You are on page 1of 31
Os marcos referenciais teéricos fundantes onforme mencionamos no capitulo anterior, a psicologia grupal nasceu, como disciplina, apartir da interagio entre distintos mar- cos referenciais tedricos que lhe dao embasamento epistemolé- gico e sustentam sua praxis em suas distintas Areas de atuagao: dinics, educacional e institucional. A metafora que costumamos empregar para ilustrar a contribui. cao de cada marco referencial tedrico é a do vale circundado de coli- nas, representando o pice de cada uma 0 ponto de vista obser vador de cada enfoque. Assim, se da colina A (representando a psicanilise, por hipétese), visualizamos aquela por¢do do vale onde se espraia um rio, debrucgando-se sobre ele um vilarejo debruado por lavouras recém-semeadas, é essa a descrigdo do vale a ser oferecida; j4 se 0 Angulo de observacio for o da colina B (representando, digamos, a teoria sistdmica), o vale poderd ser referido como uma escarpa ro- chosa em cujo sopé arvores frondosas sugerem a presenga de uma mata virgem. Qual 0 vale real? Nao serao ambas as descrigSes corre- tas, considerando-se que suas diferencas so em funcio do Angulo de observagio adotado? Trata-se, pois, nao de uma az outra, mas de uma ¢ outra realidade retratada. Nem um nem outro ponto de vista nos enseja a tnica ou a “me- Ihor” maneira de abordar as questdes grupais, ou - voltando uma vez mais 4 metafora do vale ¢ das colinas - para descer 4 lavoura, irrig4la e protegé-la das pragas. Quem sabe um dos referenciais nos aponte as trilhas para a descida, outro, a estratégia para realizar os cuidados com a 14 Lu Carios Osorio lavoura e um terceiro, os artificios para remover os ingos e desobstruir os sulcos por onde corre a agua que a irriga. E essa é a singularidade dessa nova disciplina, que jA nasce sob a égide da abordagem compartilhada, apontando para algo que transcen- de suas fronteiras, instaurando a pauta da metadisciplinaridade, permi- tindo-nos vislumbrar o futuro da utilizaco dos instrumentos grupais para o encaminhamento das solugdes dos problemas humanos. Conquanto possamos considerar a nogao de grupo formulada por Lewin como a matriz operacional a partir da qual se delimitou o campo da psicologia grupal, nio ha como desconsiderar que foram as contri- buigées da psicandlise (com sua teoria dos afetos erguida sobre os alicer- ces do conceito de inconsciente dindmico, seu método de investigagio dos processos mentais e suas hipéteses do que ocorre no espaco bipes- soal das relagdes humanas) os eixos norteadores da compreensio dos fendmenos do campo grupal, caixa de ressonAncia das emogSes huma- nas que vém & tona na interface convivencial entre os individuos. Outra nfo é pois, a razio para iniciarmos a resenha dos marcos referenciais fundantes da psicologia grupal pela psicanilise, origem e destino de toda a psicologia que se proponha dinimica ¢ nao apenas descritiva ou fenomenolégica. PSICANALISE APLICADA A GRUPOS Ao restringirmos aqui as contribuigdes da psicanilise ao estudo es- pecifico dos grupos, tratamos de delimitar um territério que, de outra forma, extrapolaria em muito as finalidades deste texto. Evidentemente que, como ja assinalamos, sendo a psicandlise uma teoria compreensiva das motivagSes inconscientes do comportamento, ela entranha toda a busca de entendimento do que se passa nas relagSes interpessoais que constituem a matriz funcional do ente grupal. Freud, como mencionamos no Capitulo 1, nio se ocupou direta- mente dos grupos humanos na concepgio em que depois foram toma- dos por Lewin e hoje os consideramos no contexto da psicologia grupal. Seu interesse especulativo centrou-se no estudo dos fendmenos coleti- Pscotocr Grupa 15 vos, das massas ou multidées, sendo, portanto, suas conclusées aplicé- veis apenas em parte aos microgrupos. Muito precocemente Freud evidenciou sua atragio pelo estudo dos fenédmenos sociais, a par de seu interesse primordial no decifrar os enig- mas do psiquismo humano. Ja em 1905, Freud pontuava a influéncia dos agrupamentos huma- nos sobre 0 comportamento psicolégico do individuo, tema retomado com a énfase merecida em trabalhos posteriores, tais como Totemetaby (1913), Pricologia das massas e Anélise do ego (1921), O Malestar na cultura (1930) e Mois&eomonotelsmo (1939), para citar apenas aqueles nos quais 0 foco era a organizacio social humana, suas origens e vicissitudes. Totem e tabu constituiu-se na mais original e densa contribuigdo de Freud 4 antropologia social, na qual ele nos oferece suas hipdteses sobre questdes polémicas e até entio obscuras relativas as origens das institui- ges culturais. Partindo da constatagio da universalidade do horror ao incesto, da exogamia como condi¢io para a expansio e sobrevivéncia dos primitivos clas ou nucleos tribais, do comportamento da horda primitiva em relagio ao mandato do parricidio original e sua expres- sao totémica, Freud conclui com a presungao de que todo o edificio da sociedade assenta-se sobre a relagio primitiva do homem com seu pai, ou seja, sobre o que se convencionou chamar o “complexo de Edipo”, que para Freud seria tio ubiquo e universal quanto o horror ao incesto. Em O Malestar na cultura, Freud abordou o insohivel antagonismo entre as exigéncias instintivas e as restrigSes culturais, enquanto, em Moisés coMonoteismo, seguiu pesquisando as oigens da organizacio social, sem- pre monitorado pela idéia de que a religido é a neurose da humanidade e que podemos chegar a entender e tratar os povos como fazemos com os neuréticos individuais. Tais obras procuraram, cada qual em seu contex- to peculiar, preencher as brechas entre a psicologia individual e a coleti- va, mas foi sem divida em Piicologia das Massas e Andlise do Ego que Freud esteve mais préximo de criar um espago préprio para a investiga¢4o psi- canalitica do que se passa nos grupos humanos como tais. Freud apoiou-se em dois autores ja citados para tecer suas conside- races sobre a expressio coletivizada dos fendmenos psiquicos: Le Bon, 16 Lut Cartos Osorio autor da obra intitulada Psicologia das multidées, que parece ter vindo 4 lume em 1895, mas que Freud conheceu através de sua tradugo alema de 1920, e Mc Dougall, que recém havia publicado o livro Amentegrupul. Le Bon deteve-se no estudo das massas, ou coletivo desorganizado, en- quanto Mc Dougall reser vou a denominagao “grupo” As estruturas cole- tivas organizadas, como aquelas que seriam estudadas por Freud no tra- balho anteriormente referido. E interessante ressaltar a percepgio j4 existente em Le Bon do car&- ter suigeneris do organismo grupal, distinto de seus componentes indivi- duais, s6 mais tarde (em 1910) incorporado 4 abordagem sistémica dos grupos humanosa partir da teoria dos tipos légicos de Russell (Whitehe- ad, A. N. e Russell, B, 1910-1913), conforme veremos no capitulo corres- pondente, Conforme citado por Freud: “o grupo psicoldgico é um ser pro- vis6rio, formado por elementos heterogéneos que por um momento se com- binam exatamente como as células que constituem um corpo vivo formam, por sua reunido, 2m nowo ser que apresenta caracter’ticas muito diferentes daquelas possuildas por cada uma das culas isoladamente” (0 grifo é nosso). Por outro lado, coerentemente com sua inclinag4o a vincular o que se passa no psiquismo com as raizes biolégicas do comportamento hu- mano, Freud lembrou-nos, citando Trotter (Instintos do rebanho na pazena gerta, 1916) de que “a tendéncia para a for macio de grupos é, biologica- mente, uma continuagio do carater multicelular de todos os organismos superiores”. Nio obstante, foi, ao abordar a questo da identifiaagio nesse texto, que Freud chegou ao niicleo do que constitui a mentalidade grupal do ponto de vista psicanalitico. Para ele, a identificagio era “a mais remota expressio de um lago emocional com outra pessoa” e, conseqiiente- mente, a via pela qual podemos estabelecer a grupalidade. E tio significativo e transcendente para a compreensio do estabele- cimento dos vinculos sociais o conceito de identificagio que vamos aqui nos demorar um pouco mais em considerd-lo nos seus desdobramentos e acréscimos feitos, inicialmente, por Freud e, posteriormente, por al- guns de seus mais importantes discipulos. Freud referiu-se a identificago como a forma mais precoce de rela- 40 com outro alguém tomado como modelo, Paulatinamente, na obra Psicorocia GrupaL 17 de Freud, 0 conceito de identificagio evoluiu de sua acepgio inicial de um (entre outros) mecanismos do ego para o de operac’o central pela qual o individuo se constitui psicologicamente. Mas, sempre que se refe- ria ao mecanismo da identificagdo, Freud 0 fazia 4 modalidade sargitiws de identificacio, como a descriva na irtcorporagio canibalistica das virtudes da vitima, lembrando que os canibais 6 devoram as pessoas que valorizam ou admiram. A identificagio seria, nesse sentido, o processo psicolégico pelo qual o individuo assimila um aspecto, propriedade ou atributo de ou- trem e se transforma segundo o modelo introjetado. Mais adiante, M. Klein descreveu outra modalidade de identificag3o, A qual deu o nome de identificagio projetiva, e que consistia no atribuir ao outro qualidades ou atributos de si préprio. Embora, originalmente, M. Klein estivesse se referindo a um processo de descarte dos sentimentos agressivos indesejaveis, utilizando a mente do outro como continente ou como depésito de tais sentimentos, o conceito expandiu-se e criou outras conotagdes, confundindo-se com a nogio de ampatia, ou seja, a possibili- dade que vemos de sentir o que sentiriamos caso estivéssemos em situagio ou circunstancia experimentadas por outra pessoa. A identificagao proje- tiva seria, assim, a via psiquica para o estabelecimento do processo emp tico entre os seres humanos, condigao sinequanon para que se crie a menta- lidade grupal. A identificacio projetiva também foi entendida como uma primiti- va forma de comunicacao dos sentimentos humanos por parte de al- guém, na medida em que sentimentos congruentes consigo proprio sio induzidos em outra pessoa e, através disso, podem criar a percepgao de ser entendido ou de estar com 0 outro. Em estreita correlagdo com a nogio de identificacio, tanto nos seus aspectos introjetivos como projetivos, situa-se outro conceito psicanalitico, que revisaremos mais adiante, ao tratarmos dos fendmenos do campo gru- pal: a desfeéncia, que resumidamente é 0 mecanismo pelo qual deslocamos sentimentos originalmente experimentados em relacio a figuras significati- vas de nossa infancia (mie, pai e seus sub-rogados) para outras pessoas. Depois de Freud, a contribui¢io mais importante da psicanilise ao estudo dos grupos veio por meio de Bion e seu conceito dos supastos basicos que ocorrem no funcionamento grupal. 18 Luiz Cartos Osorio Para Bion, a atividade mental dos individuos quando se renem em um grupo é regida por fantasias inconscientes compartilhadas e que de- terminam 0 aparecimento do que ele chama “supostos basicos”. Os su- postos basicos estio a servigo das resistencias ao desenvolvimento datarefa grupal, tenha essa objetivos terapéuticos ou no. Tais supostos, que podem comparecer simultinea ou alternadamente, opdem-se ao que Bion chama de grupo de trabalho, e que é 0 estado mental cooperativo, predisponente 4 realizagio da tarefa grupal e vigente quando ha uma reducio da carga resis- tencial e antioperativa do grupo. Os supostos basicos si * De cpendéncia, no qual o grupo se comporta como se esperasse que um lider fosse se responsabilizar por todas as iniciativas e tomar conta dos membros do grupo como os pais o fazem em relacio aos filhos pequenos. A fantasia inconsciente basica é a de que o lider é uma figura onipotente. Nos grupos religiosos, esse é 0 suposto bisi- co predominante. © De hutafirga, no qual o grupo age como se existisse um inimigo que se deveria enfrentar ou que se deveria evitar. A fantasia in- consciente basica é a de que o lider é invencivel. Esse é 0 suposto basico prevalente nos grupos militares. © De acasalamento ou expectativa mesiiinica, no qual se verifica a cren- cade que os problemas ou as necessidades do grupo serio soluci onados por alguém que ainda no nasceu ¢ que o far4 mediante a unido geradora de dois elementos do grupo, independentemente do sexo ou fungdo que nele desempenhem, e com o consenti- mento e a cumplicidade dos demais membros do grupo. A fanta- sia inconsciente basica & de que esse “Ider por nascer” é perfeito, ‘Vamos encontrar tal pressuposto basico nas sociedades politicas. Na verdade, esses supostos basicos nunca desaparecem por inteiro dos grupos durante seus encontros e o desempenho das tarefas a que se propdem. O que podemos esperar é que, com o amadurecimento do grupo, a interferéncia na execucSo das tarefas seja minimizada. Em uma situagao grupal madura, conforme assinala Rioch (1972), o lider do gru- po dependente é apenas confiavel; o do grupo de luta-fuga é vio-somen- te corajoso e o do grupo de acasalamento é simplesmente criativo. Psicorocia GRUPAL 19 O método analitico e as grupoterapias A contribuicio da psicanilise, contudo, no se restringiu aos subs- tatos tedricos para a compreensio dos fendmenos grupais. Embora Freud nunca tenha praticado, nem recomendado a extrapolagio de seu método psicoterapico para a situagdo grupal, muitos de seus discipulos, entusiasmados com as possibilidades oferecidas de expandir os recursos terapéuticos para além da situacio dual da psicanilise classica, trataram de criar um modelo psicoter4pico aplicavel aos grupos a partir da situa- Gao psicanalitica primordial. Ao considerar a psicologia individual aplicavel A compreensio dos fendmenos sociais, Freud avalizou as tentativas que dai em diante se sucederam no sentido de transpor a técnica analitica, criada no contexto da situaco dual analista — paciente, para a situag4o grupal. N§o obstante muitos considerarem Schilder o introdutor do méto- do analitico na psicoterapia de grupo, parece-nos que o mais adequado seria considerar Foulkes como quem realmente procurou dar uma fei¢do propria ao que viria ento a denominar grpandlie. E isso porque Schil- der privilegiava o enfoque individual, embora o empregando conjunta- mente com o grupal. Seu método preconizava a realizacio de entrevistas preparatérias para o ingresso no grupo, no qual, além da coleta da histé- ria pessoal dos participantes, esses eram ensinados a associar livremente, € pouca atengio era dada & relacio dos pacientes entre si. Schilder acre- ditava, que, mesmo no contexto grupal, a ténica recafa na relagio trans- ferencial com o terapeuta. Ele entendia que os pacientes poderiam resol- ver seus contlitos individuais quando os discutissem livremente no gru- po, mas no como uma ago terapéutica do proprio grupo. Assim, Schil- der nunca péde considerar o grupo como uma unidade terapéutica pro- priamente dita, e podemos dizer que ele tratava seus pacientes coletiva- mente, ou seja, simultanea, mas individualmente, £ 0 protétipo do que hoje consideramos tratar 0 paciente no grupo, nao pelo grupo e, menos ainda, sua técnica pode ser considerada uma psicoterapia deou do grupo. Por outro lado, parece ter escotomizado as dificuldades transferenciais e contratransferenciais provenientes de um modelo hibrido de terapia in- dividual e grupal. 20 Lutz Cartos Osorio Ja Foulkes preocupou-se, desde os primérdios, em descrever as pe- culiaridades da abordagem grupal, bem como em estabelecer suas fron- teiras com a anilise individual. Entre as principais contribuigdes de Foulkes & definicdo das grupoterapias como tendo um marco referencial tedrico préprio est4 sua nogdo de matriz, que ele nos apresenta como sendo a trama (rede) comum a todos os membros, dela dependendo o significado e a importincia de tudo o que ocorse no grupo, a cla se referindo todas as comunicagées ¢ interpretagdes, verbais ou nio-ver- bais, que circulam no grupo. Os pacientes seriam, pois, os pontos nodais dessa rede, que é dotada de caracteristicas de conjunto distintas da soma de relagées nele processadas. Dois autores, um da escola americana, Slavson, e outro da escola britanica, Ezriel, destacaram-se por suas contribuigdes nesses movimen- tos iniciais da grupoterapia de base psicanalitica: Slavson, ao pér énfase nna presenica dos elementos bisicos da psicanslise (transferdncia, inter- pretagao de contetidos latentes, busca de insight, etc.) no contexto gru- pal; e Ezriel, ao desenvolver sua teoria da interpretacio, postulando a possibilidade de interpretar-se o denominado “material profundo” tan- to na situagio individual como grupal. Outras contribuigSes 4 psicanilise aplicada aos grupos foram sendo acrescentadas ds acima mencionadas, tais como a da chamada escola francesa (representada por Anzieu e Kies), que focaram so- bretudo a possibilidade de desenvolver uma abordagem do grupo coerente com as formulagdes originais de Freud e o setting analitico tradicional. Anzieu, que mais adiante veremos também referido na criagio do chamado “psicodrama psicanalitico”, formulou as idéias da ilusio grupal e do grupo como invélucro, e Kes, na sua tentativa de fornecer elementos para uma teoria psicanalitica dos grupos, ela- borou a nocio de um aparelho psiquico grupal e desenvolveu o con- ceito de cadeia associativa grupal. A denominada escola argentina, representada por Grinberg, Rodri- gué e Langer (1957), contribuiu principalmente na elaboragio de um modelo clinico de abordagem grupal, consubstanciado no que chamam psicoterapia de grupo, onde a énfase é posta na atitude interpretativa, que, em suas préprias palavras, se caracteriza por:

You might also like