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Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 1

Projeto Revisoras

Sabrina nº 1200

Um Milhão e seu coração


Million dollar baby
Patricia Ryan
Digitalização: Joyce
Revisão: Cris Paiva

Resumo

Ele não quer!


Desde que deixou a Força Aérea, Dean Kettering leva a vida de um lobo
solitário. Então, sem nem imaginar, um ato simples o coloca no centro do
furacão da mídia: ele recebe o título de herói e ainda ganha um milhão de
dólares! No entanto, Dean não quer o dinheiro, não sente que o merece, mas
conhece alguém que pode usá-lo...

Ela também não!


Laura Sweeney não vê Dean desde que eles cederam ao ímpeto da paixão
sufocada durante a universidade. Ele havia saído de sua vida desde então...
para sempre, conforme imaginava. E se aceitasse o dinheiro dele agora, teria
também de aceitá-lo de volta... e revelar um segredo que ficara escondido no
passado e que mudaria toda a sua vida.
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CAPÍTULO I

Droga! Outro repórter! O homem que caminhava na direção de Dean


Kettering pelo píer era um desses tipos grandalhões com ar autoritário e
cabelos grisalhos. O nariz vermelho lembrava um doce de maçã, e o sobre
tudo flutuava aberto sobre o terno e a gravata frouxa.
De costas para ele, Dean soltou a última das cordas que prendiam a lona que
protegia o Lorelei da neve e do gelo. Uma embarcação de madeira precisava
de ar, e ele gostava de aproveitar manhãs ensolaradas como aquela para
arejar o barco... mesmo que fosse com ar gelado. Naquele ano o inverno se
estendia por mais tempo do que o esperado em todo o nordeste, mas seus
efeitos eram sentidos com maior intensidade em New England, local que havia
sido castigado por violentas tempestades de neve durante as duas últimas
semanas. E já estavam em março.
— Sr. Kettering? — O homem tinha uma voz profunda e firme.
Resmungando uma praga qualquer, Dean saltou para o interior da embarcação
e começou a puxar a lona. Não tinha tempo nem disposição para bancar o
herói do dia no noticiário das dez horas. Era de se esperar que a imprensa
local já houvesse percebido tal fato.
— Sr. Kettering? — O desconhecido repetiu. Seus sapatos provocavam um
barulho irritante no píer coberto de gelo. — Com licença. Você é Dean
Kettering, não?

Dean torceu os cabelos batidos pelo vento e prendeu-os dentro da gola alta
do suéter que vestira sobre duas blusas de moletom. Ajustando as luvas
continuou puxando a lona pelo convés bem encerado do Lorelei
— É você, não é? O visitante indesejado segurava uma cópia do
Providencie Journal, o a edição era do dia dezenove de março. Dean sabia
disse porque reconhecia a primeira página do dia anterior. O artigo recebera
o título de "Herói Tímido de Portsmouth" o exibia duas fotos dele. A primeira
fora tirada algum tempo atrás, quando posara com o uniforme da
Aeronáutica, que não vestiu há quatro anos. A segunda, tirada no dia anterior,
durante a invasão da imprensa, mostrava um homem com o rosto virado para o
lado oposto da câmera, os cabelos longos escondendo seus traços e uma das
mãos erguidas numa tentativa frustrada de afugentar o fotógrafo.
Sem interromper o trabalho, ele disse:
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— Está perdendo seu tempo, companheiro. Pegue seu bloco de anotação e


suma daqui.
— Não tenho um bloco de anotações.
— Seu gravador, então.
— Escute... companheiro, não sei quem pensa que sou, mas meu nome é George
Walsh, e estou aqui para entregar...
— Vá embora.
— É sempre tão indelicado com estranhos?
— Só quando quero que eles vão embora.
— E não está nem um pouco curioso de saber o motivo de minha presença?
— Sei porque está aqui. — Quer fazer-me engolir aqueles quinze minutos de
fama, mesmo que eu não os queira. Mas não vou entrar no seu jogo.
— Você não entendeu...
— A entrevista acabou.
— Não vim aqui para entrevistá-lo, Kettering.
— Escute, não tente bancar o espertinho, está bem? Qualquer que seja sua
intenção, não vou...
— Vim aqui para lhe entregar um milhão de dólares. Dean parou e balançou a
cabeça numa reação de incredulidade.
— Vá embora!
— Ouviu o que eu disse?
— E você? Ouviu o que eu disse? Dean encarou-o com as mãos na cintura.
— Já disse que...
— Aqui está. — Walsh abriu a pasta de couro e retirou dela um envelope
verde.
— O que é isso?
— Um cheque de um milhão de dólares.
— Ah, sei... — Dean retomou a tarefa de recolher e enrolar a lona.
Walsh respirou fundo numa demonstração de impaciência.
— Ao menos examine o conteúdo do envelope. É um cheque nominal no valor
de um milhão de dólares.
— Vá embora!
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— Creio que não entendeu. Estou lhe dando um milhão de dólares. Livres de
impostos.
— Em troca do quê? De uma entrevista para uma rede nacional de tevê que
vai acabar com minha privacidade? — Concluída a tarefa de remover a lona,
ele girou os ombros e alongou os braços.
— Não sou repórter, Kettering. Sou advogado. — Walsh tirou do bolso
interno do paletó um cartão de apresentação e aproximando-se do barco,
ofereceu-o a Dean, que limitou-se a ler o nome do homem e sua profissão:
advogado.
Percebendo que ele não pegaria o cartão, Walsh guardou-o no bolso.
— Represento a avó de uma daquelas crianças que tirou da água alguns dias
atrás. Agatha Pierce Campbell, da Newport Campbells, conhecida por sua
obra filantrópica que...
— Eu sei quem é.
— A sra. Campbell quer expressar sua imensa gratidão por ter salvo a vida de
seu neto. Ela me pediu para vir até aqui e lhe entregar este cheque de um
milhão de dólares. — Walsh estendeu o envelope verde. — Já cuidei de todos
os aspectos legais e fiscais. Só preciso de sua assinatura em alguns
documentos, e então será um milionário. Nada mal para quem passou dez
minutos congelando o traseiro na água gelada.
Dez minutos? Levara dias para livrar-se do frio que parecia ter penetrado cm
seus ossos.
Dean olhou para o envelope com a testa franzida. Aquilo não podia ser
verdade.
— Escute — Walsh abotoou o sobretudo com os dedos trêmulos e
avermelhados —, falando em congelar, não estou vestido para o clima daqui.
Por que não faz um favor a nós dois e pega esteve envelope de uma vez? Por
favor!
Depois de um instante de hesitação, Dean saltou para o píer, tomou o
envelope da mão do advogado e abriu-o. Dentro dele havia um cheque de um
milhão de dólares em seu nome.
— Qual é o truque?
— Não há nenhum truque. — Walsh retirou meia dúzia de formulários e uma
caneta da pasta. — Só precisa assinar estes papéis é o dinheiro será seu. É
um presente, Kettering. Só precisa decidir como vai gastá-lo.
Um milhão de dólares! Não seria rico, de acordo com os padrões atuais, mas
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teria uma posição de conforto e estabilidade. Se havia uma coisa em sua vida
que mudaria, se pudesse, era a constante necessidade de arranjar dinheiro
para manter o Lorelei à tona e garantir sua sobrevivência. Normalmente, no
verão, o movimento não era ruim. Mas aquela época do ano era dura; toda vez
que o dinheiro começava a minguar, era obrigado a redigir mais um artigo em
sua velha máquina de escrever.
Não. Não era só isso. Havia, algo mais que mudaria, se pudesse. Ou melhor,
algo que teria feito diferente seis anos atrás. Um engano que teria evitado
para não ter de carregar para sempre uma lembrança que o envergonhava.
Não era só o que fizera naquela noite distante que o enchia de remorso. Era o
efeito que causara em todos aqueles anos desde então. Era ter de viver
sabendo que tipo de homem era, um homem capaz de prometer ao melhor
amigo em seu leito e morte que protegeria sua esposa, e depois...
Dean passou a mão na cabeça ignorando George Walsh, que ainda segurava os
papéis e a caneta.
Oh, aquela noite, a noite que lamentava ter vivido, embora ainda acordasse
eventualmente suando e arfando, murmurando o nome de Laura depois de tê-
la visto em sonho.
Havia aquela noite, e os seis anos desde então, seis longos anos durante os
quais tentara esquecer a promessa que fizera a Will Sweeney depois de um
caminhão bomba ter destruído o acampamento em Dhahran e aberto um
buraco no peito de Will.
— Eu vou cuidar dela — ele jurara, disposto a cumprir o juramento. Afinal,
Laura havia sido sua amiga desde o primeiro ano em Rutgers, como Will. Dean
pretendia cuidar para que ela estivesse sempre amparada, para que tivesse
sempre um teto sobre a cabeça e dinheiro suficiente para suprir suas
necessidades, para que nenhum mal a afligisse. Mas Will confiara no homem
errado.
Durante seis anos a deixara sozinha, negligenciado a promessa por não ser
capaz de encará-la depois daquela noite. Dissera a si mesmo que só estava
agindo pelo bem dela, mas, francamente, se não houvesse metido os pés pelas
mãos, poderia ter ficado perto de Laura garantindo sua segurança e seu
conforto, cumprindo a promessa que fizera a Will. Estaria agindo, não apenas
torcendo para que ela estivesse bem.
E ela estava bem, ela e a filha, de acordo com o detetive particular que
contratara havia dois anos. Laura complementava a renda do seguro e da
pensão de militar pintando paisagens marítimas, mas o rendimento dessa
atividade era modesto e esporádico. Dean sabia que dinheiro era uma
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preocupação constante para ela, mas, apesar da vontade de ajudá-la, também


não dispunha de recursos.
Ou melhor... não dispusera, até aquele momento.
— Kettering, pelo amor de Deus! Assine os documentos e pegue o cheque
antes que eu vire um picolé!
Dean inspecionou o cheque.
— É possível endossar um cheque nominal como este, administrativo, e
repassá-lo a outra pessoa, como se faz normalmente?
— Sim, mas... Quer dar esse dinheiro a outra pessoa? Todo o dinheiro?
— Exatamente.
— Não quer o dinheiro?
— Vire-se. — Dean pegou a caneta e os papéis.
Walsh girou devagar. Dean segurou o cheque e o envelope entre os dentes,
posicionou os documentos contra as costas do advogado e assinou uma a uma
todas as folhas. Depois as devolveu.
Walsh escolheu duas delas e colocou-as na mão dele.
— Essas vias são suas. — E guardou o restante na pasta com um suspiro
aliviado. — Obrigado, Sr. Kettering. Foi um prazer...
— Espere um minuto. — Dean apoiou o cheque nas costas de Walsh e, no
verso, colocou o nome de Laura Sweeney. Depois assinou em baixo. — Aqui
está.
— Por que está me dando o cheque?
— Para que possa entregá-lo por mim.
— Ei, espere um...
— Fique quieto. Ainda não anotei o endereço. — Usando o envelope verde, ele
escreveu o nome de Laura e seu endereço completo.
— Escute aqui, companheiro, minha missão era vir entregar o cheque a você, e
agora que já cumpri meu dever...
— Não estou pedindo que vá levá-lo em mãos. Pode mandá-lo por um
mensageiro, pelo correio... como quiser.
— Você também pode.
— Prefiro que o cheque saia do seu escritório. — Sabia que Laura tentaria
devolver o dinheiro, e não poderia fazê-lo, se não soubesse onde encontrá-lo.
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— Deve saber que é arriscado confiar um valor tão elevado ao correio ou a um


mensageiro. Onde ela mora? — Walsh leu a anotação no envelope. — Seven
Cliffside Drive, Port Livingston, Nova York.
— Exatamente. Trata-se de um pequeno vilarejo no litoral norte de Long
Island. — Sempre gostara de Port Liv, uma comunidade litorânea com muitos
antiquários e um comércio voltado para o turismo, mas com uma excelente
marina. De acordo com o relatório do detetive particular, Laura vivia na casa
que havia sido residência de verão de sua avó, um velho chalé de pedras
coberto por hera, um local onde ele, Laura e Will haviam passado adoráveis
finais de semana longe das demandas da universidade e, para Will e Dean, da
UTOR da Força Aérea. Unidade de Treinamento de Oficiais da Reserva.
— Bem, não vou até Long Island — Walsh anunciou decidido. — Mas você
deveria ir.
— De jeito nenhum.
— Tem certeza? Não é seguro enviar um cheque por meio de...
— Eu tenho certeza.
— Quero que saiba que não serei responsável se alguma coisa acontecer...
— Eu sei.
Walsh encolheu os ombros.
— Você é quem sabe. Enviarei o cheque ainda hoje. — Apontando para o
Lorelei descoberto e iluminado pelo sol da manhã, embora ainda coberto de
gelo, ele perguntou: — É verdade que mora naquela coisa? O ano todo?
— É verdade. Passo o verão velejando e no inverno fico ancorado aqui na
marina.
— É mesmo? Puxa... Deve ser fresco no verão, mas acho que ficaria maluco se
tivesse de passar todo o inverno sozinho nessa coisa flutuante coberta de
gelo.
— Talvez seja esse o problema. Eu já sou maluco.
— Ora... O velho marinheiro tem senso de humor, afinal.
— Velho? Pareço tão velho assim? — Agora que entregara o cheque a Walsh,
podia relaxar um pouco e até fazer piadas.
O advogado estudou-o por um momento.
— Seus olhos parecem.
O sorriso de Dean desapareceu. George Walsh leu o que estava escrito no
envelope. — Laura Sweeney... Tem certeza de que não quer entregar o cheque
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pessoalmente?
— Sim, eu tenho certeza.
— Bem... — Walsh guardou o envelope na pasta e fechou-a. — Foi um prazer,
Kettering — disse antes de partir.
Dean pegou a carteira do bolso traseiro da calça jeans e dela retirou uma
antiga fotografia que mantinha guardada em um compartimento prototor. Era
um retrato de Laura e Will vestidos para o casamento. Will, elegante e
Orgulhoso em seu uniforme azul; Laura, mais encantadora que nunca naquele
vestido simples e branco, os cabelos cor de mel adornados por uma singela
coroa de margaridas. A mãe de Will tentara convencê-la a encomendar um
arranjo de orquídeas, lírios ou flores do campo, argumentando que margaridas
não tinham aquele ar de sofisticação que ela gostaria de dar à cerimônia.
Laura havia respondido que ela não tinha o ar de sofisticação tão desejado
pela futura sogra, e que por isso ficaria com as margaridas, suas preferidas.
Naquele dia ela estivera linda como uma princesa encantada, uma criatura de
conto de fadas. Sua alegria havia sido quase dolorosa de testemunhar. Dean
nunca havia sentido um vazio tão grande.
Ele guardou a foto na carteira e colocou-a novamente no bolso.
Um milhão de dólares. Não era o bastante. Mas era tudo o que tinha.
— Está perdido?
O jovem mensageiro do serviço expresso federal sorriu, apesar do ar de
estranheza.
— O que disse, senhora?
— Precisa de ajuda? — Laura nunca vira um mensageiro federal na região do
velho chalé de pedras que chamava de lar havia cinco anos. Notando o
envelope na mão do rapaz, insistiu: — Que endereço está procurando?
— Este aqui, senhora. Cliffside Drive, número sete. Laura franziu a testa ao
ver seu nome e endereço escritos no envelope. O remetente era um homem
chamado George Walsh, advogado, segundo as informações contidas na
película plástica que envolvia o envelope. O endereço de onde partira a
correspondência ficava em Newport, Rhode Island.
— Deve haver algum engano.
— Laura Sweeney? É esse seu nome?
— Sim, sou eu, mas...
— Então não há nenhum engano. Assine aqui, por favor. — Depois de entregar
uma caneta e o recibo, ele sentiu o aroma que brotava da cozinha do chalé e
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respirou fundo.
— Hmmm... Que delícia!
— Estamos fazendo biscoitos de aveia. Quer um?
— Com passas?
— Sim.
— Não, obrigado.
— Ora, entrega federal! — A melhor amiga de Laura, Kay, surgiu na porta
brandindo uma espátula. Com os cabelos prematuramente grisalhos e os
vestidos amplos de estampas indianas que gostava de usar, Kay parecia uma
bruxa da idade média. — Quem mandou?
Laura encolheu os ombros enquanto assinava o recibo.
— Um advogado de Rhode Island.
— Não aceite! Aposto que está sendo processada!
— Kay, francamente! Quem estaria me processando?
— Como posso saber? Hoje em dia as pessoas processam por qualquer coisa.
O mundo está cheio de malucos.
— Ninguém melhor do que você para saber... — Laura recebeu o envelope e
fechou a porta. — Como vou abrir esta coisa? — perguntou, notando que a
película transparente de proteção era lacrada.
— Há uma lingüeta que você deve puxar para rasgar no lugar picotado e... Oh,
esqueça! Eu cuido disso — Kay decidiu, tomando o envelope da mão dela. —
Você cuida dos biscoitos. A última forma quase queimou.
Na cozinha aconchegante, Laura encontrou a filha, Janey, aproximando-se do
forno com seu enorme avental e as pantufas de cabeça de dinossauro.
— Aonde vai, mocinha? Você sabe que não pode aproximar-se do forno. — Ela
abriu a porta e pegou as luvas térmicas.
— Mas, mãe, eu já sou uma mocinha! Você mesma acabou de dizer. Tenho
cinco anos.
— Quase. — Janey completaria cinco anos no dia de Ano-Novo. — Precisa de
mais experiência e muitos aniversários antes de obter minha permissão para
mexer no forno quente. Agora afaste-se, enquanto tiro os biscoitos daqui.
— Nunca posso fazer nada. — Janey cruzou os braços e fez uma careta
zangada franzindo a testa e lançando o lábio inferior para a frente.
— Você misturou a massa. — Laura retirou a bandeja de biscoitos quentes c a
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cozinha foi invadida pelo aroma de canela e açúcar. — E foi responsável pelo
teste de sabor da primeira forma. Vou permitir que experimente um biscoito
desta também, assim que estiverem mais frios.
Kay entregou na cozinha segurando o envelope e uma carta.
— Laura, veja só isto! Um sujeito chamado Dean Kettering está enviando um
mil...
Laura derrubou a forma e alguns biscoitos caíram no chão; a maioria se
quebrou.
Janey assustou-se.
Laura olhou para a amiga como se não acreditasse no que acabara de ouvir.
— Você disse Dean Kettering?
— Exatamente. Laura estendeu a mão.
— Dê-me isso aqui... — Impaciente, arrancou as luvas, jogou-as sobre a mesa
e pegou os papéis.
Kay entregou-os com ar confuso. Depois pegou as luvas e foi recolher os
biscoitos do chão.
— Janey, por que não recolhe os biscoitos quebrados em uma vasilha para que
possamos jogá-los aos pássaros?
— Quem é Dean Kettering? — A menina perguntou enquanto recolhia os
farelos.
Kay deixou a forma sobre a pia e olhou para Laura com uma sobrancelha
erguida, como se repetisse a pergunta de Janey.
— Ele é... — Oh, Deus! Laura respirou fundo e forçou um sorriso para a filha.
— Ele é um velho amigo... de seu pai. E meu também.
Os olhos azuis da criança tornaram-se ainda mais amistosos Kay sabia por
quê. Tendo nascido muito depois do atentado terrorista que havia tirado a
vida de Will Sweeney, Janey raramente ouvia as palavras "seu pai". Fanática
por honestidade, Laura evitava pronunciá-las. Dizê-las naquele momento,
naquela situação em particular, era quase um castigo.
— Laura, você está bem?
— O que foi, mamãe?
— Eu... Não foi nada, querida. Estou bem. — Ela leu a breve mensagem de
George Walsh explicando que Dean Kettering o incumbira de enviar o cheque
de um milhão de dólares. O documento fora emitido em nome de Dean
Kettering e endossado em seu nome, e o valor...
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Santo Deus! Era mesmo de um milhão de dólares!


— Isso é verdadeiro? — Kay perguntou impressionada.
— Parece que sim.
— Quem é esse homem?
— Um velho amigo.
— Deve ser um amigo muito rico!
— Não é. Não era. Quero dizer... bem, talvez seja.
— Deixe-me ver! — Janey pegou o papel das mãos da mãe e aproximou-o do
rosto.
— Quando foi a última vez que viu esse homem? — indagou Kay.
— Há quase seis anos. No dia dois de abril de 1995. Ele veio... veio trazer as
coisas de Will. Objetos pessoais, correspondência...
— Oh... entendo. — Laura e Kay ainda não se conheciam quando Will morrera.
Havia sido no inverno seguinte, pouco depois do nascimento de Janey, que Kay
se mudara para a casa ao lado da dela e transformara o velho imóvel dos
Sullivan na Pousada Blue Mist.
— Depois da morte de Will, vim para cá a fim de ficar sozinha e me
recuperar. Minha avó ainda estava viva, e esta era sua residência de verão,
mas ainda não começara a estação, e o lugar encontrava-se vazio. Estava aqui
havia dois meses quando, um belo dia, Dean aparecera do nada. Não existia
linha telefônica nesta região, e por isso ele não pôde me prevenir sobre a
visita.
— Você o conhecia?
— Sim, fomos amigos na universidade. Bons amigos. Ele era companheiro de
quarto do Will, seu companheiro inseparável. — Lembrava de todos os finais
de semana que haviam passado ali, rindo e trocando piadas enquanto Will
gargalhava.
Depois, no dia de seu casamento com Will, Dean a tratara com uma frieza
inesperada e incômoda, como quisesse se distanciar. Ele havia sido padrinho
do noivo, mas passara todo o tempo fugindo dela, evitando encará-la. A
cerimônia chegara ao fim e, obrigado a cumprimentá-la, ele sussurrara em seu
ouvido:
— Estou tentando ficar feliz por você.
Essa havia sido a ocasião em que ele estivera mais próximo de confessar...
Então acontecera aquela tarde, pouco mais de dois anos depois, quando Dean
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aparecera ali no chalé em seu uniforme da força aérea carregando uma caixa
com os objetos pessoais de Will.
— Não voltou a vê-lo depois disso? — perguntou Kay. Laura desviou o olhar e
fez um movimento negativo com a cabeça.
— Por que não? Se eram tão bons amigos...
— Janey, devolva-me esse cheque. — Laura arrancou o documento da mão da
menina. — Não posso ficar com ele. Tenho de devolvê-lo.
— Bem, talvez deva fazer uma pequena investigação. Às vezes é melhor
examinar os dentes do cavalo que ganhamos. Precisa descobrir o que esse
sujeito está querendo. Ninguém dá um milhão de dólares a alguém que não vê
há seis anos. O que ele pode estar tramando? Talvez tenha de devolvê-lo, mas
se o homem ganhou na loteria, ou...
— Não. Não posso aceitar esse dinheiro sob nenhuma condição. Não seria
certo.
— O que há de errado em aceitar um presente? Isto é, desde que conheça as
intenções do sujeito. Não vai querer dever favores a algum maluco que
ressurgiu do passado só por causa de um punhado de moedas. Mas se ele não
tem segundas intenções...
— Esqueça — Laura anunciou decidida.
— Vai devolver o milhão de dólares, mamãe?
— Sim, querida, é o que vou fazer.
— Mas se tivesse um milhão de dólares, poderia comprar o barco do sr. Hale.
Você disse que, se pudesse, compraria aquele barco para sairmos juntos
velejando. Você disse.
— Meu bem... — Laura balançou a cabeça com impaciência. — Você não
entenderia. E um assunto de adultos.
— Eu entendo coisas de adultos — Kay protestou. — Por que não me explica?
— Porque a questão é pessoal.
— Escute, não precisa decidir nada agora. —- Kay pegou o cheque da mão
dela. — Telefone para o homem. Descubra por que ele...
Laura agarrou o cheque de volta.
— Não preciso refletir, e não tenho a menor intenção de restabelecer
contato com Dean Kettering. Não quero o dinheiro, e está acabado.
— Essa mulher que estou ouvindo... é a mesma que ontem reclamava por ter
de contar moedas e fazer cálculos? Há quanto tempo não vende uma tela,
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Laura? Semanas? Meses?


— Há quanto tempo não tem um hóspede em sua pousada? Estamos em março,
Kay! Nós duas dependemos do turismo, e por isso armazenamos nossas
castanhas no verão, como bons esquilos. Logo a estação estará começando, e
então começaremos a reclamar por não termos tempo para gastar todo o
dinheiro que ganhamos.
— Oh, não! Estaremos economizando cada centavo para o inverno. Não tente
me fazer de idiota, Laura, porque sou mais esperta do que imagina.
— Mamãe, tia Kay disse uma palavra feia! Laura respirou fundo.
— Janey, querida, tia Kay nunca diz palavras feias. Mas hoje ela está um
pouco confusa e tensa, e nesses momentos as pessoas falam sem pensar.
— A temperatura insiste em permanecer baixa. — Ela tirou um gorro de lã do
bolso da jaqueta e colocou-o na cabeça. — Eu... preciso de ar. Preciso...
— Tudo bem, tudo bem, já entendi. Quer ficar sozinha e pensar. Tem razão.
Não tome nenhuma decisão precipitada de que possa se arrepender mais
tarde.
Arrependimento, Laura pensou ao abrir a porta. Um conhecido companheiro.
Kay não poderia contar nada de novo sobre arrependimento.
Devagar, Laura desceu a escada de madeira que levava à praia. O vento gelado
que vinha do mar penetrava pelo tecido grosso da calça, mas ela continuou em
frente, evitando as ondas e caminhando enquanto pensava no cheque em seu
bolso, nos motivos que a impediam de aceitá-lo.
De costas para o oceano, protegeu os olhos contra o sol cintilante da manhã e
olhou em direção ao chalé de pedras com vista para o estreito, um imóvel que,
havia seis anos, pertencera a sua avó Jane, onde Laura fora se refugiar
depois daquela semana de pesadelo em fevereiro de 1995.
Primeiro recebera a notícia de Will. A dor quase a destruíra. O doce, bondoso
e estável Will Sweeney, o homem com quem planejara ter filhos e envelhecer
junto, havia morrido em uma violenta explosão do outro lado do mundo.
Embora o país não estivesse em guerra, sempre tivera consciência dos riscos
que corria. Dado o pavor que sentia de voar, Laura ficara muito assustada por
ele ter escolhido a força aérea; nunca se amedrontara com bombas
terroristas, porque em sua mente não existia espaço para imaginar que um
daqueles jatos pudesse cair levando-o para sempre. Will costumava dizer que
as aeronaves eram seguras, e desejara acreditar nele e confiar que nada de
mal lhe ocorreria.
Mas Will desaparecera. Morrera. Partira. Nunca mais voltara a vê-lo.
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Então, no dia seguinte ao funeral, sua gravidez terminara em um aborto


espontâneo que podia ou não ter sido causado pelo stress da morte do marido.
Contara a ele sobre o bebê dias antes em uma carta que Will não chegara a
ler.
Primeiro perdera Will. Depois, o bebê. Em uma semana, tudo o que amava fora
brutalmente arrancado de sua vida. Em pouco tempo se cansara das
condolências intermináveis e dos olhares de piedade. Apenas vovó Jane
soubera do aborto, porque ninguém mais havia tomado conhecimento da
gravidez. Sentira necessidade de refugiar-se, e fora a avó, como sempre,
quem lhe oferecera a solução. O chalé de verão estava vazio, e ela sugerira
que Laura fosse passar um tempo na praia.
Acomodara-se então na casa isolada sem telefone, televisão, sem vizinhos
nem visitas inoportunas. A casa dos Sullivan, a única que podia ser vista dali,
estava vazia e fechada havia dois anos. Ocupava seus dias pintando a bela
paisagem do Estreito de Long Island, e à noite costumava ler um dos muitos
livros da velha coleção da avó.
As semanas passavam lentamente, e aos poucos sua alma ferida começava a
cicatrizar, a resignação ocupando o espaço onde antes existia apenas a
revolta, o desespero e a dor. O prazer de desenhar e pintar a amparava,
proporcionando-lhe um novo foco de atenção, algo em que pensar, um motivo
para planejar e continuar vivendo:
Em alguns dias chegara a sentir um reconfortante sentimento de paz, unia
certeza inabalável da própria força para sobreviver ao trauma. Sempre
soubera que seguiria em frente e reconstruiria a vida a partir das cinzas da
tragédia. Talvez até se apaixonasse outra vez algum dia; talvez se casasse e
gerasse filhos de outro homem. Outras mulheres podiam ansiar por carreiras
glamourosas, sucesso e prestígio, poder e fama; mas a única aspiração de
Laura Sweeney havia sido construir um lar e uma família. Era seu destino, seu
sonho.
A paz e a tranqüilidade do chalé de vovó Jane havia sido o remédio de que
necessitara, mas, ao mesmo tempo, sentia-se solitária, vazia, carente de
companhia humana. Deitada na cama noite após noite, começara a sentir-se
como se há anos ninguém a tocasse.
Laura raramente pensava naquela época; havia superado a dor e não via
nenhuma utilidade em revivê-la. Agora, lembrando aquelas semanas distantes,
não conseguia decidir se era o vento gelado ou a recordação que enchia seus
olhos de lágrimas.
O chalé parecia dançar através do véu aquoso. No último degrau, viu o
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espectro de um homem alto e solene em um uniforme azul da força aérea, os


olhos escondidos por óculos de lentes escuras. Havia uma caixa de papelão
sob um de seus braços.
Laura piscou e a imagem se desfez lavada por uma torrente de lágrimas. Ele
havia sumido.
Dean Kettering. Assim, o vira naquela tarde de abril havia seis anos, quando
ele fora levar os pertences de Will. Estivera na praia pintando, mau, com a
proximidade do entardecer, sentira frio e decidira voltar. Estava alcançando
a escada levando o cavalete, a tela e a caixa com tintas e pincéis, quando
ergueu a cabeça e o viu parado no último degrau, olhando para ela.
Ficou imaginando quanto tempo ele passara ali a observá-la...

CAPÍTULO II

— Jean! — Laura exclamou, surpresa. Não o via desde que ele e Will
embarcaram para a Arábia Saudita em janeiro. Dean não pudera comparecer
ao funeral de Will.
Ele tirou os óculos e guardou-os no bolso interno do paletó.
— Olá, Lorelei!
Lorelei. O apelido que ele havia criado na universidade.
— Lorelei era uma sereia — Dean explicara. — Ela escovava os cabelos e
entoava uma canção que atraía os barcos para a destruição nos rochedos. —A
partir do desprezo pela instituição do casamento, ele criara a piada sobre
Laura ter usado seus encantos de sereia para atrair Will Sweeney para a
doce vida doméstica, um destino ainda pior do que aquele encontrado pelos
marinheiros fascinados por Lorelei.
Dean deixou a caixa no chão da varanda e foi ajudá-la com a caixa e o
cavalete.
— O que é isso? — Laura perguntou, curiosa, no alto da escada, os olhos fixos
na caixa de papelão.
Dean pegou a embalagem e colocou-a sob um braço, o mesmo em que
equilibrava o cavalete.
— São algumas das coisas de Will. Cartas, objetos pessoais... Achei que
gostaria de guardá-los.
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— Ah... Chegou agora?!


— Há algumas horas. Estou de licença.
— Então deve estar com fome. Por que não fica para jantar? Quero dizer, a
menos que já tenha um compromisso... Preparei um guisado de carne, e há
mais do que o suficiente para nós dois. Sempre faço comida em grandes
quantidades para congelar e...
— Laura?
— O que é?
— Eu sinto muito. Por Will. Ela assentiu sem encará-lo.
— Devia ter telefonado — Dean prosseguiu —, mas não sabia o que dizer.
— Tudo bem. Já estava mesmo cansada de tanta piedade. Telefonar ou enviar
uma carta de condolências teria sido a atitude mais adequada, mas Dean
nunca agira de acordo com as regras. Na universidade, conquistara uma
infinidade de garotas para depois abandona-las sem dizer adeus nem dar
explicações. Nunca rompera um relacionamento nem justificara um
afastamento; apenas desaparecia, deixava de telefonar.
Dean tocou seu braço num gesto de conforto. Era a primeira vez que alguém a
tocava em muito tempo, e Laura fechou os olhos para melhor saborear o calor
do contato.
Era estranho sentir o toque da mão de Dean. Na universidade, nunca
promoviam contatos físicos, nem mesmo os mais casuais, como se a
proximidade pudesse abrir uma caixa de Pandora, repleta de sentimentos que
estariam melhor sufocados e contidos.
Sempre existira aquela estranha tensão entre eles, como se o mundo
trepidasse quando estavam juntos. Felizmente, Will nunca percebera nada;
Dean havia sido seu melhor amigo desde o primeiro ano de faculdade, e Laura
fora sua namorada fixa desde o último ano do colégio.
Chegara a pensar que um dia Dean perderia o controle e tomaria alguma
iniciativa, mas a amizade com Will o levara a conter seus impulsos. Havia sido
melhor assim. Com sua impulsividade envolvente e sua conhecida
irresponsabilidade, Dean a assustara e amedrontara.
Eram opostos. Ele parecia ser um lobo solitário, uma criatura inquieta, um
predador movido pelo instinto, um ser autônomo e independente. Laura, por
outro lado, sempre havia sido a personificação do ser comunitário. Sentia
falta do calor humano, da segurança dos laços familiares. Will Sweeney
valorizava as mesmas coisas, por isso a convivência com ele fora sempre tão
agradável.
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Mas Will havia partido, e ela estava sozinha outra vez. Era assustador.
— Laura? — Os dedos de Dean tocavam seu rosto. — Você está bem?
Ela abriu os olhos e se deparou com a expressão preocupada do velho amigo.
Perturbada, assentiu e afastou-se.
— Sim, estou bem. Apenas um pouco... surpresa. Não o esperava.
— Eu teria telefonado, se houvesse um telefone. Quer que eu vá embora?
— Não.
— Vim de carro. Sei que o chalé é um refúgio em que prefere ficar sozinha.
Se quiser...
— Não, Dean. — Ela tocou seu braço, mas interrompeu o contato em seguida.
— Estou feliz por ter vindo. É bom ter companhia depois de um período
prolongado de solidão. Venha, vamos entrar. Insisto no convite para o jantar.
A refeição foi silenciosa, diferente de todos os encontros anteriores, quando
costumavam rir e fazer piadas que divertiam Will. Era isso, Laura decidiu.
Will não estava mais ali para completá-los. Sem ele para servir de platéia e
afastar o perigo representado pelos sentimentos que vibravam sob a
superfície, Laura e Dean não sabiam como interagir.
Depois do jantar, ela lavou os pratos e ele os enxugou, guardando-os sem
nenhuma dificuldade. Haviam passado muitos finais de semana naquele chalé
durante os anos de universidade, e Dean conhecia cada recanto da casa.
Sem levantar os olhos da pia, ela perguntou:
— Tem um lugar para passar a noite?
— Não.
— Pode ficar aqui. O colchão no quarto de hóspedes é velho e pouco
confortável, mas os lençóis estão limpos e passados. Ainda me lembro de
como costumava se queixar daquele colchão.
— Isso foi antes de conhecer os da força aérea. De qualquer maneira, acho
melhor ir procurar outro lugar para passar a noite. Não quero incomodar.
— Não está incomodando.
— Eu sei que estou.
A voz baixa soava estranha como um presságio.
Laura levantou a cabeça e descobriu que Dean estava muito próximo,
observando seus gestos com ar grave. Assustada, enxugou as mãos no avental
e saiu da cozinha dizendo:
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— Vou arrumar a cama.


Quando Laura desceu, Dean foi buscar a valise no carro. Assim que passou
pela porta, ele tirou do bolso um maço de cigarros.
Sozinha, Laura levou a caixa com as coisas de Will para o pequeno solário no
extremo sul da casa, uma área que ela convertera em ateliê de pintura, e
colocou-a sobre a bancada de trabalho entre latas contendo pincéis
mergulhados em terebintina e tubos de tinta a óleo. A luz fluorescente que
atravessava o teto de ponta a ponta conferia uma luminosidade cintilante ao
espaço. Usando um pequeno canivete, ela cortou o barbante que mantinha a
caixa fechada, respirou fundo e abriu-a.
A metade superior da embalagem estava cheia de cartas em envelopes, a
maioria delas endereçadas a Will com sua caligrafia. Todas haviam sido
abertas e lidas, exceto a última enviada no dia três de fevereiro de 1995. Era
evidente que a correspondência fora entregue depois da morte de Will.
Laura abriu o envelope e retirou dele o papel enfeitado com ursinhos e outros
desenhos típicos da infância.
"Querido Dean", ela escrevera, "lembra-se daquela noite em que decidimos
ignorar meu diafragma? Deve ter sido sorte de principiante..."
Deixando a carta dentro da caixa, deu as costas para ela e cruzou os braços
tentando aquecer-se. Então, ele nem chegara a tomar conhecimento da
gravidez.
Tentando superar a onda de dor causada pela confirmação de antigas
suspeitas, ela sentou-se diante da tela por terminar e examinou-a com olhar
crítico. Algumas partes do estreito de Long Island ainda eram apenas
esboços, mas conseguira atingir o tom exato do céu antes de uma tempestade
e das ondas revoltas do mar. Usando um pedaço de carvão, começou a
desenhar o que ainda não havia concluído, criando detalhes que conferiam
riqueza à paisagem. Como sempre acontecia quando se entregava à pintura,
perdeu a noção do tempo e esqueceu tudo, até se dar conta de que não estava
sozinha. Dean estava parado na porta com uma garrafa de vinho tinto na mão.
Ele trocara o uniforme por um jeans desbotado e um suéter de lã preta sob
uma jaqueta de brim.
— É como um imenso hematoma — ele comentou olhando para a tela.
— O quê?
— O céu cor de violeta. — Devagar, aproximou-se para melhor estudar o
quadro. — Lembra um ferimento. A água é como uma entidade furiosa, como
uma criatura tomada pela ira explodindo na praia em ondas gigantescas. Há
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muita paixão em seu trabalho, Lorelei.


Ela jogou o carvão na caixa.
— É só uma paisagem.
— Pintou outras paisagens antes, e nenhuma era como esta.
— Exagerada? Dramática?
— Não, de jeito nenhum. E... — Dean balançou a cabeça olhando para a tela. —
É linda. Mas assustadora. Quando olho para ela, tenho a sensação de estar
mergulhando em sua alma.
— E isso o assusta?
— No momento sim.
Laura apontou para a garrafa de vinho na mão dele, um pinot noir de safra
valiosa. A poeira que cobria o recipiente só havia sido removida nos pontos
tocados por seus dedos, e a rolha fora removida anteriormente.
— Esteve assaltando a adega de minha avó?
— Acha que ela vai se importar?
— Não. Ela nunca mais esteve aqui desde que fraturou a bacia, há dois anos, e
só mantém o vinho na adega para servir aos amigos. Vovó Jane nunca tocou em
uma só garrafa para proveito próprio.
— Quanta generosidade! Uma abstemia que se preocupa em manter em casa
bebida para servir aos amigos.
— Abstêmia? — Laura riu. — Diz isso porque nunca a viu atacando uma jarra
de martini! Vovó não gosta de vinho, só isso.
A gargalhada de Dean assustou-a. Era inesperada em meio ao clima do
sofrimento e desconforto e, ao mesmo tempo, renovadora. Do repente ele
parecia mais jovem, mais livre e feliz, como nos velhos tempos,
— Pensei em convidá-la para ir beber o vinho na praia enquanto caminhamos
um pouco.
Sempre haviam dado longos passeios noturnos pela praia nos finais de semana
que passavam ali, ela, Will e Dean, e esses passeios estavam entre as
lembranças mais agradáveis de sua juventude. Depois do uma breve
hesitação, Laura respondeu:
— Ótima idéia.
Andaram sob o luar, passando a garrafa de um para o outro enquanto falavam
nobre assuntos corriqueiros, especialmente sobre barco, a paixão que tinham
em comum. Dean contou que, na força aérea, sentia falta da liberdade de
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embarcar e deixar para trás a torra firmo com suas intermináveis


responsabilidades, trocando o mundo real pelo ritmo primitivo do mar.
— Há algo que sempre quis sabor — Laura comentou quando aproximaram-se
das rochas, um marco que sempre servira como indicação do que ora hora do
voltar. Ela se sentou sobre uma das pedras o levou a garrafa nos lábios,
sentindo a maciez da bebida aquecer a garganta. — O que um sujeito maluco e
rebelde como você foi fazer nau forças armadas? Quero dizer, já foi
estranho ter freqüentado a universidade, mas aceitar aquela bolsa da UTOR...
Você o a UTOR são como peças de um quebra-cabeças que nunca consegui
encaixar.
Apoiado na rocha onde Laura se sentara, Dean tirou do bolso o maço de
cigarros e acendeu um deles. Nos velhos tempos, ela o teria provocado e
criticado pelo hábito, mas os velhos tempos ficaram no passado, e a idéia de
trocar provocações com Dean Kettering naquela praia escura e deserta
enquanto dividiam uma garrafa de vinho parecia quase sacrílega.
— Acha que ingressei na força aérea, apesar de ser meio maluco, e na
verdade esse foi um dos motivos. Alguma vez lhe falei sobre meu pai?
— Apenas que ele partiu quando você era criança.
— Sim, eu tinha onze anos.
— Deve ter sido muito difícil.
— Só lamento por ele não ter ido embora antes. — Dean deu mais uma
tragada no cigarro e bebeu vários goles de vinho. Depois devolveu a garrafa
que tomara das mãos dela.
—Ele era tão mau assim? — Laura espantou-se, ingerindo mais uma dose
generosa da bebida.
— A situação foi pior para minha mãe. O bastardo estava sempre metido com
outras mulheres, gastando milhões de dólares do dinheiro que ela herdara da
família...
— Milhões?
— Minha mãe era uma Southampton. Ela era membro da realeza.
— E por que uma nobre se casou com um homem como seu pai?
— Porque, estava grávida.
— Ah...
— Quer adivinhar por que ele se casou com minha mãe? Posso adiantar que
não foi por ter um bom caráter ou por preocupar-se com a honra e o dever
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moral. Ele já havia tido outros dois filhos com mulheres diferentes, e teve
outros depois do casamento com minha mãe.
— Por acaso foram os milhões dos Southampton?
— Bingo! O homem tinha gostos caros e precisava de uma fonte de renda para
sustentá-los. Enquanto esteve casado com minha mãe, ele comprou dois jatos,
três casas e pelo menos uma dúzia de carros esportivos, todos italianos, sem
mencionar as toneladas de diamantes e pedras preciosas que minha mãe nunca
chegou a ver. O que não gastou, ele perdeu nas roletas de Monte Cario e Las
Vegas. E quando o dinheiro acabou, o canalha fugiu para a Europa e se casou
com uma baronesa, deixando minha mãe destituída.
— E a família não a ajudou em nada?
— Oh, sim, eles nunca a deixaram passar necessidades. Meus avós a
deserdaram quando ela anunciou a gravidez e a decisão de casar-se com meu
pai, mas permitiram que mamãe e eu fôssemos morar em um apartamento em
Westhampton depois da conclusão do divórcio. No entanto, eles nunca a dei-
xaram esquecer o gesto de caridade. E nunca permitiram que eu esquecesse
que o sangue daquele bastardo corria em minhas veias. Durante minha
adolescência, cada vez que eu cometia um erro, eles me faziam lembrar que o
problema era o caráter duvidoso que eu havia herdado de meu pai.
— Era melhor nem ter conhecido seus avós.
— Não. Eles estavam certos. Quero dizer, eram cruéis, mas nunca foram
estúpidos. Tinham olhos e orelhas. Eu estava sempre me destacando do grupo
da pior maneira possível, agindo como o degenerado incorrigível. Só me
acalmava quando estava velejando. Meus amigos permitiam que eu tirasse
seus barcos do galpão onde eles eram guardados, e logo aprendi a manejá-los.
Mas, em terra seca, eu era uma espécie de imã para encrencas. Cheguei a ser
preso uma vez por desordem e embriaguez.
— Sério? Eu nunca soube disso.
— Foi meu único desencontro com a lei, mas sempre odiei viver dentro dos
limites. Era como se um impulso me levasse a ultrapassá-los, a fazer tudo à
minha maneira, mesmo que para isso tivesse de prejudicar ou magoar outras
pessoas.
— Isso não significa que é como seu pai.
— Não? A genética é uma teoria fundamentada, Laura. Sob a aparência mais
jovem, sou exatamente como meu pai, egoísta e sem objetivos.
Laura esvaziou a garrafa e deixou-a sobre a rocha.
— Estou confusa. Afinal, o que suas supostas falhas de caráter têm a ver com
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seu ingresso na aeronáutica?


Dean deu a última tragada no cigarro, apagou-o na rocha e guardou a bituca
no bolso da calça.
— É como o delinqüente que é enviado para a escola militar a fim de aprender
os princípios da ordem e da disciplina, A única diferença é que ninguém me
mandou para lá. Quero dizer, ninguém além de mim mesmo.
— Porque acreditava precisar de disciplina...
— Não concorda comigo?
Era impossível negar que Dean estaria muito melhor se fosse um homem mais
assentado. O plano de injetar uma certa disciplina militar em sua
personalidade não era ruim; de fato, parecia estar surtindo bons resultados.
— Você sobreviveu ao UTOR — ela disse. — E enfrentou dois anos de força
aérea sem perder o juízo ou ser mandado para a prisão por desacato à
autoridade. Se possuía mesmo um caráter falho, parece que ele foi corrigido.
Dean balançou a cabeça.
— Eu sempre me esforcei muito para adequar-me às regras da força aérea.
Tenho medo de perder o juízo um dia desses e agredir um superior ou
abandonar a base e nunca mais voltar. Sou uma corte marcial esperando para
acontecer.
— Você é muito melhor do que imagina, Dean.
— Will costumava dizer a mesma coisa.
Ela abaixou a cabeça e emitiu um suspiro profundo, sentindo o vento frio
penetrar em sua alma.
— Desculpe-me — ele murmurou.
— Por quê? Por ter mencionado Will? Ele foi muito importante para nós dois.
Por que não deveríamos falar sobre ele?
— Porque ainda está sofrendo muito com a perda.
— Já me conformei.
— Não é o que diz aquela tela que está pintando.
—- Você tem uma imaginação fértil demais. Estou bem. Apenas... com frio. —
Laura saltou da rocha e cruzou os braços. — Podemos voltar?
Dean tirou a jaqueta de brim e colocou-a sobre seus ombros. O tecido havia
absorvido o calor de seu corpo e emanava o aroma suave da loção após barba,
despertando em sua mente lembranças de uma pele firme, de um hálito
quente e do peso de outro corpo sobre o seu.
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Ele a segurou pelos braços, puxou-a para mais perto e afagou suas costas
através da jaqueta. O calor provocado pelo contato acelerou sua pulsação,
deixando-a ofegante.
Dean puxou sua cabeça de encontro ao ombro e apoiou o queixo sobre seus
cabelos. As mãos deixaram de acariciar suas costas. Ele apenas a abraçava,
amparando e protegendo, aquecendo e confortando.
Laura retribuiu o abraço numa resposta que era conseqüência de instinto e
necessidade. Sentiu o movimento do queixo sobre sua cabeça e um roçar
muito leve que só podia ser um beijo.
Um beijo casto. Amistoso. Quase fraternal. E mesmo assim...
Perturbada, disse:
— É melhor voltarmos, Dean. Já é tarde, e...
— E você está com frio. — Ele suspirou. — Sim, eu sei. — Depois de um
instante de hesitação, Dean soltou-a e olhou em volta.
Laura pegou a garrafa vazia. Voltaram para o chalé em silêncio.
Laura ficou acordada até tarde. Passava da meia-noite, e ainda podia ouvir os
passos de Dean pela casa, primeiro no quarto de hóspedes, depois na sala.
Quando ouviu a porta dos fundos se abrindo, ela se levantou e abriu à cortina
para vê-lo na praia, parado de frente para o mar. A brasa alaranjada indicava
que estava fumando. Dean seguiu em frente, e ela o perdeu de vista.
Era quase uma hora quando ouviu os passos novamente no interior do chalé,
atravessando a cozinha, subindo a escada e entrando no quarto. Gavetas se
abrindo, cabides sendo, empurrados no armário...
Os passos pararam no corredor na frente de seu quarto, mas, em seguida,
continuaram e desceram a escada. Laura levantou-se, vestiu o robe sobre a
camisola de flanela e abriu a porta a tempo de vê-lo ainda no meio da escada.
Ele se virou para encará-la. Vestindo a mesma roupa de antes, levava a valise
em uma das mãos e o cabide com o uniforme na outra.
Mesmo na penumbra, era possível ver o pesar em seus olhos além daquele
distanciamento que ela aprendera a reconheceu e odiar ao longo dos anos.
— Ia partir sem dizer adeus?
— Não queria acordá-la.
— E como não gosta de escrever, achou melhor não deixar um bilhete.
— Laura...
— Diz que está se esforçando para mudar, para melhorar, mas ainda é capaz
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de partir no meio da noite sem ao menos...


— Não posso ficar aqui, Laura.
— Por que não?
Ele fechou os olhos por um instante. Quando voltou a abri-los, havia neles
uma determinação que a encheu de apreensão.
Dean subiu a escada saltando os degraus. Assustada, Laura recuou até sentir
a cama contra as pernas.
Ele jogou a valise e o uniforme no chão e tomou-a nos braços. Depois beijou-a.
Na boca. Era um beijo duro, doloroso, chocante... Um beijo que fazia seu
coração bater descompassado e despertava cada terminação nervosa,
provocando uma tensão imediata.
E uma necessidade premente.
Ela agarrou a jaqueta de brim, sem saber se devia empurrá-lo ou puxá-lo para
perto, horrorizada, excitada, apavorada.
Então ele a soltou e recuou um passo, os olhos refletindo o pânico que a
dominava.
— Satisfeita? Agora entende por que tenho de ir embora?
— Não, Dean. Você não tem de ir...
Laura sabia que estava cometendo um grave erro. Sabia que ainda tinha
tempo para repará-lo, mas estava emocionada demais para dizer alguma coisa.
E ele a tomou nos braços mais uma vez.

CAPÍTULO III

— Qual deles você prefere? — Kay jogou as três fitas de vídeo sobre o sofá
da pousada. A Blue Mist, única hospedaria além de um hotel de quinta
categoria no subúrbio da cidade, estava sempre lotada no verão. Durante o
inverno, por outro lado, o local ficava vazio. Todas as noites de quinta-feira,
de novembro a maio, eram dedicadas ao cinema na casa de Kay. Às nove, Laura
punha Janey na cama no quarto Rosa, o preferido da menina, e depois ia para
a cozinha com Kay preparar pipocas. As duas amigas abriam uma garrafa de
vinho, escolhiam unia fita na vasta coleção da dona da pousada e sentavam-se
para assistir ao filme. No início, Laura costumava acordar a filha para levá-la
para casa, mas depois decidira simplesmente deixá-la dormindo na casa de tia
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Kay. Depois do café, ela ia buscar a menina para levá-la a pré-escola que ela
freqüentava às segundas, quartas e sextas.
— Laura? Não vai escolher o filme?
— Como devo proceder para enviar uma encomenda pelo Expresso Federal?
— Por que quer saber?
— Porque amanhã vou devolver o cheque para o advogado que o enviou e...
— Não! — Kay abandonou as fitas e sentou-se ao lado da amiga.
— Sim. É a única atitude correta nesse caso. — E a mais sensata também.
— Escute, sei que existe algo de misterioso entre você e esse sujeito, e
também sei que considera errado aceitar o dinheiro, embora não entenda por
quê. Mas o cheque chegou esta manhã. Ainda não teve tempo para pensar e...
— Sim, eu tive. — Laura bebeu alguns goles do vinho.
— Não refletiu sobre o significado desse cheque na vida de Janey.
— Agora está jogando sujo, Kay. E adotando uma estratégia que não é tão
astuta quanto pode imaginar. Vou devolver o cheque.
— Por que tanta pressa? Não quer conversar com o tal Dean Kettering e
descobrir por que ele mandou o dinheiro? Quero dizer, se ele não espera nada
em troca, e se essa quantia caiu do céu...
— Não poderia conversar com Dean, mesmo que quisesse. Não sei onde ele
vive.
— Em Newport, Rhode Island, provavelmente. Afinal, ele contratou um
advogado de lá para enviar o cheque. Por que não telefona para o homem na
segunda-feira e tenta convencê-lo a fornecer o endereço do cliente?
— Porque já decidi devolver o cheque amanhã mesmo e...
— Laura, posso ligar meu computador e localizar Dean Kettering em cinco
minutos, se quiser.
— Não quero.
— Não está curiosa sobre o paradeiro desse homem? Quero dizer, ele sabe
onde você mora.
— Sim, ele sabe tudo sobre esta casa, porque costumava vir para cá comigo e
com Will quando o chalé ainda era a residência de verão de vovó Jane.
— Certo. Mas como ele sabe que agora você mora aqui? Deve ter feito uma
investigação sobre sua vida. Agora é sua vez.
Determinada, Kay levantou-se e atravessou a sala para ir sentar-se à mesa
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onde ficava o computador. Alguns toques rápidos em meia dúzia de botões, e


o equipamento ganhou vida.
Um dos segredos de Laura, um dos que mais a envergonhavam, era sua
completa ignorância com relação às maravilhas da tecnologia moderna. Não
sabia nem ligar um computador, muito menos obter acesso àquela entidade
misteriosa e enigmática chamada Internet. Kay, por outro lado, era quase um
gênio da informática. Sozinha, ela havia criado um site para a pousada Blue
Mist e facilitara a própria vida com isso.
— Muito bem, esse é um site especializado em localizar pessoas — Kay
explicou. — Existem duas maneiras de tentar encontrar alguém. Vamos
começar pelo número do telefone. — Ela pressionou algumas teclas e esperou.
Depois balançou a cabeça. — Nada. Ele deve ter um número fora do catálogo.
— Talvez nem tenha telefone. — Laura levantou-se para ir olhar a tela
iluminada, impelida pela curiosidade.
— Todo mundo tem telefone.
— Dean Kettering não é como todo mundo. Ele é...
— O que ele é?
— Esqueça. — Laura puxou uma cadeira e sentou-se ao lado da amiga. — Não
encontrou um número de telefone. E agora, o que vai fazer?
— Ah, então está curiosa?
— Talvez... Mas isso não quer dizer que vou entrar em contato com ele.
— É claro. Bem, agora vou tentar encontrar um endereço eletrônico. — Kay
pressionou mais algumas teclas. — Nenhum e-mail. Talvez ele seja tão
atrasado quanto você.
— Não sou atrasada. Apenas ignorante. É diferente.
Kay utilizou outros sites de busca, mas nenhum deles produziu efeitos. No
último, um recurso desesperado, como ela mesma explicou, uma vez que era
cobrada uma taxa de utilização, era possível localizar qualquer pessoa que
tivesse um endereço fixo em território americano.
— Qual é o valor da taxa? — Laura perguntou apreensiva.
— Não se preocupe com isso. Eu pago. — Kay informou o nome completo de
Dean e o provável estado onde ele residia. A máquina executou a pesquisa e a
resposta foi a mesma de antes. Sujeito não localizado. — É impossível! Ele
tem de ter um endereço!
— Talvez não more nos Estados Unidos — Laura opinou,
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— Então, por que usou um advogado de Newport? Ele não é daqui?


— Não. Dean cresceu em Long Island. É descendente dos Hamptons.
— Hamptons? — Kay ergueu uma sobrancelha. — Não é de estranhar que
possa distribuir cheques de um milhão de dólares.
— Não é como está imaginando. O pai de Dean dilapidou o patrimônio da
família quando ele ainda era criança. Ele nem teria conseguido cursar a
faculdade, não fosse pela bolsa da UTOR e pelo emprego de meio período
ajudando um empreiteiro de obras. Dean só aprendeu a velejar porque os
amigos permitiam que ele tirasse os barcos do píer e os preparasse para a
navegação.
— Vejo que têm algo em comum. O amor pela navegação.
— Só isso.
O que Dean havia dito sobre a genética? Laura pensou em Janey e sentiu-se
tomada pelo instinto de proteção. Era tudo que Janey tinha no mundo. Às
vezes ficava assustada com a magnitude de tal responsabilidade, e
ocasionalmente imaginava se a filha não sofria por não ter um pai, uma figura
masculina que lhe conferisse segurança e estabilidade. Então lembrava que
nem todos os pais representavam o equilíbrio na vida dos filhos. Alguns, como
o pai de Dean, e o próprio Dean, eram fontes de tumulto e desordem para
aqueles que os cercavam, especialmente quando chegava o momento do grande
ato do desaparecimento.
Sim, tinha motivos incontestáveis para devolver aquele cheque.
— O que acha? — Kay apontava para a tela. Ela havia entrado em um site onde
estavam relacionados todos os passeios turísticos de Newport, até mesmo os
fretamentos aéreos e marítimos. Havia uma lista de mais de uma dúzia de
companhias atuando no ramo. — Se ele gosta de velejar, talvez esteja
trabalhando com barcos.
— Não é impossível.
Mas, enquanto Kay examinava página por página em busca do nome de Dean,
Laura ia se dando conta de que aquela era mais uma tentativa inútil.
— Esse homem é difícil de localizar — Kay comentou enquanto flexionava
dedos e braços.
— Está perdendo seu tempo. Vamos assistir ao filme e comer pipocas.
— Está brincando? Agora que comecei a me aquecer?
— Kay...
— Laura, não existe um único ser humano que não tenha deixado rastros
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captados pela rede. É a Internet! E vou encontrar as pegadas de Kettering.


— Você é muito aborrecida quando fica obcecada por alguma coisa, sabe?
— Sei. Bem, vou navegar por todos os sites de Newport. Mais cedo ou mais
tarde, algum sinal indicará o paradeiro de Dean Kettering. — Kay entrava em
sites diversos. Feira de Barcos de Newport, Imóveis em Newport, Câmara de
Comércio, Mansões Históricas... Havia links para faróis, marinas, vinhedos,
escolas de navegação, festivais de música e uma tonelada de outros assuntos,
até mesmo pousadas e hospedarias.
Mas as pegadas de Dean Kettering não estavam em parte alguma.
Laura esvaziou o copo de vinho.
— Já disse que está perdendo seu tempo.
— Ei, aqui diz que Newport tem um jornal semanal. Vamos ver o que
encontramos por esse caminho. — Kay digitou o endereço do site do Newport
This Week, — Talvez consiga fazer uma pesquisa usando.o nome de Dean.
— Agora está se tornando repetitiva. Quer saber de uma coisa? Vou preparar
pipocas e assistir ao filme, nem que seja sozinha. Caso mude de idéia, estarei
bem ali no sofá, diante da tevê.
— Laura?
— Não tente me convencer a continuar olhando para essa tela, porque...
— Laura, há algo que talvez queira ver.
Laura olhou para a amiga em silêncio por um instante e depois retomou seu
lugar diante do computador.
— Entrei no site do Providence Journal, o maior jornal diário de Rhode
Island, e digitei o nome de Dean Kettering solicitando uma pesquisa em todos
os artigos dos últimos cinco dias. Encontrei algo na edição de dezenove de
março.
— Dezenove de março... Antes de ontem?
— Exatamente.
A mensagem na tela anunciava um artigo contendo Dean Kettering. A
manchete era simples: Herói Tímido de Portsmouth. O subtítulo explicava:
Veterano da Força Aérea salva dois garotos da água gelada.
— Por isso não consegui encontrá-lo rios sites de Newport — Kay explicou,
movendo a tela para posicionar o artigo para leitura. — Ele mora em
Portsmouth. Sempre pensei que Portsmouth ficasse em New Hampshire.
— Há uma cidade com o mesmo nome em Rhode Island. E um lugar pequeno,
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mas cheio de marinas. — Laura mantinha os olhos fixos na tela. Ao lado do


artigo, uma foto ia se materializando aos poucos, ocupando metade do espaço
luminoso.
Quando a imagem ficou completa, uma fotografia de alguém tentando virar-
se para o lado oposto ao da câmera e mantendo a mão erguida, Laura chegou a
pensar que a pessoa fosse uma mulher. Então notou os ombros largos, a
postura máscula... e compreendeu tratar-se de um homem de cabelos longos.
Mas... não podia ser Dean!
— É ele? — Kay perguntou.
— Não. — Laura aproximou-se da tela para enxergar melhor o rosto
emoldurado por cabelos escuros e longos. Era um rosto viril e aristocrático
de traços marcantes, nariz reto e olhos luminosos. Um rosto quase perfeito,
não fosse a expressão distante de um homem que já havia estado em muitos
lugares e feito muitas coisas. — Meu Deus! Sim, é ele!
— É ele? — Kay assobiou. — Puxa, o homem é bonitão... para quem gosta de
tipos com cara de mau e jeito de delinqüente. Não é o meu caso.
— Nem o meu — Laura respondeu apressada.
Kay olhou para ela e sorriu. Depois começou a ler o artigo.
— Então, esse tal Dean Kettering foi seu colega na universidade.:.
— Meu e de Will.
— Hmm... — Uma segunda foto havia aparecido ao lado da primeira, um
retrato oficial de Dean na Força Aérea. O corte de cabelos em estilo militar
e o uniforme azul davam um ar sério ao homem. — Ei, esse é o mesmo
Kettering?
— Ele era assim quando o conheci. Nunca pensei que um dia pudesse deixar os
cabelos crescerem.
— Está lendo o artigo? Ele salvou duas crianças do afogamento no dia
dezessete.
Laura leu a matéria.
"Há quatro anos um residente de Portsmouth chamado Dean Kettering, vinte
e nove anos, recebeu sua honrosa dispensa da Força Aérea dos Estados
Unidos, em que serviu como primeiro-tenente, mas foi no sábado à noite que
ele conquistou realmente o título de herói. Dois jovens de Newsporth, Evan
Ashford, de quinze anos, e Brent Campbell, de dezesseis, deixavam uma festa
na casa de um amigo quando passaram pela Marina Howell e, seguindo um
impulso, desamarraram uma canoa de propriedade da marina e remaram até o
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 30
Projeto Revisoras

meio do rio Sakonnet, onde a embarcação virou. Os dois adolescentes foram


jogados na água gelada. Nadadores inexperientes e intoxicados pelo consumo
excessivo de bebidas alcoólicas, os dois rapazes teriam se afogado se seus
gritos não houvessem acordado Dean Kettering, um dos poucos homens de
coragem que residem em seus barcos ancorados na marina durante o inverno.
Kettering dormia em seu veleiro quando o acidente ocorreu. Ele mergulhou no
rio e nadou através dos blocos de gelo até alcançar os dois jovens, que foram
levados de volta à segurança."
— Uau! — Laura exclamou.
— Eu entendi bem? Esse sujeito mora em um barco? O ano todo? No inverno?
Em New England?
— É evidente que sim. Terminou de ler o artigo? Eles dizem que Dean oferece
serviços de fretamento no inverno e escreve para jornais e revistas
especializados em navegação nos meses de inverno.
— Que tipo de lunático passa todo o inverno sozinho em um veleiro cercado
de gelo?
Laura limitou-se a suspirar. Ninguém jamais havia acusado Dean Kettering de
ser convencional ou sensato.
— Muito bem... — Kay reclinou-se na cadeira e bebeu um pouco do vinho que
Laura havia posto em seu copo. — De onde supõe que tenha vindo o dinheiro?
— O quê?
— O milhão de dólares que ele mandou para você. Acha que ele usa o barco
para transportar drogas, ou... Enfim, acha que ele tem alguma atividade
ilícita?
— Dean é a última pessoa do mundo de quem eu suspeitaria. Ele nunca
cometeria atos ilegais.
— Não sei. Ele tem uma aparência bastante suspeita.
— Ele é um eterno rebelde, Kay. Um homem que não aceita rédeas e desafia
os limites. Will costumava chamá-lo de indomável. Para alguém que pertencia à
UTOR, ele era um verdadeiro selvagem, sempre criando problemas com os
superiores e percorrendo as ruas em sua motocicleta no meio da noite. Ele
tinha uma Harley-Davidson 1973, uma verdadeira relíquia. Uma vez, quando
passávamos o final de semana aqui, Will e eu saíamos para procurá-lo ao
amanhecer e o encontramos dormindo na praia. Ele tinha o hábito de sair
sozinho e desaparecer sem dizer nada, mas sempre acabava voltando, embora
levasse dias para reaparecer. Quando perguntávamos onde havia estado, ele
encolhia os ombros e mudava de assunto.
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 31
Projeto Revisoras

— Ele saía para paquerar no meio da noite?


— Talvez, mas nenhuma mulher jamais conseguiu conquistá-lo de verdade.
— Certo. Quer dizer que Kettering tinha dificuldades para andar nos trilhos.
E quer me convencer de que ele seria incapaz de traficar drogas para ganhar
dinheiro? Francamente, Laura!
— Dean nunca desrespeitou a lei, apesar de sua natureza rebelde. Ele jamais
enriqueceria praticando crimes. Além do mais, se fosse rico, Dean não estaria
morando em um veleiro. Não no inverno.
— Está bem, o homem não é um traficante. Estou convencida disso. Na
verdade, o artigo diz que ele é um herói. Então, por que não aceita o dinheiro?
— Tenho minhas razões.
— Nesse caso, recuso-me a dizer como deve proceder para usar o serviço
Expresso Federal.
— Não importa. Desisti de devolver o cheque para o advogado.
— Maravilha!
— Vou levá-lo pessoalmente e entregá-lo a Dean. Amanhã mesmo irei a Rhode
Island e...
— Não!
— Será que pode cuidar de Janey enquanto eu estiver fora? Amanhã é sexta-
feira. Se não se importa de levá-la à escola...
— Laura!
— Vou ter de alugar um carro. A transmissão do meu está arruinada. E vou
ter de passar a noite em um hotel, o que significa que só estarei de volta no
sábado à tarde. — A empreitada a deixaria mais pobre em cerca de cento e
cinqüenta dólares.
— Se acha que vou ajudá-la nessa insanidade, deve ter perdido o juízo. A
menos que... — Um sorriso diabólico iluminou os olhos de Kay. — Essa sua
decisão repentina de levar o cheque pessoalmente causa certas suspeitas.
— Suspeite do que quiser. Tem um mapa de New England? Preciso planejar
minha rota.
— Mapa? Que coisa mais arcaica! Hoje em dia existem programas de
computador para planejar uma viagem. — Kay inseriu um CD-ROM no drive
apropriado. — Afinal, por que decidiu levar o cheque em mãos?
— Dean merece um mínimo de consideração.
— Cortesia? .
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 32
Projeto Revisoras

— É mais ou menos isso.


— Pelo amor de Deus, Laura! Somos amigas, lembra? Pode desabafar comigo.
Qualquer que seja o segredo, pode dividi-lo comigo.
— Eu sei, Kay. O problema é que... Ainda não estou preparada para falar.
Kay assentiu. Um mapa e um texto colorido surgiram na tela
—Aprecio toda a ajuda que está me dando, apesar de não concordar com
minha decisão de devolver o cheque.
— Não se apresse em expressar sua gratidão. Depois de ter visto sua reação
diante daquela foto, estou quase convencida de que ele vai persuadi-la á ficar
com o dinheiro.
— Impossível.
— É mesmo? Quando estiver frente a frente com ele, depois de todos esses
anos... qualquer coisa poderá acontecer. — Kay fitou-a com um sorriso
enigmático. — Qualquer coisa mesmo.

CAPÍTULO IV

Laura parou no píer gelado ao vê-lo. Um marinheiro que era quase uma réplica
de Popeye havia indicado o caminho até o barco de Dean, o Lorelei.
Lorelei? Não tinha importância. Dean sempre havia gostado das antigas
lendas. Não devia ver significados onde eles não existiam.
Ele se virou e notou sua presença, mas só a reconheceu quando ela baixou o
capuz que protegia sua cabeça do vento frio.
Vários segundos se passaram. Dean soltou a ferramenta com que removia o
gelo do convés da embarcação e afastou os cabelos do rosto.
— Laura? — murmurou atônito.
Ela assentiu.
— Céus... É você, Lorelei?
Ainda podia fugir. Não era tarde demais. Devia devolver o cheque e ir
embora.
Removendo a luva da mão direita, ela retirou o envelope do bolso da jaqueta.
— Vim para devolver algo que não me pertence. Por favor, fique com isto. —
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 33
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Aproximando-se do veleiro, estendeu a mão para que ele pudesse alcançar o


envelope.
Mas, num gesto surpreendente, Dean segurou seu pulso.
— É melhor embarcar.
— Não. Por favor, pegue o cheque e deixe-me ir embora.
— Está tremendo de frio! Venha, acabei de preparar um bule de café.
— Por favor, pegue o cheque e...
— Primeiro o café. — Segurando sua outra mão, ela a puxou de maneira a não
deixá-la com outra alternativa se uno embarcar. — Depois falaremos sobre o
cheque.
Na cabine simples, um bule sobre a chapa de um fogão rústico espalhava o
pungente aroma do café por todo o espaço reduzido. Dean removeu as luvas,
guardou-as no bolso da calça e tirou o enorme pulôver azul, revelando um
suéter de lã cinza.
Laura retirou a outra luva e guardou-a no bolso do casaco com o envelope
contendo o cheque.
— Pode tirar a jaqueta. Não vai precisar dela aqui.
— Prefiro ficar com ela. Não vou demorar.
Dean segurou o zíper da jaqueta para abri-la, ajudando-a a despir o agasalho.
— A temperatura aqui é de vinte e dois graus. Se acha que precisa de uma
armadura para proteger-se em minha companhia, está enganada.
— Não é nada disso. Eu só... Bem, não esperava que essa situação se
transformasse em uma visita. — Mesmo assim ela aceitou a caneca grosseira
com o café e segurou-a com as duas mãos para aquecê-las. — Não planejei
nada disso. Quero dizer, vim até aqui apenas para devolver o cheque, não
para... — Ela parou e balançou a cabeça. O que estava fazendo ali? Cometera
um engano monumental. Devia procurar um psiquiatra e submeter-se a um
exame completo!
— Uma colher e meia de açúcar e muito leite, certo? Dean providenciou o
açúcar, o leite e a colher. Depois apoiou-se no balcão para observá-la.
Laura ocupou-se com a preparação de sua bebida, tentando ignorar a
proximidade de Dean, o movimento do braço musculoso levando a xícara de
café puro e quente à boca. A cabine era pequena demais para abrigá-los.
— Não quer se sentar? — ele convidou. — Ou isso daria um caráter ainda mais
informal à conversa?
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 34
Projeto Revisoras

Sem esperar por uma resposta, ele passou pela porta certo de que seria
seguido. No instante seguinte estavam acomodados em outra cabine mais
aquecida e bastante aconchegante. Havia uma pequena lareira em um canto e
um aquecedor portátil à querosene em outro.
— Todo o conforto do lar. — Dean empurrou a máquina de escrever, o maço
de cigarros e um bloco de anotações para o canto da mesa, abrindo espaço
para as canecas de café. — O esforço para manter esta banheira aquecida é
constante.
— Posso imaginar. Enfrento uma luta parecida no chalé.
— Ainda está tentando sobreviver com aquele fogão velho que era de sua
avó?
— Sim.
— Não deve ser fácil manter toda a casa aquecida com aquela coisa.
— Não me importo de manter o fogo aceso. O que me incomoda é ter de
passar todo o inverno cortando lenha. Minhas mãos estão tão calejadas, que
fico espantada quando ainda encontro bolhas em meus dedos. A propósito...
como soube que estou morando no chalé de minha avó?
— Você... não me contou que havia sido beneficiada pelo testamento dela?
— Não. E nem poderia, porque só soube do testamento depois que ela morreu.
Foi no verão depois de... depois da morte de Will.
— Como ela morreu?
— Vovó Jane sofreu um infarto. E você está mudando de assunto.
— Deve ter sido duro perder sua avó logo depois de ter perdido o marido.
E o bebê... O primeiro bebê. Mas a única pessoa que soubera sobre o aborto
havia sido a avó.
— Eu sobrevivi.
— Porque é forte e corajosa. Sempre admirei sua capacidade de enfrentar
todos os problemas sem sucumbir.
— Pois não seria capaz de viver como você. Como consegue passar o inverno
aqui? Não tem claustrofobia?
— Não. Esta é minha caverna. Passo o inverno aqui dentro hibernando, e
recupero o tempo perdido com a chagada da primavera.
— Trabalha oferecendo passeios fretados aos turistas, não é?
— Sim, todos os anos, quando volto das Bermudas.
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 35
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— Bermudas?
— É para lá que vou no final de maio. Passo duas semanas mergulhando só para
afastar as lembranças do inverno.
— Tem uma tripulação?
— Oh, não! Sou só eu no veleiro. Depois da viagem retorno para cá e faço
fretamentos diários até o final do verão.
— Nunca se sente solitário?
— Nunca gostei de grandes multidões. E você? Não sente solidão?
De repente a cabine parecia ainda menor.
— Não... não realmente.
— Há alguém em sua vida?
— Um homem? Não. Continuo sendo a mesma Laura caseira e pacata de
sempre. Mas isso não significa que esteja sozinha. Minha melhor amiga mora
na casa ao lado, e nós nos encontramos todos os dias. Ela é psicóloga, mas
decidiu que não acredita mais nas velhas teorias e abriu uma pousada. Lem-
bra-se da velha casa dos Sullivan?
— Aquela monstruosidade vitoriana?
— Exatamente. Kay comprou o imóvel e transformou-o na Blue Mist, uma
pousada encantadora que está sempre lotada no verão.
— Acho que também me tornei caseiro. Com a vida que levo e o lugar onde
moro, é impossível manter muitas atividades sociais.
Aquela era sua maneira de dizer que não havia ninguém em sua vida? E por que
queria que ela soubesse que estava sozinho?
Laura gostaria de não estar tão satisfeita com a revelação.
Dean sentou-se em um sofá de dois lugares e convidou-a a fazer o mesmo. Ela
preferiu remover as revistas empilhadas sobre uma cadeira e acomodar-se
nela. A revista no topo da pilha possuía um artigo de capa chamado
"Explorando o Atlântico". O autor era Dean Kettering.
— Não posso criticá-la por preferir manter distância. Sempre soube cuidar
de si mesma, enquanto eu... Eu sou apenas um grande e insolúvel problema. Já
aprendi a conviver com isso. Mesmo assim, não entendo por que tem de
devolver o cheque.
— Desista, Dean. Não vai me fazer mudar de idéia.
— Por favor! Deixe-me fazer ò que é certo ao menos uma vez.
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 36
Projeto Revisoras

— Não posso aceitar seu dinheiro.


— Por que não?
— Porque não posso. Não peça explicações, está bem?
— Ainda está muito zangada comigo? É isso?
— Não.
— Tem todo o direito de estar furiosa. Saberei entender seu ódio, se...
— Eu não odeio você, Dean. Não é nada disso.
— Então, por que não aceita o dinheiro?
— Porque... — Ela fechou os olhos por um instante, deixando escapar um
suspiro frustrado. — Não seria correto.
Mãos fortes e calejadas seguraram as dela. Assustada, abriu os olhos e
encontrou-o ajoelhado no chão, os olhos tomados por uma expressão de
súplica.
— Não consigo pensar em nada mais correto, Laura. Jamais poderia fazer
algo melhor ou mais certo. Talvez seja meu único ato desprendido, o único ato
que não foi provocado por motivos egoístas. Quero que fique com o dinheiro.
— Não quero esse dinheiro.
— Não quer um milhão de dólares?
— O dinheiro é seu, Dean!
— Por sorte. Não vou sentir falta dele.
— Sorte...? Como ganhou esse dinheiro?
— Não importa. Alguém quis me agradecer por algo que fiz. Nada importante.
— Meu Deus! Foi uma recompensa, não foi? Por ter salvo aqueles dois
garotos?
— Como soube sobre os garotos?
— Pela Internet.
— Internet? Nunca pensei que fosso uniu dessas pessoas que passam horas
na frente de um computador.
— Não sou. —Ela sorriu. — Minha amiga Kay e a especialista no assunto. Foi
assim que o localizamos.
— Entendo. De qualquer maneira, o dinheiro não representa nada para mim.
Fique com ele. — Ele segurou as mãos dela e fitou-a nos olhos para dar força
ao pedido.
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 37
Projeto Revisoras

Laura tentou interromper o contato, mas os dedos em torno dos dela eram
como faixas de aço.
— Eu... não preciso desse dinheiro.
— A Laura que conheci não teria dito uma mentira tão óbvia.
Sabia que estava vermelha, mas fez questão de encará-lo.
— Você não é o único que desenvolveu maus hábitos.
— Desista. Sei que odeia mentir e não é capaz de dizer uma mentira de
maneira convincente. Você precisa do dinheiro.
— Mas não vou aceitá-lo. .
— Nem mesmo por Jane?
— Quem?
— Sua Filha.
— O nome dela é Janey. Como soube que tenho uma filha?
— Eu...
— A verdade, Dean. Quero ouvir apenas a verdade. Ele respirou fundo.
— Há dois anos contratei um detetive particular para localizá-la. Queria
saber como estava, onde vivia, esse tipo de coisa.
— Por quê?
— Porque precisava saber que estava bem.
— Quando alguém quer ter notícias de um velho amigo, normalmente o
procura e pergunta pessoalmente.
Dean encarou-a com aquela expressão distante que ela aprendera a odiar.
— Não sou como as outras pessoas.
— É tão diferente que não pode usar um telefone, ou escrever algumas
linhas...
— Laura, você me conhece. Não costumo escrever algumas linhas. Vivo
sozinho e isolado, porque sempre que me aproximo de alguém, acabo causando
apenas a infelicidade de outras pessoas. Devia saber disso melhor do que
ninguém. Laura desviou os olhos dos dele, o rosto ardendo por conta da
humilhação.
— Por favor, fique com o dinheiro — ele insistiu.
— Não.
— Se não quer o dinheiro por você, aceite-o por Janey.
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Projeto Revisoras

Janey é justamente a razão pela qual não posso aceitá-lo . Mas não podia
revelar a verdade. Nem agora, nem nunca.
— Não, Dean. Sei que não vai entender, mas... Não vou ficar com seu dinheiro.
Não posso.
Dean fechou os olhos por um instante, respirando fundo como se tentasse
manter a paciência. Quando voltou a abri-los, ele a fitou em silêncio
examinando cada traço de seu rosto. Os olhos, o queixo, a boca... As mãos que
seguravam as dela eram calejadas, e ele usou a ponta de um dedo para tocar
sua face.
— Janey é parecida com você? Ou herdou os traços de Will?
— Ela... Comigo. — Era difícil não se deixar perturbar pelo calor daquela mão,
pelo aroma que ainda era tão familiar e sedutor, mesmo depois de seis anos.
— Nesse caso, ela deve ser linda. — Lentamente, Dean tocou seus cabelos
numa carícia singela.
Laura fechou os olhos, tentou controlar a respiração e manter-se firme,
assustada com a força da atração que ainda sentia por ele, mesmo depois de
tudo que haviam vivido.
Dean não era como ela, ou como Will, ou como qualquer outra pessoa. Pelo
contrário. Era uma criatura solitária que só respondia a si mesmo, uma
espécie de animal selvagem que estava sempre evitando seus semelhantes,
que jamais poderia ser domesticado ou treinado para viver no mundo de
Laura. Tudo o que era mais importante para ela, especialmente os laços mais
sagrados da família e do matrimônio, Dean menosprezava.
Dean Kettering era a personificação da palavra problema, como ele mesmo
dizia. Sempre soubera disso e, no fundo, havia sido justamente essa
característica que a fascinara, além de amedrontá-la.
— Ela tem seus olhos? — ele perguntou.
— Não. — Ela tem os seus. — Agora tenho do ir.
— Laura...
— Deixe-me ir. — Usando de força física, ela interrompeu o contato e seguiu
para o convés. — Não posso ficar aqui.
Dean levantou-se de um salto e agarrou-a pelo braço antes que ela pudesse
passar pela porta.
— Não faça isso. Não precisa fugir de mim, Laura. Prometo que a deixarei...
— Solte-me, Dean!
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 39
Projeto Revisoras

— Assim que concordar com minha proposta. Fique com o dinheiro, e nunca
mais voltarei a incomodá-la. Eu juro.
Ela fechou os olhos. Tudo o que ouvia era a respiração ofegante ecoando a
dela. Sentia o peito musculoso pressionado contra suas costas e as mãos em
seus braços como cabos de aço.
— É isso que quer, não? — ele persistiu com tom resignado porém ressentido.
— Espera que eu desapareça de uma vez por todas?
Por que se sentia culpada, se os seis anos de afastamento haviam sido obra
dele mesmo? Depois daquela noite inesquecível, fora ele quem desaparecera
sem deixar pistas.
Ah, mas a situação era muito mais complexa do que parecia. Se sentia culpa,
era porque escondia dele a verdade sobre Janey. Mesmo tendo bons motivos
para omitir certos fatos, não podia evitar o remorso de guardar tão
importante segredo.
E, tendo em vista esse segredo, não podia aceitar o dinheiro de Dean. Seria
injusto, desonesto e impróprio.
— Fique com o dinheiro. Ela balançou a cabeça.
— Seria melhor para todos se você me deixasse ir embora. Por favor...
— Por que não me deixa tomar ao menos uma atitude decente? Não posso
desfazer aquela noite... ou o que fiz...
— Não! — Laura virou-se para encará-lo. — Nada poderá apagar aquela noite.
— A imagem de Janey ainda estava nítida em sua mente quando, naquela
manhã, ela havia acenado da varanda de Kay em suas pantufas de dinossauro e
seu pijama de ursos. — Na verdade, eu não a apagaria nunca, mesmo que
pudesse.
A afirmação deixou-o sem fala.
Laura ergueu a mão e tocou seu rosto.
— Adeus, Dean. — Antes de vestir a jaqueta, ela pegou o cheque no bolso e
deixou-o sobre o balcão.
Depois saiu sem olhar para trás.

CAPÍTULO V

Dean olhou para o envelope sobre o balcão. Dentro dele havia um cheque de
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um milhão de dólares que ninguém queria.


Ou melhor, ninguém admitia querer. Ele mesmo queria o dinheiro, mas, num
arroubo de nobreza, tentava dá-lo a Laura. Ela também queria o dinheiro e
precisava dele, mas, por motivos próprios, negava-se a aceitá-lo.
Primeiro havia dito que não podia dar explicações. Depois dissera que não
queria o dinheiro, não precisava dele.
Laura Sweeney mentira. E isso só podia significar uma coisa: desespero.
Ela precisava do dinheiro, mas estava desesperada por manter em segredo o
motivo que a levava a recusá-lo.
Sua doce Lorelei tornara-se enigmática. Sempre fora tão direta e autêntica,
tão simples e objetiva! Sem pretensões, sem fingimentos, sem mentiras...
Laura Sweeney nunca mentia.
No entanto era evidente que agora escondia alguma coisa.
Dean voltou à cabine principal e alimentou o fogo na lareira. Sozinho, ficou
pensando em tudo o que ela havia dito, unindo peças e separando-as para
juntá-las novamente em posições diferentes.
O segredo devia estar relacionado àquela noite... a noite que ainda
assombrava seus sonhos e o envergonhava.
Eu não a apagaria mesmo que pudesse.
Laura o surpreendera com a afirmação. Quantas vezes fantasiara a
possibilidade de voltar no tempo e reviver aquela noite de outra maneira,
resistindo ao desejo. Devia ter sido forte pelos dois. Devia ter partido ou
agido como o homem que Will havia esperado que fosse. Um homem de
caráter indiscutível é honra incontestável.
E se esforçara para agir corretamente. No início, pelo menos...
Tentara fugir como um covarde, e teria conseguido, se Laura não houvesse
saído do quarto.
O beijo... havia simplesmente acontecido. Um engano, sim. Cometera o engano
de beijá-la, mas como poderia ter resistido à tentação?
Pensara em esgotar o interesse. Em assustá-la, talvez. E o que acontecera?
Ele ficara assustado, trêmulo e abalado. Sentir a boca quente e úmida em
contato com a dele, abraçar o corpo ardente de desejo... Havia tentado.
Agora entende por que tenho de ir?
Mas a resposta de Laura destruíra o que ainda restava de determinação e
força. Ela o impedira de partir, mesmo sabendo de suas intenções. O mundo
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 41
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havia parado de girar. Alegria e medo o invadiram. Sabia que ela agia impelida
pela solidão e pela dor da perda, que ainda não pensara nas conseqüências do
que fazia...
E mesmo assim a tomara nos braços para mais um beijo apaixonado. A cama
do quarto estava desarrumada, e então caíram sobre o colchão tomados por
um fogo que nada poderia debelar. Fizeram amor como dois adolescentes
dominados pelos hormônios, e atingiram juntos um clímax intenso e
arrebatador. Depois, quando finalmente voltara ao mundo real e recuperara o
ritmo normal da respiração, Dean percebera que ela chorava baixinho.
— Laura? — chamara, assustado, apoiando o peso do corpo em um cotovelo.
Ela havia virado o rosto para esconder as lágrimas, mas os soluços abafados
sacudiam seu corpo. — Meu Deus, Laura! — Apavorado, ele se levantara e
fechara a calça que nem chegara a despir. Depois abaixara a camisola de
flanela para cobri-la e ainda usara o robe para garantir uma dose extra de
modéstia.
Ela se encolhera e, deitada de lado, escondera o rosto entre as mãos.
Dean fora forçado a testemunhar a conseqüência imediato de seu ato
egoísmo. Transformara sua bela e forte Lorelei em uma sombra, em um
fantasma da mulher que um dia ela havia sido.
— Oh, Laura... — Deitado ao lado dela, ele a abraçara apertado. — Eu sinto
muito. A culpa é toda minha.
Laura balançara a cabeça e dissera alguma coisa incompreensível. Dean não
precisava entender as palavras para compreender sua angústia. Ela sentia que
havia traído Will.
Se alguém o traíra, esse alguém fora ele. Dois meses antes, Will Sweeney
morrera nos braços de Dean depois de pedir que ele cuidasse de Laura, que a
protegesse contra todos os males e perigos.
— Eu vou cuidar dela, meu irmão — Dean conseguira responder com a voz
embargada.
No entanto, fora procurá-la enquanto ela se escondia para cuidar da própria
dor e... E ela se sentia culpada?
— Não chore, Laura, por favor. A culpa é toda minha.
Passara algum tempo ali deitado, abraçando-a e murmurando pedidos de
desculpas, até que ela se tornou mais pesada em seu ombro, sinal de que havia
adormecido. Tomando cuidado para não acordá-la, colocou um travesseiro sob
sua cabeça, cobriu seu corpo com a colcha e desceu.
Na varanda, acendeu um cigarro e ficou encostado em uma coluna enquanto
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fumava.
Feliz agora, Dean Kettering, seu grande cretino? Não havia arrumado
nenhuma grande confusão recentemente, e então teve de destruir a paz de
Laura!
Ela jamais o perdoaria. Sabia disso. Ela piedosa e compreensiva, mas
valorizava a fidelidade acima de tudo, mais uma prova de sua integridade de
caráter.
Laura jamais o perdoaria por ter tirado proveito de um modelo de
vulnerabilidade, por tê-la seduzido enquanto ela ainda chorava a morte de
Will. Ela o convidara para ficar, mas não tinha importância. Laura não sabia o
que estava fazendo, porque tivera o julgamento prejudicado pelo pesadelo
que enfrentava.
Apesar do desejo que os envolvera, da aflição com que ela correspondera a
cada carícia, sabia que não era ele o verdadeiro objeto de seu desejo. Laura
ansiava por afeto, conforto, por companhia, calor humano.
Dean sempre soubera disso em algum nível, mas não se detivera. O desejo por
ela havia sido mais forte do que tudo, dominando-o, privando-o do pouco
escrúpulo que possuía. Não tivera nem mesmo a decência de protegê-la.
Levava sempre preservativos na carteira. Podia ter usado um deles, mas, pela
primeira vez na vida, entregara-se ao instinto sem pensar em mais nada.
E Laura também não se preocupara com isso.
Sentia-se vulnerável e confusa. Tinha o dever moral de protegê-la, de manter
todas as coisas em seus devidos lugares, mas fracassara na missão confiada
pelo amigo.
Desapontara Will.
Depois de fumar o cigarro e apagá-lo no pedregulho espalhado pelo quintal,
Dean entrou e olhou através da sala de estar para o solário, onde Laura
deixara a imensa tela por terminar.
O céu de tempestade e as ondas gigantescas haviam sido como um grito de
dor, um reflexo direto do estado emocional da pintora. E isso havia sido antes
de Dean ter acrescentado mais um ingrediente à mistura.
Prometera cuidar de Laura, mas só havia piorado tudo para ela. O que fizera
naquela noite tornaria ainda maior sua dor. Jamais mudaria. Mesmo quando
suas intenções eram boas, acabava sempre criando problemas.
A caixa que o levara até ali fora deixada aberta sobre a grande bancada de
trabalho e, curioso, ele se aproximara para verificar se Laura já havia
examinado o conteúdo. Havia uma folha de papel aberta sobre todos os
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outros objetos, um papel de carta especial com desenhos infantis como


chupetas, ursinhos e chocalhos. Era uma carta, e a caligrafia era de Laura.
"Querido Will..."
Os desenhos pareciam privá-lo de oxigênio, impedindo a de respirar.
Sufocado porém curioso, ele pegou a folha do papel para ler a mensagem.
"Lembra-se daquela noite em que esquecemos de tudo? Deve ter sido sorte
de principiante...
É isso mesmo, você acertou. Acabou acontecendo. Não fique muito
convencido, porque eu o ajudei. Sim, tenho certeza do que estou afirmando. E
não tente me convencer de que não está duvidando de mim, porque uma coisa
que aprendi a seu respeito ao longo desses anos de convivência é que não
acredita em nada que não possa confirmar com seus dois olhos.
Fiz um desses testes de gravidez vendidos em farmácias, e depois, só para
confirmar, estive no consultório da dra. Chang esta manhã. Ela diz que estou
de quatro ou cinco semanas, apenas, mas já temos até uma data prevista para
o parto! Sete de outubro, dia do aniversário de sua irmã Bridget!
E então, o que acha? Já está suando frio? Agora é tarde para arrepender-se,
garotão. Júnior e eu contamos com você. Falando sério, sinto-me tão feliz que
estou tremendo! Gostaria de tê-lo aqui comigo, vivendo esse momento a meu
lado.
Tome cuidado por aí, Will. Agora vai ser papai. Tem um filho para criar, ouviu
bem?
Agora os nomes. Sei que já discutimos o assunto e até chegamos a um acordo
preliminar, mas estive pensando e... bem, se for uma menina, gostaria de
chamá-la de Jane, como minha avó. Além do mais, hoje em dia todos estão
dando às filhas o nome de Ashley. É claro que, se for um menino, o nome será
mesmo Dean. Isso não mudou."

Dean jogou o papel na caixa e agarrou a beirada da mesa, dobrando o corpo


para a frente e fechando os olhos. Havia mais, mas não conseguia continuar.
Se for um menino, o nome será mesmo Dean.
O bom e velho Dean. O melhor amigo do futuro papai. Seu maior
companheiro...
O melhor amigo da futura mamãe...
Dean murmurou meia dúzia de palavrões contra si mesmo.
Laura estava grávida... de três meses, pelo que podia deduzir. Esperava um
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Projeto Revisoras

filho do finado marido, e ele havia...


— Meu Deus... E não havia sido nada gentil. Esperara tanto tempo por aquele
momento, que perdera o controle ao deparar-se com a oportunidade.
Teria sido bruto com ela? E se a ferira? Não. Laura não era o tipo de mulher
que sofria em silêncio. Ela o teria feito parar, caso houvesse sentido dor.
Sabia que não a ferira. Não fisicamente. Abalado, apagou as luzes e subiu a
escada para o segundo andar. A porta do quarto dela fora deixada aberta, e
ele havia parado para apreciá-la dormindo, ainda deitada de lado e encolhida
como uma criança. Á brisa afastava as cortinas, deixando entrar um raio de
luar que incidia sobre a cama.
Os cabelos de Laura brilhavam sob a luz prateada, e a pele sedosa tinha uma
qualidade perolada que era quase irreal. Sem fazer barulho, ele se aproximou
da cama pára observar o rosto perfeito mais uma vez. Os lábios rosados e
úmidos estavam entreabertos, mas os olhos permaneciam fechados. Não
pudera vê-los pela última vez. E nunca mais os veria.
Marcas deixadas pelas lágrimas ainda podiam ser vistas cortando a face
pálida até a boca, onde desapareciam. Sentado na beirada da cama, Dean
tocara seus cabelos com delicadeza e cuidado para não despertá-la.
Laura continuava dormindo, mas murmurara algo com voz sonolenta e pouco
clara. Assustado, ficou imóvel até ter certeza de que não interrompera seu
sono, e então, certo de que ela continuava adormecida, ajeitou as cobertas
sobre seus ombros como se lidasse com uma criança indefesa, com uma
criatura frágil que precisava de proteção. Mas era tarde demais para isso.
Triste, ele se inclinou para dar um beijo em sua testa. — Foi lindo ter
conhecido você, Lorelei. Depois deixou o quarto sem olhar para trás. Levando
o uniforme e a valise que haviam ficado no chão durante todo o tempo, Dean
Kettering deixou o chalé para nunca mais voltar.

CAPITULO VI

Sob o sol brilhante e frio do meio-dia, Laura subiu a escada da varanda da


Blue Mist e, segurando um pacote de laranjas, bateu na porta antes de
entrar. Conhecia Kay havia cinco anos, e nunca existira nenhuma cerimônia
entre elas.
— Mais depressa, mocinha! — ela gritou para a filha, que atravessava o jardim
coberto de neve atenta às pegadas da mãe. — Ou vamos comer todas as
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 45
Projeto Revisoras

panquecas antes de você chegar! — O café da manhã de domingo era um ritual


que persistia mesmo no verão, quando a pousada ficava cheia de hóspedes.
Laura gostava de rituais. Serviam para fazê-la sentir segurança e conforto,
sentimentos de que precisava no momento. A visita a Dean em Portsmouth
dois dias antes a abalara profundamente. O remorso que surgira desde então
resistia a todas as tentativas de superação, prejudicando seu bem-estar e
ameaçando permear todos os momentos de seus dias. Seu melhor
antidepressivo, bombons de chocolate com amêndoas em doses elevadas, um
pacote inteiro em intervalos regulares durante as últimas trinta e seis horas,
ainda não haviam surtido nenhum efeito.
— Meu nariz está escorrendo, mamãe — Janey reclamou ao subir a escada da
varanda.
Laura retirou um lenço do bolso.
— Aqui, querida. Lembre-se de deixar as botas e o casaco perto da porta. —
Equilibrando o saco de laranjas, ela despiu a jaqueta e pendurou-a no cabide
perto da entrada. Depois livrou-se das botas, que ficaram sobre o capacho. O
aroma de bacon, café e panquecas de leite pairava no ar, e Laura ouviu o
estômago roncar. Já era tarde, e só comera um iogurte de baunilha naquela
manhã, antes de sair para a igreja. Faminta, ela seguiu em frente calçando
apenas as meias e atravessou a sala de jantar com a mesa arrumada para
quatro pessoas... Quatro?
Kay estava na cozinha ampla e ensolarada.
— Laura!— O sorriso que iluminava seu rosto era tenso. — Então chegou. —
Ela virou uma panqueca na frigideira. — Onde está Janey?
— Tirando as botas na varanda. Ela já vem.
— Que bom. Que bom.
Laura deixou as laranjas sobre o balcão.
— Por que pôs quatro lugares na mesa? Somos só nós três, não? Ou há mais
alguém para...
— Ei, por que não prepara o suco, enquanto termino as panquecas?
— Está acontecendo alguma coisa, Kay?
— Alguma coisa? — Kay repetiu sem encará-la. — O quê?
— Bem, você parece um pouco... nervosa.
— Não estou.
— É claro que está.
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 46
Projeto Revisoras

— Estou faminta, só isso. Como foi na igreja?


— Quer saber sobre a igreja? — Laura riu, cortando algumas laranjas para
preparar o suco. — Agora sei que está acontecendo alguma coisa. — Na única
vez em que conseguira arrastar a amiga para o culto dominical, ela deixara a
igreja antes do final do serviço dizendo estar com a pior enxaqueca falsa que
alguém podia ter.
— Por quê? O fato de não concordar com a organização religiosa não significa
que não posso me interessar pelo assunto.
— Bem, pelo menos não disse superstição organizada desta vez.
— Ei, que cheiro bom! — Janey exclamou ao entrar na cozinha.
— Por que demorou tanto, docinho?
— Estava conversando com Dean Kettering.
Laura parou de cortar a laranja. Os olhos buscaram os de Kay, que evitavam
os dela.
— Laura, eu...
— Bom dia, Kay — cumprimentou uma voz masculina... e conhecida. — Como
vai, Laura?
Era como ter o peito apertado por um grifo gigantesco. Assustada, ela se
virou e viu Dean parado na porta.
Ao lado de Janey.
Dean e Janey juntos. Conversando.
Era difícil respirar.
Vestindo roupa esportiva e descontraída, com os cabelos presos num rabo-de-
cavalo, ele se abaixou e murmurou:
— Ela não parece muito feliz por me ver aqui.
— Diz isso por causa da faca que ela está apontando em sua direção? Duvido
que mamãe tenha percebido o que está fazendo.
Kay tirou a faca da mão de Laura, deixou-a sobre o balcão e forçou um
sorriso.
— Todos com fome?
— O que faz aqui, Dean?
— Ele... chegou ontem à noite e perguntou se eu alugava quartos no inverno —
Kay explicou. — Eu respondi que não, mas só porque ninguém faz reservas.
Cobrei um preço especial e instalei meu hóspede inesperado no quarto com a
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 47
Projeto Revisoras

lareira que...
— Fiz a pergunta a ele. — Laura deu um passo na direção de Dean. — O que
faz aqui?
— Mamãe, este é o homem que mandou o cheque de um milhão...
— Eu sei quem ele é, Janey. Fui visitar o sr. Kettering para devolver o cheque.
— Você devolveu o dinheiro? Mas... e o barco do sr. Hale?
— Janey, por favor! Estou conversando com...
— Podemos conversar enquanto comemos — Kay sugeriu, colocando o prato de
panquecas na mão de Dean. — Importa-se de levá-las para a mesa? Vou
buscar o café e o bacon. Janey, você leva o suco. E você. Laura...
— Vou matá-la por isso.
— Tudo bem, mas deixe-me comer primeiro. Estou faminta!
— Que história é essa sobre um barco? — Dean perguntou depois de devorar
o último pedaço de panqueca.
Como notara o silêncio persistente da amiga e vizinha, Kay respondeu por ela.
— Laura está interessada em um barco usado.
— É um Precision 18! Raleigh Hale decidiu vendê-lo — Janey explicou
entusiasmada de seu lugar na cabeceira da mesa. — O barco tem cinco anos
de idade, como eu. Mas mamãe diz que não podemos comprá-lo.
— Um Precision 18 é um belo barco. Quanto ele está pedindo?
— Ele é Raleigh Hale, da família dos Hale, fundadores de Hale's Point, uma
cidade perto daqui. E não importa quanto Raleigh está pedindo pelo barco,
porque...
— Oito mil e setecentos dólares — Janey interrompeu novamente. — Mamãe
diz que poderíamos consertar a varanda, o telhado e uma centena de outras
coisas com esse dinheiro.
Se o tivéssemos, é claro.
— Que tragédia ter de fazer tal escolha — opinou Dean.
— Tragédia seria não ter comida para pôr na mesa Ou um teto sobre nossas
cabeças — Laura corrigiu. — Não ter um barco é algo muito mais simples de
resolver.
— Mas por que tem de viver sem um barco?
— Eu sabia. Por isso veio até aqui, não é? Para convencer-me a ficar com
aquele cheque.
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 48
Projeto Revisoras

— Não. Você já disse que não vai aceitar o dinheiro, e acredito no que diz.
— Então, o que veio fazer aqui?
— Para dizer a verdade, estava me sentindo um pouco claustrofóbico depois
de ter passado todo o inverno naquele barco. Durante sua visita há alguns
dias... Desculpe, não devia ter chamado nosso encontro de visita. Sei que não
foi essa sua intenção. Enfim, você mencionou uma amiga que havia
transformado a velha casa dos Sullivan em pousada Blue Mist..., Gostei do
nome. É convidativo, sugestivo...
— Acha mesmo? — Kay sorriu satisfeita.
— Pelo amor de Deus — Laura resmungou irritada entro um gole e outro de
café.
— Tomei providências para deixar alguém cuidando do Lorelei, aluguei um jipe
e vim até aqui.
— Quanto tempo pretende ficar? — Kay virou-se para alcançar a caixa de
vitaminas que mantinha sobre o armário.
— Não costumo fazer planos. Algumas semanas, talvez mais...
— Mais? — Laura gritou.
— Não tenho nada para fazer em Portsmouth antes do final de maio, época
em que costumo partir para as Bermudas. Disponho de dois meses para fazer
o que bem entender. — Deixando a xícara de café sobre a mesa, Dean tirou o
maço de cigarros do bolso e serviu-se de um deles.
Janey arregalou os olhos.
— Você fuma?
— Não em minha pousada — Kay anunciou, alinhando os comprimidos e
tabletes ao lado do copo de suco. — Lamento, Dean, mas a Blue Mist é zona
de preservação de oxigênio. Vai ter de fazer sua fumaça fedorenta lá fora.
— Não devia fumar. — Janey olhava para o maço sobre a mesa como se
estivesse diante de uma serpente venenosa. — A srta. Doyle disse que o
cigarro mata as pessoas.
— A srta. Doyle é a professora da pré-escola — Laura explicou. — Janey,
termine seu suco. Não é bonito censurar um adulto, mesmo que ele esteja
errado.
— Tudo bem. — Dean guardou o maço de cigarros. — A srta. Doyle tem razão,
Janey. Fumar é um hábito terrível.
— Então, por que você fuma?
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Projeto Revisoras

— Porque tenho esse hábito desde os treze anos. Não é fácil abandonar um
antigo vício, mesmo sabendo que ele é ruim para a saúde.
— Eu sei. Chupei o dedo desde que era bebê, mas estava ficando com os
dentes tortos e tive de parar. Quase fiquei maluca! — Janey exclamou com
um suspiro aborrecido, certamente imitando um adulto. — Mas com o tempo
foi ficando mais fácil, e agora nem penso em pôr o dedo na boca. Quase
nunca...
— Estou orgulhoso de você — Dean elogiou-a.
— Por que não pára de fumar? Eu ficaria orgulhosa de você.
— Não é tão fácil. Fumo há muitos anos, quase desde sempre!
— Eu chupei o dedo durante toda minha vida, mesmo quando ainda estava na
barriga da minha mãe. Ela viu no... no... Como é mesmo o nome daquele filme,
mamãe?
— Ultra-sonografia — Laura respondeu sorrindo.
— Ela tem razão — Kay opinou depois de engolir todas as vitaminas com suco
de laranja.
— Devia tentar parar. Eu sei que pode. Um dia de cada vez...— A menina
recitou com ar solene, repetindo os conselhos de Laura e sua teoria dos doze
passos, uma técnica com a qual conseguira ajudar a menina a superar o hábito
de chupar o dedo.
Dean riu, parecendo muitos anos mais jovem do que no dia em que Laura fora
procurá-lo em Portsmouth.
— Tudo bem, eu vou tentar.
— De verdade?
— De verdade. Agora beba seu suco.
— Dean — Kay chamou depois de fechar a caixa de vitaminas —, estava
falando sério sobre ficar até o final de maio?
— Estava.
— Vai passar dois meses aqui? — Laura persistiu. —Talvez. Algum problema?
Laura olhou para Janey e sentiu o peito oprimido.
— Posso conversar com você em particular, Dean? — perguntou, empurrando a
cadeira para levantar-se.
— É claro que sim. Por que não vamos dar uma volta na praia?
— Por que veio? — Laura repetiu a pergunta depois de percorrerem um bom
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Projeto Revisoras

trecho da praia. A neve cobria a areia e tornava-se mais esparsa perto das
ondas.
— Você já fez essa mesma pergunta moia dúzia do vezes.
— E ainda não obtive uma resposta satisfatória. nos dois sabemos que não
veio até aqui, e por dois meses...
— Talvez.
— Sim, talvez, só por ter gostado do nome Blue Mist. Tem algum motivo
oculto.
— Eu?
— Dean, por favor...
— Ela é ótima! Divertida, inteligente, espirituosa...
— Sim, também gosto muito dela. Kay é minha melhor amiga, mas nem por
isso...
— Não me refiro a Kay. Estou falando de Janey. — Ele tirou o maço de
cigarros do bolso. — É teimosa, tem opinião... Como o pai.
Laura parou e encarou-o com as mãos na cintura.
— O que está fazendo?
— Acendendo um cigarro.
— Não prometeu a Janey que tentaria parar?
— Sim, mas aquilo foi...
— O quê? Uma mentira?
— Eu disse a ela que tentaria parar porque... bem... Porque quis ser gentil.
— Porque quis silenciá-la. Você mentiu para encerrar um assunto que o
incomodava.
— Pelo amor de Deus, Laura!
— Não gosto que mintam para minha filha. Dean suspirou.
— Eu devia saber. Você sempre foi um modelo de honestidade. Está bem,
conseguiu me convencer. — Ele entregou o maço de cigarros. — Faça-me o
favor de livrar-se deles, sim?
— Está falando sério? Vai mesmo parar?
— Não quero ser acusado de enganar uma criança inocente. Laura guardou o
maço no bolso da jaqueta e encarou-o.
— Muito bem. O que veio fazer aqui? Vou continuar perguntando até
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Projeto Revisoras

conseguir uma resposta.


— Por que foi a Portsmouth há dois dias? Laura ficou corada.
Interessante.
— Fui até lá para devolver seu dinheiro. A propósito, o que vai fazer com ele,
agora que sabe que não vou aceitá-lo?
— Vou deixá-lo no banco, acho.
— E depois?
— Não sei.
— Está planejando alguma coisa.
— Eu? Planejando? Eu nunca faço planos, Laura. Sou uma criatura impulsiva,
lembra?
— Como poderia esquecer?
— E já que estamos tendo uma conversa adulta e franca, você também
desenvolveu novos hábitos, alguns bem condenáveis. Desde quando começou a
mentir?
— Eu menti? — Laura perguntou assustada.
— Disse que Janey tinha os olhos de Will.
— Eu nunca disse tal coisa!
— Disse que os olhos dela não eram como os seus. Mas notei que ela não tem
nada de Will.
Ela os estudou com aqueles imensos olhos cor de âmbar. Dean respirou fundo.
— Ninguém no mundo tem olhos como os seus, Laura. Ninguém. Queria beijá-
la. Ela o atraía como antes, com a mesma intensidade irresistível.
Prometera deixá-la em paz se ela aceitasse o dinheiro.
Mas Laura não aceitara o cheque, não o aceitaria. Sendo assim, não devia
sentir-se culpado por ter atendido ao chamado daquela força que os mantinha
ligados.
Era irresistível. Havia seis anos, quando deixara aquela casa no meio da noite,
resolvera nunca mais procurá-la. Mas violara a decisão enviando aquele
cheque, e depois...
No momento em que a vira no píer, tremendo de frio e sob o peso das
emoções, voltara a sentir a velha atração, aquela fome que jamais poderia ser
saciada. Nunca desejara algo ou alguém como desejava Laura, como sempre a
quisera e sempre a desejaria. Era quase como uma dor física.
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 52
Projeto Revisoras

O que ela faria se a tomasse nos braços e beijasse seus lábios?


Dean inclinou a cabeça, os olhos fixos naquela boca tentadora. Laura prendeu
o fôlego e o brilho do pânico cintilou em seu olhar. Mesmo assim, ela não se
moveu. Continuou onda estava, como um cordeiro paralisado diante do lobo.
Com esforço, Dean superou o transe e desviou os olhos dos dela.
— Quer voltar? — perguntou.
Ela assentiu.
Era melhor esperar que ela se acostumasse com sua presença, ele refletiu
enquanto caminhavam em silêncio para a pousada de Kay. Laura estava
surpresa, assustada... Sua reação era compreensível, tendo em vista o que
havia acontecido na última vez em que estiveram juntos.
Pressioná-la só serviria para deixá-la ainda mais apreensiva e arisca. A única
maneira de fazê-la baixar a guarda era ir com calma, ganhar tempo,
conquistar sua confiança e manter distância.
Por enquanto. Dean sabia que não seria capaz de manter-se afastado para
sempre. Mais cedo ou mais tarde, o desejo seria mais forte que tudo, e
acabaria seguindo o impulso. O que seria, sem dúvida, um engano monumental.
Não que essa certeza o houvesse detido antes.

CAPÍTULO VII

Na manhã seguinte, Laura preparava as tintas na manteigueira que servia de


palheta.
— A propósito, Kay, não pense que a perdoei pelo que fez ontem.
— Eu não fiz nada! Não foi de propósito. — Kay serviu mais café nas duas
canecas e colocou de volta o bule na bancada coberta de tubos de tinta e
outros materiais. — Aluguei um quarto para o sujeito. Vai me processar por
isso?
— Processar? Vou matá-la, isso sim. — Ela olhou para a porta. — Janey! Ainda
não está pronta? — Laura consultou o relógio e viu que eram oito e quarenta.
— Você tem dez minutos. Não pode se atrasar para o passeio com a escola. —
E a sra. Doley havia implorado para que Janey não se atrasasse, como
acontecia todos os dias, porque o grupo deixaria a escola às nove em ponto.
— Já estou pronta — a menina respondeu da sala. — Estou só amarrando meus
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 53
Projeto Revisoras

tênis.
— Estava fazendo a mesma coisa há cinco minutos. Já escovou os dentes?
Silêncio.
— Pelo menos lavou o rosto e penteou os cabelos?
— Vou fazer tudo isso agora.
— A culpa é sua — Laura acusou a amiga. Kay havia sugerido que Janey seria
mais auto-suficiente se pudesse arrumar-se sozinha todas as manhãs.
— Tenha paciência. É preciso tempo para romper velhos hábitos. Mais tarde
vai me agradecer.
— Amarre esses tênis agora! — Laura gritou autoritária. — E depois vá para o
banheiro escovar os dentes, lavar o rosto e pentear os cabelos. Depressa, ou
tia Kay irá embora sem você. — Ela bebeu um gole do café e olhou para Kay.
— Obrigada por ter oferecido carona a caminho da biblioteca.
— Por nada. Sei como é quando está se dedicando a uma nova tela.
Interromper o trabalho quebra o encanto.
Laura começava um grande retrato de Janey, uma pintura que ela iniciara às
cinco daquela manhã tendo por base os desenhos feitos havia duas semanas,
quando a menina adormecera no sofá da sala vestida com um pijama de
dinossauros e abraçada a um bicho de pelúcia igualmente assustador. Havia
transferido o esboço para a tela e composto as cores que pretendia usar.
Agora estava aperfeiçoando alguns tons mais difíceis, como o rosado das
faces da filha adormecida.
— Quase sofri um infarto quando vi Dean ao lado de Janey em sua cozinha.
Não acredito que tenha alugado um quarto para ele sem falar comigo. Por que
não telefonou?
— Porque você teria exigido que eu o mandasse embora.
— Exatamente.
— Achei melhor hospedá-lo e despertar sua raiva do que tentar convencê-la a
aprovar minha decisão, o que não iria acontecer. Eu teria alugado o quarto da
mesma maneira, e você teria ficado ainda mais furiosa.
— Sabe de uma coisa, Kay? Às vezes você é muito aborrecida.
— Você me ama assim mesmo.
— Sempre. Exceto quando a odeio. É uma pena que o solo esteja gelado
demais para enterrar um corpo, ou eu me sentiria tentada a usar aquele meu
novo machado.
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Projeto Revisoras

— Alguém já pensou nisso. — Kay olhou pela enorme janela que ocupava um
dos lados do solário.
Laura seguiu a direção dos olhos da amiga e viu a pilha de madeira que ela
encomendara na semana anterior. Uma montanha de toras se equilibrava de
forma precária no quintal, alcançando a estatura de um homem adulto. Talvez
mais. Certamente mais do que a estatura do homem que organizava as toras
com uma das mãos enquanto segurava o machado com a outra.
Dean. Laura resmungou um palavrão que Janey jamais ouviria de sua boca.
Dean usava os cabelos soltos naquela manhã, e o vento frio o castigava
enquanto ele erguia o machado para reduzir o tamanho dos pedaços de
madeira. O suéter de lã azul era grande e confortável, mas não escondia os
ombros largos e os braços poderosos que as mangas arregaçadas exibiam.
Kay riu e bebeu um gole de café.
— A paisagem dessa janela ficou muito mais interessante.
— O que ele está fazendo?
— Cortando sua madeira.
— Porquê?
— Porque esse é um trabalho que você detesta, e ele gosta de manter-se
ocupado. Assim não pensa nos cigarros. Foi o que ele me disse hoje cedo.
— Sabia que ele viria aqui cortar minha madeira e não me disse nada?
Kay arregalou os olhos com falso espanto.
— Eu não comentei que ele planejava fazer esse favor monumental?
— Você entendeu, Kay. Está cansada de saber que não quero nenhuma
aproximação com esse homem.
— Tudo o que sei é que ele a deixa tão nervosa que já ameaçou sua melhor
amiga com uma faca, um machado e um... Qual é o nome dessa coisa que tem
na mão?
Laura arremessou a espátula do outro lado da sala e proferiu mais um
palavrão.
— Felizmente ainda tenho alguns neurônios e todos os dedos.
— O que quer dizer com isso?
— Não sou nenhuma estúpida, Laura. Sei fazer contas, desde que o resultado
não seja superior a dez. O número de meses entre o dia dois de abril de
1995, quando Dean veio visitá-la, e primeiro de janeiro de 1996, quando Janey
nasceu, é...
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Deus! Laura apoiou-se na bancada, tomada por uma súbita sensação de


fraqueza, e viu Kay fingindo contar nos dedos.
— ...seis, sete, oito... — Ela levantou a cabeça exibindo o anelar da mão
direita. — Nove. Exatamente nove meses. E você... Oh, querida, eu sinto
muito! — Kay pulou da cadeira e correu a abraçar a amiga, que parecia estar
devastada. — Desculpe-me. Sou mesmo uma idiota. Não devia ter brincado
com um assunto tão sério.
— Quando percebeu?
— Ontem à noite. Você nunca me disse a data exata da morte de Will, e
presumi que ele houvesse partido no final da primavera ou no verão. Estava
deitada na cama pensando no que você disse sobre Dean ter aparecido aqui
em abril, dois meses depois da morte de Will e... Ah, eu não sei. Foi como se
uma luz se acendesse.
Droga! Ficara tão agitada com a chegada daquele cheque que cometera um
deslize imperdoável.
— Mais alguém sabe? — Kay perguntou. — Quero dizer, que Will não é... não
foi...
— Não. Nem mesmo vovó Jane percebeu, embora tenha certeza de que ela
teria descoberto tudo, se houvesse vivido mais um pouco. Perdi o bebê de
Will em fevereiro, logo depois de ele ter morrido, e...
— Oh, Laura! — Kay abraçou-a. — Eu sinto muito.
— Ela teria percebido que Will não podia ser o pai dessa outra criança. Mas
minha avó morreu no verão, antes que eu tivesse coragem de contar tudo a
ela. A barriga ainda nem aparecia.
— Ninguém mais fez as contas?
— Não tenho parentes. Will tinha poucos, e nunca os vejo. Perdi contato com
todos os meus antigos amigos, exceto por cartões de Natal e coisas desse
tipo. As pessoas sabem sobre a existência de Janey, mas acreditam que ela
seja filha de Will.
— Que nome pôs na certidão de nascimento? Laura fechou os olhos e
massageou a testa.
— Deixei o espaço reservado para o nome do pai em branco, porque nesse
estado não se pode registrar uma criança sem o conhecimento e o
consentimento do homem em questão. Não podia pôr o nome de Will, porque
ele estava morto havia onze meses. Seria uma mentira horrível.
— Essa sua honestidade vai acabar causando problemas, sabe?
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Projeto Revisoras

Laura sorriu, apesar das circunstâncias.


— Kay, sei que nem preciso pedir, mas...
Kay passou os dedos pela boca imitando o ato de fechar um zíper.
— Obrigada. Não quero criar problemas para Janey.
— Falando em complicações... — Kay apontou para a janela. Dean continuava
trabalhando na pilha de madeira, cortando pedaços menores que ia
empilhando de forma organizada perto da parede do galpão de ferramentas.
— Ele não sabe que é pai de Janey, sabe?
— Não. Graças a Deus.
— Para alguém obcecada por honestidade, você sabe esconder um segredo
como ninguém.
— Eu nunca disse a Dean que Will era pai de Janey. Não com todas as
palavras. Ele simplesmente deduziu...
— Uma omissão desse tipo também é uma mentira, minha amiga. E pessoas
que se orgulham de serem honestas devem saber disso.
— Kay, por favor, não quero ouvir um sermão. Não tem idéia do que passei, do
que ainda estou passando... Se acha que é fácil guardar esse segredo, então
não me conhece de verdade.
— Tem razão, não tenho o direito de julgá-la. Devia estar tentando entendê-
la, em vez de censurá-la.
— Exatamente.
— Então, ajude-me a entender. Conte-me o que aconteceu. Você e Will... Esse
relacionamento já existia quando era casada com Will?
— Não! — Laura exclamou corada. — É claro que não! Como pôde pensar tal
coisa?
— Eu não pensei nada. Apenas perguntei. Isso acontece, sabe? As pessoas não
planejam.
Laura suspirou e carregou um pincel com a tinta rosada que havia preparado.
— Bem, havia um forte desejo reprimido desde os tempos da universidade,
mas nunca nos aproximamos. Não dessa maneira. Nós nem reconhecíamos o
sentimento. Eu amava Will. Dean sabia disso. — Laura deu a primeira
pincelada no desenho do rosto rechonchudo de Janey.
— Então, naquele dia em que Dean esteve aqui para trazer as coisas de Will,
foi a primeira vez...
— Primeira e única. — Fechando os olhos, sentiu novamente o calor, a
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 57
Projeto Revisoras

necessidade de livrar-se do bom senso e do pudor, a alegria e o choque de


senti-lo sobre seu corpo, dentro dele...
Mais tarde surgira um tipo diferente de choque, quando compreendera o que
haviam feito, quando percebera que haviam seguido o impulso sufocado por
tantos anos por causa de Will.
Will...
Mal o ato chegara ao fim, e Dean começara a desculpar-se. A última
lembrança daquela noite era de ter chorado enquanto ele a abraçava e
murmurava uma ladainha interminável de desculpas.
Tomar conhecimento de seu arrependimento só havia aumentado a dor e a
angústia. Depois de tantos anos de desejo sufocado, a experiência devia ter
sido motivo de alegria e satisfação, um evento transformador. Em vez disso,
tudo o que sentiram fora culpa.
Will...
Era errado. Will havia morrido dois meses antes, e amara o marido. Ter
estado com Dean daquele jeito, ter deixado acontecer... Havia sido
vergonhoso.
Mas só na manhã seguinte a realidade se impusera com seus tons frios.
— Quando acordei — Laura contou com um fio de voz — ele havia partido.
— Partido? Quer dizer que ele foi embora... sem se despedir?
— Sem deixar um bilhete, sem dizer uma única palavra. Dean nunca termina
um relacionamento. Ele... odeia compromissos. Não gosta de dar satisfações.
Sempre foi assim.
— E acha que por isso ele partiu? Por pensar que você cobraria compromissos
e satisfações? Ou foi por causa da culpa?
— Ele deve ter se sentido culpado, o que piorou ainda mais a situação, mas em
vista de sua história com mulheres e de sua obsessão por viver sozinho e
livre, creio que Dean sentiu medo de eu me apegar demais a ele. Tantos anos
de desejo contido, e finalmente...
— Talvez ele tenha tido medo de apegar-se demais a você. Ou já estivesse
ligado demais, o que gerou um conflito que...
— Você não conhece Dean. — Laura continuou pintando. — Ele nunca entra em
conflito. Não por causa de uma mulher. E também não se liga a ninguém. Dean
Kettering jamais precisou de alguém além de si mesmo. Ele partiu porque
decidiu que seria problemático demais ficar. E talvez tenha tido razão.
— Não pode estar falando sério.
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 58
Projeto Revisoras

— Ele sempre me conheceu bem, Kay. Sempre soube que sou mulher de um
homem só, alguém cujo maior sonho é cuidar de uma família e de um lar. Ele
vivia dizendo que sexo é só uma maneira de obter satisfação física, que a
monogamia é uma invenção das mulheres para manter os homens...
— Sim, sim, sim, o discurso de todo universitário que quer parecer livre e
moderno. Está dizendo que ele acreditava que você viveria pendurada nele,
caso ele ficasse por perto?
— É isso. E ele tinha razão, porque eu teria mesmo me apegado a ele. —
Sempre fora apegada a Dean.
— O que fez quando descobriu que estava grávida?
— Chorei. Só uma vez, mas durante horas. Sempre quis ter filhos, mas as
circunstâncias não podiam ser piores. Depois... Não sei, devem ter sido os
hormônios, a endorfina... O fato é que me acalmei e aceitei minha nova
condição. Havia um bebê dentro de mim. O homem que o colocara ali estava
longe de ser a escolha ideal, mas aquele era meu bebê. Um filho que eu queria
e amava.
— Entendo. Não consigo imaginá-la lamentando alguma coisa por muito tempo.
Não faz parte da sua natureza.
— O único problema era ter de contar a verdade a vovó Jane, mas ela faleceu
antes que eu tivesse coragem para falar.
O chalé e o dinheiro que ela deixou para mim em testamento foram minha
salvação. Pude dedicar-me à pintura como trabalho e como um meio de
manter-me inteira, livre da insanidade e...
— Nunca pensou em procurar por Dean e falar sobre o bebê?
— Pensei. Acreditava que ele tinha o direito de saber, e então tentei localizá-
lo na Força Aérea, mas eles não me deram nenhuma informação. Esperava que
um dia ele entrasse em contato comigo, mas... Ele nunca me procurou.
— Ah...
— Foi quando você se mudou para cá, quando eu já estava prestes a ter o
bebê, que finalmente desisti de procurá-lo. Passei a pensar que meu bebê
estaria melhor sem um pai do que com alguém que não quisesse viver conosco.
Ela merecia mais do que isso. Nós merecíamos mais...
— Devia ter se esforçado mais para encontrá-lo. Dean podia mudar de idéia
quando soubesse sobre o bebê. Talvez houvesse até se casado com você.
— Digamos que ele houvesse feito o que está dizendo, apesar de ser uma
atitude contrária a sua natureza. Dean Kettering não teria ficado conosco
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 59
Projeto Revisoras

por muito tempo. E um pai que abandona a família como se fosse algo sem
importância é pior do que não ter nenhum pai porque o abandono deixa
cicatrizes profundas em uma criança. O próprio Dean é prova disso.
— E por isso ainda se recusa a contar a ele, mesmo depois de ele ter
restabelecido contato?
— Sim, e por isso não posso aceitar aquele dinheiro. Não seria correto tomar
um milhão de dólares de alguém de quem guardo um segredo tão importante.
E se revelasse a verdade, estaria abrindo uma série de novas e terríveis
possibilidades. Ele estaria em cena, seria o pai de Janey...
— Laura, ele é o pai de Janey.
— Você entendeu o que eu quis dizer. Ele seria uma figura paterna. Seria
importante para ela. Depois desapareceria levando o equilíbrio da vida de
minha filha, e eu ficaria com a amarga missão de juntar os pedaços. Não,
obrigada.
— Talvez não esteja dando muito crédito a esse homem. Apesar de tudo, ele
parece ser um bom sujeito.
— Um sujeito perigoso. — Laura olhou para a tela onde o tom forte de rosa
cobria parte do rosto de Janey. A menina parecia uma palhaça, e ela tentou
remover a tinta com a espátula. O resultado foi ainda pior. Lá fora, Dean
continuava cortando a madeira com determinação e afinco, movendo o corpo
com aquele ar viril que sempre a fizera tremer por dentro.
— Bem, ele pode ser rebelde, impulsivo, auto-suficiente demais, mas isso não
quer dizer que seja perigoso.
— Para mim ele é. — Laura molhou um pano em terebintina e limpou o que
ainda restava da tinta na tela.
— Agora entendo. O problema é que você gosta dessa atmosfera de rebeldia
e instabilidade.
— O quê? Meu objetivo é segurança e compromisso, lembra?
— E homens rebeldes. Ou melhor, um certo homem rebelde. É claro que a
escolha não se dá em um nível consciente. Você acredita preferir um homem
correto, doce e pacato, um desses pais perfeitos que cortam a grama aos
domingos, recebem seus pagamentos no fim do mês e ouvem a estação de
música clássica, e de certa forma é isso que quer. Mas naquele recanto
secreto da alma onde se escondem os mistérios de uma mulher, onde moram
seus desejos mais verdadeiros... O que você quer é rock and roll.
Laura jogou o pedaço de pano na lata de lixo reservada para os inflamáveis e
limpou as mãos no avental de brim que sempre usava sobre as roupas.
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 60
Projeto Revisoras

Carregando o pincel com uma mistura de tintas mais claras, ela retomou o
trabalho de pintar o rosto de Janey.
— Para alguém que diz ter deixado de acreditar nas velhas teorias, você
ainda sabe como atormentar alguém com suas conclusões psicológicas.
— Foi só uma observação. Se é uma conclusão psicológica que quer, aí vai. O
motivo pelo qual considera Dean perigoso, e portanto a impede de aceitar seu
dinheiro ou revelar a verdade sobre Janey, apesar desse seu fetiche por
honestidade, é seu medo secreto dessa atração poderosa que sente por ele.
Tem medo de ser correspondida em seus sentimentos, o que a levaria a
atirar-se nos braços dele e...
— E arrepender-me até o final de meus dias — Laura concluiu. —
Especialmente se Janey ficar traumatizada por causa do meu egoísmo, por
ter sido estúpida a ponto de aceitá-lo em nossas vidas. Não, Kay, a situação
não é tão simples quanto pode imaginar. O que devo dizer a Janey? Querida,
seu pai nunca foi meu marido, mas ele era o melhor amigo do homem com
quem me casei?
— Ela tem o direito de saber.
— Está brincando! Não, Kay, Janey estará melhor sem saber sobre... Janey! —
Estivera tão envolvida na conversa que havia esquecido o horário da pré-
escola. — Meu Deus! São quase nove horas! Ela vai se atrasar para o passeio!
— Jogando o pincel sobre a bancada, Laura saiu do solário e correu para a
escada. — Janey! — Enquanto gritava, ela subia aos saltos.
— Janey, você está pronta? — Ao abrir a porta do banheiro, Laura deparou-
se com a imagem da filha sobre seu banquinho de madeira, os braços
mergulhados até os cotovelos na pia cheia de água espumante. Ela ainda não
havia lavado o rosto nem penteado os cabelos. — Janey! O que está fazendo?
— Lavando minha coleção de botões.
— Pelo amor de Deus! — Laura pegou a escova da prateleira e começou a
pentear os cabelos louros e emaranhados da filha.
— Pegue a toalha e enxugue as mãos e os braços.
— Mas meus botões estão...
— Agora!
— Ai! — Janey queixou-se enquanto obedecia. — Está puxando meu...
— Fique quieta. Devia estar pronta para sair, mas preferiu ficar brincando.
Agora vai se atrasar para o passeio com a escola.
— Posso ao menos enxugar meus botões? — A menina perguntou enquanto
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 61
Projeto Revisoras

tinha o rosto lavado e era empurrada para a porta.


— Os botões terão de esperar. E quando voltar para casa, teremos uma longa
conversa sobre prioridades.
— O que são prio... prio...
— Eu explico depois. Kay, você está pronta?
— Já estou indo! — Ela gritou do solário. — Estou apenas servindo uma xícara
de café a Dean. Achei que ele precisava descansar um pouco, e por isso o
convidei para entrar.
Laura fechou os olhos e pensou no pior palavrão que conhecia.
— O sr. Kettering está aqui? — Janey perguntou animada. — Posso ir dizer
olá e...
— Não! — Laura fechou o casaco da filha. — Não temos mais tempo para nada.
— Podemos ir, docinho? — Kay gritou da porta.
— Tire-a daqui — Laura ordenou furiosa. — Sua sugestão de incentivar a
auto-suficiência de minha filha produziu resultados desastrosos.
Kay encolheu os ombros e abriu a porta, empurrando a criança para fora.
— Agora sabe porque não acredito mais nas teorias psicológicas.
— Juro que ainda vou perder a paciência com você. Por que o convidou para
entrar e tomar café?
— Porque pensei que gostaria de demonstrar sua gratidão por toda a madeira
que ele cortou. — Sorrindo, Kay acenou e fechou a porta.
Laura ficou olhando para a porta fechada, certa da que seria mesmo capaz de
matar a amiga.
Respirando fundo, deu meia-volta e dirigiu-se ao solário novamente.

CAPÍTULO VIV

Dean ouviu os passos se aproximando e continuou olhando para a tela.


— Obrigada por ter cortado toda aquela madeira, mas prefiro que não faça
mais isso. Eu mesma cuido da lenha. Não me importo.
— É claro que se importa. Você me contou que detesta cortar lenha.
— Mas nem por isso...
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 62
Projeto Revisoras

— A tela é maravilhosa.
— O quê? Oh, o retrato... Ainda não está pronto. Na verdade, mal comecei o
trabalho. O resultado final será bem diferente do que está vendo.
— Eu sei. — Sorrindo, Dean virou-se e a viu parada na porta com os braços
cruzados sobre o avental manchado de tinta. Ela prendera os cabelos com
uma daquelas coisas estranhas cheias de garras, mas mechas rebeldes ainda
emolduravam o rosto de pele translúcida. — Conseguiu capturá-la numa pose
natural, rotineira, e é isso que torna o trabalho tão especial. É Janey, uma
criança de verdade, não um modelo idealizado. Você não perdeu o dom,
Lorelei.
— Obrigada — ela respondeu constrangida.
— Desde quando começou a retratar pessoas? — Dean havia notado dez ou
doze telas enfileiradas contra uma das paredes. Mais da metade era
composta por retratos, quase todos de Janey. Antes Laura costumava pintar
apenas o oceano, às vezes uma paisagem simples ou uma natureza-morta.
— Eu... comecei quando Janey nasceu. À primeira vez que a desenhei foi no
hospital, horas depois do parto. — Ela apontou para um quadro pendurado
sobre a bancada.
Dean sorriu ao perceber que o desenho emoldurado fora feito com caneta
esferográfica sobre um guardanapo de papel com o timbre do hospital. Laura
havia capturado com perfeição a imagem da recém-nascida dormindo, o
polegar inserido na boca, os cabelos espetados lembrando o tão famoso estilo
de Sid Vicious.
— É surpreendente que tenha tido inspiração num momento tão... singular. O
parto deve ter sido fácil.
— Sim, embora tenha sido longo. Trinta e oito horas.
— Trinta e...? Meu Deus! Deve ter sido... — O quê? Doloroso? Solitário?
Assustador? — Eu sinto muito, meu bem. Eu... Havia alguém...? — Por que era
tão difícil? Porque sentia vergonha. Devia ter estado ao lado dela, mas havia
preferido fugir. — Sei que sua avó já havia falecido. Alguém ficou com você?
— Kay. Eu a conhecia havia um mês e meio, mas nos tornamos amigas
imediatamente. Ela foi maravilhosa. Esteve comigo o tempo todo, e os
médicos a admitiram até mesmo na sala de parto. Quanto aos quadros,
continuei pintando paisagens, mesmo no inverno, porque é com elas que ganho
a vida. Mas também pinto Janey, e essas telas eu jamais venderia. São todas
minhas.
— É mais interessante do que um álbum cheio de fotos.
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 63
Projeto Revisoras

— Oh, mas eu também tenho as fotos. Janey é... o centro da minha vida. Seu
nascimento mudou tudo.
Um silêncio profundo caiu sobre eles. Dean bebeu um gole de café e olhou em
volta, analisando o estúdio improvisado que havia mudado tão pouco em seis
anos, um lugar que tinha o cheiro e a aparência de sua Lorelei.
Sua Lorelei... Desde quando ela havia sido dele?
Desde sempre.
— Posso me sentar um pouco? — ele perguntou. — Volte à pintura, se quiser.
Não quero interferir no seu trabalho. Vou terminar meu café e descansar um
pouco, e depois estarei fora daqui.
— Certo... Está bem.
Dean permaneceu sentado na espreguiçadeira no canto do solário, observando
enquanto ela aplicava a tinta rosada na tela. Quando voltou a falar, Laura
perguntou há quanto tempo ele morava no Lorelei.
— Há quatro anos. Desde que saí da Força Aérea.
— Você costumava dizer que acabaria sendo expulso ou condenado à corte
marcial. Suponho que nada disso tenha acontecido.
— Não. Eles nunca deram muita importância à minha rebeldia, porque sempre
me mantive dentro dos limites, embora os questionasse. Na verdade, estava a
um passo do posto de capitão quando decidi sair.
— E por que saiu? — Laura inspecionou a tela com ar crítico.
— A situação nunca foi perfeita para mim. Você sabe disso. E depois do que
aconteceu com Will... Bem, depois daquilo comecei a contar os dias. Tudo o
que queria era ser livre e não dever satisfações a ninguém além de mim
mesmo.
Laura trocou de pincel e continuou trabalhando, misturando o tom rosado ao
da pele até obter a coloração perfeita de um rosto saudável.
— Você tornou-se um ermitão — disse. — Kay e eu tivemos muito trabalho
para encontrá-lo. Não tem e-mail, o telefone não consta do catálogo, não tem
endereço fixo...
— Mantenho uma caixa postal em Portsmouth, mas tudo o que encontro nela é
uma pilha de publicidade inútil. Não gosto da idéia de possuir coisas que só
complicam a vida, como telefone e computador.
—- Aposto que não tem carro. Disse que alugou um jipe para chegar aqui.
Como se locomove em terra firme?
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 64
Projeto Revisoras

— Não vai acreditar, mas ainda tenho aquele velho Sporster.


— Está brincando!
— Nada mudou muito para mim.
Laura remexeu nos objetos espalhados pela bancada, mas era evidente que
nem os via. A preocupação que a agitava podia ser vista em seu rosto.
Deixando a xícara sobre a mesa, Dean levantou-se e tirou o envelope verde do
bolso.
Ela gemeu ao vê-lo estendido em sua direção.
— Pensei que houvesse desistido de fazer-me engolir esse dinheiro.
— Prometo que esta é a última tentativa. Só mais uma.
— Dean...
— Fique com o dinheiro, Laura. Facilite as coisas para mim. Quero que fique
com ele, não só por você, mas por Janey.
— Não envolva minha filha nisso.
— Will gostaria de saber que a menina está amparada e...
— Will? — Laura cortou furiosa. — De jeito nenhum. Will não aceitaria esse
dinheiro. E eu não o quero.
— Também não quero esse dinheiro. — Dean jogou o envelope sobre a
bancada.
— Ótimo! — Ela o jogou na lata de lixo cheia de panos molhados e manchados.
— O problema foi resolvido. Se não se importa, preciso trabalhar.
Segurando-a pelos braços, ele a obrigou a encará-lo.
— Por que não fica com o dinheiro?
— Por que está tão obcecado pela idéia de me dar esse dinheiro?
Ele fechou os olhos e ouviu novamente a explosão no meio da noite seguida
pelos gritos dos companheiros. Sentiu mais uma vez o choque de encontrar
Will caído sobre uma poça de sangue, o peito aberto por uma bomba
terrorista. Experimentou o gosto amargo da tristeza e do desespero de
amparar nos braços o melhor amigo enquanto esperava pelo inevitável. Não
havia esperado muito. Um minuto, dois...
— Will me fez prometer algo antes de morrer. Ele me pediu... para cuidar de
você.
— Cuidar de mim?
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 65
Projeto Revisoras

— Você sabe, garantir um teto a você, comida na mesa, proteção...


Ela assentiu, mas Dean sabia em que Laura estava pensando. Não fizera um
bom trabalho atendendo ao pedido do amigo. De fato, depois de tê-la
abandonado havia seis anos, simplesmente a ignorara. Saber que ela estaria
melhor sem um encrenqueiro para complicar sua vida não amenizava a culpa de
tê-la abandonado daquela maneira... especialmente depois de tirar proveito
dela em um momento de dor e vulnerabilidade, traindo assim a amizade de
Laura e a confiança de Will em um único ato de supremo egoísmo.
Mas dizer tudo isso seria reabrir feridas que preferia deixar fechadas. Não
podia desfazer o que fizera naquela noite. Podia apenas tentar compensá-la
de algum jeito, mesmo que fosse tarde demais.
— O dinheiro... — Ele afagava os braços de Laura, feliz por poder tocá-la. —
É minha maneira de pedir desculpas por tê-la deixado sozinha todos esses
anos depois de ter prometido a Will que cuidaria de você. Tenho o dever de
tentar compensá-la... e a Janey também... por todo esse tempo.
— Você não me deve nada. Eu o conheço, Dean. Sei que é difícil de acreditar,
mas já me deu muito. Mais do que pode imaginar.
— Está dizendo coisas sem sentido. O que foi que eu lhe dei além de
sofrimento e problemas?
Ela sorriu de maneira enigmática.
— Confie em mim, Dean. Não fui prejudicada ou lesada nesse relacionamento.
Relacionamento. Dean nunca havia pensado em sua ligação com Laura como
sendo um relacionamento.
— Você foi mais do que lesada. Foi usada... por mim. A maneira como a tratei...
— Ele a soltou e passou as mãos na cabeça, detendo-se antes de reabrir as
velhas feridas. — Laura, sei que o dinheiro não pode comprar felicidade, mas
ele é a solução para milhares de pequenos problemas que atormentam a vida
das pessoas, como goteiras no telhado e pisos podres na varanda. Tudo seria
muito mais simples para você se aceitasse o cheque.
— Não para mim. — Ela resgatou o envelope da lata de lixo e entregou-o a
Dean. — Esse dinheiro só tornaria tudo muito mais complicado, porque me
levaria a... a lamentar coisas pelas quais não devo arrepender-me.
— Por favor...
— Fique com o cheque. É seu. Use o dinheiro para solucionar os pequenos
problemas que atormentam sua vida.
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 66
Projeto Revisoras

Dean pensou um pouco e concluiu que seu maior problema era encontrar uma
forma de atender ao último pedido do melhor amigo. Precisava cuidar de
Laura. Poderia usar aquela quantia para fazer como Will havia pedido, mesmo
que ela não o aceitasse diretamente.
— Muito bem. — Ele pegou o envelope, dobrou-o ao meio e guardou-o no bolso.
— Você venceu. Vou depositar o cheque ainda hoje.
Os olhos cor de âmbar buscaram os dele e, astutos, tentaram ler além das
palavras. -— Eu venci? Assim?
— Assim. Simples, não? — Dean respondeu sorrindo.

CAPÍTULO IX

Laura acordou com um barulho persistente que parecia ecoar no interior de


seu cérebro piorando a dor de cabeça que a castigava desde que...
Abrindo os olhos, consultou o rádio-relógio e viu que eram nove e quarenta e
sete da manhã. Mais de doze horas haviam se passado desde que fora levada
para sua cama com a cabeça latejando e uma imensa fadiga.
Havia sido uma semana difícil... por isso se sentia tão mal. Era o que dizia a si
mesma desde a noite anterior. A chegada inesperada de Dean no domingo
anterior fora como uma bomba devastando sua rotina tão pacata e
equilibrada. Passara ou últimos seis dias tentando evitá-lo, um esforço inútil,
levando em conta as táticas de que Kay lançava mão para reuni-los.
E Kay não era a única. Janey fazia de tudo para passar mais tempo com o sr.
Kettering. Dean sugerira que a menina o tratasse pelo primeiro nome, mas
Laura vetara a familiaridade, o que a transformara numa espécie de Bruxa do
Castelo, mais uma irritação entre tantas outras.
Bang, bang, bang, bang...
Irritada, ela empurrou as cobertas e se sentou, o que provocou uma pontada
de dor na cabeça e infinitas dores em todo o corpo. O que na noite anterior
havia sido apenas fadiga, naquela manhã transformava-se em algo muito mais
grave.
Não pense nisso.
Laura saiu da cama e, sacudida por um tremor, apesar da camisola de flanela,
vestiu o roupão de tecido atoalhado. Não devia estar com frio; a temperatura
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 67
Projeto Revisoras

subia lentamente e a neve já começara a derreter, e a previsão prometia mais


de quinze graus para o meio-dia.
Tudo bem. Você está apenas cansada.
Cansada e emocionalmente devastada pela súbita reaparição de Dean em sua
vida.
Bang, bang, bang...
O barulho vinha de cima. Alguém estava martelando o telhado de sua casa.
E agora? Laura desceu a escada agarrando-se ao corrimão, porque as pernas
estavam tão firmes quanto gelatina. Calçando as botas que mantinha ao lado
da porta dos fundos, ela saiu e viu o jipe de Dean estacionado na entrada,
perto de uma pilha de placas de revestimento para telhado. Sua escada
estava apoiada em uma das paredes da casa.
Fechando o roupão sobre o peito, deu alguns passos pelo quintal, virou-se e
olhou para cima, usando uma das mãos para proteger os olhos contra o sol. O
tremor que a incomodava piorou quando ela viu Dean abaixado sobre o
telhado, martelando uma placa de revestimento para fixá-la em seu lugar. Ele
usava um boné sobre os cabelos presos em um rabo-de-cavalo.
— Dean, o que está...? — As palavras irritaram sua garganta, provocando um
acesso de tosse.
Ele se debruçou sobre a beirada do telhado.
— Laura? Oh, não, eu a acordei! Sinto muito. Pensei que não estivesse em
casa. Não vi seu carro na garagem.
— Eu o deixei na oficina ontem à noite. Kay me trouxe para casa.
— Devia ter deixado eu dar uma olhada no carro. Sabe que sou Capaz de
consertar quase tudo.
— Não teria sido capaz de resolver o problema com meu carro. Ele precisa de
uma transmissão nova.
— Você precisa de um carro novo. Aquela velharia vai acabar explodindo.
— Concordo inteiramente, mas neste momento só posso pagar pela
transmissão. — E com muito sacrifício. — O que está fazendo aí em cima?
Consertando meu telhado?
— Não. Estou substituindo o telhado. Laura fechou os olhos irritados e
esfregou-os por um instante.
— A culpa é sua por ter me convencido a parar de fumar — ele explicou. —
Preciso fazer alguma coisa para controlar a ansiedade. Oh, e também vou
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 68
Projeto Revisoras

cuidar da varanda. antes de comprar o material, quero saber se gostaria de


uma tela do proteção.
— Não, Dean. Tudo o que quero é que deixe minha varanda como ela está. E o
telhado também.
— Qual é o problema? Acha que não sei o que estou fazendo?
— Não é nada disso. É que... é que... — Laura espirrou.
— Ei, você está bem? Sua aparência não é nada boa. Está doente?
— Resfriada, talvez. Por que está trocando o telhado?
— Já disse. Gosto de manter-me ocupado. Tem certeza do que é só um
resfriado?
— Quanto custou tudo isso? — ela perguntou, apontando para as placas e
outros suprimentos.
— É um presente.
— Quanto, Dean?
— Sua mãe não ensinou que é grosseria perguntar o preço de um presente?
— Pare com isso agora mesmo.
— Tudo bem, vou parar para deixá-la dormir, mas assim que estiver melhor...
.
— Assim que estiver melhor, vou tomar providências legais para impedi-lo de
invadir meu telhado ou minha varanda! — Tossindo, ela se virou para entrar
em casa.
— Laura! Laura, você não está nada bem. Tem certeza de que é só um...
Ela bateu a porta, tirou as botas e subiu, resmungando palavrões horríveis
sobre o caráter de Dean e seus familiares, embora nem os conhecesse. No
entanto, ao olhar para o espelho do banheiro, teve de admitir que ele estava
certo. Pálida, com sombras escuras em torno dos olhos, ela parecia estar
realmente doente. Lavar o rosto e escovar os dentes foi cansativo, e ela saiu
do banheiro disposta a ir para a cama e mergulhar na inconsciência.
— Lorelei...
Laura assustou-se ao vê-lo no corredor.
— O que está fazendo aqui?
— Fiquei preocupado com você. Sua aparência...
—Já sei, é horrível. Já disse que é só um resfriado, está bem? Tirando o
boné, ele a segurou pelos ombros e tocou sua testa cornos lábios.
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 69
Projeto Revisoras

— Você está com febre alta. Tem um termômetro? — Segurando sua mão, ele
a levou para o quarto deixando o boné no console do corredor.
— Sim, no armário do banheiro, mas não creio que esteja tão doente. Não
posso estar. Tenho coisas para fazer.
— É claro. Vá para a cama e vamos medir sua temperatura. Depois falaremos
sobre todas as coisas que tem para fazer.
Dean ajudou-a a despir o roupão e deixou-o aos pés da cama. Laura começou a
tremer imediatamente. Ele a fez deitar-se e puxou as cobertas sobre seu
corpo.
— Volto num minuto — disse, deixando o quarto. Segundos depois retornava
com o termômetro digital. — Abra a boca — pediu, sentando-se na beirada da
cama para inserir o instrumento entre seus lábios.
Enquanto esperava, Dean notou os retratos de Janey nas paredes, as
almofadas que sobreviviam desde os tempos de Jane, a avó de Laura, o papel
de parede desbotado e as cortinas de renda, a velha cama de casal. Laura
tentou imaginar se ele estava lembrando a última vez em que estivera naquele
quarto, naquela cama.
Os olhos encontraram os dela, e ela soube que era exata-mente nisso que
Dean pensava.
Bip.
Ele retirou o termómetro de sua boca e franziu a testa diante da medida.
— Trinta e nove ponto dois. Você não tem só um resfriado.
— Oh, não... Marie, a vendedora da loja de materiais para pintura em Hale's
Point, não estava se sentindo muito bem quando estive lá há dois dias. Ela
comentou que toda a família estava na cama por causa de uma fortíssima
gripe.
— Foi a Hale Point na quinta-feira?
— Sim.
— Eu também.
— Para quê?
— Falaremos sobre isso mais tarde. Bem, você está com uma gripe violenta. E
melhor levá-la ao médico.
— É um vírus, Dean. Minha médica não vai poder fazer nada por mim.
— Tem razão. Mas precisa de alguma coisa que faça baixar sua temperatura,
muito líquido e repouso. Vai ter de esquecer todas aquelas coisas que tinha
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 70
Projeto Revisoras

para fazer.
— Impossível. Tenho de ir buscar Janey na casa de Danielle e terminar sua
fantasia para a peça da igreja amanhã. Depois disso...
— Ei, ei, vamos devagar. Precisa ir buscá-la na casa de quem?
— Danielle, a amiga que a convidou para dormir. Fiquei de ir buscá-la às onze
horas.
— Eu vou.
—De jeito nenhum.
— Laura...
— Por favor, Dean. Eu cuidava de tudo muito bem antes de você aparecer por
aqui com seu cheque de um milhão de dólares e sua boa vontade inesgotável.
Para sua informação, não preciso de ajuda nem quero sua ajuda. Minha vida
era perfeita sem você.
— Tem certeza, Lorelei?
Ela fechou os olhos e sentiu o ardor provocado pela febre.
— Tenho.
— Pois a minha vida... — Ele tocava seu rosto com as pontas dos dedos.—
Quero dizer, é satisfatória, mas às vezes sinto que falta alguma coisa.
Quando acordo no meio da noite e começo a pensar nisso... acabo sempre
pensando em você, imaginando o que teria acontecido se as coisas fossem
diferentes e...
— Isaura! — A voz de Kay precedeu a batida da porta da cozinha. — Está em
casa? Vou à cidade. Precisa de alguma coisa?
Abrindo os olhos, ela encheu os pulmões para responder, mas Dean pousou um
dedo sobre seus lábios.
— É melhor não forçar a garganta. — E virou o rosto para a porta. — Ela está
aqui em cima, Kay. Pode trazer um copo com água e um analgésico?
Houve uma pausa.
— Laura se machucou?
— Não, mas está doente. — Olhando para Laura, ele afagou seus cabelos e
notou que ela fechava os olhos. — Isso mesmo. Relaxe. Precisa ficar na cama
e ser servida e bem tratada até melhorar. Onde fica a casa de Danielle?
Laura abriu os olhos e suspirou exasperada.
— Já disse que não. Não posso permitir que faça tudo isso por mim.
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 71
Projeto Revisoras

— Está insinuando que vai sair de casa para ir buscar sua filha com mais de
trinta e nove graus de febre? Sem carro?
— Não. Kay pode cuidar disso.
— O que eu posso fazer? — Kay perguntou ao entrar no quarto com a água e
os comprimidos. Na bandeja também havia uma laranja e uma fatia generosa
do pão de banana passa que Laura preparara no dia anterior. — Meu Deus,
você está horrível!
— Eu sei. — Com esforço e a ajuda de Dean, sentou-se na cama e apoiou-se
nos travesseiros que ele colocou em suas costas.
— Ela está com uma gripe terrível.
— Notei que não estava muito bem ontem à tarde. Tome isto — Kay ordenou,
colocando dois comprimidos na mão dela e oferecendo a água. — O que quer
que eu faça?
— Pode ir buscar Janey na casa de Danielle às onze horas?
— É claro que sim. Estava com você ontem à noite quando a deixamos lá, não?
— Eu disse a ela que eu iria buscar Janey, mas Laura recusa todas as minhas
ofertas de ajuda.
— Ela não sabe o que é bom para ela. Laura tem sorte em ter amigos
prestativos.
— Kay...
— Danielle mora naquela casa enorme de tijolos vermelhos na esquina da
Spencer com a Main. Vai encontrar o lugar com facilidade — ela disse a Dean.
Laura fechou os olhos e pôs o braço sobre a testa.
— Odeio vocês dois.
Sorrindo, ele afastou os cabelos que caíam sobre seu rosto.
— Agora que resolvemos esse aspecto do problema, o que foi que disse sobre
uma peça na igreja amanhã?
— Não sei. Esqueci. Deve ser a febre.
— A sala de Janey na escola dominical vai encenar uma peça sobre a vida de
Moisés para a congregação durante o serviço de amanhã. — Kay começou a
descascar a laranja. — Janey será a filha do faraó, a que encontra o bebê
Moisés no cesto.
— A fantasia dela ainda não está pronta — disse Laura.
— Só o arranjo de cabeça. — Kay ajudara a amiga a criar o elaborado figurino
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 72
Projeto Revisoras

egípcio. — Posso terminá-lo em dez minutos.


— Tem certeza?
— O que não se faz com um pouco de cola quente?
— Você é uma grande amiga, Kay. Só mais uma coisa... Não creio que consiga
me recuperar a tempo de levar Janey à igreja amanhã. Pode fazer isso por
mim?
— Quer mesmo que eu vá na igreja? Não há mais ninguém que possa vir buscá-
la e trazê-la depois da peça?
— Sim, muitas pessoas da congregação viriam buscá-la e trazê-la, mas Janey
está tão ansiosa, tão entusiasmada com sua primeira participação em uma
peça de teatro, que seria terrível não ter ninguém na platéia para aplaudi-la.
Você é quase tão próxima quanto eu e... Ah, esqueça. Sei que detesta qualquer
demonstração de organização religiosa. Janey vai ter de entender.
— De jeito nenhum — Dean interferiu. — Você tem razão. Um de nós vai ter
de estar presente.
Um de nós? Ele conhecia Janey há uma semana, e já se incluía entre os
adultos significativos de sua vida? Por outro lado, tinha de reconhecer que a
menina o adorava, um afeto que parecia ser mútuo.
Pensar no laço imediato entre Dean e Janey a enchia de pavor.
— Não se incomode com isso. Vou pedir à professora da escola dominical para
vir buscá-la.
Ele balançou a cabeça.
— De jeito nenhum. Eu vou levá-la.
— Quando foi a última vez que esteve em uma igreja?
— No seu casamento. Foi naquela igreja gótica da praça aqui mesmo em Port
Liv. Você usava margaridas nos cabelos e aquele vestido branco simples e
angelical. Estava tão linda, que cheguei a perder o fôlego.
Laura sentia o coração bater descompassado. A voz de Kay quebrou o encanto
do momento.
— Muito bem, então está tudo acertado. Dean levará Janey à igreja amanhã.
O serviço está marcado para as dez, Dean, na mesma igreja onde Laura se
casou.
— Mas... Janey precisa apresentar-se meia hora antes para a maquiagem. E
Dean... Falando sério, não precisa ir.
— Eu quero ir. Virei buscá-la às nove e quinze. — Ele se levantou para sair. —
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 73
Projeto Revisoras

Agora vou limpar aquela bagunça lá fora antes de ir buscar Janey. Oh, e se
alguém da Manson's Aquecimento e Ar Condicionado vier me procurar
enquanto eu estiver fora, peça para esperar até...
— Ei, ei, devagar! — Laura exclamou, sentindo a cabeça girar e doer. — Por
que alguém da Manson's viria procurá-lo aqui?
— Por nada. Eu encomendei um forno elétrico e uma rede de canos para o
aquecimento central.
— O quê?
— Até que enfim! — Kay aplaudiu.
— Dean, você não vai comprar um forno elétrico para a minha casa! Está
ouvindo? Não vou aceitar!
— Como já está nervosa... — Ele retirou do bolso da calça alguns papéis
dobrados. — Você queria saber o que fui fazer em Hale Point no outro dia.
— O que quer que seja, não quero. Não aceito.
— Dê-me isso. — Kay arrancou os papéis das mãos dele.
— Não vê o que ele está fazendo? — Laura perguntou á amiga. — É claro que
sim. Como não aceitou o cheque do um milhão de dólares, ele está usando o
dinheiro para comprar coisas do que você precisa. — Ela examinou o
documento. — Ou que você quer muito!
— O que é isso?
— Estou saindo — Dean avisou apressado. —Não deixe que ela fique muito
agitada, Kay. Laura precisa descansar.
Sorrindo, Kay entregou os papéis à amiga.
— Aí estão os documentos do barco de Raleigh Hale.
— Ah, pelo amor de Deus! — Ignorando o título, Laura caiu sobre os
travesseiros è fechou os olhos. — Não posso aceitar!
— É tarde demais para isso. O título de propriedade está em seu nome. O
barco já é seu.
— Não posso acreditar que esteja apoiando as atitudes daquele maluco!
— E eu não posso acreditar que esteja tentando afugentar um homem lindo,
decente e generoso que, por acaso, também é o pai de sua filha.
— Lamento que tenha chegado a essa conclusão. Espero que Janey nunca
desconfie disso.
— Você devia contar a ela. Janey tem o direito de saber quem é o pai, e Dean
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 74
Projeto Revisoras

tem o direito de saber que tem uma filha. Ele se sente ligado à menina, Laura!
É evidente. Não se sente culpada por esconder a verdade?
— E claro que sim! A culpa está me devorando. Mas já discutimos esse
assunto. Dean não nasceu para ser pai.
— Ele vai levá-la à igreja amanhã! O que pode ser mais paternal?
— Não estou dizendo que ele é incapaz de representar o papel de pai. No
entanto, mais cedo ou mais tarde, a novidade vai se esgotar e ele irá embora.
Vai ser difícil para Janey quando Dean desaparecer. Pense em como será pior
se ela souber que ele é seu verdadeiro pai. Além do mais, pode imaginar uma
explicação razoável para os fatos? Ela acredita que é filha de Will. Se contar
a verdade agora, Janey jamais entenderá por que a escondi por tanto tempo.
— É claro que ela vai entender. Ninguém melhor do que as crianças para
compreender que a vida às vezes torna-se difícil e complicada. Elas sabem
tudo sobre situações delicadas e decisões dolorosas. Diga apenas que precisa
conversar, que tem algo importante para contar e seja clara. Janey
entenderá tudo.
— Está assumindo novamente aquele ar de terapeuta familiar, srta. Não-
Acredito-Mais-Em-Psicologia.
— É difícil superar um velho hábito.

CAPITULO X

— Por que decidiu fazer um Tiranossauro Rex? — Dean perguntou enquanto


ajudava Janey a reduzir o jornal do dia a tiras. — Por que não escolheu um
animal mais amistoso?
— Amistoso? — Janey sorriu do outro lado da armação feita com tela de
galinheiro.
Naquele dia ela transformaria o esqueleto improvisado em um Tiranossauro
Rex de papel machê para um projeto da escola, e para isso precisava da ajuda
de um adulto. Com a chegada da primavera e a elevação da temperatura, Dean
havia sugerido que trabalhassem na varanda. Depois de terminar o trabalho
no telhado, ele havia quase concluído a substituição do piso.
Três semanas se passaram desde que tivera de interromper o trabalho no
telhado para cuidar da febre de Laura. Passara dias servindo suco e caldo de
galinha, mas ela finalmente se recuperara. A apresentação da peça na igreja
havia sido divertida, e estivera no templo mais uma vez para a comemoração
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 75
Projeto Revisoras

de Páscoa a convite de Janey.


Laura ainda lutava com unhas e dentes contra cada favor que recebia. O
forno e o barco haviam sido motivos de grande consternação, mas ela ficara
realmente furiosa com a Blazer marrom que estava estacionada na garagem.
Pelo que saía, ela ainda nem estivera dentro do carro novo.
Por outro lado, ela se habituara com sua presença e ate passara a tratá-lo
com um pouco mais de simpatia. Às vezes sorria, e já não proibia mais a filha
de pedir sua ajuda para as tarefas do dia-a-dia, como a construção do
Tiranossauiro de papel.
— Nenhum dinossauro era amistoso — ela estava dizendo.
— Não? E aquele bichinho de estimação dos Flintstones? Dino era o nome
dele. De que raça ele é?
— Da raça dos desenhos animados. Ele não é de verdade. É só um desenho,
— Sim, eu sei disso, mas... Ah, você entendeu. Ele deve pertencer a alguma
raça.
— Nunca existiu uma raça que tenha vivido na mesma época dos seres
humanos.
— Eu sei. Talvez não acredite, mas sei tanto quanto você sobre os
dinossauros.
A porta se abriu e Laura apareceu com uma vasilha de plástico nas mãos.
— Quem pediu pasta de farinha? Janey levantou os braços.
— Eu!
— Aqui está mademoiselle.
— Isto mais parece sopa de farinha — Janey comentou ao mergulhar um dedo
na mistura cremosa.
— O nome não importa. Quer ver como funciona? — Laura abaixou-se perto
de Dean e pegou uma tira de jornal. — Você deve mergulhar o jornal na
mistura de farinha, remover o excesso e aplicar sobre a armação de arame.
Assim.
— Uau! Posso tentar?
— O projeto é seu, docinho. Somos apenas seus assistentes. Laura limpou as
mãos em um pano e ficou abaixada vendo a filha trabalhar, oferecendo um ou
outro conselho e elogiando o resultado.
Dean a observava encantado, Algumas mulheres nascem para ser mães, para
nutrirem, protegerem, guiarem. Laura Sweeney era uma delas.
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 76
Projeto Revisoras

— Meus braços estão cansados — Janey reclamou quando a estrutura de


metal já estava coberta até a metade com as tiras de papel. — E eu estou
com fome.
— Quer que eu continue enquanto você descansa? — Laura perguntou. —
Posso terminar a primeira camada, e depois você decide como quer continuar.
— Boa idéia! — A menina levantou-se. — Ainda temos aqueles biscoitos
recheados de chocolate?
— No pote sobre o móvel da cozinha. Não se esqueça de lavar as mãos —
Laura gritou ao ver a filha desaparecer além da porta.
Puxando a vasilha com a mistura de farinha para mais perto dela, Laura
começou a cobrir a estrutura de arame com as tiras de papel.
— Deixe-me ajudá-la — Dean ofereceu.
— Tem estado muito quieto. Ficou entediado?
— Não. Apenas contente — ele sorriu. — E então, quando vai ceder à tentação
e dar uma volta naquela Blazer novinha?
— Quando você for embora. Então me sentarei ao volante e levarei o carro de
volta à loja. Mas só irei devolvê-la quando você estiver em Portsmouth, ou
encontrará uma maneira de trazê-la para cá novamente. E farei o mesmo com
o barco.
— Daqui a pouco vai dizer que pretende arrancar o forno elétrico da parede e
cavar buracos no telhado e no piso da varanda.
— Não estou tão revoltada assim com sua campanha filantrópica. Quase... mas
não tanto.
— Já é um conforto. Agora vou, ter de pensar em gastar o que resta do
dinheiro em coisas que você não possa desfazer. Ainda há muito dinheiro no
banco. Estarei ocupado durante o próximo mês.
Laura continuou trabalhando.
— Vai mesmo passar mais um mês aqui?
— Sim, até o final de maio, quando partirei para minha viagem anual às
Bermudas. Vai ter de aturar minha presença até lá... a menos que aceite o
resto do dinheiro. Nesse caso, irei embora imediatamente.
— Oh, não! Se aceitar o dinheiro, estarei facilitando as coisas para você. Se
vai mesmo obrigar-me a ficar com ele de uma forma ou de outra, que seja da
maneira mais difícil. Dean riu aliviado.
— Você se tornou uma criatura vingativa.
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Projeto Revisoras

— Quem disse que é o único que pode mudar com a idade? — Laura ajeitou
mais uma tira de papel sobre a estrutura de arame. — Então, vai levantar vela
no final de maio?
— Gostaria de ir antes, mas as temperaturas são muito baixas em New
England antes desse período. Na verdade, o clima é frio e úmido até que se
possa atravessar o Golfo.
— De quanto tempo precisa para concluir a viagem?
— Sozinho? Uma semana de Portsmouth ao Porto de Saint George. Menos se
não houver muito vento e eu tiver de usar o motor, mais se o tempo for
desfavorável.
— Não imagino enfrentar uma viagem dessa sozinha.
— E eu não consigo imaginá-la tropeçando em outras pessoas. Prefiro a
companhia do piloto automático. —Ultimamente chegara a imaginar como
seria velejar em companhia de Laura. Não seria tão ruim tropeçar nela de vez
em quando...
— Não sente solidão quando está no meio do oceano sem nenhuma companhia?
— Mas eu tenho companhia. Ela só não é humana. Na última vez encontrei um
cardume de golfinhos; e uma baleia escoltou meu barco até bem perto da
entrada do porto.
— Uma baleia? Puxa, eu adoraria ter visto isso! -— Laura mergulhou uma tira
de papel na vasilha no mesmo instante em que Dean trabalhava. Ela se
assustou quando as mãos se tocaram.
Dean segurou seu pulso antes que ela pudesse se afastar.
— Eu teria adorado se você estivesse lá. Vermelha, Laura desviou os olhos
dos dele.
— Eu... pensei que não gostasse de ter outras pessoas a bordo.
— Você não é uma pessoa qualquer. É especial, porque... porque aprecia coisas
que nem todos sabem apreciar. Por isso suas pinturas são tão poderosas e
envolventes. É capaz de ver além da superfície. Enxerga a essência das
coisas, as verdadeiras cores da natureza e dos seres humanos.
Laura tentou encerrar o contato, mas ele a segurava com firmeza.
— Depois de cruzar o Golfo, a água se torna tão azul que é como olhar para
uma piscina. Você adoraria. Poderia levar suas tintas e suas telas...
— Dean...
— E não acreditaria no brilho das estrelas sem as luzes artificiais. Costumo
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 78
Projeto Revisoras

ficar deitado no convés do barco, olhando para o céu e admirando a Via


Láctea. Não gostaria de ter ninguém deitado a meu lado além de você. Talvez
não devesse estar dizendo essas coisas, mas...
— Tem razão, não devia.
— Laura... — Ele a segurou pelos ombros ao perceber sua intenção de
levantar-se, sujando sua camiseta com a mistura de farinha. — Se eu a
convidasse para ir comigo...
— Eu diria.não. Teria de dizer não.
— Por causa de Janey? Nós a levaríamos também. — Está brincando? Numa
viagem como essa? Laura tinha razão.
— Vocês duas poderiam ir de avião até as Bermudas, onde nos
encontraríamos. Costumo passar duas semanas por lá. A paisagem é tão linda!
Você adoraria.
— Odeio voar. Além do mais, Janey ainda estará na escola.
— Sim, mas... Ei, é só a pré-escola. E se não quer que ela perca esses dias de
aula, Kay poderá cuidar dela durante sua ausência. Tenho certeza de que ela
ficaria muito feliz.
— Nunca passei tanto tempo longe de Janey. E como disse antes, detesto
aviões.
— Devia tentar superar esse medo.
— Escute, o problema não é o medo de voar nem a escola de Janey. E... — Ela
balançou a cabeça.
— O problema é aquela noite, não é? O que nós... O que eu fiz há seis anos,
quando estive aqui para...
— Nós fizemos. Tive tanta responsabilidade quanto você.
— Tenho argumentos de sobra para discutir essa afirmação, mas o ponto
principal é que você acredita ter traído Will naquela noite. E como fui o
instrumento dessa traição, não quer mais nada que venha de mim. Nem mesmo
o dinheiro, embora ele possa mudar sua vida e a de Janey.
Laura conseguiu soltar-se.
— Por favor, pare de envolver Janey nessa conversa. A situação não é tão
simples quanto imagina. Não se trata de traição. É claro que me sinto culpada
por aquela noite, mas também senti que... que tinha de acontecer, como se
estivesse escrito em algum lugar. Nada poderia ter impedido.
— Entendo. Sempre houve algo muito forte entre nós. Tentei fugir disso... de
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 79
Projeto Revisoras

você... Mas o inevitável não pode ser negado. Ninguém pode escapar do
destino.
— Às vezes é preciso escapar.
— Por que insiste em afastar-me de você? Por que não aceita o dinheiro e me
deixa ficar perto de você? São seis anos, Laura! Will morreu. Eu estou aqui.
— Por quanto tempo?
A pergunta o pegou de surpresa. Dean ficou quieto, pensativo.
— Com ou sem ligação, jamais viveremos juntos. O problema não é Will. Já
disse, a situação é complicada.
— Por que não tenta explicar?
— Não posso. Sei que não entenderia...
— Foi o que disse em Portsmouth. Por que não tenta?
— Já disse que não posso!
— Por que não? O que está escondendo de mim, Laura?
— Por favor, Dean...
Ele a segurou pelos ombros e notou as lágrimas correndo por seu rosto.
— Oh, meu Deus...
— Por favor... Eu não posso... — Soluços a sacudiam. — Não posso explicar.
— Tudo bem, tudo bem... — Dean aninhou a cabeça dela em seu peito. — Não
tenho o direito de pressioná-la.
— Não me peça para explicar — da soluçou, agarrando sua camiseta.
— Não vou pedir mais nada. Prometo.
—- Eu sinto muito, Dean. Sinto de verdade.
— Você não tem nada de que desculpar-se.não tem o que lamentar.
— Gostaria de poder concordar com você.

CAPÍTULO XI

Está atrasada! — Kay exclamou ao ver Laura entrando na pousada. Ela passara
a tarde cuidando de Janey e arrumando as malas para a viagem anual de
férias que fazia com a mãe antes do início da temporada de turismo em Port
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Projeto Revisoras

Liv, quando a Blue Mist ficava lotada.


— Perdi a noção do tempo pintando. Precisa de ajuda? — Laura ofereceu ao
ver a mala na mão dela.
— Não, obrigada — ela respondeu, deixando a mala num canto do hall.
— Janey já foi para a cama?
— Ainda não. Ela já está de pijama, mas ficou na cozinha conversando com
Dean. E já que estamos falando em Janey, podemos pô-la na cama, como
sempre, mas amanhã terei de sair às cinco para o aeroporto.
— As cinco? Quer cancelar a noite de cinema?
— De jeito nenhum! Não vejo Casablanca há anos, e Dean nunca teve
oportunidade de assistir ao filme.
Laura já havia descoberto que ele assistira a poucos filmes ao longo da vida.
— Bem, hoje Janey irá para casa comigo depois da nossa sessão — ela decidiu.
— Tudo pronto para as férias, Kay?
— Mais do que pronto. Dez dias nas Ilhas Gregas! Estou sonhando?
— Não. Mas eu estou morta de inveja.
— Eu convidei você e Janey para a viagem.
— Já discutimos esse assunto. Não posso pagar por certos luxos, e não vou
aceitar o dinheiro do Dean.Alem do mais, ir a Grécia implica voar, e me recuso
a entrar em um avião.
— Fobias devem ser enfrentadas, Laura.
— Mais interpretações brilhantes da suposta ex-psicóloga.
— Tudo bem, é melhor que esteja aqui, caso Dean tenha algum problema com
as reservas. —Ele concordara em ajudá-la em troca de quarto e comida
gratuitos. — Estarei de volta no dia vinte e sete, caso alguém queira falar
comigo.
— Certo. E agora, vamos assistir ao filme antes que fique muito tarde. Vou
pôr Janey na cama enquanto você prepara a pipoca.
— Eu sempre preparo a pipoca. Por que não cuida disso enquanto eu ponho
Janey na cama?
— Como quiser. — Laura abriu a porta da cozinha. — Vou mandá-la para cá e...
Oh!
Dean estava sentado em uma cadeira no meio da cozinha, os olhos fechados e
os braços cruzados sobre o peito. Atrás dele, sobre um banco, Janey
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 81
Projeto Revisoras

manejava a tesoura infantil do pontas arredondadas e ia cortando mecha por


mecha dos cabelos que aos poucos iam cobrindo o piso.
— Olá, mamãe! — A menina cumprimentou ao vê-la. — Estamos brincando de
salão de beleza.
— Meu Deus! Dean... você percebeu que ela está usando uma tesoura de
verdade?
— É claro que sim! Como ela poderia cortar meu cabelo sem uma tesoura?
— Tem idéia do resultado?
— Relaxe, Laura!
— Vou tentar — ela suspirou, chocada com a cena diante de seus olhos. —
Janey, já devia estar na cama. Venha, tia Kay vai levá-la para o quarto.
— Mas eu ainda não terminei!
— Gosto do cabelo como ele está, docinho — Dean interferiu. — Pode ir
dormir. E obrigado por ter cuidado de mim.
Janey sorriu e foi dar um beijo na mãe.
— Boa noite, mamãe.
— Boa noite, querida.
Assim que a menina saiu, Dean ajeitou-se na cadeira e sorriu.
— Ela me faz desejar ter filhos.
Laura respirou fundo e forçou um sorriso.
— Quer que eu tente consertar essa obra de arte?
— Apenas acerte as pontas, por favor. Não quero comprometer o trabalho de
Janey.
— Vai para as Bermudas com esse corte exótico? Já estamos na terceira
semana de maio. Assim que Kay retornar da Grécia, você estará partindo.
— Esse é o plano.
— Espero que não tenha esquecido do que eu disse. Assim que for embora,
vou devolver todas as coisas que comprou para mim. O barco, o carro, o
microondas, a lava-louças, os móveis... Tudo.
Ele emitiu um suspiro aborrecido e exagerado.
— Laura, querida, por que você tem de ser tão insistente?
— Porque eu disse que não ia aceitar seu dinheiro. Sendo assim, vou devolver
tudo o que comprou e depositar a quantia no banco em sua conta.
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 82
Projeto Revisoras

— Como quiser. Eu pegarei o valor e depositarei na poupança de Janey.


— Na... poupança?
— Eu não disse? Foi a solução que encontrei para o restante daquele milhão
de dólares. Abri uma poupança para Janey, e ela só poderá movimentar a
conta quando completar dezoito anos. Consultei um advogado, e ele me
garantiu que você não pode interferir nessa conta nem fechá-la.
— Você não sabe quando parar, não é?
— Não. Já terminou?
— Já!
— Como fiquei?
— Ridículo!
— Laura, seja razoável! Pense em como esse dinheiro vai mudar a vida de
Janey. Só preciso da certidão de nascimento para concluir o negócio, e então
ela estará garantida até a universidade.
Certidão de nascimento? Era só o que faltava! Uma certidão com o nome do
pai em branco?
— Não, Dean.
— Laura, pense em Janey! Pense na promessa que fiz a Will e em como não
pude cumpri-la!
— Pare com isso! Sei por que não cumpriu a promessa. Por que fugiu no meio
da noite daquele jeito depois de... de... Teve medo de que eu fizesse
cobranças, de que exigisse um compromisso... Tem idéia de como foi horrível
acordar e descobrir que...
— Sim, sim, eu sei. — Ele se levantou para abraçá-la. — Pensei nisso centenas
de vezes e sempre me senti o pior dos canalhas por ter partido. Foi
imperdoável. Mas eu sempre quis estar com você.
— Então por quê...?
— Naquela noite, fiquei andando pela casa enquanto você dormia e encontrei a
carta... A carta que escreveu para Will Sobre a gravidez.
Laura fechou os olhos.
— Oh...
— Saber que você esperava um bebê tornou tudo ainda pior. A traição, a
culpa...
— Eu também fui culpada por aquela noite. E foi inevitável. Tinha de
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 83
Projeto Revisoras

acontecer.
— Foi errado.
— Dean...
— Você chorou de arrependimento. Ficou devastada!
— Chorei ainda mais na manhã seguinte, quando acordei e descobri que havia
ido embora. Também me senti culpada, Dean, mas nunca pensei que aquela
noite foi um erro. Foi... complicado. Só isso.
— Agora entendo o que diz, mas na época era diferente. Senti que havia
cometido um engano imperdoável, e o sentimento cresceu depois que
encontrei aquela carta. Achei que estaria melhor longe de mim.
—Por isso desapareceu?
— Para protegê-la de mim. Mas depois recebi aquele cheque de um milhão de
dólares, e agora... Agora estou aqui. Durante esses seis anos, pensei em você
todos os dias, imaginando como seria sua vida e a minha se tudo houvesse... se
as coisas fossem diferentes. Você... pensou em mim?
— Sim... muito.
— Quando eu for embora, vai sentir minha falta? Ele iria embora. Sempre
soubera disso.
— Sim, eu sentirei sua falta. A porta da cozinha se abriu. — Vocês dois...
Laura escapou do abraço e deu as costas para Dean.
— Não sinto cheiro de pipoca — Kay apontou. — O que estavam... — Ela parou
e cobriu a boca com a mão. — Dean! O que aconteceu com seu cabelo?
— Mudei de estilo.
Depois do filme, Dean se ofereceu para carregar Janey até a casa de Laura.
Como chovia muito e ela teria de levar o guarda-chuva emprestado por Kay,
Laura aceitou a oferta. Em casa, os dois colocaram a menina na cama e
desceram em silêncio até o hall.
— Obrigada — ela murmurou sem encará-lo.
— Por nada. Acho que já vou...
— Quer um café, ou outra bebida qualquer?
— Café seria ótimo.~ Obrigado. No entanto, acho que devia tirar esse suéter
ensopado antes de ir para a cozinha.
— Tem razão. Sua blusa também está molhada.
Ele a despiu e deixou-a no chão do hall. Laura fez o mesmo com o suéter.
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 84
Projeto Revisoras

— Ainda estamos molhados. — Dean começou a desabotoar a camisa feminina.


Laura imitou-o, tocando os botões da camisa ensopada que cobria o peito
másculo. Depois foi a vez do jeans. Usando apenas uma camiseta íntima e a
calcinha, ela o ajudou a despir a calça sentindo sua ereção ao tocá-lo.
— Laura, querida... é melhor subirmos.
— Não. Podemos acordar Janey. Vamos ficar aqui. — Ela levou-o á sala de
estar, para o velho sofá da avó.
Então ele a tomou nos braços, beijou-a, e Laura parou de pensar. Nada mais
tinha importância. As mãos a tocavam em todas as partes do corpo, fazendo
seu coração bater tão depressa que temia ouvi-lo explodir. Apesar da
urgência e do desejo contido durante tantos anos, dessa vez ele lembrou de
protegê-la. Depois mergulharam juntos em um mundo onde só havia o prazer,
sensações intensas que guiavam seus movimentos na direção do clímax
violento e explosivo que os consumiu como um fogo incontrolável.

CAPÍTULO XII

— Sempre fui maluco por você — Dean confessou mais tarde, quando ainda
estavam abraçados sob o cobertor de lã que havia sido de vovó Jane. — Cada
vez que olhava para você, tinha a sensação de que meu peito explodiria de
dor. Ao mesmo tempo, sentia uma enorme alegria sempre que estávamos
juntos. Sabia que você amava Will, mas não conseguia sufocar meus
sentimentos. Eu a amava, Laura. Mas não podia fazer nada, porque temia ma-
goar Will e ofendê-la.
— Não teria me ofendido com uma declaração sincera. Pelo contrário. Nós
teríamos conversado e esclarecido a situação. Talvez houvesse sido melhor
assim.
— Não. Nunca tive coragem para confessar meu vergonhoso segredo. Sonhar
com a namorada do melhor amigo... Além do mais, não queria sua piedade.
— Eu não teria sentido pena de você.
— Mesmo assim, sempre fomos opostos. Você é o tipo de mulher que faz um
homem traçar planos, pensar em acomodar-se... Se ele for do tipo que um dia
pode acomodar-se com alguém.
— O que você nunca foi. Sempre disse que o casamento era a maior farsa
perpetrada contra os homens em nome da civilização.
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 85
Projeto Revisoras

— Eu dizia coisas estúpidas. Sabia que seria um péssimo marido, e por isso
tentava me justificar.
— Você não é tão ruim quanto pensa. Cometeu alguns enganos, é verdade...
— Enganos? Cometi erros terríveis! Feri muita gente, especialmente você,
quando a abandonei sem dizer adeus. Deve ter me odiado. Não posso criticá-
la por nunca ter me procurado.
— Mas eu tentei! A força aérea recusou-se a revelar seu endereço.
— Porque eu estava na unidade de inteligência anti-terrorismo. Por que
tentou me encontrar, depois de tudo que fiz?
Boa pergunta. E agora, o que diria a Dean?
— Eu... não importa.
— E importante para mim. Pelo menos saberei que não me despreza. Ou
tentou encontrar-me só para dizer tudo o que pensava a meu respeito?
— Não. — A princípio acreditara que ele tinha o direito de saber sobre o
bebê, mas depois de seis anos... Seguiram caminhos distintos, e a vida de
Dean jamais poderia acomodar uma esposa e uma filha.
— Você... pensou que pudéssemos ter uma chance juntos? Queria fazer uma
tentativa? Não imagina como isso teria mo feito feliz, mesmo sabendo que
seria um engano.
— Também não foi nada disso. Naquela manha, quando descobri que havia
partido, soube que jamais haveria unia chance para nós.
— Ah... eu sabia que havia estragado tudo.
— Eu só... queria conversar com você. Havia algo que eu queria dizer.
— O que era?
Se revelasse a verdade, tudo mudaria. Ele seria parte de sua vida e da vida
de Janey. E nesse momento de satisfação e intimidade, ansiava por poder
dizer que ele era o pai de sua filha.
Mas o que sentiria depois, quando Dean começasse a contar os dias para
deixar Port Liv e içar velas para as Bermudas?
Não. Precisava de tempo e distanciamento para pensar e tomar uma decisão
racional.
— Não me lembro mais — mentiu. — Não devia ser nada importante.
— Deve ter parecido importante.
— Foi há muito tempo. Nada mais é como antes.
Patricia Ryan – Um milhão e seu coração 86
Projeto Revisoras

— Algumas coisas não mudaram. Você ainda é a única. Sempre foi e sempre
será. A única mulher que jamais amei, ou que amarei.
Laura estava dormindo. Apesar de toda a alegria que conhecera em seus
braços, algumas coisas ainda permaneciam inalteradas em sua mente. Podia
pensar em aceitar compromisso e casamento, embora as idéias ainda fossem
assustadoras, mas não desistiria do plano de abrir uma poupança para Janey.
E o fato de Laura opor-se brutalmente ao plano o intrigava. Prometera não
pressioná-la nem pedir-lhe explicações, mas nunca havia dito que desistiria do
projeto. Só precisava da certidão de nascimento para concluir a primeira
etapa.
Devagar, levantou-se e ajeitou o cobertor de lã em torno dela. Por onde
começaria a busca? Pensou na sala de estar e em todos os móveis, sofá, mesa
de café, poltronas, televisão... nenhum lugar que pudesse servir de
esconderijo para um documento importante.
Silencioso, atravessou o corredor descalço e foi até a cozinha. As gavetas e
os armários continham apenas utensílios e mantimentos. O estúdio de Laura
também não continha nada de interessante. Talvez no quarto... Sim, lembrava-
se de ter visto uma escrivaninha com gavetas no quarto de Laura.
Determinado, foi até lá e acendeu a luz antes de acomodar-se na cadeira
estofada deixada diante da escrivaninha. Havia papéis em todas as gavetas.
Contas a pagar, contas pagas, correspondência, recibos de vendas dos
quadros, documentação fiscal, cartões comerciais...
Na gaveta mais alta havia um envelope com o nome de Janey. Dentro dele
Dean encontrou a carteira de vacinas, um punhado de fotografias, uma delas
de um exame de ultra-sonografia, a carta que Laura enviara para o marido
contando sobre a gravidez. Dean releu a mensagem que o enchera de
desespero seis anos antes.
"Lembra-se daquela noite em que acabamos esquecendo de tudo?... A data
prevista é sete de outubro, dia do aniversário de sua irmã Bridget."
Sete de outubro?
Intrigado, Dean reviu as fotos e deteve-se em uma delas. Laura posava para
uma escultura de neve que Kay concluía no quintal de sua pousada. Grávida, ela
ria como se estivessem se divertindo muito. A cena de inverno era típica do
final de novembro.
Não fazia sentido. A menos que Janey já houvesse nascido e, por brincadeira,
ela tivesse usado travesseiros para forjar a imensa barriga.
Era isso. Tinha de ser. Estava certo de que era isso.
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Projeto Revisoras

Então, por que suas mãos tremiam tanto?


Deixando de lado o que já havia examinado, ele continuou verificando o
conteúdo do envelope e encontrou um documento oficial com o timbre do
governo federal. Uma certidão de nascimento.
"Certifico para os devidos fins que Jane Bridget Sweeney, do sexo feminino,
foi registrada nesta comarca tendo nascido no dia..."
— Primeiro de janeiro? — ele murmurou confuso. O espaço reservado ao nome
do pai estava vazio.
Dean tremia convulsivamente. O nome de Will deveria estar naquele espaço.
— Meu Deus... Seria possível?
Se Laura havia estado grávida de Will no início de 95, como pudera
engravidar de outro homem meses depois? A menos...
Ela devia ter perdido o bebê. O primeiro bebê. O filho de Will. Devia ter
abortado em algum momento entre a morte de Will e sua visita em abril.
— Oh, Laura...
Primeiro tivera de enfrentar a morte do marido. Depois a perda do bebe, e
mais tarde...
Laura havia sido usada por um homem sem escrúpulos e egoísta. Na manhã
seguinte acordara sozinha, cheia de remorso, e semanas depois descobrira
que estava grávida outra vez.
Agora sabia por que ela tentara encontrá-lo. Laura mentira. Dissera não
lembrar o que tinha a dizer quando entrara em contato com a aeronáutica. E
Laura nunca mentia. Ou melhor, só em último caso. Só quando a alternativa
fosse tão desastrosa que nem pudesse ser levada em consideração.
No início, pensara em falar sobre o bebê, mas havia mudado de idéia ao
compreender o significado de ter alguém como ele no papel de pai de sua
única filha.
Laura sempre fora sensata.
Dean pegou a foto do ultra-som onde Janey aparecia encolhida no interior do
útero, o polegar dentro da boca. Sua filha... A descoberta o enchia de
espanto e alegria. Mas saber que Laura ainda estava disposta a guardar o
segredo, mesmo depois daquela noite...
Ela o desejava. Talvez até o amasse. Mas sabia que seria impossível construir
uma vida a seu lado.
Por isso Laura não aceitara o cheque e ameaçava devolver os presentes. Por
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isso se negava a colaborar com a abertura de uma poupança para Janey. Se


aceitasse sua ajuda, passaria a sentir-se obrigada a dizer a verdade,
permitindo assim sua entrada na vida de Janey e na dela, algo que ela estava
disposta a evitar a qualquer custo.
E quem poderia criticá-la por isso? Ela o conhecia melhor do que ninguém.
Sabia que ele não era o tipo de homem capaz de mudar, apesar de todos os
sonhos.
Teria mesmo pensado em casamento naquela noite?
Uma gargalhada amarga brotou de seu peito. Algumas semanas de
tranqüilidade doméstica, e já se sentia o pai do ano. Por quanto tempo o
contentamento teria durado?
A culpa era sua. Mais uma vez, todo o fiasco com que se deparava havia sido
causado por ele mesmo.
Nenhuma novidade.
Enquanto reunia fotos e documentos, Dean encontrou varias cópias da
certidão unidas por clipes. Ele dobrou uma delas e guardou-a no bolso. Depois
separou o original e guardou tudo no envelope com o nome de Janey.
Felizmente havia papel e caneta sobre a escrivaninha.

CAPÍTULO XIII

— O que foi, mamãe? De quem é esse bilhete?


Laura respirou fundo e tentou controlar-se. Pelo menos havia parado de
chorar. Devia ter os olhos vermelhos e inchados, e ainda segurava o bloco que
encontrara sobre a escrivaninha pouco antes, quando entrara no quarto. Pior
ainda havia sido ver a certidão de nascimento de Janey ao lado do bilhete.
— E do sr. Kettering, querida.
— Pode ler o bilhete para mim?
— Não, docinho. E... pessoal. Ele escreveu para mim.
— Bem, vou ter de perguntar a ele o que está escrito aí.
— Janey... o sr. Kettering partiu. Voltou para Portsmouth, onde o barco...
Onde ele mora.
— Mas... Pensei que ele ficaria até a volta de tia Kay!
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— Eu também, docinho, mas ele decidiu ir embora antes.


— Por quê?
— E complicado.
— Ele não se despediu de mim.
— Neste bilhete, ele me pede para dizer adeus a você por ele.
— Não é a mesma coisa. — Janey encolheu-se na cama e pôs o dedo na boca.
Era a primeira vez em meses que ela sucumbia ao impulso de chupar o dedo, e
nem parecia perceber o que estava fazendo.
— Meu amor... — Laura abraçou-a e secou suas lágrimas com os dedos. — Sei
que é triste não poder se despedir de alguém de quem se gosta. Quer que eu
leia essa parte do bilhete para você?
— Quero saber por que ele foi embora.
— Tudo bem, vamos ver se consigo explicar. Vou ler o bilhete... ou boa parte
dele. O que for muito pessoal, eu deixarei fora da leitura. E se não entender
alguma coisa, peça explicações. Combinado?
Janey assentiu.
— Muito bem. — Ela respirou fundo. — Querida Laura. Deixá-la dessa maneira
é a coisa mais difícil que já fiz. Sei que vai sentir algo muito parecido com o
que experimentou há seis anos, mas...
— O que aconteceu há seis anos?
— Deixe-me ler até o fim, e então responderei a todas as perguntas.
Vejamos... Acho que vou pular o próximo parágrafo. — O trecho em que ele
dizia que dessa vez havia sido diferente, porque pensara em pedi-la em
casamento antes de encontrar a certidão de nascimento de Janey e deduzir
toda a verdade, sua sensatez em não desejá-lo participando da vida de Janey
num papel tão fundamental. Por mais doloroso que fosse, ele aceitava e até
reconhecia a sabedoria da decisão. — Hmm... As semanas que passei com você
e Janey foram maravilhosas. Tive a sensação de que poderia ser um homem
diferente, alguém capaz de fazer parte de uma família e gostar disso. Mas
foi tudo uma cortina de fumaça.
— Ele não parou de fumar?
— Faz-de-conta, querida. Cortina de fumaça quer dizer engano, ilusão.
— Ah...
— Você está certa sobre mim, Lorelei. Sempre esteve. Alguns cães não podem
ser treinados.
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— De que cachorro ele está falando?


— É uma metáfora. Uma comparação. Ele quer dizer que não pode mudar.
— Isso é bobagem! — Janey olhou para o dedo molhado como se só então
percebesse o que havia feito e enxugou-o no pijama.— É claro que ele pode
mudar.
— Querida, algumas pessoas são menos flexíveis que outras e...
— O sr. Kettering parou de fumar.
— Sim, e isso é muito bom, porque fumar faz mal à saúde. Mas não creio que
ele se refira a esse tipo de mudança.
— Ele mudou, mamãe. Antes era fechado, sério, e nos últimos dias estava
sempre rindo e brincando. G que mais está escrito aí?
— Vejamos... — Dean relatava que gastara apenas cento e vinte mil dólares, e
o restante estava depositado em uma conta conjunta no nome dos dois. Ela
poderia movimentá-la quando quisesse ou precisasse. Tudo o que restasse
quando ele retornasse das Bermudas iria para a poupança de Janey. — Sim,
aqui está. Diga a Kay que sinto tê-la abandonado dessa maneira depois de ter
prometido que cuidaria da Blue Mist, mas não suportaria dizer adeus a você
nem a Janey, sabendo que... — Sabendo que posso nunca mais vê-las. Se
pensasse muito nisso, não teria tido a coragem de partir. Falei sério quando
disse que nunca havia feito nada mais difícil. — Assim, vai ter de despedir-se
de Janey por mim. Diga a ela que admiro sua inteligência e criatividade, e que
ela é prática e sensata como a mãe. Orgulho-me dela... e de você por ter sido
uma mãe tão perfeita e promovido o crescimento de um ser tão encantador. É
bom saber que ela é parecida com você e não... não... — Laura respirou fundo
para conter as lágrimas. — Por favor, diga a Janey que a amo... — Lágrimas
brotavam de seus olhos e ela se rendeu ao pranto.
— Mamãe, não precisa mais chorar. Está triste porque ele foi embora, não é?
Eu também.
Laura pegou um lenço da caixa sobre o criado-mudo e limpou o rosto.
— Mas ele não é como aqueles cachorros que não podem ser treinados.
— O quê?
— Ele é como um dinossauro.
— Um... dinossauro?
— Os que se transformaram em aves para acompanhar a evolução. Talvez eles
nem saibam que se transformaram. Devem pensar que ainda são dinossauros.
— Janey...
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— É uma metáfora.
— Entendi. O sr. Kettering criou asas e voou, mas ainda não se deu conta do
que aconteceu. É isso?
— Exatamente. Por que mais ele escreveria um bilhete tão gentil?
Sim... Por quê?
Por que ele escreveria um bilhete?
— Mamãe? Do que está rindo?
— O quê? Oh, de nada, querida...
— Está sorrindo como se pensasse em algo engraçado...
— Não é engraçado. É... — Laura encheu os pulmões de ar e soltou-o devagar.
— Por favor, diga a Janey que a amo. E se algum dia decidir contar a verdade,
quero que saiba que ficarei muito feliz. Muito feliz. — Janey? Há algo que
quero lhe contar... Algo muito importante.
— Dean Kettering? — O velho marinheiro parecido com Popeye encarou-a. —
Ele partiu.
— Oh, não! — Tivera de adiar a viagem a Portsmouth até que Kay retornasse
da Grécia, porque não pudera simplesmente abandonar a pousada. E não
queria levar Janey com ela. A situação era delicada demais para envolver nela
uma criança de cinco anos.
Se Dean tivesse telefone, poderia ter falado com ele há dias.
— Kettering saiu daqui há quase dois meses. Depois voltou com um corte de
cabelo engraçado e começou a agir de maneira estranha, carregando o Lorelei
como se tivesse de zarpar para não morrer. Ele me deu dinheiro para ajudá-
lo, porque tinha pressa, e todos por aqui sabem que Kettering prefere fazer
tudo sozinho. Comprei sessenta e um galões de diesel, seis de querosene, dois
de...
— Está bem, obrigada. Já entendi. Quando ele partiu?
— Quarta-feira. Vinte e três de maio.
— Há cinco dias. E ele disse que levaria uma semana para chegar ao destino.
— Se o tempo estiver bom. Imagino que a viagem será mais longa por causa
daquelas tempestades que estão caindo sobre o Atlântico.
— Tempestades?
— O boletim de ontem mencionava ondas gigantescas. Um barco está
desaparecido. Disse a Kettering que ainda era cedo para içar vela, mas ele
não quis me ouvir. Se sabe rezar, é melhor pedir por seu amigo.
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Laura pretendia fazer muito mais do que isso.

CAPÍTULO XIV

— Os que estão sentados à direita da aeronave logo terão uma bela vista das
Bermudas — o piloto anunciou entusiasmado.
Laura respirava fundo e mantinha os olhos fixos no encosto da poltrona da
frente.
— Fique calma, mãe. A aeromoça disse que vamos aterrissar logo.
Aterrisagens e decolagens. É quando acontecem os maiores desastres.
— Veja! — Janey apontou para a janela. — Lá está!
— Não quero olhar.
— Por favor, mamãe! É tão lindo!
Engolindo o medo, Laura virou o rosto para a janela e viu o cenário mais lindo
que um ser humano podia imaginar. Como um colar de esmeraldas, o mar das
Bermudas se estendia sob a aeronave fascinante e imponente.
Nove dias se passaram desde que Dean zarpara de Portsmouth. Presumindo
que ele houvesse vencido as tempestades, não seria difícil encontrá-lo. Os
barcos que chegavam ao porto de Saint George tinham de obter uma
autorização para permanecerem ancorados, e Dean morava em seu barco.
Lorelei devia estar ancorado no lado norte da ilha, porção reservada para as
embarcações particulares estrangeiras. Como reservara acomodações para
ela e a filha naquele mesmo local, logo poderia encontrar todas as respostas
para os seus problemas.
No táxi dirigido por um motorista simpático e risonho, Janey começou a
tomar conhecimento das maravilhas locais.
— Está ouvindo esse barulho, mamãe? O moço disse que são sapos! Podemos
vê-los?
— Agora não, docinho. Não viemos até aqui para ver sapos. — Eu sei. Viemos
ver meu pai!
Uma hora mais tarde, Laura já sabia que o Lorelei não estava na área
reservada aos barcos particulares de estrangeiros. Também não encontraram
a embarcação na alfândega e, apreensiva, Laura sugeriu que fossem almoçar,
tentando disfarçar o medo causado pela possibilidade de Dean não ter
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superado às tempestades.
Tomaram uma sopa de frutos do mar em um restaurante do porto e, depois da
refeição, retornaram à busca. Laura percebeu que seu nervosismo começava a
afetar Janey. Precisavam de um pouco de distração, ou a tensão alcançaria
níveis insuportáveis.
De volta à praça central da cidade de Saint George, passearam e conheceram
locais históricos. Quando se preparavam para voltarem ao hotel, já no final da
tarde, a chuva começou a cair forte e as reteve no centro histórico. Laura
buscou abrigo em um edifício muito antigo protegido por um toldo, e ainda
estava parada segurando a mão de Janey quando ouviu uma voz conhecida em
meio ao grupo de turistas reunidos no espaço apertado.
— Laura? Dean!
Ela se virou e o viu.
— Oh, meu Deus! Laura... — Ele a tomou nos braços e beijou-a. Depois de
alguns instantes, Laura Sentiu a mão puxando suas roupas molhadas.
— Mamãe, todos estão olhando!
A multidão ria e aplaudia. Dean interrompeu o beijo e olhou em volta como se
despertasse de um transe.
— Laura... — murmurou aturdido. — Não acredito que esteja mesmo aqui. E
Janey...
— Você beijou minha mãe! — A menina riu.
— Sim, e vou beijá-la outras vezes.
A tempestade diminuía de intensidade, e pouco depois os turistas voltavam à
praça onde o sol brilhava novamente.
Dean, Laura e Janey também deixaram o abrigo.
— Dean, o que aconteceu? Está ferido! — Havia um corte em sua testa e um
hematoma em seu queixo.
— Digamos que passei por maus momentos no mar. Cheguei há pouco mais de
uma hora, e o Lorelei vai precisar de reparos. Mas podia ter sido pior.
— Ouvi as notícias sobre as tempestades. Fiquei aflita quando chegamos e
não vi o barco.
— É verdade — Janey confirmou. — Ela tentou fingir que estava calma, mas
não me convenceu.
— Lamento que tenha se preocupado por mim. Afinal... o que faz aqui?
Antes que Laura pudesse responder, Janey disparou:
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— Viemos perguntar se quer casar conosco!


— Sério? Veio mesmo?...
— Amo você, Dean. Sempre o amei. Não disse nada antes porque... porque não
confiava em você.
— Não fiz nada para merecer sua confiança.
— Oh, sim, você fez. Eu só não estava prestando atenção.
— Também amo você, Laura. E estou feliz por estarem aqui comigo.
— Mamãe disse que não preciso mais chamá-lo de sr. Kettering. Ela disse que
posso chamá-lo de papai, porque você é mesmo meu pai. Isto é, se não se
importar...
Dean olhou para Laura antes de ajoelhar-se diante da menina com os olhos
cheios de lágrimas.
— Meu amor... — Ele a abraçou e fechou os olhos. — É claro que não me
importo. Não imagina como vai me fazer feliz com isso. — Levando a filha nos
braços, ele se levantou para beijar os lábios de Laura. — Obrigado.
— Vejam só aquilo! — Janey exclamou, apontando para um arco-íris. — É
difícil de acreditar. Agora mesmo estava escuro e chovendo, e de repente...
— De repente tudo ficou perfeito — Dean concluiu sorrindo. —
Absolutamente perfeito.

FIM

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