conexão entre as relações sociais e os curso do direito, e é neste sentido que se torna sensato dizer que "o direito
discursos que falam delas. integra as relações sociais" (1). Isto tem sentido, mas somente se com isto se
A base empírica da SociÇJlogia é constituída pelo que chamamos "con- quer dizer que o discurso sociológico não pode nomear as relações que são
dutas". As condutas são a parte visível do substratum que é reconstruído em seu objeto sem o uso, entre outros, do discurso do direito. Não pode querer
descrições que tem como fundamento as condutas. É neste sentido que dize- dizer que exista identidade entre fatos e sentido.
mos que as relações sociais são constituídas por condutas, ou melhor, que as Mas bem, não há aqui uma petição de princípios? As relações sociais são
relações sociais são descritas como condutas repetíveis. Por exemplo, caso a causa de que o direito seja assim, mas estas relações não podem ser descritas
sociologia que tentamos requeira a definição das relações de apropriação dos sem o recurso ao direito. Esta dificuldade é posta pelo irremediável hiato en-
meios de produção, teremos que partir do suposto de que existe, neste tre fatos e sentido, embora exista certo pensamento sociológico que não te-
substratum chamado genericamente relações sociais, uma porção delas cuja nha este problema: o que pode pensar que seu referente é o mundo empírico
descrição está composta pelo conjunto das descrições de certas condutas. Por e que postula como seu objeto a descrição dos fatos.
exemplo, pela descrição do conjunto das condutas consistentes em "dirigir" A Sociologia mais plausível postula que seu objeto de estudo é a ação
os processos de fabricação e circulação de capital e mercadorias. As relações com sentido (Weber, notoriamente), ou que é a exposição das relações soci-
mercantis são descritas com a descrição do conjunto de condutas de "levar" ais que não aparecem (Marx, notoriamente). Em ambos casos estamos ante
ao mercado, "concordar", "entregar" e "pagar". As classes sociais são defini- pretensões científicas que tentam ir além desta vulgaridade que, às vezes, é
das como adescrição do conjunto de condutas atribuíveis a certos indivíduos, confundida com o melhor positivismo. ASociologia que tem por tarefa cons-
por exemplo, "ter relação salarial". Pelo menos isto é o que fazem os sociólo- truir, em discursos plausíveis, a descrição dosubstratum chamado "relações
gos, ainda quando acreditem que se refiram a fatos que chamam "relações so-ciais" é uma Sociologia que vale a pena praticar. Mas isto significa, ao mes-
sociais". mo tempo, a de-construção do discurso vulgar ou cotidiano que descreve a
aparência das relações sociais. O que aparece no direito como descrição ape-
nas diz respeito a esta forma de aparecer das relações sociais à consciência
6.3. O discurso do direito e as relações sociais comum, que se fosse verdadeira tomaria desnecessária a ciência. Contudo, a
Sociologia não pode prescindir do discurso descritivo da aparência porque
O discurso do direito atribui sentido a fatos ou, também se pode dizer, este discurso é a descrição das relações sociais tal qual estas aparecem. Esta
é usado para dar sentido a fatos humanos. Mas não é o único discurso que dá é a/orma de aparição do substratum. O sociólogo, portanto, não pode falar
sentido, pois também o faz aquele que chamamos "discurso jurídico", que é o de relações mercantis sem partir da forma como elas aparecem, isto é, juridi-
produzido acerca do direito ou do que o acompanha, fundamentando-o ou
explicando-o. Também outros discursos, como o estético, cumprem a mesma
tarefa. Desde este ponto de vista é irremediável que o direito seja distinto dos
fatos aos que dá sentido. Há uma separação ou ruptura absoluta, tal e como 1 - Las reladones sociales de propiedad no podrían existirsi no fuesen también reladones jwídicas,
vimos ao tratar o problema do referente do direito. lo que equivale adedr que eI derecho es, más que una simple aparienda, un elemento constitutivo de
Por outro lado, ao atribuir sentido aos fatos estes se constituem em con- esas relaciones·, Azuela de la Cueva, Antonio, La ciudad, la propiedad privada y el derecho,
dutas que são a base empírica do discurso sociológico sobre o substratum México, COlMEX, 1989, p. 18. "Lasreladones jwídicas de propiedad no son externas a las reladones
económicas de propiedad, sino que es la manera y forma en que existen la relaciones económicas.
"relações sociais". Quen:mos afIrmar que las relaciones económicas no existen ajenas alo juridico, sino que sólo pueden
ASociologiajurídica, segundo outro aspecto, não pode deixar de pos- existirjuridicamente..." lbarra Mendívil,}orge Luis,Propiedadagraria y sistemapolitico enMéxiro,
tular que estas mesmas relações sociais, que são descritas sobre a base de México, M. A. Porrúa, 1989, p. 70.

222 223
camente, como contratos. Não é possível identificar uma ação qualificável de de tais normas e ideologias teríamos demonstrado que a teoria sociológica
intercâmbio sem referir-se a uma conduta que se denomina contrato. Apenas usada como ponto de partida é válida e que o discurso do direito civil protege
se se observa uma compra-e-venda é que se pode qualificar uma ação como a circulação mercantil e não o que expressamente diz proteger, por exemplo,
intercâmbio. Somente aproximando-se para "escutar" o sentido que as partes a liberdade humana. Aseqüência deste trabalho é esta tentativa.
lhe atribuem é possível dizer que se trata de um intercâmbio e não de uma
doação.
O que o sociólogo não faz, ou não deve fazer, é repetir o que o discurso
jurídico diz. Este último é apenas o ponto de partida para concluir que o
direito mostra uma ficção.
Mas bem, esta especificidade sociológica que é a Sociologia Jurídica
movimenta-se em sentido inverso: pretende mostrar que são as relações so-
ciais que, assim aparecendo a seus atores, são a causa de que as normas sejam
estas e não outras. Como a aparência é o que impede a presença das relações
sociais, o ato de desmontagem da primeira constitui a crítica das segundas.
Contudo, para isto é necessário mostrar que se trata da aparência destas rela-
ções sociais apesar de que, por ser aparência, as oculta. A superação da
tautologia apenas pode ocorrer na metade do caminho entre a Sociologia e a
análise do discurso, ambas de intenções críticas, com o postulado, a compro-
var plausivelmente, de que as mesmas relações sociais que a Sociologia des-
creve são aquelas cuja aparência é descrita no sentido ideológico do direito. A
tentativa, aqui, é de propor um procedimento que permita mostrá-lo
aceitavelmente desde o ponto de vista das concepções convencionais da ciên-
cia. Para alcançar este fim elaboraremos algumas categorias úteis. A idéia é
partir de uma teoria a verificar. Ahipótese é que as relações sociais são a causa
do direito, embora seu sentido ideológico negue expressamente. Temos que
formular enunciados que prevejam o que encontraríamos em um sistema jurí-
dico positivo se este efetivamente mantivesse relação de causalidade com tais
relações sociais, por exempio, que em um sistema jurídico causado pelas rela-
ções mercantis é necessário que se encontrem normas de certo sentido
deôntico, ainda quando o sentido ideológico descreva de modo fictício as
relações das quais se supõe que ele provém e, inclusive, ainda quando expres-
samente o discurso negue a existência de tais relações. Mas, em tal caso, tam-
bém será necessário explicar plausivelmente porque o sentido ideológico é
este e não qualquer outro. Por exemplo, se supomos que o direito civil se
refere ou tem como causa as relações mercantis, então deveremos observar
em seu discurso sentidos deônticos que promovem as condutas mercantis
ainda quando se descrevam pessoas que se põe de acordo voluntária e livre-
mente, para cujas descrições fictícias também teremos que formular explica-
ções aceitáveis. Se a observação de um direito civil positivo mostra a presença

224 225
Capítulo Décimo-Segundo

A CRíTICA JURíDICA

SUMÁRIO: 1. A Teoria Sociológica do Direito; 1.1. A descrição de um modelo


sociológico e as nonnas; 1.2. O modelo normativo; 1.]. A "necessidade" das
normas; IA. A necessidade da coerção; 1.5. Modelo e sociedade; 2. A Sociologia
jurídica; 3. A Crítica do Direito; 4. A Crítica do Direito como análise do discur-
so; 4.1. Denotação e conotação; 4.2. Sistemas significantes; 4.]. Categorias e
técnicas jurídicas.

1. A TEORIA SOCIOLÓGICA DO DIREITO

Chamaremos Teoria Sociológica do Direito CTSD) a uma disciplina teó-


rica - um discurso também - cuja tarefa é descrever o conjunto das normas
que seria necessário ditar para garantir a repetição das condutas cuja descri-
ção constitui o modelo sociológico.

1.1. A descrição de um modelo sociol6gico e as nonnas

Adescrição de modelos sociológicos não requer a descrição de normas.


Com efeito, o modelo aqui aceito não indica, salvo como exemplo, que certas
normas são necessárias - "apropriadas" ou "coerentes" tal como, às vezes,
parece dizer Marx - para o capitalismo. O que Marx costuma indicar são
coincidências entre o que está descrevendo e o dkeito existente. Em alguns
momentos as referências ao direito tem a intenção de explicar certas formas
jurídicas, mas em outros momentos parece uma confirmação: tanto é aplicá-
vel o modelo à sociedade que pretende estudar que, com efeito, esta socieda-
de tem talou qual figura jurídica. Há outros modelos não marxistas que
tampouco incluem a descrição das normas que seria necessário estabelecer
para ganmtir .a reprodução.

2:27
Atarefa desta TSD consiste na descrição de normas, de normas-modelo mos caminho à falácia naturalista (1). Se disséssemos que do fato de que em
que modalizam deonticamente as condutas que constituem as descrições que certa sociedade concreta se repetem certas condutas é possível inferir que
a teoria sociológica geral formula sobre as relações capitalistas. A TSD, por sua eles devem produzir-se, estaríamos plenamente instalados na falácia naturalis-
parte, descreve normas tomando como base o modelo sociológico que des- ta e na apologia mais grosseira da sociedade tal qual ela é. Mas isto é diferente
creve condutas repetíveis. de dizer que:

1) o modelo - não a sociedade-


1.2. O modelo normativo a) é a descrição das condutas que o constituem
b) mostra quais são as condutas cuja não repetição implica que o
Épossível - e veremos que, além do mai~, é útil- construir um ~?delo modelo não funcione
que descreva um conjunto de normas que prolbam a.s ~ondutas. c~ntranas ou 2) a sociedade - não o modelo - requer para reproduzir-se:
que impeçam a produção das condutas cuja descnçao constitUi o mode~o a) que se produzam certas condutas repetidamente
sociológico. Por exemplo, se o modelo descreve as condutas de produçao b) que sejam ditadas certas normas e não outras para propiciar a
capitalista de mercadorias, o intercâmbio equivale,nte de força de trabalho repetição destas condutas e não outras.
por dinheiro, é possível descrever normas que prolba~ a entrega de men?r 3) É possível, sobre a base do modelo sociológico, construir um mo-
quantidade de dinheiro que o equivalente da mercado~la ~~mprad~, ou sep, delo normativo que descreva, modalizadas deonticamente, as con-
da força de trabalho. O conjunto de tais normas constltulfla um sIstema de dutas l.b)
normas que poderíamos qualificar como "coerente" ou "consistente" em ~ela­
ção ao modelo descritivo que nos proporcionou as bases para cons,trUl-l~. A falácia naturalista ficaria cumprida se a afirmação 2.b) dissesse que em
Este não seria um sistema como o sistema jurídico positivo de um pais, cup certa sociedade - não no modelo - devem ser ditadas tais normas, que existe
unidade está dada pela ficção da unidade da autoridade que o produz. E~te a obrigação, ética, desde logo, de ditá-las. Mas a afirmação 2.b) diz que caso a
seria um sistema cuja consistência proviria do princípio de que para o funCl~­ sociedade analisada corresponda ou possa ser subsumida no modelo, confor-
namento do modelo é necessário a repetição de certas condutas. Neste senti- me este o mostra - afirmação l.b) -, será conveniente ditar tais normas. Caso
do é um sistema-modelo, "ideal", "teórico", enquanto que um sistema jurídico não se proceda desta maneira provavelmente a sociedade não se reproduza.
nacional é existente,positivo. Isto equivale a colocar um técnico em eletrônica frente a um computa-
dor que nunca viu. Somente poderia trabalhar nele se dispusesse do manual
que contém um modelo que descreve o funcionamento de seus circuitos. E,
1.3. A "necessidade" das normas além disto, se for verdadeiro o enunciado que diz que o computador é
subsumível no modelo do manual. Ninguém diria que se comete a falácia na-
O que dissemos anteriormente supõe que é "necessário" ditar normas turalista pelo fato de que o técnico pronuncie um enunciado que diga que
segundo as quais deva ocorrer uma sanção no caso de que se pr~duza~ CO?- para que o computador funcione, conforme as instruções do manual, deve ser
dutas contrárias as descritas no modelo. Por exempio, no caso do mtercamblo realizada esta ou aquela troca de peças ou esta ou aquela manobra.
da força de trabalho por dinheiro é "necessário" que sejam dit~da~ ~ormas Existe um tipo de normas que não são regras nem prescrições, e que
segundo as quais deva ocorrer uma certa atividade de um funclO.nano caso "chamarei diretrizes ou normas técnicas"(2). Exemplo destas normas técni-
suceda que alguém entregue uma quantidade menor do que o eqUivalente da cas são as instruções para o uso, nas quais "se pressupõe" que a pessoa que
força de trabalho. Uma coisa é a "necessidade" e outra o "dever", co~o se
indica na frase anterior. O conceito de "necessidade" aqui, de novo, e o de
1 - Tomo o conceilo de falácia naturalista de WRÓBLEWSKI,Jerzi, "Problems ofthe Naturalistic
necessidade técnica. Isto é muito importante porque, caso contrário, abriría- Fallacy· ,Sinlhesis Philosophica, Zagreb, 1988, vol. 3,fasc. 1, pp. 225 e ss.
2 - vonWRlGHT,G. H.,Nonnayacci6n,cit.,p. 29.

228 229
segue as instruções aspira à coisa(fim, resultado), motivo pelo qual são dadas vada também coativamente, tarefa exercida pelo direito, entre muitas outras
tais instruções" (idem). maneiras possíveis. Note-se que a proposta do marxismo, que sustenta a futu-
Um exemplo: "se queres tornar a choupana habitável tens que aquecê- ra desaparição do direito, é nada menos que a crença de que em alguma soci-
la". Von Wright diz que não titubearia em chamar puramente descritiva a esta edade - a comunista do futuro - os indivíduos repetirão as condutas que
oração, já que é verdade ou não, independentemente de que alguém queira asseguram a reprodução daquela sociedade sem necessidade da ameaça de
ou não tornar a casa habitável. Eafirma que: coação. Seria, portanto, supérflua, desde logo, a produção de uma TSD "co-
"uma formulação equivalente desta oração seria: "a não ser que a casa munista", embora, como se sabe, esta concepção aceita que o modelo capita-
tenha calefação não será habitável" (Idem); lista dá lugar à construção de um modelo normativo correspondente. A dife-
Eacrescenta que: rença entre esta concepção e a postulada neste trabalho, portanto, se reduz a
"a verdade que o enunciado afirma é uma espécie de primitiva "lei da descrição do modelo comunista, único modelo no qual não seria necessário
natureza" (idem). pensar em normas para promover certas condutas.
Von Wright entende este tipo de orações descritivas como distintas das
que chama "anankásticas", que são as utilizadas para fazer "enunciados
anankásticos". Por exemplo: 1.5. Modelo e sociedade
"Se queres tornar a choupana habitável tens que instalar calefação. Dis-
to se costuma dizer que embora se diferencie das normas técnicas mantém Toda sociologia pretende que seus modelos sejam aplicáveis à socieda-
uma conexãoOógica) essencial com estas porque sepressupãe(logicamente) de que pretende estudar. Esta pretensão tem mais ou menos fundamento se-
que se a choupana não é provida de calefação não chegará a ser habitável". gundo o modelo, segundo a sociedade e as comprovações a que se possa
Disto se deduz que apesar da conexão lógica von Wright não vê aqui chegar com a utilização desta subsunção da sociedade no modelo. Nossa T5D,
nenhuma violação a lei de Hume. Deste enunciado condicional "se a casa há no mesmo caminho desta pretensão, postula que se é possível aplicar o mode-
de ser habitável... então deve...", se deduz que "se queres que seja habitável, lo formulado pela teoria sociológica da sociedade capitalista a uma sociedade,
deves..." e nem por isto há falácia naturalista. então também podemos aplicar-lhe o modelo normativo construído sobre a
Isto é importante porque Kelsen, em uma conhecida afirmação, diz que base do modelo sociológico. No entanto, caso não possamos aplicar o modelo
Marx cometeu a falácia naturalista (3). A proposta desta pesquisa, que nisto normativo, então o modelo sociológico tem boas possibilidades de não ser
segue a Marx, não comete uma falácia naturalista sustentando que, sobre a viável cientificamente. Por exemplo, se for possível aplicar o modelo capita-
base da descrição-modelo da sociedade capitalista, é possível construir um lista à sociedade mexicana - isto é, se se pode dizer que é capitalista -, então
modelo normativo composto pelas normas que seria necessário produzir para terá de ser possível aplicar-lhe o modelo normativo capitalista. Se não fosse
garantir a reprodução de uma sociedade que pudesse subsumir-se no modelo possível, se as normas descritas no modelo normativo capitalista não se en-
da sociedade capitalista. contrassem na sociedade mexicana, resultaria questionável o próprio modelo
capitalista ou a sociedade mexicana não deveria ser qualificada de capitalista.
Mas o mais provável é que a sociedade mexicana não seja totalmente capitalis-
1.4. A necessidade da coerção ta, motivo pelo qual não se encontram nela todas as normas descritas no mo-
delo normativo capitalista. Deste modo, teria chegado o momento de compa-
No que diz respeito a "necessidade" de normas para garantir a repetição rar, de explicar as incongruências. Mas, ainda assim, se não fossem alcançadas
das condutas cuja descrição constitui o modelo, está suposta aqui uma con- explicações aceitáveis, a teoria não teria viabilidade científica. Dito de outra
cepção filosófica segundo a qual a conduta dos indivíduos necessita ser moti- maneira, podemos formular a hipótese de que em uma dada sociedade quali-
ficada de capitalista, por sua similitude com o modelo sociológico geral, nela
3 - Veja-se KEISEN, H., Teoria Comunista delDerechoyelEstado, Buenos Aires, Emecé, 1957, p.
se encontrarão normas válidas que modalizam como obrigatórias as condutas
42. que o modelo sociológico descreve como relações sociais. Caso a observação

230 231
não oferecesse esta conclusão nos restariam duas ~ipótese~: ou o modelo não de reforma agrária se refere a quatro formas de propriedade da terra através
serve ou a sociedade não é capitalista. A observaçao podena ser a comprova- do signo "propriedade agrária", os juristas dizem que em virtude dos fatos
ção de que existem - foram ditadas - tais normas ou, tendo sido ditadas ou- sociais ocorridos se fez necessário que existissem quatro formas de proprieda-
tras, de toda forma resultam ineficazes. de da terra. Isto não tem nenhum interesse e é apologético. O importante é
É necessário mencionar que a posição teórica sustentada neste trabalho tratar de entender por qual motivo foram produzidas estas fórmulas e não
é distinta e até contrária a de Pashukanis. Aqui propomos que a disciplina que outras. E, então, é necessário sair fora do discurso para analisá-lo desde outro
descreve as normas necessárias para a reprodução do modelo capitalista é a lugar. Por exemplo, desde o referente deste discurso, referente que é uma
Teoria Sociológica do direito capitalista. Portanto, não há uma teoria do direi- descrição da aparência destas relações sociais. Por isto não me parece aceitá·
to capitalista como queriam Pashukanis e seus seguidores, apenas há uma vel, pelo menos no estado atual da Sociologia, dedicar-se a construir um mo-
teoria que descreve o conteúdo das normas próprias de um sistema capitalis- delo normativo a partir da observação do discurso normativo positivo.
ta. A proposta de Pashukanis, por outro lado, consiste em afirmar que o capi-
talismo tem umaformaespecífica de direito, ou melhor, que a ,,/orma"jurídi-
ca é própria unicamente da sociedade capitalista. Aqui, em troca, sustento 2. A SOCIOLOGIA JURÍDICA
que há, por uma parte, uma forma universal do discurso do direito e, por
outra parte, um conteúdo historicamente determinado, uma Teoria Geral do Com os resultados da TSD, ou seja, providos de um modelo normativo
Direito e uma TSD, capitalista ou de qualquer outro tipo ou modelo. postulado como o conjunto das normas necessárias para a reprodução de um
Poderia surgir a pergunta sobre porque é necessário recorrer a uma modelo econômico capitalista seria possível uma aproximação, nem ingênua
teoria sociológica para descrever um modelo normativo. Poderia resultar que nem apologética, às normas positivas de uma sociedade, a mexicana, por exem-
se pensasse que, assim como a teoria sociológica dedica-se a alguma forma de plo, para comprovar se correspondem ou não com as do modelo. Esta ativida-
observação para formular um modelo, da mesma maneira um modelo de constituiria um discurso científico, tão empírico como pode ser o trabalho
normativo poderia dedicar-se a alguma forma de observação das normas váli- com discursos, que denominamos Sociologia]urídica (deste momento em
das - ou eficazes - em uma sociedade concreta para logo fommlar o modelo. frente Sf).
Não obstante, isto é precisamente o que conduz, como vimos, à apologia do É necessário deixar claro que a S]é, por definição - "sociologia" -, uma
direito: corremos o risco de tomar como modelo o que não é mais que a ciência de vocação empírica cujo objeto não são os discursos jurídicos mas
descrição das normas positivas. sim as condutas relacionadas com estes discursos. A S] pode muito bem ser
O procedimento aqui proposto não exclui o fato de que, como juristas definida como uma ciência dedicada a observação das causas e dos efeitos do
que somos, não prescindimos do conhecimento do direito positivo e dos dis- direito. Não obstante, tratando-se das causas que, como vimos, coincidem
cursos que o descrevem. Isto é algo que fazem todos os cientistas. Não há, em com o referente, sua descontinuidade em relação ao discurso impõe um pro-
realidade, pontos de partida zero. O que aqui propomos, pelas razões ofereci- cedimento de verificação que procede à comparação do conteúdo das normas
das, é a construção de modelos. A crítica jurídica não poderia ser realizada positivas com o modelo oferecido pela TSD, como veremos na seqüência. Por
partindo da descrição dogmática, pois, caso fosse assim, qual seria o critério isto, ainda que a S] seja uma ciência sobre condutas, no caso das causas não
da crítica? As normas são um discurso acerca destas relações sociais que a pode prescindir da consideração do conteúdo do discurso.
teoria sociológica geral descreve, são uma idéia da sociedade acerca de si O procedimento proposto aqui seria o seguinte: a TSD diria que o mode·
mesma, e analisar o que ela diz de si mesma seria uma análise de um discurso lo econômico denominado "sociedade mercantil simples" permite mostrar
sem contar com outra coisa exterior ao próprio discurso. Esta análise ingênua que para seu funcionamento é necessário que sejam repetidas as condutas de
- às vezes nem tanto - é o procedimento tradicional dos juristas e, sobretudo, entregar coisas em troca de outras em uma proporção determinada pela lei do
com as definições: se o código civil se refere à relação de uma pessoa com valor. Amodalização destas condutas como obrigatórias constituiria o mode-
uma coisa através do signo "propriedade", então os juristas dizem que propri- lo normativo correspondente ao modelo econômico.
edade é a relação de uma pessoa com uma coisa. Deste mesmo modo, se a lei

232 233
Portanto, podemos dizer que em uma sociedade, ou seja, uma/orma· contrar" estas normas que permitem a venda de terra? Porque conforme o
ção social (PS) segundo o jargão marxista, subsumível no modelo "sociedade modelo proporcionado pela teoria sociológica de inspiração marxista a terra
mercantil simples" - suponhamos que seja a formação social brasileira, (PSB) é uma mercadoria cuja circulação é necessária para que o capitalismo se
_ seria necessário que se ditassem normas como as descritas no modelo reproduza. Este modelo normativo, correspondente ao modelo econômico,
normativo. "Necessário" no sentido de tecnicamente necessário, ou seja, ne- postula que o funcionamento deste modelo depende da repetição - e para
cessário para que esta sociedade se reproduza. isto é necessário a norma que o permita - da conduta de compra-e-venda de
Mas bem, poderia ocorrer que a observação demonstrasse que não fo- terra. Contudo, ao aplicar estes modelos as observações empíricas encontra-
ram ditadas normas como as previstas. Neste caso, poderíamos: mos normas positivas que contradizem a previsão da teoria. Poderíamos con·
c1uir disto que:
1) concluir que a sociedade observada não era subsumível, como se
pensou, no modelo econômico "sociedade mercantil simples" ou 1) o modelo econômico é inútil;
2) formular a predição 2) o México não é subsumível no modelo capitalista;
a) de que estas nomlas serão produzidas proximamente, ou 3) não é possível utilizar o modelo normativo;
b) que perderá tal caráter precisamente pela inexistência de nor- 4) o México é uma sociedade capitalista mas que, por razões que há
mas que promovam a repetição das condutas observadas. que estudar, seu sistema jurídico parcialmente não corresponde ao
modelo proposto.
No primeiro caso estamos ante um fracasso científico. Deste modo, ou
a qualificação da sociedade observada foi incorreta ou o modelo não serve. No Aresposta 2 também constitui uma apologia da sociedade mexicana, e
significa que, devido a sua legislação, o México superou o capitalismo. Ares-
segundo caso estamos ante uma insistência do sociólogo jurídico no acerto da
posta 4 abre caminho a uma tarefa sociológica muito interessante. Esta respos-
qualificação da PS como "mercantil", mas talvez ante um "atraso" na produção
ta supõe ter descoberto que a maior parte da legislação mexicana corresponde
das normas convenientes.
a do modelo nomlativo capitalista, mas que, no entanto, uma fração do siste-
Mas o mais provável não é isto. O mais provável é que a qualificação
ma não corresponde com este. Desta maneira, a tarefa desta SI funcionou
econômica da sociedade seja correta, que o modelo normativo seja funcional como comprovação empírica da funcionalidade do modelo marxiano de soo
mas que, de qualquer maneira, boa parte das normas encontradas não ciedade capitalista: com efeito, se deste modelo foi possível obter um modelo
correspondem ao modelo normativo. Em tal caso começaria a tarefa mais inte- normativo e se este foi usado como predição das normas que deveriam ser
ressante do sociólogo do direito, a de explicar estas normas que, conforme encontradas, e se estas foram encontradas, então a existência de tais normas
sua teoria sociológica, aparecem como "anômalas". Mas, note-se, é precisa- deu bons motivos para confirmar a teoria marxiana. Mas bem, isto requer que
mente a não correspondência do direitopositivo com o modelo o que confe- se explique satisfatoriamente a presença das nomlas "anômalas", ou seja, as
re a qualidade de "anômalas" a certas normas e, portanto, que oferece uma que supostamente não deveriam ser encontradas. Em troca, a atitude
tarefa apaixonante ao sociólogo. Caso contrário, qual seria, por exemplo, o apologética da sociedade mexicana dirá simplesmente que o México não é
interesse em estudar as causas e os efeitos das normas "anômalas" do direito capitalista precisamente porque existem tais normas, as quais se explicam
agrário mexicano? É neste momento que a tarefa do jurista sociólogo se con- pelas "particularíssimas vicissitudes da história mexicana", principalmente pela
verteria na do politólogo que tenta entender o fenômeno do exercício do revolução e pelo triunfo do povo, etcétera: o mais importante é fazer com que
poder em uma sociedade concreta. se acredite na idéia de que o direito é particularíssimo, açular a ideologia
Por exemplo, se o México é uma sociedade capitalista deveríamos en- nacionalista sempre pronta para fazer os povos acreditarem que se são dife-
contrar normas que ordenam o respeito a venda de terras ou a permissão para rentes são melhores, e que se provém de revoluções populares, então, além
vendê-Ias. Não obstante, o sociólogo do direito se deparará com a existência disto, são um paraíso. Isto mostra as diferenças entre uma pseudo-Sociologia
de normas que proíbem a venda de certas frações de terra de uso comum apologética do direito tal qual é e uma SI apoiada em uma teoria critica da
entre todos os habitantes de determinada área rural. Porque "deveríamos en- sociedade capitalista.

234 235
O esquema da figura 1 ilustra a idéia: a TGSK que neste caso, por exem- corresponderá ao sentido do modelo normativo construído pda, . '.
plo, é marxista, mas que poderia ser qualquer outra, proporciona um modelo assim, deverá ser encontrado no direito brasileiro um grupo de - .....
sociológico da sociedade capitalista (SK). Apartir deste modelo a TSD cons- sentido deôntico é o previsto. llOl1lIIjaaJp
trói um modelo normativo da SK que consiste na descrição das normas tecni- A hipótese geral também sustenta que o sentido ideológico do di~-í
camente necessárias para o funcionamento e conservação do modelo socioló- brasileiro e do discurso jurídico sobre ele utilizam as descrições daFSBquc. o
gico. Estas normas são as condutas que constituem as relações descritas no encontram nas descrições vulgares e cotidianas, não científicas - ficções::
modelo sociológico, modalizadas deonticamente. que descrevem a aparência das relações que compõem esta FSB. Assim, o q~
permitiria afirmar que se trata de ficções das relações sociais que constituem
a FSB é que no mesmo texto coexistem o sentido deôntico e o sentido ideoló-
gico do direito brasileiro, e que se o primeiro corresponde ao modelo normativo
Modelo normativo ~
'--_d_a_SK --J. I
Identidade I----l) I Sentido deôntico
da TSD então as descrições que não correspondem a este modelo do qual se
obteve o modelo normativo são descrições da aparência, ou ficções, das rela-
ções sociais que constituem a FSB.
Isto também explicaria a eficácia do direito brasileiro. O direito é eficaz
T
SJ~
tanto em relação a seu sentido deôntico como em relação a seu sentido ideo-
TSD lógico. O primeiro é eficaz porque modaliza as condutas que tecnicamente

~~I
"deve" modalizar se uma sociedade capitalista tem de reproduzir-se. O senti-
do ideológico é eficaz justamente porque ao descrever a aparência oculta as
relações sociais em meio às quais as classes dominantes obtém a melhor e
Sentido ideológico maior parte do produto social. Esta identidade entre sentidos deônticos, o
positivo e o do modelo, e a coexistência no mesmo texto de um sentido ideo-
Modelo sociológico
lógico que descreve o que parece algo distinto das relações sociais capitalistas
daSK
é o que, pretendo, demonstra que o direito as oculta. Assim, o direito civil
modaliza deonticamente condutas que, sendo mercantis, denomina de outro
T modo. Onde há intercâmbio o direito diz que há "vontade", onde há "merca-

TGSK I Ficções I!-- Formação Social


Brasileira (FSB)
dorias" o direito diz que há "coisas" e "bens", onde há "portadores de merca-
dorias" o direito diz que há "pessoas". Belos nomes para relações obscuras e
lamentáveis. Mas esta obscuridade, favorecida pela ficção, não impede a eficá-
cia do direito civil em relação a reprodução da sociedade mercantil, que pare-
ce não surgir em parte alguma (4). Enão impede tal eficácia porque o sentido
deôntico é o apropriado para este tipo de sociedade. O importante é notar
Figura 1 que os dois sentidos, o deôntico e o ideológico, coexistem no mesmo texto,
nos mesmos signos.
Mas bem, para poder comparar as normas positivas com as provenien-
Por sua parte, a SI é uma ciência de vocação empírica cujo objeto de tes do modelo é necessário ter encontrado previamente, nas primeiras, seu
estudo, neste momento, é a relação de causalidade entre a FSB e o direito
brasileiro. A hipótese construída até aqui postula que o sentido deôntico do 4 - Tomo apalavra "obscuridade" de CÁRCOVA, Carlos, "Sobre la comprensión dei derecho", em
direito brasileiro tem sua origem nestaFSB. Além disto, se esta FSB é subsumível Criticajuridica, número 7, p. 77, e acredito utilizá-Ia em um sentido que está em confonnidade com
no modelo sociológico da SK, então o sentido deôntico do direito brasileiro o usado pelo autor.

237
236
sentido deôntico. Segundo nossa hipótese de trabalho é o sentido deôntico mas que estabelece a obrigatoriedade de comprar ou arrendar conforme o
que deveria coincidir com as normas·modelo, se é que a sociedade de que se preço "justo" (seja ele pactado ou fixado por outras normas jurídicas).
trata é subsumível no modelo sociológico. Mas, como vimos, estando o senti· Mas bem, se sustentamos que o objeto da proteção destas normas é o
do deôntico imbricado com o sentido ideológico, é necessário desembaraçar intercâmbio mercantil, seguramente não faltará um apologista do estado mo-
o primeiro da cobertura ideológica. Esta tarefa é própria de juristas, mas não derno para dizer que "se o estado quisesse proteger isto o diria. Em troca, diz
dos que se negam a reconhecer a capa protetora do sentido ideológico que expressamente que deseja proteger a economia dos pobres". Isto não seria
encobre o sentido deôntico. Os juristas apologetas do direito positivo não uma mentira pois, com efeito, a lei diz isto, de muitas maneiras: se protege aos
fazem tal diferença. Para eles é um disparate sustentar que os contratos são a "consumidores". Por outro lado, o intercâmbio, como o descreve Marx em O
aparência dos intercâmbios, já que a palavra "intercâmbio" nem sequer apare- Capital, não aparece em nenhuma parte do texto. Contudo, nossa hipótese
ce no código. diz que a FSM é subsumível no modelo da sociedade mercantil descrita por
Podemos dar como exemplo a chamada Leifederal de proteção ao con- Marx e que esta FSM é causa tanto do sentido deôntico como do sentido ideo-
sumidor(LFPC) do México. Este conjunto normativo se reparte massivamente lógico desta IFPC, e também diz que o sentido ideológico provém de ficções
pelo organismo por ele criado e denominado Instituto Nacional do Consu- sobre esta FSM. Em troca, a versão apologética diz que a FSM não é mercantil·
midor (INPC), em um folheto no qual se diz, por exemplo, que capitalista e, sobretudo, diz que o estado mexicano não é capitalista mas sim
"detectar problemas que os consumidores enfrentam e buscar soluções revolucionário, e que por isto defende a economia dos pobres, por exemplo,
para eles constitui a parte principal da política de proteção das finanças dos com estaIFPC. Etem a seu favor que a lei efetivamente diz isto. Deste modo,
grupos majoritários da população" (5). somos nós quem devemos comprovar o contrário, com todas dificuldades
Como qualquer pessoa sabe, em toda a América Latina os grupos majo- vistas até aqui, especialmente quando revisamos o problema do referente e da
ritários são os pobres, que alcançam 30% da população no país mais "favore- causalidade.
cido" (Argentina) e 90% nos países mais pobres (Honduras e Haiti). No Méxi- Aproposta deste trabalho consiste eJ11 dizer que a hipótese se compro-
co a pobreza ronda, aproximadamente, a 40% da população. Em outras pala- va plausivelmente com este procedimento:
vras, este pequeno discurso jurídico que "explica" os objetivos da IFPC está
claramente dirigido a fazer crer que o estado se preocupa pelos pobres e que 1) Sobre a base do modelo sociológico da SK (seguimos fazendo refe-
realiza atividades em seu benefício, uma das quais é a que desenvolve este rência a figura 1) deve ser construído um modelo normativo desta
INPC criado pelaIFPC. Isto é dito em uma pequena introdução que não forma SK, o que é uma tarefa desta TSD.
parte do texto elaborado no Congresso mas sim do texto que foi entregue ao 2) Este modelo normativo contém normas - ideais - que proíbem
público peloINPC. Por sua parte, o texto jurídico tal como foi produzido pelo todas as condutas que impeçam a reprodução do modelo sociológi-
Congresso diz, por exemplo, que co da SI(, e que obrigam a produzir as condutas necessárias para
"os pagamentos realizados que sobrepassem o preço legalmente autori- que este modelo possa reproduzir-se.
zado ou estipulado, são recuperáveis pelo consumidor... " (art. 30). 3) Supondo que é conhecida a descrição marxiana da circulação mer-
AIFPC contém vários artigos nos quais se estabelece este tipo de direi- cantil, as condutas que impedem a reprodução do modelo são as de
tos e obrigações, que são familiares para qualquer que tenha estudado o curso apoderar·se de mais valor do que o entregue, enquanto que as ne-
de obrigações e contratos de qualquer código civil latino-americano ou euro- cessárias são as de entregar um valor equivalente ao recebido. Até
peu "continental". Como qualquer um sabe, se trata de um conjunto de nor- aqui os modelos teóricos da TGSK e da TSD.
4) A SI tem a tarefa de comparar o sentido deôntico da LFPC com as
condutas do modelo normativo proposto pela TSD. Como resulta
óbvio da leitura do artigo 30 citado da LFPC, o que se concede é o
5 - Folheto{jue se entrega aqualquer pessoa que o solicite nos escritórios dolnstitutoNadonal de direito a "recuperar" o que foi pago a mais pela mercadoria. Ecomo
Proteção aoConsumidor. a LFPC- artigo 86 - estabelece sanções para quem cobre a mais ela

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está, desde logo, proibindo apoderar-se de um valor superior ao nesta tarefa sociológica existe um ponto de sutura com a tarefa de análise do
que é entregue, como ~iz ~ norma-modelo.. . discurso do direito.
5) Ou seja, o sentido deontlco da LFPC comclde com o modelo
normativo. Por isto todo seu sentido ideológico, que não coincide,
provém de uma descrição fictícia ou descrição da aparência da FSM. 3. A CRÍTICA DO DIREITO
Este procedimento é o que permite responder ao apolôgeta da socieda· Uma "crítica" do discurso do direito, que não seja uma simples contesta-
de capitalista e do seu direito. Com isto se prod~z um :ontradiscu~so, a~ora ção da justiça ou da conveniência das normas vigentes, requer um fundamen·
crítico, que mostra como o direito protege a clrculaçao mercantil e na~ o to teórico que a assemelhe a qualquer outro discurso que seja reconhecido
bolso dos pobres, que são os prejudicados por uma FS que pode ser subsumida como científico. Isto, desde logo, requer o abandono da ingênua idéia de que
no modelo descrito por Marx. Em outras palavras, o discurso jurídico e o os discursos científicos são apolíticos. Para quem acredita que a ciência é
sentido ideológico do direito propõe, aos desfavorecidos por estas mesmas apolítica, desde logo, uma crítica não pode aspirar a ser um discurso científi-
relações sociais que o sentido deôntico do direito é realmente protetor, que as co. Mas esta é uma questão que não pode ser resolvida cientificamente por-
relações sociais são justas (posto que outros setores da ideologia jurídica pro- que não há ciência alguma que assegur~ que a ciência é apolítica e, tampouco,
põem a justiça da contraprestação equivalente), e que no caso de que estas uma que assegure o contrário. Este problema é resolvido em sede filosófica,
relações sejam violadas em prejuízo do oprimido, o estado atuará em favor que é sempre pré-científica. As afirmações que dizem existir discursos que
deste último. não contém nenhuma intenção política são afirmações tão válidas como as
O sentido ideológico desta LFPC está integrado pelo sentido das pala· que dizem exatamente o contrário. Esta discussão constitui boa parte do que
vras que são utilizadas nasficções que descrevem de distinta maneira a circu- se denomina Epistemologia, que é um meta-discurso acerca dos discursos
lação mercantil. Pode ser lido, por exemplo, no artigo 5: autodenominados científicos. Mas, como toda rigorosa investigação filosófi·
Todo comerciante de bens ou serviços está obrigado a informar... ao ca, não basta sua simples existência para que seja universalmente aceita.
consumidor... A Crítica do Direito, então, requer esta base teórica que lhe permita
Como se pode observar, nada de mercadorias nem de intercambiadores, aceder ao status de discurso tão aceitável como qualquer outro. Esta base
apenas bons comerciantes, e de "bens", não de vis mercadorias. Este sentido apenas pode ser teórica. Acriticidade provirá, então, da criticidade da teoria
ideológico deve ser analisado como parte de outros sistemas significativos eleita e aceita. Este meta-discurso acerca do discurso do direito e do discurso
conotados que não estão presentes. Voltaremos a tratar deste exemplo. jurídico seria crítico pelo fato de ser produzido à luz de uma TSD "crítica", que
Esta tarefa de análise do sentido ideológico, em realidade, é prévia em seria extraída ou proporcionada por uma TGSK também "crítica". Isto é o que
relação a tarefa de comparação do sentido deôntico das normas positivas com constitui a proposta duradoura de Marx.
o das normas·modelo. No momento da separação do sentido deôntico em No caso da LFPC comentada anteriormente, a crítica do direito consis·
relação ao sentido ideológico, o analista se encontra trabalhando sobre o refe- tiu na plausível demonstração de que este setor do discurso do direito garante
rente das normas positivas, referente que, como vimos, constitui uma ficção a continuidade da circulação de mercadorias e não a proteção dos seres huma·
ou descrição da aparência. Por exemplo, a tarefa de comparar as normas civis nos, e muito menos dos setores desfavorecidos pela sociedade capitalista. Se
sobre a vontade com as normas-modelo provenientes do modelo de circula- os beneficiários da circulação mercantil são os comerciantes e, em última
ção mercantil, requer a tarefa prévia de revolver o sentido ideológico da cha· instância, a burguesia industrial que faz os trabalhadores produzirem as mero
mada "teoria da vontade". Avontade aparecerá, então, constituindo a descri- cadorias, como se pode dizer que uma lei que protege esta circulação ~e
ção de uma aparência ouficção em relação ao verdadeiro fenômeno de inter- mercadorias foi elaborada para favorecer principalmente aos pobres, que sao
câmbio de mercadorias. Por isto é válido dizer que, com a chamada "teoria" da justamente as vítimas desta sociedade? Mas bem, esta característica da LFPC
vontade, o direito civil "se refere" ao valor das mercadorias. Devido a isto de defender a sociedade capitalista e, portanto, os seus beneficiários, apenas
pode aparecer se partimos de uma TSD que mostra qual seria o sentido deôntico

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das nonnas-modelo necessárias para garantir a reprodução da circulação capi- Este é o momento em que devemos recorrer a conceitos como os de denota.
talista de mercadorias. Logo, é necessário comparar o sentido deôntico da ção e conotação e de sistema significante que elaboramos anteriormente.
LFPC com o modelo nonnativo da rSD. Caso coincidam, como plausivelmen-
te mostramos que ocorre, é possível dizer, também plausivelmente, que a
LFPC protege a circulação mercantil capitalista qualquer que seja o sentido 4.1. Denotação e conotação
ideológico de suas nonnas e quaisquer que sejam os discursos jurídicos dos
juristas, as exposições de motivos, os fundamentos das sentenças que apli- Como dissemos acima, entendemos aqui por conotação, sem atender
quem estas nonnas, a propaganda televisiva ou a introdução aos folhetos rigorosamente à discussão que os semióticos desenvolveram a respeito, a pre-
explicativos da lei. sença de um discurso em outro discurso através de um, ou vários, dos motivos
Além disto, também deve ser estudado o sentido ideológico destaLFPC: do primeiro no segundo. Diremos, assim, que na norma que obriga a pagar o
Como, com quais palavras, com qual técnica normativa, a lei transmite um salário justo, a palavra "salário" denota a idéia, fictícia, de uma contraprestação
discurso ocultador das relações que favorecem aos mais bem situados em equivalente devida pelo patrão (6) mas, além disso, conota todo o sistema
detrimento dos menos favorecidos? Esta seria uma tarefa de análise do discur- significante da produção capitalista de mercadorias. Anorma daLFPC(artigo
so do direito e do discurso juridico. 5) que obriga ao "comerciante" de "bens" e "serviços" a expor fielmente as
A Crítica do Direito, então, é uma atividade científica que aparece em características daquilo que oferece, conota, com a presença destes signos -
primeiro lugar como SociologiaJurídica, enquanto que através da análise po- "fornecimento", "serviços", "bens" - o sistema significante que consiste na
demos concluir que o sentido deôntico da LFPC tem comofunção ou efeito descrição da idílica e fictícia spciedade na qual os bondosos e serviçais comer-
garantir a continuidade da circulação mercantil, o que pennite dizer que sua ciantes "emprestam" um "bem" que "serve" para satisfazer necessidades de
causa é a presença de relações mercantis. Isto, desde logo, com todas as reser- "consumo", palavra que denota a satisfação de necessidades humanas, de onde,
vas feitas anterionnente sobre a objetividade de relações sociais a margem dos ao denominar-se "consumidor" ao portador de valor, lhe é proposto que des-
discursos cujos usuários as reputam como referentes dos mesmos. Mas bem, vie o sentido do que faz: de vítima da sociedade mercantil a beneficiário da
tudo isto foi possível pela intervenção de procedimentos e elementos própri- sociedade que lhe proporciona o necessário para viver. Este sistema significante
os da disciplina científica chamada "análise do discurso" e por isto aCrítica do é um discurso e o problema consiste em identificá-lo, posto que está conotado
Direito é, finalmente, uma análise do discurso do direito. por apenas um de seus motivos ou por apenas uns poucos deles. Assim, como
saber que uma palavra está ali como signo de um conjunto coerente de enun·
ciados que não está presente, por exemplo, em palavras como "salário·, "von-
4. A CRÍTICA DO DIREITO COMO tade", "empresa", "administração·, etcétera? Para poder encontrar nestas pa·
ANÁLISE DO DISCURSO lavras da lei o rasto de discursos inteiros que não estão presentes é necessário
postular, em caráter hipotético, que elas estão ali como signos destes discur-
A Crítica do Direito não é o mesmo que a crítica das nonnas ou do seu sos, ou seja, no lugar deles e contribuindo com todo seu sentido. Diremos que
sentido deôntico. A crítica do sentido deôntico do discurso do direito não conotam estes discursos não presentes.
pode ir além do juízo de rechaço ético pela injustiça ou do juízo político de
rechaço pela inconveniência de seu conteúdo. A Crítica do Direito é, mais
propriamente, uma critica que conduz, mais que ao rechaço às normas, à
mostra da ocultação produzida pelas pseudo-descrições constituídas, precisa-
mente por ser ocultamento, em ferramentas do poder. 6 - •Du point de vuejurldique, la saIaire est du, en échange de la prestation de travail... Sous cet
O discurso contido no sentido ideológico do direito é algo distinto da angle, le saIaire n'est que la contrepartie du travail foumi, et san montant se regle sur la vaIeur
norma, ainda quando se encontre no mesmo texto. Aanálise deste discurso attribuée àce travail, et non sur les besoins du travaileur". RIVERO,Jean, et. ai, Droi! du Travall, Paris,
também requer que sejam feitas algumas precisões prévias ou metodológicas. PUF, 1984, p. 638.

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No caso da LFPC é possível observar que, por exemplo, no artigo 5 m, "sistema", seus elementos podem ser identificados como penencentes a I
no anigo 20 (8), aparecem palavras como "comerciante", "bem", "servi- P?nanto, a pr~sen~a de um único element? do sistema significante em :~
ou I' d . dIscurso permtte dtzer que este sistema esta conotado neste discurso. O re-
ço", "consumidor", que pe~encem ao.discurs.O com o.qua e escnta a apa-
rência das relações mercantIs. Com efetto, devIdo a acettarmos o model~ des- curso discursivo da conotação permite que o produtor do direito outorgue
critivo de Marx, sabemos que as relações sociais não são de circulaçao de eficácia a um discurso ausente de um texto.
"bens" ou "serviços" mas sim de vis mercadorias, e que não existem "comer- Mas bem, a construção deste conceito tropeça com a dificuldade de que
ciantes" ou "consumidores" mas sim portadores de mercadorias. Não obstante, "coerência", "ordem" e "organização" sempre remetem a um conjunto de
o discurso da LFPC utiliza estas palavras tomadas dos discursos fictícios e, normas. Um conjunto de regras parece ser a ordem própria de um discurso
com isto, osconota, isto é, inclui no discurso explícito, o da autoridade, outro científico e, sem dúvida, é a de um discurso da Lógica ou da matemática. Não
discurso que não está presente mas sim conotado. Em outras palavras, está obstante, a análise de ideologias não.científicas nos coloca justamente frente
presente com apenas alguns de seus elementos. Deste modo, o discurso do a discursos que tem sentido, mas não necessariamente uma ordem que trans-
direito consegue trasladar à consciência do usuário um discurso que este ouve cenda a ordem sintática, muito pelo contrário, os discursos que agora nos
todo o dia em todos os meios de comunicação. O usuário fica instalado neste interessam se caracterizam precisamente por revelar, ao ser comparados com
discurso que o descreve mentirosamente, tanto a ele como aos funcionários a discursos regulamentados, ou seja, científicos, que não mantém a ordem que
que se vê obrigado a recorrer. E, além disso, se vê forçado a usar o mesmo pretendem. Não é necessário provar isto ou, em todo caso, não é tema deste
discurso que se converteu no código que permite a comunicação com outros trabalho e nos vemos obrigados a recorrer à intuição comum.
usuários. O efeito ideológico é claro, a utilização do procedimento da conotação Sabemos através de experiência comum que existem conjuntos de enun-
pelo direito constrói a ideologia da justiça das relações sociais descritas por ciados que transmitem sentido mas que não resistem a uma análise cuidadosa.
este sistema significante conotado: estas relações são justas e o direito, que Não obstante, sabemos que são eficazes e que, além disto, constituem um
deve manter e reproduzir a justiça, ocupa·se de que estas relações "se cum- instrumento de hegemonia porque convencem, porque conseguem que seus
pram", ou seja, ocorram como "devem ocorrer", isto é, do modo em que são usuários produzam cenas condutas e não outras. Isto quer dizer que tem coe-
descritas no sistema significante conotado, que é uma ficção (9). rência, alguma forma de coerência que permite que seus usuários os conside·
rem "lógicos".
Estes discursos aparecem como coerentes a seus usuários precisamente
porque dispõe de um código que permite decifrá-los como "lógicos" ou "natu-
4.2. Sistemas significantes rais". Estes códigos são distintos dos códigos elaborados, por exemplo, pela
Como dissemos acima, denominamos deste modo a um conjunto de
Lógica, que demonstra que não são "lógicos" nem "naturais". Contudo, para o
analista do discurso ainda é possível vê-los como "sistemas". Isto é possível se
enunciados que mantém entre si alguma coerência ideológica ou de sentido
a análise procede a partir de uma teoria que se converte em outro código.
porque estão organizados em tomo a um tema determinável. Sistema
Assim, a "coerência" de um discurso provém de outro discurso organi-
significante é, então, um conjunto de enuneiados que constitui um setor
zado pela tarefa analítica, e não do próprio discurso. Acoerência de um siste·
organizado de ideologia ou "visão do mundo". Por sua vez, este sistema pode
ma significante não provém dele mesmo, mas sim do discurso analítico, do
estar conotado em outro sistema. Mas, posto que é aceito como tal, como um
discurso que o analisa. Portanto, o que permite identificar um sistema
significante conotado no discurso do direito não éalguma organização imanente
ao discurso conotado, posto que não é científico, mas sim a organização que
7 _ "Todo comerciante de bens ou serviços está obrigado ainformar clara, veraz e sufidentemente
lhe fornece o código elaborado pelo analista.
ao consumidor...•
8 _ "Em todaoperação que se conceda crédito ao consumidoro comerciante está obrigado ainformar Por exemplo, o que permite identificar o sistema significante conotado
previamente ao primeiro sobre o preço à vistado bem ou serviço... " nas normas que usam as palavras "serviços", "bens", "prestação", é uma teoria
9 - C/r.: GESSO, Ana Maria DeI, "Un acercamiento ai análisis de los textos jurídicos',Cuadernos dei da sociedade mercantil que funciona como um código que permite identificar
Instituto de Investigacionesjurídicas, número 14, México, 1990, pp. 259 ess.

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estas palavras como partes de um discurso cuja coerência provém de que significante que aparecerá no sentido ideológico do direito civil partindo da
descreve a aparência das relações mercantis. Esta teoria é a mandana, que descrição da circulação mercantil. Isto nos permitiria dizer que em uma sa-
também permite explicar o que denomina "aparência" de tais relações. Como ciedade mercantil: a) é necessário produzir um discurso que proíba as condu-
a FS, onde aparecem normas que utilizam estas palavras, é qualificada de tas x; b) é necessário que este discurso inclua o sentido ideológico y.
mercantil justamente porque corresponde a um modelo de sociedade mer- Agora usaremos outro exemplo que permite - ou requer - uma análise
cantil, então é este próprio modelo que permite identificar a coerência de crítica mais complicada e que mostra a necessidade dos conceitos de "denota-
uma descrição, que somente se refere à aparência de tais relações, já que a ção-conotação" e "sistemas significantes". Trata-se da chamada "teoria da au-
teoria também dá conta desta aparência. O que permite identificar a "serviço" tonomia da vontade" do discurso do direito civil. Com a palavra "teoria" os
como um ocultamento ou aparência da mercadoria é a teoria social que des- civilistas, neste caso, se referem ao sistema significante que encontram no
creve a mercadoria. conjunto dos artigos do Código Civil que organiza os contratos. Este sistema
No caso do direito, e para o tipo de crítica que pretendemos, é necessá- significante é, desde logo, diferente do que encontraríamos se fizéssemos uma
rio partir de uma teoria sociológica previamente aceita, que para nós é a análise crítica sobre as bases aqui propostas. Podemos observar aqui o
marxiana. Como vimos, o discurso do direito se refere a ficções que assim são surgimento de dois sistemas significantes, o dos civilistas e o proporcionado
consideradas devido a sua comparação com a descrição das relações sociais pela interpretação de Marx feita aqui. O primeiro se organiza em torno ao
capitalistas previamente aceita. Mas bem, a teoria sociológica crítica do capi- tema da liberdade e o segundo em torno ao tema da equivalência. Asua me-
talismo proporciona descrições do capitalismo organizadas nos seguintes pIa- lhor descrição é formulada pelos próprios civilistas quando explicam esta "te-
nos: circulação mercantil, produção capitalista de mercadorias e circulação oria", da qual dizem que se "refere" à natureza humana, que é um dado supos-
do capital. Não obstante, precisamente por ser uma crítica da economia polí- to, desde logo. Esta natureza humana inclui a vontade livremente expressada
tica, e isto a difere de todas as demais teorias, ela proporciona os elementos - que costumam chamar "consentimento" -, sendo que o referente destes
para a crítica das ficções que pretendem passar por ciência. Ateoria de Marx signos é esta natureza humana, o que permite dizer que para os civilistas a
é o código que permite de-eodificar a ideologia apologética que aparece no "teoria da autonomia da vontade" se refere à natureza humana. Conhecemos
sentido ideológico do direito. Nenhuma outra teoria da sociedade capitalista este sistema significante, o reconhecemos como tal porque reconhecemos o
proporciona isto, precisamente porque não tem por objeto a crítica da socie- tema que o organiza. Eeste tema, a vontade livre, também constitui um códi-
dade capitalista e, portanto, não estão interessadas em desmontar a ideologia go que nos permite ler todos estes enunciados como componentes de um
que apresenta o capitalismo como "lógico", "natural" e, além disto, "bom", sistema. Contudo, ainda assim, possuímos outro código, o da teoria marxiana,
"muito" bom, muito melhor do que o socialismo, etcétera. Estas teorias não que nos permite ler ali um sistema significante que a mesma teoria previu.
oferecem nada para a crítica da ideologia do direito simplesmente porque não Segundo eles, os juristas apologetas do direito civil, este ramo do direito
foram formuladas para criticar nada. protege a natureza humana proibindo as condutas que atentam contra ela. O
Será necessário provar de alguma maneira que esta teoria sociológica direito, dizem, cingiu-se a reconhecer a natureza humana proibindo todas as
proporciona elementos plausíveis para a construção destes códigos. Para isto condutas que impeçam alivre manifestação da vontade. Estas proibições cons-
é preciso descrever os sistemas significantes que, logo, segundo a hipótese, tituem o conjunto dos artigos que sempre são colocados no capítulo de "ví-
encontraremos no discurso do direito. Se a análise responde às expectativas, cios de consentimento" ou "de vontade", e são conhecidos por todos os estu-
então demonstraremos possuir uma teoria melhor do que outras para a expli- dantes que tenham sido aprovados no curso de Contratos (lO).
cação sociológica do direito moderno. O fracasso consistiria em que não pu-
déssemos mostrar que os sistemas significantes descritos, e que se identifi-
quem no direito, se referem aficções que descrevem mentirosamente o que a
teoria sociológica crítica descreve acertadamente. Mais ainda, uma das boas 10 - Veja-se os códigos: de Oaxaca(de 1829), artigos 906 a 915; deTIaxcala(de 1976), artigos 1032
provas do acerto de tal teoria é mostrar que se encontra no discurso aquilo a 1316; Argentino (de 1869), artigos 954, 897a943e 1157; de Puebla (de 1985), artigos 1449,1457
que ela prevê encontrar. Ateoria de Marx nos permitirá adiantar o conteúdo a 1480.

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Estes artigos modalizam como proibidas as condutas que, se supõe, lação de mercadorias requer a participação de um portador, posto que as
impedem a livre manifestação da vontade, que nunca é definida, desde logo, mercadorias não podem ir sozinhas ao mercado e tampouco intercambiar-se.
porque isto não se pode fazer. Estes "vícios" são a violência, o erro, a fraude e Temos, pois, que voltar a atenção aos seus custódios, os possuidores de
a lesão. Uma vez comprovada a existência destas condutas tipificadas como mercadorias (11).
vícios, o juiz deve considerar inválido o contrato porque falta o consentimen- Marx constrói este modelo partindo das mercadorias - ou melhor, do
to expresso livremente. Esta "teoria" é um sistema significante organizado valor -, de modo que os homens aparecem depois. O que a hipótese propõe
em torno ao tema da livre vontade, o que lhe dá o tipo de coerência de sentido é que a categoria de sujeito de direito ou pessoa do direito civil tem como
do qual falamos. Mas este último provém, em realidade, não do discurso do causa estas relações sociais mercantis. Mas o quero destacar aqui é que a "von-
direito, mas sim de outro discurso que funciona como código, cujo tema é tade" reside nas mercadorias. Para que o intercâmbio ocorra, ou seja, para
esta idéia de que o homem é naturalmente livre e que deve ser respeitada esta "vincular estas coisas entre si como mercadorias, os custódios das mes-
liberdade, neste caso a de contratar ou expressar sua vontade. O jurista, que mas devem relacionar-se mutuamente como pessoas cuja vontade reside em
também possui este código ou teoria mentirosa da sociedade mercantil, inter- ditos objetos, de tal sorte que um, apenas com a concordância da vontade do
preta desta forma o conjunto de artigos do código civil e o denomina "teoria outro, ou seja, através de um ato voluntário comum a ambos, irá apropriar-se
da autonomia da vontade". da mercadoria alheia ao alienar a sua própria" (idem).
Neste capítulo do código CiVll, como conjunto de normas que é, pode- Em outras palavras, na superfície da sociedade mercantil existe a vonta-
mos diferenciar o sentido deôntico do sentido ideológico. Dentro deste últi- de, "se vê" a vontade. Contudo, isto é apenas a aparência. Em realidade, a
mo está o sistema significante conotado pela presença da palavra "consenti- relação social mercantil, que "não se vê", é uma relação entre mercadorias
mento", sistema que nos é revelado porque possuímos o código que os civilistas (12) que necessitam destes porta-vozes que são os indivíduos que fazem apa-
também possuem, e que se resume na idéia de que existe uma natureza huma- recer, no mercado, o valor que as mercadorias já tem. O aparente, então, é a
na que deve ser respeitada. Observe-se que o sentido ideológico geral é que o vontade, ou, dito de outro modo, a vontade é a aparência, a maneira através da
contrato é "natural". O sentido deôntico, por sua parte, está constituído pela qual o valor das mercadorias aparece no mercado. Não há outro modo de fazê-
modalização, como proibidas, das condutas de "exercer a violência", "induzir lo aparecer, ou pela "vontade" dos indivíduos que compram e vendem ou
a erro", "praticar fraude", "lesar", que são todas definidas deste modo nos pela decisão de outros indivíduos - funcionários públicos - que fixam seus
códigos civis, o que é conhecido de todos juristas, motivo pelo qual não é preços através de uma norma jurídica.
necessário alargar-se em comentários. Conforme a interpretação de Marx feita aqui este ponto é parte da des-
Acerca de tudo isto nossa hipótese de trabalho diz que o sentido ideoló- crição do modelo da circulação mercantil, que também é um sistema
gico do conjunto das normas que organizam os contratos - não apenas das significante que funciona como código que permitirá organizar o discurso
que organizam o consentimento - se refere a uma ficção das relações sociais analisado, mas com a diferença em relação ao outro de que o fará aparecer
denominadas "circulação mercantil", ou seja, o sistema significante conotado como mentiroso. Sobre a base deste modelo sócio-econômico deve construir-
- a naturez~ humana livre - descreve a aparência da circulação mercantil e, se um modelo normativo. Este modelo, obviamente, proíbe todas as condutas
por isto, é uma ficção delas. Não obstante, o sentido deôntico é o apropriado que impedem a manifestação do valor das mercadorias através do discurso de
para garantir a continuidade da circulação mercantil. Mas para provar esta seus portadores.
última afirmação teríamos que partir da descrição do modelo da circulação Aanálise do discurso do direito civil, por sua vez, mostra em seu sentido
mercantil e logo construir o modelo normativo apropriado para a reprodução ideológico algo que não tem nada que ver com mercadorias nem com valores,
da mesma e a seguir comparar este modelo normativo com o sentido deôntico
do direito civil positivo.
A descrição do modelo sócio-econômico é a dada por Marx em O Capi- 11 - MARX, K.,El Capita~ cit., tI, v. I, p. 103.
tal. Neste ponto algo particularmente importante é que a descrição da circu- 12 - Em realidade, Marx pensa que a mercadoria, em si mesma, é uma relação social. Portanto, é
apenas por não entrar nesta complicada construção que aqui digo que se trata de relações entre
mercadorias.

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e nem com mercados ou com custódios de valores. Desta análise do sentido é distinto do que foi entregue a conduta de "entregar equivalente" poderá
ideológico, como vimos, resulta óbvia a presença de um sistema significante produzir·se tanto promovendo-se a mútua devolução do que foi percebido
que está ali conotado por palavras como "consentimento", e que se organiza junto ao outro, como entregando uma compensação a quem obteve um maior
em tomo ao tema da natureza humana que possui esta vontade que deve ser valor. O modelo normativo apenas preverá a modalização da conduta "entre-
respeitada. Não obstante, a análise do sentido deôntico mostra que o proibido ga de equivalente" mas não as modalidades que possa adquirir esta conduta.
são todas as condutas que impediriam a aparição do valor das mercadorias Um bom exemplo é o pacto comissório. A conduta necessária é "entregar
como, por exemplo, o roubo, a violência física para fazer aceitar um valor equivalente". Contudo, se ela não é entregue, a equivalência fica a salvo tanto
inferior, induzir a erro para obter um valor maior do que o entregue, etcétera. restituindo o que já foi recebido, como entregando o prometido. Segundo a
O sentido deôntico desta parte do direito civil coincide, então, com o do terminologia forense a equivalência fica a salvo tanto obrigando ao cumpri-
modelo normativo constmído sobre a base do modelo sócio-econômico ofe· mento do contrato como permitindo sua resolução e a restituição do que foi
recido por Marx. Devido a que este modelo foi utilizado com êxito para a recebido. Isto, por sua vez, pode ocorrer tanto permitindo que o credor eleja
análise do sentido deôntico do direito civil e a que o modelo previa o sentido os termos da demanda como obrigando-o a solicitar alguma das duas soluções
aparente da relação social -"os custódios devem relacionar-se como pessoas possíveis.
cuja vontade... "-, podemos afirmar, plausivelmente, que o seu sentido ideo- Denominaremos categorias jurídicas ao conjunto de normas necessá.
lógico é uma ficção ou, então, que descreve mentirosamente as relações so- rias segundo o modelo normativo. As categorias jurídicas constituem, portan.
ciais. Acerca da objetividade destas, acerca de que a sociedade que produziu to, os elementos do modelo normativo. Por outro lado, chamaremos técnicas
este direito civil é uma sociedade mercantil, é possível dizer, também plausi- jurídicas ao conteúdo das normas que compõem um sistema jurídico positivo.
velmente, que esta FS é subsumível no modelo marxiano, posto que este pre· As técnicasjurídicas constituem elementos do sistema jurídico positivo e não
viu como teria de ser o direito desta FS caso fosse subsumível no modelo. do modelo normativo constmído. Isto nos pemitirá dizer que, por exemplo,
Aqui aparece um aspecto da questão que não desenvolvemos neste tra- no Direito Civil francês a categoria jurídica "contrato" prevista no modelo
balho. Ameu juízo, este tipo de Sociologia jurídica que procede a partir de normativo aparece neste sistema positivo em técnicas jurídicas distintas das
uma TSD inspirada no modelo marxiano funciona como procedimento de técnicas utilizadas pelo sistema mexicano. Não obstante, e esta é outra hipó-
comprovação das propostas de Marx caso as consideremos como hipóteses. tese, as técnicas de ambos sistemas jurídicos positivos poderão ser vistas como
Mas esta é outra questão. Aqui se tratava dos sistemas significantes que apare· .casos das categorias. Em outras palavras, as técnicas poderão ser subsumidas
cem conotados no sentido ideológico do direito. nas categorias. Desde logo, esta é uma hipótese que deve provar sua pertinência
para a análise deste direito positivo.
As categoriasjurídicas são discursos - normas-modelo - construídos
4.3. Categorias e técnicasjurídicas sobre a base do modelo sociológico. As técnicasjurídicas são frações do dis-
curso do direito positivo. Se a hipótese básica é válida, então a análise das
Mas há algo mais, e para isto necessitamos relacionar outras categorias técnicas empregadas para produzir o sentido deôntico deve permitir a con·
de análise. Deveremos buscar no discurso do direito positivo a conjuntos de clusão de que este é similar ao das categorias jurídicas que pertencem ao
normas coincidentes com as previstas no modelo normativo e, prevejo, va· modelo. Seja qual for a maneira em que esteja redigido o texto positivo, qual·
mos encontrá·las. (Também prevejo encontrar normas não coincidentes com quer que seja a técnica empregada para resolver a questão, nossa hipótese diz
as que integram o modelo normativo). Não obstante, o modelo pode prever que esta técnica poderá servista como um "caso" da categoria teórica baseada
somente as condutas que são necessárias para o funcionamento do modelo no modelo sociológico. Por exemplo, se a categoriajurídica é "obrigatória a
econômico e apresentá-Ias modalizadas deonticamente. Mas é fácil imaginar mútua entrega de equivalentes entre portadores de mercadorias" (porque caso
que tais condutas possam adquirir distintas formas. Por exemplo, entregar um contrário não se reproduziria a sociedade), que é a norma·modelo, nossa hi·
equivalente, conduta necessária para a reprodução da sociedade mercantil, é pótese diz que nas normas positivas analisadas - neste caso o direito civil -
algo que pode ser feito de distintas maneiras. Quando o que se obtém de outro deverá ser encontrado um sentido deôntico similar: "obrigatória a mútua en·

251
interessado poderá exigir judicialmente o cumprimento do acordado ou a
t re ga de equivalentes". Mas bem, a hipótese também _ diz- que no direito
. posi·
rescisão do contrato... (artigo 1532). Em relação aos bens móveis a resolução
tivo a técnica utilizada para resolver a questao - o nao cumpnmento por
parte do vendedor, por exemplo - não expressa~ te~ual~~nte "obrig~tó' da venda terá lugar de pleno direito quando o comprador, antes de vencido o
ria.. ." senão que irá dizê-lo encoberto por um sentIdo Ideologlco determl.na. prazo fixado para a entrega da coisa, não tenha se apresentado para recebê-Ia
do. (precisamente o que permitirá analisar e revelar o ocultamento produzIdo ou, se o fez, não tenha oferecido ao mesmo tempo o preço, salvo se para o
por este sentido ideológico é a sua não c,oinc~dência ~o~ acatego~a jU~ídica pagamento deste houvesse sido paetada uma maior dilação (artigo 3034).
produzida pelo modelo normativo). Alem dIsto, a hlpotese tam~em dIz ~ue No Código para o Estado de Puebla, de 1985, encontramos:
são possíveis distintas soluções técnicas para resolver a questao da mutua "O vendedor, a quem o comprador não tenha pago o preço, tem: I... III.
entrega de equivalentes no caso de não cumprimento da obrigação por parte O direito a demandar a rescisão do contrato... (artigo 2163). A compra·e·ven-
do vendedor. Todos sabemos, através do nosso conhecimento do direito civil, da de imóveis... se rege, quanto a sua rescisão, pelas seguintes disposições: I.
que os diferentes códigos resolvem a questão de maneira distinta. Em alguns A rescisão baseada no pacto comissório tácito apenas surte efeito entre os
códigos, quando se trata de imóveis, não se considera tácito opacto comissório, contratantes (artigo 2172). Acompra·e·venda a prazo de uma moradia ou de
ou seja, a possibilidade de demandar a rescisão do contrato. Já em outros um terreno se rege peias seguintes disposições: I... IX. O vendedor poderá
códigos, para a mesma situação, se estabelece o direito a eleger entre deman· demandar o cumprimento do contrato mas não a rescisão do mesmo..." (arti-
dar o cumprimento ou demandar a rescisão com devolução do que já foi en· go 2181).
tregue. Epodem ser imaginadas outras tantas técnicas que, resolvendo o mesmo No direito civil argentino, no código de 1869, encontramos:
caso de distinta forma, de qualquer maneira similar às mencionadas, tenham "Se a venda foi realizada com pacto comissório se reputará feita sob
por objeto obrigar à produção das condutas necessárias para deixar a salvo a condição resolutória. Éproibido este pacto na venda de coisas móveis, (artigo
obrigatoriedade da equivalência nas prestações, que é o enunciado na catego· 1374). Avenda com pacto comissório terá os seguintes efeitos: 1... 2... 3. O
ria jurídica entregue pelo modelo normativo próprio do modelo sociológico vendedor pode, a seu arbítrio, demandar a resolução da venda ou exigir o
da sociedade mercantil. pagamento do preço... (artigo 1375). Se o comprador não paga o preço do
Para ilustrar a utilização destas duas categorias usemos o exemplo do imóvel comprado a crédito o vendedor apenas terá direito a cobrar-lhe os
pacto comissório, nome que os juristas dão ao convênio que é acrescentado a juros de mora, mas não de pedir a resolução da venda, salvo que no contrato
um contrato bilateral. Segundo este, se uma das partes não cumpre sua obriga· estivesse expresso o pacto comissório" (artigo 1432).
ção, a outra tem direito a solicitar ao juiz a rescisão do contrato em lugar de Como se vê, as diferenças são notáveis. Podemos anotar as seguintes:
estar obrigada a solicitar o cumprimento do contratado. Estepacto comissório
poderia ser expresso ou tácito, isto é, poderia ser·lhe outorgada validez tanto • O direito francês e o mexicano aceitam que o pacto comissório é
se foi acordado peias partes no corpo do contrato como se não foi acordado tácito, enquanto que o direito argentino apenas o aceita quando
deste modo. Veremos três legislações, a francesa, a mexicana e a argentina. está expresso no contrato.
O código de Napoleão prevê: • No direito argentino o pacto comissório está proibido na venda de
"Si I'acheteur ne paye pas le prix, le vendeur peut demander la résolution coisas móveis, enquanto que é aceito de pleno direito no direito
de la vente, (artigo 1654). En matj(~re de vente de danrées et effets, la résolution mexicano e no francês.
de la vente aura Iieu de plein droit et sans sommation, en profit du vendeur, • No novo direito mexicano o pacto comissório está proibido na ven-
apres I'expiration du terme convenue pour le retirement." (artigo 1657). da de imóveis a prazo. No direito argentino é permitido caso esteja
No direito civil mexicano, código de 1870 para o Distrito Federal, en· expresso.
contramos que:
"A condição resolutória está implícita nos contratos bilaterais para o Mas bem, se se trata de trêsFS das quais ninguém duvidaria em subsumir
caso de que uma das partes contratantes não cumpra sua obrigação, (artigo sob o mollelo capitalista e se é certo que em cadaFSse produzem normas cujo
1465). Se o obrigado em um contrato deixar de cumprir sua obrigação o outro sentido deôntico coincide com o do modelo normativo formulado a partir do

253
252
modelo sócio-econômico, não seria de esperar que a legislação fosse ames· "com estas disposições se procurou dar a máxima proteção às pessoas
ma? Ou seja, os sentidos deônticos dos três direitos mencionados, conforme que adquirem sua moradia em parcelas" (13).
nossa hipótese, não deveriam coincidir? Ocorre é que neste caso, à primeira E caso ainda perguntássemos a razão desta inovação no direito civil
vista, não coincidem: as proibições ou autorizações de condutas não são as mexicano tradicional a resposta seria muito geral e válida para todas as refor-
mesmas. mas:
O que realmente diz nossa hipótese é que se umaFS pode ser subsumida "O Código Civil de De Puebla 1901 compreende numerosos preceitos
no modelo marxiano da sociedade capitalista nesta FS se encontrarão normas que... satisfazem os requerimentos de justiça, e o próprio Código contém dis·
cujo sentido deôntico coincidirá com o de outras normas·modelo que formam posições que não contribuem, atualmente, com sua aplicação, para satisfazer
parte de um modelo normativo composto pela modalização das condutas ne- as exigências de justiça... o novo Código inovou os preceitos civis quando foi
cessárias para a reprodução do modelo sócio-econômico. Ahipótese não pre- necessário" (idem, p. 192).
tende adivinhar quais serão as técnicas utilizadas pelo legislador para produ- Como se pode ver, esta e outras inovações correspondem ao conceito
zir este sentido deôntico, ela se refere unicamente à modalização de condutas de justiça do legislador que, desde logo, não tem porque corresponder com o
"básicas", ou seja, das condutas necessárias para a reprodução do modelo. dos empresários dedicados a construir casas que logo vendem a crédito aos
No caso da circulação mercantil a conduta necessária é a de entregar um valor trabalhadores. Etanto é assim que este código, por esta e outras reformas, deu
equivalente ao valor recebido, e apenas esta conduta. O que deve ser proibido lugar a duras críticas de setores empresariais e da igreja católica, sempre tão
é a entrega de um valor distinto, e apenas isto. Mas frente a entrega de valores reacionária às inovações que tornam mais amena a vida dos pobres, realidade
não equivalentes é possível imaginar várias condutas de reconstituição da que conheço pessoalmente por ter vivido na cidade estes anos e pela minha
equivalência. No caso do pacto comissório, por exemplo, o que o legislador amizade pessoal com o autor. Através da leitura dos parágrafos desta exposi-
realmente faz é eleger entre as distintas possibilidades de ordenar condutas de ção de motivos se extrai que tudo que não foi objeto de reforma foi mantido
restituição da equivalência. Como se vê neste exemplo, as possibilidades são por corresponder com a justiça. Disto resulta que a rescisão é ordenada por·
diversas e cada legislador elegeu a que lhe pareceu mais conveniente. Mas, que é justo. Mas, e isto é conhecido por todos juristas, não há razões para que
isto sim, nenhum deles teve a idéia, por exemplo, de ordenar a extração dos o justo seja a restituição do que foi entregue (mais juros e perdas e danos, se
dentes do devedor inadimplente, ou de enviar·lhe à cadeia, ou de ordenar-lhe for o caso) e não a amputação da mão ou um par de chicotadas. Em realidade,
que pague mais do que o acordado, ou qualquer outra conduta semelhante, esta primeira solução mencionada pertence a consciência jurídica espontâ·
apesar de que atualmente em alguns países se corta a mão do ladrão ou se nea dos civilistas. Contudo, se existe alguma explicação, nunca é a que se
açoita aos comerciantes desonestos. Porque não seguir estes sistemas jurídi- baseia na descrição marxiana da sociedade mercantil. Aexplicação se baseia
cos em vez de seguir o francês? Observe-se que em todos os casos do exemplo em uma descrição da aparência da circulação mercantil, se baseia na idéia de
o que se ordena é a restituição da equivalência e nada mais. Isto pode ser que o preço das mercadorias é produto da vontade das partes, isto é, se baseia
conseguido permitindo demandar a restituição do que foi pago acrescido de em uma ficção. Não obstante, conforme a descrição aceita, avontade é apenas
juros, permitindo demandar o cumprimento mais perdas e danos, per~itindo a maneira do valor aparecer, o qual não tem nada que ver com a vontade.
eleger entre ambas soluções ou, ainda, permitindo alguma das soluçoes ou ASociologiaJurídica e a Crítica do Direito que este trabalho quer funda·
ambas, mas, isto sim, distinguindo segundo se trate de bens móveis ou imó· mentar são mais ricas em poder explicativo porque não apenas não se redu·
veis. zem a uma explicação baseada na vontade do legislador e suas crenças sobre
Caso perguntássemos ao legislador qual a razão para eleger uma ou ou- a justiça como também pretendem explicar porque o legislador possui esta
tra técnica as respostas seriam variadas. Por exemplo, o legislador de Puebla ideologia. Para isto é indispensável separar, no sentido deôntico do discurso
dá sua razão para fazer uma exceção no caso da compra-e-venda a prazo q~n·
do se trate de imóvel, prática a que se vê obrigada amaior parte da populaçao,
posto que não tem recursos para adquirir moradia exceto desta maneira. O
código de Puebla proíbe demanda de rescisão se a mercadoria é um imóvel e 13 - Exposição de motivos do Código Civi/para o Estado de Puebla, publicada noPerlódico Oficial
de30 de abril de 1985, p. 212.
o pagamento é feito a prazos, e a explicação é simples:
255
254
do d1'reito civil positivo, as normas que coincidem com o modelo
,
formulado
1 - em??ra com alguma variação, em realidade, seria a explicação de qualquer
pela TSD, e as normas que podem ser vistas como aleatorias em re ~ç~o.a soclologo.
necessidade de reprodução daFS como capitalista. No caso do pado comzssono Aexplicação sociológica e crítica pretende abarcar não apenas esta elei-
as normas que coincidem com o modelo são apenas aquelas que proíbem ção feita pelo legislador entre as diversas técnicas jurídicas como também o
entregar um valor menor ao recebido, ou seja, as que obrigam ao juiz, produ· sentido deôntico básico, ou seja, acausa de que em todos os países capitalistas
zida a demanda, a ordenar ao moroso portador das mercadorias que entregue existam normas de direito civil que coincidem muito mais do que divergem,
ao outro intercambiador uma quantidade de valor que seja suficiente para que ou, caso se prefira, pretende explicar porque este legislador possui uma ideo.
se produza a equivalência. Mas esta é a norma-modelo obtida pela TSD a p~rtir logia que lhe faz ver como justo que nos contratos sejam respeitadas as pres-
do modelo sócio-econômico que descreve o intercâmbio como traspasso mutuo tações pactadas. Esta explicação, que não podemos aprofundar muito neste
de valores equivalentes. E resulta óbvio que se o intercâmbio tem de conti· momento, consiste em estabelecer uma relação de causalidade entre a FS, isto
nuar será necessário que os intercambiadores intercambiem conforme a equi- é, as relações sociais, e as ficções que descrevem a aparência destas. O legisla·
valência. Portanto, uma sociedade na qual a relação social dominante seja o dor obtém a ideologia com que constrói o discurso do direito junto aos siste-
intercâmbio necessita, se há de reproduzir-se como tal sociedade, produzir mas significantes que contém as descrições fictícias da sociedade mercantil
normas jurídicas que obriguem os indivíduos afazer trocas respeitando a equi· que encontra no discurso cotidiano. Neste caso, o sistema significante onde
valência. (Esta é uma hipótese geral de toda teoria sociológica que construa busca socorro é o organizado em torno ao tema da vontade livre e da idéia da
modelos). Estas normas são as que chamamos categoriasjurídicas. Mas bem, igualdade dos homens. Este sistema significante é o que está conotado no
o estudo de umaFS, a mexicana, por exemplo, oferece como resultado que o discurso do direito civil. Mas bem, neste caso em particular, há outra ideolo-
direito civil ordena isto que vimos. Coincide com a categoria jurídica? Certa· gia que intervém, que é de inspiração socialista: os trabalhadores são a parte
mente que sim. Mas o estudo de outra FS, a francesa ou a argentina, mostra débil da sociedade e o estado deve acudir em seu auxílio, neste caso específi-
que suas normas, modalizando condutas distintas, também coincidem com as co impedindo que lhes retirem suas moradias pela via da rescisão do contrato.
do modelo. Dito de outra maneira, há várias técnicas jurídicas distintas com (Aqui não oferecemos elementos de análise de uma ideologia socialista, o que
as quais igualmente se pode obrigar a que se produza a equivalência. CaS? faria excessivamente longo este trabalho). Como já havíamos proposto, a cau-
repassemos todos os códigos vigentes em sociedades que podemos subsumIr salidade entre relações sociais e ficções pode ser afirmada precisamente por-
no modelo da circulação mercantil - diz nossa hipótese - em todas elas en- que o sentido deôntico das normas coincide com o das normas-modelo ainda
contraremos normas cujas técnicasjurídicas cumprem com os extremos das quando o sentido ideológico coincida com as ficções e não com a descrição
categorias jurídicas apropriadas para uma sociedade capitalista. científica das relações sociais.
Estas normas, estas técnicas, a variedade entre elas, que depende das Mas bem, também é possível que não se encontrem as nom1as espera-
variações históricas, tem uma explicação. Desde logo que a explicação primá- das e expressadas em tais técnicasjurídicas. Em tal caso, ou a hipótese não se
ria, como mostra o exemplo da exposição de motivos citada, se encontra na comprova e tudo o que foi dito aqui é falso, ou muito duvidoso, se formos
ideologia do legislador e em antecedentes históricos como, neste caso, a gran- generosos, ou, então, não se trata de sociedades que correspondam ao mode-
de quantidade de trabalhadores que se encontram obrigados a não efetuar os lo capitalista. Se correspondem ao modelo capitalista e não tem as normas
pagamentos mensais, em vista do que os vendedores exerciam o direito de esperadas, mas sim outras contrárias - que ordenam condutas contrárias -,
rescisão, ficando com os imóveis que tinham maior valor do que quando os em tal caso, para que seja possível manter nossa hipótese é necessário formu-
venderam - pelas razões comuns que fazem com que nos países capitalistas a lar uma outra hipótese, a de que tais normas não serão eficazes. certamente a
terra urbana aumente de valor -, devolvendo uma quantidade de dinheiro Sociologia não pode reduzir-se a comprovação da existência ou não de certas
que já não era equivalente a que conseguiam que lhes fosse restituída, agra· normas que se esperava encontrar senão que deverá tentar confirmar sua efi-
vando, além do mais, o problema da falta de moradia. Estas são as causas que cácia. Neste momento começará uma tarefa sociológica, talvez a mais intetes-
encontra uma Sociologia Jurídica baseada em uma Teoria Sociológica do sante, que deverá tentar, antes de renunciar a seus fundamentos marxistas,
Direito de inspiração marxista no sentido proposto por este trabalho, que, estudar fenômenos já denunciados pela SociologiaJurídica, como o da eficá-

2S6 257
cia de normas materialmente não efetivas (14), ou fenômenos já mostrados
Capítulo Décimo-Terceiro
pela Teoria Crítica do Direito, como a função de produção de ideologia das
normas (I 5), o que permite pensar que certas normas são ditadas para produ-
zir efeitos que não são as condutas que explicitamente se diz ordenar ou proi·
EPílOGO EBALANÇO
bir. Estes novos elementos requerem prudência antes de rechaçar as propos·
tas marxistas pelo fato de que se comprove a inexistência das normas que se
espera encontrar conforme as previsões da TSD. Isto é precisamente pela
grande riqueza explicativa do pensamento de Marx, que está entre os primei-
ros em apontar a força - "material", dizia - das idéias.
Neste ponto surgem novas tarefas motivadas pelas descobertas socioló-
gicas que, muito mais que desmentir o marxismo, como é tão comum ouvir SUMÁRIO: 1. Asperguntas e atitudes iniciais; 1.1. Aperguntapelo ser assim do
desde fins dos anos oitenta, com grande simplismo e pouca seriedade, não direito; 1.2. O estado dos exploradores; 1.]. A ideologia jurídica; 2. A crítica da
ideologia jurídica; ]. As contribuições; 3. 1. O marxismo como hipótese; ].2. A
fazem mais que confirmá-lo. Este trabalho pretendeu oferecer fundamentos, Teoria Geral do Direito; ].]. O direito como discurso; ].4. A Teoria Sociológica
inspirados em Marx, para estes trabalhos deSociologiajurídica e de análise do do Direito; ],5. A causa do discurso do direito;]. li As categorias utilizadas;]. 7.
discurso do direito. A pluralidade de discursos; ].8. O reconhecimento do direito; ].9. A crítica do
conceito de causalidade entre relações sociais e direito; 4. A crítica do direito
moderno; 4.1. O direito privado; 4.1.1. O modelo sócio-econômico; 4.1.2. O
modelo normativo da Teoria Sociológica do Direito privado; 4.1.3. A Soeiolo-
giajurídica; 4.1.4. A Criticajurídica; 4.2.0 direito do trabalho; 4.2.1. O modelo
sócio-económico; 4.2.2. O modelo normativo da Teoria Sociológica do direito
do trabalho; 4.2.3. A Sociologia jurídica; 4.2.4. A Críticajurldica; 4.3. O direito
económico; 4.3.1. O modelo sócio-econômico; 4.3.2. O modelo normativo da
Teoria Sociológica do direito econômico; 4.3-3. A Sociologia jurídica; 4.3.4. A
Crítica jurídica.

Não fiz até aqui nenhuma referência a minha obra anterior, o que se
deve a minha tentativa de embasar esta pesquisa, quando necessário, em opi-
niões verdadeiramente autorizadas, mas, principalmente, por procurar torná.
la uma obra completa em si mesma. Contudo, não é possível ocultar que o
presente trabalho é continuação de preocupações anteriores. Por isto é que
agora me permitirei enquadrar esta pesquisa em trabalhos prévios antes de
fazer um balanço do que penso ter avançado.
14 - "... normas que, dotadas apenas de efetividadeformai, tornam-seplenamente efu:azes- isto é,
são adequadas aosfins que visam -porque não são dotadas deefetividade material"; GRAU, Eros
Roberto, Aordem eronômica na constituição de 1988 (intetpretaçilo ecritica), São Paulo, Ed. Revista 1. AS PERGUNTAS E ATITUDES INICIAIS
dos Tribunais, 1990,p.304.
15 - "...arepressão aparece muitas vezes, paradoxalmente, como umaforma que tende aencobrir Esta pesquisa é o resultado atual das respostas as primeiras perguntas e
e ocultar a produção de ideologia jurídica", ENTELMAN, Ricardo, "Aportes a la formación de una
epistemología jurídica en base a algunos análisis dei funcionamiento dei discurso jurídico", em as atitudes iniciais, que podem ser resumidas no seguinte:
LEGENDRE, P., yotros,Eldiscursojuridico, Buenos Aires, Hachette, 1982, p. 105. Em outras palavras,
aaparição de normas pode ter como objetivo areprodução de ideologia e não aprodução das condutas.

258 259
1.1. A pergunta pelo ser assim do direito o estudo crítico desta ideologia, que não é apenas dos juristas senão que está
presente na própria lei. Adistinção entre sentido deôntico e sentido ideoló-
O "ser assim do direito" é a pergunta inicial. Há alguma explicação para gico do direito, e entre ideologia do direito e ideologia jurídica são catego-
que o direito diga isto que diz e não outra coisa, para que seja assim e não de rias·chave para produzir esta crítica. O restante dos temas desta pesquisa são
outra maneira? Esta pergunta, desde sempre, tem sido melhor respondida os problemas que encontrei para oferecer o que, creio, é um procedimento
pelo marxismo do que por qualquer outra teoria social, e é uma pergunta que plausível para realizar esta crítica.
conduz à Sociologia jurídica e não, como parecia ao princípio, à ciência jurí- Este objetivo é distinto tanto do que se propuseram os juristas de Criti·
dica. Não obstante, devíamos precisar alguns pontos, pois a resposta marxista que du Droit (mas principalmente do que se propõem hoje) como do que
era demasiado simples: uma sociedade capitalista produz um direito capitalis- interessa aos membros da Teoria Crítica do Direito, ainda que exista um grano
ta. Mas resulta que sociedades diversamente capitalistas, como a argentina e a de número de temas comuns entre as três tendências.
francesa tem o mesmo direito civil. Por sua vez, sociedades semelhantes como
a argentina e a mexicana apresentam variantes, às vezes importantes, neste
mesmo direito civil copiado do francês. Como se explicam estas semelhanças 2. A CRÍTICA DA IDEOLOGIA JURÍDICA
e dessemelhanças? Desde o primeiro escrito me pareceu que a resposta estava
na diferenciação entre categoriasjurídicas e técnicasjurídicas (l). Este longo caminho teve por objeto proporcionar uma base científica à
crítica do direito moderno, colocando-a em um espaço distinto ao proposto
anteriormente (2). Naquele primeiro esboço a crítica aparecia instalada no
1.2. O estado dos exploradores espaço do político e não tinha a intenção de dialogar com outras ciências
sociais nem de competir com outras possibilidades científicas de fazer Socio·
Tudo o que escreví até aqui foi com a intenção de dizer que o estado logiajuridica, por exemplo. Apretensão era dirigir-se às convicções políticas
nunca produziu normas que tenham como objetivo a melhora do nível de vida já presentes nos possíveis leitores. Caso já tivessem uma atitude crítica frente
dos setores desprotegidos e empobrecidos de nossos povos. Portanto, toda a sociedade capitalista e seu direito encontrariam no esboço motivos para
tentativa de fazer acreditar que o estado - esta ficção a que atribuímos "vonta- confirmar avalidez de sua atitude. Não estava, verdadeiramente, pensado nem
de" - produz normas para beneficiar a estes setores, é uma apologia do poder preparado para competir com as ciências jurídicas possíveis. Obviamente que
que atua sempre em proveito dos setoresbeneficiários da pobreza da maioria. poderia competir com os embustes que são ensinados nas faculdades de direi-
Isto não quer dizer que o uso destas normas não possa ser beneficioso para os to, sem nenhuma vergonha, como se fossem ciência. Contudo, não estava
setores dominados. preparado para enfrentar críticas dirigidas desde uma perspectiva científica,
entendendo como ciência às convenções geralmente aceitas e que neste livro
analisei no capítulo cinco.
1.]. A ideologiajurídica O pensamento marxista ofereceu as bases da análise da sociedade capi-
talista, cujo fundo teórico é a lei do valor. Aidéia era que se o direito moderno
Por isto, tudo o que os juristas digam para fazer acreditar que o estado é capitalista ele protegeria a produção e circulação do valor. Parecia óbvio
protege aos mais fracos constitui uma ideologia mentirosa, apologética, digna que o direito privado protegia a circulação mercantil, que o direito do traba·
do maior desprezo, e que deve ser combatida em todos os terrenos. Este últi· lho fazia o mesmo com a produção capitalista de mercadorias e que o direito
mo foi o leitmotiv do que atualmente chegou a ser a presente pesquisa, isto é, econômico protegia e promovia a circulação do capital. Mas a tentativa tinha,

1 _ cORREAS,óscar, "Esposibleunadenciadelderecho",emRevistadela UnivemdadAutónoma 2 - CORREAS, Óscar, "!ntroducción a la crítica dei derecho moderno" (esbozo), Puebla, Ed.
de Puebla, número 9, Puebla, 1976, pp. 27 e ss. Universidad Autónoma de Puebla, 1982.

261
260
a meu juízo, uma importante debilidade, embora atacá-Ia requeira espírito 3. AS CONTRIBUIÇÕES
científico, o que, desde logo, falta absolutamente nos juristas tradicionais (que,
de todas maneiras, não se preocupam nem por este nem por qualquer outro As contribuições deste trabalho são, a meu juízo, as seguintes:
livro crítico). Este ponto débil é alvo fácil de uma objeção leviana m_as efic~z:
Como é possível sustentar que o direito do trabalho protege a relaçao salanal
_ que é uma relação de intercâmbio da mercadoria força de trabalho por 3.1. O marxismo como hipótese
dinheiro - se a lei, além de não mencionar tal coisa, diz expressamente ~
contrário, ou seja, que o trabalho não é uma mercadoria? Averdade, dizem, e Acrítica marxista da sociedade capitalista foi utilizada aqui como hipó-
que o direito do trabalho é preci~amente u~ ~onjunto, de normas tese que há de comprovar-se, ou não, no estudo do direito positivo. O marxis-
anticapitalistas, e muito mais em um paIs como o MeXtco onde e produto de mo foi assumido no primeiro esboço, tal como aqui, como ponto de partida,
uma revolução popular. O mesmo em !,el.ação ~o d~reito ci~il,. pois_porq~~ mas com a diferença de que agora a comprovação da hipótese básica, na prá-
deveríamos acreditar que os contratos sao mtercamblos se o codlgo nao o dIz. tica da disciplina aqui denominadaSociologiajuridica, seria mais uma verifi-
Aobjeção é leviana mas eficaz, ~ois para uma ~enta~id~d.e formada.p~r cação da crítica marxiana.
professores que são incapazes de ir alem da superfíCIe do Jundlco, se a ~el d~z A idéia é esta: se a teoria geral da sociedade capitalista proposta por
que o trabalho não é uma mercadoria, então, efetivamente, o trabalho nao o e, Marx, e entendo que esta apenas é composta porO Capital, permite umaT.5D
como duvidar disto? que enuncia como "teria de ser" o sentido deôntico de um direito funcional
Um espírito científico deveria dirigir a crítica de outra maneira. A per- em relação ao descrito na TGSK, e se uma pesquisa empírica fundada nesta
gunta que tem de ser feita é sobre como pode ser provado que o ~ireito civil TSD, levada a cabo pela Sj, verifica que realmente o direito positivo de um
organiza a circulação mercantil se a ela não se refere, ao menos dlretamen~e, país qualificado como capitalista contém este sentido deôntico, então a crítica
ou seja, se o discurso da circulação mercantil não e~tá ali prese~te? Ac:ed.lto marxista tem mais uma confirmação.
que o caminho para a resposta é aberto pela distinçao entre sent~do de?nt~co Claro, porque se a teoria marxista pretende ser um modelo aplicável a
e sentido ideológico: a hipótese consiste em afirmar que o sentIdo deontlco certas sociedades, e se além de descrever as relações capitalistas permite for-
não "se refere" a - porque as normas não tem referente - mas sim que pro- mular uma hipótese sobre quais seriam as normas apropriadas para estas rela-
vém das relações sociais, enquanto que cabe ao sentido ideológico referir-se ções e, ainda, se é formulada a hipótese de que certo país é capitalista, e a
as descrições fictícias destas mesmas relaç~es. A~ "r~ferir-se" a ficçõe~ o se~­ análise do seu direito coincide com a hipótese normativa baseada no modelo
tido ideológico oculta o mesmo que o sentIdo deontlco protege, ou seJa, a VII sociológico, então, a meu juízo, este último comprova sua validez. Isto é inte-
mercadoria, sua circulação e seus muito mais vis aproveitadores. ressante, principalmente, em países cujo discurso oficial é de que não se trata
Desenvolver os meios teóricos para tornar verossímil a hipótese, mas de países capitalistas, mas sim de pós-capitalistas, justos, bons e tudo o mais.
desta vez instalando o discurso em competição com as ciências jurídicas, de Além disto, muitas vezes o discurso oficial, e o de seus juristas, é de que o
qualquer modo quase inexistentes nas faculdades de direito, foi o obj~to deste direito contemporâneo reflete uma decadência do direito clássico, napoleônico,
trabalho, que em seu conjunto é uma continuação de todos os anteriores. que, este sim, era se1vagemente capitalista, em contraposição ao de agora,
que já não o é, posto que pretende a justiça, sobretudo para os trabalhadores.
Assim, a decadência do contrato napoleônico e a ascensão da relação de traba-
lho, que não é contrato, deve-se a que o trabalho não é mercadoria.

262 263
3.2. A Teoria Geral do Direito sentar o direito moderno como uma hipótese de trabalho e não como resulta.
do de observações que, a meu juízo, conduzem à apologia do direito tal como
Neste trabalho aceitamos a Teoria Geral do Direito de inspiração é: "o direito é um produto social". Até onde sei os marxistas trataram o direito
kelseniana. Isto implica abandonar as sugestões de Pashukanis, que foi o prin· moderno c~mo um fato e não como um modelo, sendo que suas afirmações
cipal teórico marxista, no sentido de que não há uma teoria "geral" do direito, sobre ele sao resultado de observação e não de uma construção teórica que
pois o direito mesmo não é geral, mas sim próprio da sociedade capitalista. A partisse de O Capital. Acredito que neste ponto a proposta desta pesquisa é
perspectiva de Pashukanis, relativamente a inexistência de uma TGD, me pa· original.
rece verdadeiramente desafortunada, sobretudo tendo em vista os resultados Esta proposta me parece singularmente útil, por exemplo, para o estu-
da teoria contemporânea, sem dúvida alguma positivos. Igualmente me pare- dante do direito agrário mexicano, tema para o qual o marxismo tradicional
ce desafortunada a perspectiva de Pashukanis que conduz à negação da Soci· não t.inha, a meu juízo, nenhuma proposta teórica interessante. Uma TSD pro-
ologia jurídica. porCIOna, em troca, elementos para a crítica deste direito que tanto a esquer-
da como a ideologia oficial coincidem em defender como "conquista popular"
da revolução de 1917. Um estudo sociológico deste conjunto normativo, des.
3.3. O direito como discurso de a perspectiva de uma TSD de inspiração marxista, não me parece que
ofereceria o mesmo resultado.
Apresente pesquisa teve oportunidade de aprofundar-se no que concerne
à consideração do direito como um discurso do poder. Isto, sem dúvida, não
é uma novidade. Acontribuição feita, creio, é de aproximar aSociologiajurí- 3.5. A causa do discurso do direito
dica à análise do discurso. Este trabalho pode ser considerado como um en-
saio metodológico, tanto de Sociologia como de Semiótica (ou Semiologia) Toda Sociologia jurídica tem de partir do pressuposto que o direito
ou análise do discurso. (A qualificação, conforme o estado destas disciplinas, mantém relação de causalidade a respeito da "realidade social". Mas, além
é duvidosa). Foram utilizados elementos extraídos de certas leituras da disto, ao menos algumas tendências desta sociologia estão prevenidas de que
Semiótica para pensar o discurso do direito. As categorias principais, sentido o discurso do direito oculta estas mesmas relações das quais é efeito.
deôntico e sentido ideológico, são próprias de uma consideração do direito Mas bem, como provar tal relação uma vez suposto tal ocultamento?
como discurso. Aincorporação da categoria"código" resulta da maior utilida· Aqui tentamos vencer a objeção segundo a qual não existe nenhuma prova de
de para pensar a Grundnorm, por exemplo, mas também para pensar nas que o direito "oculte" relações sociais, pois, caso as oculte, não há elementos
teorias e pseudo-teorias sociológicas que são os discursos que, convertidos o~jetivos que permitam encontrá·las. Com efeito, como é possível saber que
em códigos, tornam possível decifrar o direito de diversas maneiras segundo ha ocultamento de algo que não aparece? Dito de outra maneira, as grandes
quem seja o destinatário ou leitor. O resultado oferecido pela análise do dis- perguntas são: a) Como pode ser causa o que é referente?; b) Como pode
curso sociológico, que mostra a causa do direito como o referente dele pró- h~ver relação de causalidade entre relações sociais e um discurso no qual elas
prio, constitui uma crítica da Sociologia ingênua, que acredito ser original, nao aparecem? Para demonstrar que ela existe é necessário mostrar o oculto,
ressalvando, desde logo, a existência de trabalhos sobre este problema que mas no caso do direito esta demonstração deve ser realizadapela análise do
não conheça. próprio discurso. Contudo, a meu juízo, para isto é necessário que previa.
mente postulemos como hipótese o que esperamos que esteja oculto e, de-
pois, encontrá-lo, ou não, na análise do discurso eleito. O que está oculto,
3.4. A Teoria Sociológica do Direito postulamos, é a socied~e capitalista. Assim, devido a que não há vestígios da
sociedade capitalista no discurso do direito, posto que ab-initio dizemos que
Assim como a crítica marxiana da sociedade capitalista é utilizada como há ocultamento, postulamos que, se isto é o que está oculto, então o sentido
hipótese, anteriormente também foi utilizada uma teoria sociológica para apre- deôntico do discurso analisado deve ter certo conteúdo e não outro qualquer

264 265
(tarefa da TSD). Se, efetivamente, o ?ire~to pO,si~ivo analisado mostra tal se~ti­ 3. 7. A pluralidade de discursos
do deôntico, então aparece o sentido Ideologlco como ocultador. Esta e a
principal contribuição desta pesquisa. Incidentalmente foi necessário pôr termo à discussão entre aqueles que
definem o direito como organização da violência e aqueles que encontram
nele algo mais. Aresposta é que se trata de textos que suportam vários discur.
sos, um dos quais ameaça com aviolência. Isto não nega a existência de outros
3.6. As categorias utilizadas
tantos discursos, que é precisamente o objetivo desta crítica jurídica. Por ou-
Assim como os juristas tradicionais buscam o "verdadeiro" sentido das tra parte, se tenta deixar clara a diferença entre o discurso e seu uso. Isto,
normas, a crítica jurídica, do modo em que a propusemos aqui, busca o senti- acredito, põe termo à discussão.
do "não verdadeiro" destas mesmas normas e dos discursos que as repetem. Mas bem, isto requer uma definição do tipo de textos dos quais se trata.
Se os juristas, para sua Dogmática, querem limpar os textos jurídicos para Como aceitamos que não apenas possuem discursos que ameaçam com a vio-
encontrar estritamente o que se deve ou não se deve fazer sob pena de san- lência, então não é a ameaça de violência o que distingue oS textos jurídicos
ção, para "explicitar" as normas, como dizem, à crítica jurídica interessa justa- de quaisquer outros textos. Portanto, se requer uma identificação deles que
mente isto que incomoda aos juristas, ou seja, a ideologia que encobre as não esteja reduzida à organização da violência. Isto foi o que conduziu aos
normas. Assim como os juristas querem - dizem eles que querem isto - apre- critérios semânticos e pragmáticos propostos nos capítulos segundo e tercei-
sentar o direito como isento de qualquer ideologia, a crítica jurídica quer ro, e a razão do longo périplo no interior das discussões que, em princípio,
apresentá-lo como um discurso que diz muito mais do que os juristas ~iz~m parecem não ter relação com aSociologiajurídica.
que ele diz. Esta crítica jurídica não se pergunta pelo como se usa o direito
mas sim pelo que ele diz. O uso já é outra questão. . ._
Nesta perspectiva as categorias utilizadas constituem uma contnbUlçao, 3.8. O reconhecimento do direito
ainda que não seja definitiva, para esta análise crítica. Sentido deôntico e sen-
tido ideológico são as categorias centrais. Outras categorias como discurso do A identificação dos textos nos quais deveriam ser encontrados os dis·
direito e discursojurídico, ideologia do direito e ideologiajurídica, são auxi- cursos que interessam a esta crítica jurídica conduziu, também, a desenvolver
liares. Categorias necessárias para a análise são denotação e conotação, assim o critério do reconhecimento particular e generalizado do direito. Um texto
comosistema significante. Os conceitos de categoriajurídica e técnicajurídi· contém um discurso do direito apenas se "alguém", ainda mais se for o chefe
ca são imprescindíveis para uma Sociologia jurídica não apologética do esta- das forças armadas, o reconhece como tal, o que, ao fim e ao cabo, nada mais
é que o reconhecimento da legitimidade do poder de quem o produziu e,
do. sobretudo, de quem designou ao que o produziu. Isto desenha um mapa do
Por outro lado foram delineadas distintas disciplinas cujo objeto era
aclarar a questão mais que propor que se trata de atividades passíveis de se- direito no qual a circulação do sentido deôntico requer a circulação, em sen-
rem separadas na prática científica. Tudo parece mais claro se diferenciamos tido contrário, de discursos de reconhecimento. A generalização desta
a tarefa que consiste em produzir um modelo normativo a partir ~e um mo?e- contracorrente discursiva constitui, em definitivo, ao estado. Isto também
lo sociológico como o proposto por Marx da tarefa que consiste em ve-la constitui uma contribuição, ao menos para aqueles que, como eu, não tínha·
como um sistema jurídico positivo e sua utilização. Por isto a necessidade de mos percebido devidamente esta questão.
separar, se não duas disciplinas, ao menos duas tarefas, a Teoria Sociológica Isto, por outra parte, joga por terra qualquer pretensão de apoliticidade
da ciência que descreve o direito. Com efeito, se cada ato de reconhecimento
do Direito e a Sociologia jurídica.
de uma norma é um cUscurso que atribui - imputa - a quem a ditou o poder de
fazê-lo e, além disto, atribui - imputa - a quem designou a este funcionário a
faculdade de designá-lo, então a pretensa ciência jurídica tem como efeito
legitimar o uso do poder. Tudo isto é exatamente o que necessita quem detém

267
266
o poder, ou seja, que se diga que ele o detém e que, a!ém disto, é ele qu~m
legitimamente usará a força em caso de ser des?bedecldo.. . ,. 4. A cRíncA DO DIREITO MODERNO
Portanto, a Crítica jurídica, ou seja, a cntica do sentido Ideologlco do
discurso do direito e a crítica da ideologia jurídica, longe de ser, como querem Este era o título e a intenção do primeiro esboço. As análises deste livro
os juristas tradicionais, uma atividade _política - no sentid? p~jorativo que podem ser mantidas à luz da presente pesquisa. Agora, no entanto, pode di.
possa ter a expressão em suas intençoes pretensamente clentlfi~as -, tem zer·se que tais análises dispõem de fundamentos científicos plausíveis. Pode.
ríamos resumir deste modo:
melhores possibilidades de ser "ciência" que o "puro" reconhecImento das
normas "sem tentar julgar sobre sua conveniência". ACríticajurídica preten·
de analisar a ideologia que encobre as normas e não indicar quais são elas.
Deste modo, ao menos, pode ser uma das ciências da linguagem. Contudo, a 4.1. O direito privado
Dogmáticajurídica não tem possibilidades de não se;. um re~onheci~ento
da legitimidade de quem ditou as normas qu.e descr~~ve . Im?a~c~almente .Isto Aidéia era, então, que o direito privado "se refere" à circulação mercan.
me parece uma contribuição à epistemologIa das ClenClas Jundlcas ao mesm? til, a quem protege facilitando sua reprodução. Conforme o que propusemos
tempo que dá objeto a esta disciplina que pode legitimamente chamar·se CTt· neste ensaio, o procedimento seria o seguinte.
tica jurídica.
4.1.1. O modelo sócio·econômico está constituído pela descrição
marxiana da circulação mercantil, cujos elementos centrais são, como se sabe,
3.9. A crítica do conceito de causalidade entre relações e simplificando muito, as mercadorias que se intercambiam conforme seu
valor e os portadores das mesmas.
sociais e direito

Apesquisa também nos levou a tratar o ~roblema q~e, ?esd~ sempre, a 4.1.2. O modelo normativo da Teoria Sociológica do Direito privado
idéia de "causa" propôs. Este atrevimento filosofico de um Junsta nao pode ter está constituído pela modalização das condutas de intercâmbio _ entre porta.
a pretensão de ser uma contribuição original. Não obsta?te, ao ~enos e?tre dores de mercadorias e conforme a lei do valor -. Amodalização de obrigação
juristas, me parece um bom caminho relacionar as pesqUIsas de Mlchel YIlley recairia sobre todas as condutas necessárias para a reprodução do modelo, ou
com todas as demais acerca do sujeito no pensamento moderno, e sugenr que seja, sobre a qualidade de equivalente dos intercâmbios. A modalização de
"causa" coincide com esta idéia de sujeito. proibição, obviamente, recairia sobre todas as descrições de condutas que
Isto nos remete, imediatamente, à questão da relação de causalidade impeçam o intercâmbio equivalente. Este modelo inclui, desde logo, a
entre "realidade social" e direito. Neste ponto, também me parece uma boa modalização como obrigatória das condutas dos funcionários públicos encaro
regados da vigilância do cumprimento de tais condutas. Como se sabe, o dis.
indicação sugerir - apenas sugerir, por enquanto - qu~ a: relaçõ~s ~ociais
estão constituídas pela repetição das condutas cuja descnçao cons~ltUl ades· c~rso jurídico modaliza como obrigatórias as condutas dos funcionários, que
crição que os sociólogos fazem destas relações sociais. Mas como ?ao se p_ode sao os encarregados de exercer a violência contra os rebeldes em troca do
equivalente.
dar nome a estas condutas sem recorrer ao seu sentido normatIvo, entao a
descrição sociológica não pode prescindir da quali~cação. j~;íd!ca. ~~e se~a
4.1.3. ASociologia]urídica poderia perguntar·se se no Brasil por exem.
o sentido das expressões "o direito constitui a relaçao sO,clal e, o. dlrelt~ na?
pIo, é possível observar normas cujo sentido deôntico coincide ~om o pro.
é algo externo a ela", sugeridas nas obras citadas no capItulo declmo·pnmel·
ro, destinado a esta questão. Penso que este é, ainda, um problema aberto, posto pela análise anterior. Como qualquer pessoa sabe, o código civil está
principalmente pela desesperada resistência dos sociólogos em confessar que, composto por uma grande quantidade de normas cujo sentido deôntico coin.
se o querem ser, tem de aprender direito... cide com o proposto pela TSD. Aanálise do primeiro esboço encontrava coi.
sas, pessoas e contratos no direito civil, aos que designava categoriasjurídi.
caso Agora estas "categorias" seriam vistas como parte da construção formula.
268
269
da pela TSD. Ahipótese seria que em toda sociedade que possa ser qualificada permite mostrar a falsidade deste discurso e seu caráter apologético do esta-
como mercantil se encontrará discursos que coincidam com estas categorias do, ao mesmo tempo que sua eficácia como reprodutor da sociedade mercan-
que são coisas, pessoas e contratos. Entenda.s~, n~ direito positivo aparece· til, é, de novo, o modelo resultante da TSD. Por outro lado, o que permite
rão sob a forma de distintas técnicas que modahzarao do mesmo modo, todas postular uma relação de causalidade entre a sociedade mercantil e estas leis
elas, as condutas necessárias para a reprodução da circulação mercantil. A supostamente protetoras dos mais fracos é a coincidência entre seu sentido
análise do Código Civil, por exemplo, oferece este resultado, como se sabe. ideológico e o do modelo normativo, embora em seu sentido ideológico não
As técnicas variam nos distintos países mas, no entanto, todas elas podem ser estejam presentes as mercadorias, mas sim "bens" e "serviços" unicamente, e
analisadas à luz das categorias indicadas. Contudo, verificaremos que em muitos os funcionários da procuradoria aí estejam precisamente para evitar que os
códigos a sociedade é vista como um contrato quando, em realidade, ali não maus comerciantes façam dos pobres suas presas. Em realidade, poderá dizer-
há intercâmbio. O sociólogo deve encontrar aqui uma explicação; e, se não a se, tais funcionários aí estão para sancionar as condutas que impedem a circu-
encontra, é porque o modelo não serve, ou devido a que não se pode dizer lação equivalente das mercadorias e, portanto, para defender umas relações
que o código mantém uma relação de causalidade com uma sociedade mer- sociais das quais os pobres são justamente as vítimas.
cantil. Note-se que sem uma TSD o jurista não teria nenhuma idéia útil para
explicar a sensível diferença entre o contrato de sociedade e o contrato de
compra-e-venda. Porque, então, tanto um como outro são contratos? Porque 4.2. O direito do trabalho
ambos são "acordos de vontade". Bem, mas sucede que em alguns códigos a
sociedade é o procedimento idôneo para constituir uma pessoa e não um A diferença entre a forma de encarar o problema do direito do trabalho
contrato. Então, a velha explicação de que ambos são contratos porque são entre a Critique du Droit e meu primeiro esboço é um adiantamento da dife-
acordos de vontade já não serve. Apossibilidade de encontrar uma explicação rença hoje existente entre ambas tendências. Digo tudo isto dito sem desco-
passa pelos dados proporcionados por uma TSD como a que propus aqui. nhecer, por outra parte, a notável semelhança dos fundamentos de ambas
críticas. Para a Critique du Droit, leia-se, sobretudo, Antoine )eammaud a
4.1.4. A Crítica)urídica encontraria, além do mais, um amplo conjunto análise crítica do direito do trabalho se dirige principalmente a mostrar s~a
de discursos que já estão no próprio código ou que estão contidos nas expli- gênese, sua prática e suas funções, que são as de salvaguardar as relações
cações dos juristas. Encontrará neles, como todos sabemos, a ideolo~ia capitalistas de produção. Por minha parte, ainda que o fundamento da análise
apologética que vê no direito civil a proteção da natureza humana. Nao fosse o mesmo, o marxismo de O Capital, a atenção se centrava mais na ideo-
obstante, o jurista crítico saberá que este sentido ideológico do discurso d~ logia do que nas funções, mais no próprio discurso do que em seu uso, se
direito civil, em realidade, oculta as relações mercantis e, portanto, que e tratava, ao fim e ao cabo, de indicar o caráter apologético da ideologia do
falso que a natureza humana seja defendida. A objeção de que no discurso d~ direito e, sobretudo, da ideologia jurídica. Por isto que em um ensaio anterior
direito o que aparece é a natureza humana e não a sociedade mercantil sera (3) a análise se dirigia a estes três pontos principais: 1. que o trabalho é uma
contestada com a identificação do sentido deôntico do direito civil com o do mercadoria; 2. que o contrato de trabalho é um contrato de compra-e-venda-
modelo normativo da r5D, com o que o sentido ideológico se apresenta como o que a doutrina latino-americana negou -; 2. que os critérios de distinção
ocultador das relações mercantis. O resultado desta rSD é o que permite gui- entre ,contrato de trabalho e contrato civil, postulados pelos juristas que lidam
ar-se no emaranhado de discursos apologéticos do direito e mostrá-los como com o direito do trabalho, são mentirosos e apologéticos. O artigo terminava
mentirosos. assim:
As leis de proteção ao consumidor oferecem exemplos ilustrativos. Seu
sentido deôntico coincide com o modelo normativo apropriado à sociedade
mercantil enquanto que seu sentido ideológico e, sobretudo, a ideologia jurí·
3 - CORREAS, Óscar, UE] contrato de compraventa de fuerza de trabajo', Revista dei PoderJudicial
dica, mostra algo muito distinto, que pode resumir-se na "vontade" do estado de Tlaxcala, ano II, número 6, abril-junho, 1979 (o trabalho, noentanto,foi escrito em abril de 1978),
de proteger aos mais fracos que, se supõe, são os "consumidores". O que pp. 138e 55.

270 271
"A controvérsia se baseia exclusivamente no fato de que esta doutrina própria legislação o trabalho - e não a/orça de trabalho - não é uma merca·
oculta o caráter mercantil da força de trabalho. Sua crítica, portanto, apenas doria, ao mesmo tempo que entre patrão e trabalhador não há compra-e·ven·
teve por objeto mostrar como a ideologia jurídica pode chegar a conclusões da ou contrato algum - na doutrina latino-americana, ao menos -, mas sim
justas mas que ocultam a realidade social devido à mistificação dos argumen· uma "relação de trabalho", posto que o estado moderno já superou ao direito
tos." (idem, p. 193) napoleônico organizado em tomo a autonomia da vontade, pois agora é con·
Como podemos observar, o objetivo era a crítica da ideologia que ocul· cedida proteção ao mais fraco, que é o trabalhador.
ta as relações sociais e não o estudo das funções do direito em um sentido a que permite esta crítica da ideologia é o ponto de partida, que é o
sociológico. Não obstante, ali também estava a debilidade: Como se prova que modelo sócio-econômico aceito, e o modelo normativo cujo sentido deôntico
o direito do trabalho se refere ao caráter mercantil da força de trabalho se coincide com o do direito positivo. Que o sentido ideológico do direito posi·
precisamente isto é o que oculta? tivo seja distinto, é o que mostra a ocultação das relações capitalistas que,
agora se pode dizer plausivelmente, mantém relação de causalidade em rela·
4.2.1. a modelo sócio·econômico é a análise marxiana dos capítulos IV ção ao direito do trabalho.
ao XX do tomo I de O Capital. Ali é analisada a mercadoria força de trabalho e
o processo de produção da mais·valia. Este modelo foi utilizado no primeiro
esboço (4), embora não neste caráter de modelo sujeito a comprovação. A 4.]. O direito econômico
proposta de Marx, como se sabe, é que a força de trabalho é uma mercadoria
que tem um valor no mercado e um valor de uso que consiste emproduzir um Aanálise do denominado direito económico do primeiro esboço é com·
valor maior do que o do mercado. Portanto, o modelo mostra duas etapas no pletamente original, ainda que ninguém tenha percebido. Também neste pon·
movimento do capital, a compra desta mercadoria e seu uso posterior. to, desde o princípio, o objetivo foi a denúncia da ideologia jurídica, que
apresenta o estado moderno como "interventor" na área econômica, para que
4.2.2. O modelo normativo da Teoria Sociológica do direito do trabalho os capitalistas já não possam fazer o que desejam, tal como antes, no estado
estaria constituído pela modalização das condutas de intercâmbio destas mero liberal do século passado. Em um primeiro trabalho (;) o objetivo era clara·
cadorias - dinheiro e força de trabalho - e pelas condutas de uso da mercado- mente uma análise do discurso:
ria comprada. A modalização proibitiva seria, desde logo, a da descrição das "Este trabalho... constitui o ensaio de uma crítica, principalmente de
condutas que impedissem estas condutas de intercâmbio e uso de mercado- todo este discurso ideológico que tende a apresentar o direito econômico
rias. como instrumento do Estado para dirigir a economia contra os interesses do
capital a favor do bem·estar social."
4.2.3. ASociologiajurídica poderia perguntar·se se no direito positivo Embora sem ter clara consciência de que a tentativa significava instalar·
se encontram normas como as previstas pelo modelo da TSD, resposta que já se na çonsideração do direito como discurso, indubitavelmente o objeto de
conhecemos: efetivamente, todos os sistemas jurídicos modernos possuem estudo era este e não a utilização do direito económico. Não obstante, a defi-
uma enorme quantidade de normas que são técnicas jurídicas em relação a nição deste ramo jurídico estava dada, como quer a crítica francesa, pela/uno
estas categorias de compra·e·venda e uso da força de trabalho. ção:
"o objetivo do direito econômico é assegurar a reprodução ampliada do
4.2.4. A Crítica Jurídica, por sua parte, depara·se com que o sentido capital... garantindo o cumprimento das distintas funções do capital." (idem,
ideológico do direito do trabalho é completamente distinto do modelo p.128).
normativo, embora o sentido deôntico coincida com este último. Segundo a
5 - CORREAS, Óscar, "Derecho Económico y reproducción ampliada", apresentado ao Congresso
Internacional de Direito Económico, VAM, México, 1981, publicado posteriormente emlde%gia
4 - Parte II, capítulo 6, e parte III, capítulo 1. fundim, Puebla, Ed. Universidad Autónoma de Puebla, 1983, pp. 123 e ss.

272 273
Em outras palavras, o que permitia a crítica da ideologia do direito eco- onde D representa a quantidade inicial de capital, M as mercadorias nas quais
nómico era uma definição sociológica dele próprio - por sua "função" -, se converte, e D' o resultado final, onde o apóstrofo simboliza o plus obtido.
como também era o caso do direito do trabalho. Mas esta definição era obtida A diferença entre este modelo e o da circulação de capital consiste simples-
a partir da afirmação de que o capital, segundo Marx, deveria cumprir certas mente em que neste último processo o capital se lança à circulação, mas não
funções para poder reproduzir-se de modo ampliado. Imediatamente se afir- para converter-se em quaisquer mercadorias, mas sim, principalmente, em
mava que para isto era necessário a existência de certas normas, e que estas uma mercadoria especial, a força de trabalho, que tem a propriedade de gerar
eram as que formavam o direito económico. Certamente estão os elementos mais valor do que ela própria custa. Como complemento, sem o qual esta
atuais: um modelo sócio-económico, uma necessidade normativa - um mode- celestial mercadoria não geraria a mais-valia, o capital também deve conver-
lo jurídico - e, finalmente, um direito positivo. Mas não havia uma análise do ttl-se em meios de produção que, por sua vez, também são oferecidos no
discurso deste direito positivo, simplesmente eram indicadas as normas que o mercado como mercadorias. Logo, estes dois tipos de mercadorias se combi-
constituíam como um ramo especial, e tais normas eram as que tinham como nam no denominado processo de produção, ao final do qual aparece outra
objetivo promover as condutas necessárias para a reprodução ampliada do mercadoria, mas que já não vale o mesmo que o resultado da soma da força de
capital. Aqui há uma diferença em relação aos casos das normas civis e traba· trabalho e meios de produção, posto que agora contém mais-valia. O movi-
lhistas, pois todos sabem quais são estas: as que estão no Código Civil e na mento final é o da realização das mercadorias, momento no qual o capital
legislação trabalhista que é estudada em cursos especiais e com manuais espe· volta a assumir sua forma monetária, com a diferença de que agora está au-
cíficos. Em outras palavras, se trata de ramos jurídicos institucionalizados. Em mentado em relação ao montante inicial. Este modelo era simbolizado por
troca, ainda não existe a mesl11a situação em relação ao direito económico, Marx como
isto é, hoje não encontraríamos dois professores que coincidissem na indica·
ção de quais são as normas que integram este ramo, enquanto que todos os
que se dedicam ao direito civil assim como ao direito do trabalho estão de
acordo sobre quais são as normas que estudam. Em relação ao direito econó- P -M'-D'
míco a tentativa destes primeiros trabalhos era oferecer um critério para es-
tabel~cer quais são as normas que o integram. Os resultados não foram além
disto. Atualmente, a análise poderia ser enriquecida através do estudo do sen-
tido ideológico das nomus até aqui indicadas como pertencentes a este ramo onde Ff é a força de trabalho, MP os meios de produção, P o processo de
jurídico. Demorarei um pouco mais neste exemplo em virtude de que acredi- produção, e M' a nova mercadoria que possui a também nova mais-valia D'.
to que é em relação ao direito económico que resulta mais fecundo o procedi- Este é o modelo de funcionamento do processo de reprodução capitalista.
mento proposto neste ensaio.
Sobre a base deste modelo Marx constrói, agora, o que denomina as
4.3.1. O modelo sócio-económico seria o oferecido por Marx no estudo funções do capital, que desdobra em
da reprodução ampliada do capital. Após a descrição da circulação das merca·
darias, em um modelo também teórico, Marx procede à descrição do movi- • capital monetário
mento de produção e reprodução do capital. O modelo utiliza como base a • capital produtivo
mesma estrutura da circulação mercantil capitalista, que supõe uma massa de • capital mercantil
capital que se lança à circulação para adquirir mercadorias que logo venderá
com lucro. Marx desenhava este modelo como o processo O capital monetário é D, o produtivo é P e o mercantil é M'. Diz que
cada um que tem uma "função": a função do capital monetário é converter-se
D-M-D' em FTe MP, ou seja, converter-se em produtivo. A função do capital produti-
vo é converter-se em um conjunto de mercadorias que incluem a mais-valia,

274
ou seja, converter-se em mercantil. Afunção do capital mercantil é converter- alguns capitalistas produzam como mercadoria o que outros necessitam como
se em D', ou seja, novamente, em monetário. Caso tudo isto suceda meios de produção. No entanto, caso tal produção não seja obtida, deve ser
exitosamente, então terá sido produzido um movimento de reprodução am- feita sua importação de tal modo que não afete as exportações, que nada mais
pliada de capital. Asociedade capitalista, segundo Marx, é um imenso conjun- é que o cumprimento da função do capital mercantil nacional, etcétera. O
to de processos como este, de modo que em todo momento há capital cum- modelo econômico nos permite construir um modelo jurídico de funciona-
prindo as três funções. Como se compreende facilmente, não quer dizer que mento. Com efeito, podemos dizer que o funcionamento do modelo econômi-
isto ocorra sempre. Trata-se apenas de um modelo com poder de explicação, co depende de que se produzam e reproduzam constantemente determinadas
da mesma forma que o fato de que algo deva ser não quer dizer que seja. condutas. O conjunto das normas que contém a descrição, modalizada
Também se compreende facilmente que para a sociedade capitalista reprodu- deonticamente, destas condutas necessárias constitui este modelo jurídico. O
zir·se, segundo este modelo de Marx, é necessário que este processo seja modelo jurídico é constituído pelo conjunto das normas que são necessárias
produzido infinitas vezes sempre com êxito redivivo. Quando isto não ocorre, para que o modelo econômico funcione. As normas necessárias são aquelas
aparece a crise. Até aqui Marx e o modelo sócio-econômico. que tornam a ausência das condutas necessárias para o funcionamento do
modelo econômico a condição da sanção. As condutas necessárias são os
4.3.2. O modelo normativo da Teoria Sociológica do direito económico movimentos que os cidadãos devem cumprir para que a sociedade possa re-
estaria constituído pela modalização das descrições das condutas necessárias produzir-se tal qual é. Pode dizer-se que a reprodução ampliada do modelo
para que se produzisse areprodução ampliada. O modelo anterior é um mode- capitalista depende de que se produzam certas condutas como, por exemplo,
lo econômico, mas na qualidade de modelo permite notar o que impede seu que os trabalhadores vendam sua força de trabalho e que os capitalistas lhes
funcionamento. É possível compreender as inumeráveis dificuldades com as paguem o salário. Estamos frente a um modelo jurídico gerado a partir do
quais o capital pode enfrentar-se para cumprir suas funções. Um exemplo modelo econômico. A descrição do conteúdo das normas deste modelo é a
destas possíveis dificuldades é que o capital monetário pode deparar-se com tarefa de uma TSD tal como propus aqui.
circunstâncias onde não existe a força de trabalho que seus meios de produ-
ção necessitam. Não obstante, pode suceder justamente o contrário, isto é, 4.3.3. ASociologia]urídica teria, em troca, a tarefa de estudar o direito
que nenhum outro capitalista tenha produzido os meios de produção necessá- positivo. Devido a que o conjunto das normas do direito económico não está
rios para utilizar eficazmente a força de trabalho. O capital mercantil, por sua identificado, como no caso das normas civis e trabalhistas, o sociólogo teria
parte, pode encontrar problemas para realizar-se caso não existam comprado- que buscar no conjunto do sistema jurídico as normas cujo sentido deôntico
res, ou se estes não conseguem crédito oportuno e barato. Como podemos coincide com o do modelo normativo. Como sabemos, as encontrará em grano
observar, o capital não pode produzir por si próprio as condições necessárias de quantidade. É digno de menção que, neste caso, o único critério
para seu próprio incremento, para o cumprimento do seu ciclo, para reprodu- medianamente científico para definir o direito económico seria este critério
zir a sociedade capitalista de modo ampliado. Contudo, é absolutamente ne- sociológico: este ramo jurídico está constituído por todas as normas que pro-
cessário que tais condições se apresentem, se é que a sociedade capitalista há movem o cumprimento das funções do capital para conseguir sua reprodução
de reproduzir-se e, além disto, de modo ampliado. É facilmente compreensí- ampliada.
vel que o estado seja quem deva garantir a existência das condições que o Aquestão mais interessante será, podemos construir esta hipótese, que
capital requer para cumprir suas funções, como diz Marx. O estado deve en- um sociólogo encontrará em qualquer sistema jurídico de um país capitalista
carregar-se disto porque o capital não pode fazê-lo por si próprio. O grupo no um grande número de normas cujo sentido deôntico seja, ou possa parecer à
poder, se realmente aspira continuar nesta posição, deve conseguir que se primeira vista, contraditório em relação ao sentido deôntico do modelo
produzam as condutas - nisto consiste ahegemonia, em conseguir a obediên- normativo, normas cuja presença em um país capitalista deverá ser explicada
cia para seu direito - que são necessárias para que o capital possa reproduzir- muito mais cuidadosamente do que o fazem habitualmente aqueles que vêem
se de modo ampliado. Deve conseguir, por exemplo, que os trabalhadores em todas ações do estado moderno condutas tendentes ao bem comum.
tenham como única saída a venda da sua força de trabalho, mas também que

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4.3.4. ACrítica]urídica tem neste caso seu campo mais fértil de análise Contudo, como qualquer jurista sabe, serão encontradas normas que,
porque é aqui onde começa a aparecer o direito económico como o conjunto por exemplo, garantem que os trabalhadores tenham educação técnica que
de normas mais funcionais em relação ao capitalismo, e não ao contrário como os capacite para encontrar trabalho e não morrer de fome, assim como garan-
afirma a ideologia jurídica apologética. Como se sabe, esta ideologia sustenta tem que terão previdência social. Isto não é uma prova de que o estado se
a idéia de que se trata de um ramo do direito que tem como causa a intenção preocupa pela educação e pela saúde dos pobres e dos trabalhadores? O fato
do estado - leia-se do grupo no poder - de pôr freio aos abusos dos capitalis- de que existam normas que estabelecem preços máximos para bens de consu-
tas: mo proletário não é um indício de uma vontade tendente a beneficiar aos
"O direito económico: é o mais jovem e o tecnicamente menos maduro trabalhadores?
dos grandes ramos do direito moderno... Pertence... ao direito social, pois Tudo isto dependeria do código com que seja lido o sentido ideológico
expressa a vontade do estado de organizar sua intervenção na economia com destas normas, pois seu sentido deôntico é claro: procura que o capital encon-
o escopo de fortificá-Ia, de zelar pelos interesses dos membros menos protegi- tre força de trabalho capaz e saudável, procura que o capital encontre força
dos da sociedade... como são os consumidores, e de inclinar-se por uma me- de trabalho barata, que tem garantida a compra de alimentos de segunda cate-
Ihordistribuição da riqueza. Vemos aqui claramente evidenciada esta caracte- goria, mas baratos. O que permite a crítica do discurso do direito económico
rística do estado moderno que consiste em sua preocupação primordial pelo é a comparação do seu sentido deôntico com o sentido deôntico do modelo
bem-estar econômico do povo... É uma espécie de signo dos tempos que de- normativo proporcionado pela TSn, como nos casos anteriores. O que permi-
monstra, porum lado, o fim do liberal-individualismo e, por outro, a aparição, te analisar o sentido ideológico é a utilização de códigos distintos dos utiliza.
em maior ou menor grau, de novas formas de organização sócio-econômica dos pela ideologia jurídica. O que permite sustentar plausivelmente que o
destinadas aassegurar maior bem-estar às massas, a proteger os setores sociais oculto neste discurso é a sociedade capitalista é esta coincidência de sentidos
mais desfavorecidos e, em geral, a impedir que o interesse de lucro privado e deônticos, apesar do sentido ideológico. O que permite pensar como díreito
de liberdade econômica continuem acentuando as diferenças e contradições económico a uma grande quantidade de normas que resolvem de maneira
econômicas dentro da sociedade. " (6) muito diferente os "conflitos" é considerá-Ias como categorias jurídicas desti-
Aideologia crítica sustenta, em troca, que se trata de um ramo do direito nadas a reproduzir sociedades identicamente capitalistas.
que tem como causa a necessidade de reproduzir e ampliar o capital. São Uma vez alcançado este ponto tudo isto parece demasiado óbvio. De
pensamentos opostos, pois onde uma pessoa encontra como causa a intenção fato não é assim, pois se realmente fosse tão óbvio não existiria dificuldade em
de limitar aos capitalistas, uma outra pessoa vê a necessidade que estes tem de ensiná-lo nas faculdades de direito, e isto, até o momento, ainda não aconte.
ganhar cada vez mais. O capital nunca foi "livre", embora tenha sido, e siga ceu.
sendo, selvagem. O capital sempre necessitou que lhe fossem oferecidas as
condições necessárias. Por isto é que quanto mais planificado ele estiver mai-
or poderá ser o seu desenvolvimento, ou seja, que quanto maior o grau em
que se exerça a planificação da sociedade capitalista esta responde tornando-
se ainda mais capitalista. A imagem do selfmade-man yankee é apenas o
envoltório que oculta a política do estado norte-americano. Não é correto
dizer que o capitalismo noite-americano é resultado do trabalho dos homens
de empresa. Em realidade, este capitalismo é o resultado da política, ou seja,
da produção do direito, do estado.

6 - NOVOA Monreal, Eduardo, "El Derecho como obstáculo aI cambio saciar, México, EeJ. Siglo
XXI,1975,p.138e139.

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