You are on page 1of 5
ALVES REDOL (1911-1969) Nascido ¢ muito vivenciado na regiio do Ribatejo, onde os contrastes socinis entre os explorados ¢ os exploradores sio de mais imperiora evidéncia, ‘Anténio Alves Redol surgiu desde a juventude como expoentee inirprete duma geragdo de eseritores que perfilbou energicamente a missio interventora da literatura no processo histérico imediato, Autodidacta e de formagio e pritica politica marxstas, coube-the o papel de iniiador do Neo-Realismo (ou realismo socialista) em Portugal no dominio da prosa de ficcio. B, tocado decisivamente pela realidade maie agressiva da miséria e da espoliagio nas populagdes,rurais, foi nesse ambiente que situou, como outros compankeizos da sua comrente Iteritia, a maior parte dos livos que escreveu. O primeiro romance, Gaibéus (1939), como os que se Ihe seguiram com maior significado de demineia social fe maie positiva qualidade de eserita ~ Avieiros (1942), Ranga (1943), A Barca dos Sete Lemes (1958) e, mais do que qualquer outro, Barranco de Cegos (1962) sio de localizagie ribatejana.Publicou também, entretant, um ciclo de romances que tém por eentio ovale vinhateira do tio Douro, ums romance sobre 4 vida e costumes dos pescadores da Nazaré ¢ alguns de atmosfera eitadina = estes tltimos, numa perepectiva global, menos conseguidos literariamente, Nor volumes de contos e novelas — Nasei com Passaporte de Turista (1940), Espétio (1944) ¢ Histérias Afluentes (1963) ~ a congénita propeasio poetizante 4e Alves Redol, que, apesar do seu optado realismo social, também se infra assiduamente no romances, exprime-se com maior liberdade e mais & superficie, caracterizando em peculiar estilo os strato classista e as personagens que os representam. Foi a tendéncia lirica que abriu camino na sua obra de romancista, (e talvez com maior fieguéneia no conto) 408 singredientes romfnticos fantisticos» assinalados por Urbano Tavares Rodrigues em muitos passos da obra, Mas este escitor manteve-se inalteravelmente fel ao intuito de missio perflhado na juventude, perseverando com incessante 102 ccombatente da literatu esforco no enriquecimento e justeza da «verdade» das suas personagens © no apuro da escritaIiteriria. Esse esforga consagra-se com mais evidente éxito na cciagio primacial que € o romance Barranco de Cegos. Alves Redol deixou também obra signficativa no teatro, com caracterizagio mais audaciosa do processo mas de esséncialiteriia ¢ humanistica mito semelhante & dos sexs romances e conto. 108 O RAPAZ NAO GOSTAVA DAS MAOS Talhado em angustia mansa, o rapaz entrou na taberna, pediu uma garrafa cheia de vinho ¢ regtessou & porta, levando o olhar fosco para além das casas, como se tivesse deixado atrés de si qualquer coisa fundamental ou viesse acossado por um bicho fero, Parecia temeroso ou atormentado, Agarrava-se nas mios a dor que nao cabia dentro de si Altarrao e enxuto, vergava um pouco pelos tins, onde a camisa fraldiqueira ¢ suja Ihe saltava das calgas derreadas. Tinha cara de menino assustado. — Ah vida! — disse para a rua quase num grito. Devia julgar-se sozinho com a vida para Ihe atirar aquela acusagao irada. Quando reparou que também nés andavamos na mesma liga, quis perceber para quem falava, olhon a volta ¢ atirou para o monte a sua pergunta Para que quet um homem a vida?, Depois encolheu os ombros com resignagio ¢ desdém, indo sentar-se & ponta do banco encostado a parede, Pegou na garrafa, mirou-a a luz que vinha da porta ¢ voltou a pousa-la no marmorite do balcao. Abanava as maos longas. Pensava que se as nao tivesse nao estaria ali tio longe. Pudera vir ao mundo lizaro das duas ¢ andaria agora pela sua terra, batendo feiras na ganhuga de mendigo. Era por isso que remirava as mos com desprezo. Atirou com o chapéu salgadigo de suor para a muca, arrancou o lengo do pescogo ¢ limpou a testa. Fez aquilo para nfo ficar quieto, Quando pegou de novo na gatrafa teve uma cortesia: Sao servidos?. 104 Uma escala de vozes respondeu-the obrigado! Entio o rapaz limpou a boca com a manga da camisa e comegau a beber. Todos voltamos a cabera para vé-lo beber. Ele percebeu-o, sentiu que reparavam nele, coisa que no the acontecia ha muito tempo. Cheio de brio, mamou a garrafa até ao fim. Voltou a limpar a boca, estendeu a garrafa a0 taberneiro ¢ mandou-a encher. — Ja agora preparo a cama... Dorme-se melhor em cima de vinho do que numa esteira Largou 0 chasco ¢ nao sorri, A verdade é que também nao Ihe achimos graga. = Ontem o gajo do automével pés-me umas suigas, o filho da mae. Sé hoje vi. Cheguei a noite a Bucelas com uns camaradas... Viemos todos pri vindima do patrio Soisa, 0 Téino de Soisa. E 0 filho da mac do chéfer andou c’a gente as voltas ¢ vai ao fim pede cinquenta malréis. Por uma légua cinguenta malréis. Se calhar ao Soisa leva dez... Povo a roubar povo, nao ha coisa mais feia nem coisa mais certa, ‘Num repente calou-se assustado, Fez agulha & conversa —A gente bebe vinho, mas no bebe juizo... O filho da mie do chéfer hiede gastar 0 dinheiro que roubou & nossa desgraca com remédios de botica... Nao lhe quero outro mal... O meu mal € outro. ‘Meteu a garrafa boca sem a gala de se limpar, Levou-a de um trago até meio. — Andar quase dois dias de camineta, a butes © de comboio para arranjar servigo... E vival Na minha terra um homem quer matar o corpo e nao encontra, ‘Nao percebo porqué, encarou comigo. Vi que os olhos bagos de triste iluminavam de raiva ‘Terta pobre hé-de dizer o senhor... Qual nada, qual qué! Ha Id lavradores com terras que nem condados. Metem-Ihe dentro trés ou quatro feiras-atadeiras e aquilo é um bafo. A gente, os homens, acarretam lenha como as mulheres. Vio jomas a dezoito maltgis. E & para quem quer... Quem nao quer & madrago, Pra quem nao quer ha lazeira ou cadeia, Voltou a sentar-se. rabalho de mulheres pra gente — repetiu duas vezes com escdrnio. — Pois que fiquem 1é as mulheres; talvez elas um dia sejam tantas que acabem por capé- los. Se a minha mao tivesse capado o meu pai nao tinha eu vindo ao mundo, ‘Nao gostou da ideia e pé-la mais ao jeito: — Mais valia que a minha mie me tivesse desfeito a cabega numa parede quando me viu nascer. Na madorra do pranto seco, suspirou: — Ah vida! 105 —Vossemecés nao gostam da gente... A gente vem de tao longe tirar 0 trabalho aos que ci moram, Esti certo! © vinho comegava a trocar-lhe as voltas. Enrolavam-se-Ihe as palavras ¢ as ideias. = Esté certo, nao! Porque ndo ha coisa mais desgragada do que andar longe da nossa terra a padecer... Os padecimentos na nossa terra doem menos; saram mais depressa. Na minha terra nio bavia nenhum chéfer que me levasse cinquenta malréis por meia égua. E 0 mesmo que roubar um cego. ‘Voltou a abanar as maos. —Vossemecé gosta das suas mos?!... Diga lé, homem! = As mios nunca me fizeram mal. —E bem?! — Faziam-me falta. — Pois a mim, nfo, Se nao tivesse mios, munca abalava da minha terra Deixava-me morrer de fome, mas nao abalava, Nunca abalava da minha terra. Pedia esmola, Os lavradores sempre me davam alguma coisa. Nio me mandavam apanhar lenha... Vossemecé jé viu um homem a apanhar lenha?... & pior que ser ‘mulher magana em terra de soldados. E cuspiu no chao da taberna com raiva de provocar um terramote, (De Histérias Afluentes, 1963) 106

You might also like