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BASES INSTITUCIONAIS DO PRESIDENCIALISMO DE COALIZAO FERNANDO LIMONGI E ARGELINA FIGUEIREDO O longo processo de redemocratizagdo vivido pelo Brasil foi acompanhado de intenso debate institucional. Para muitos analistas, a con- solidagao da democracia em gestagao pediria a rejeigdo da estrutura insti- tucional que presidira a malsucedida experiéncia democratica anterior. No decorrer deste debate, a forma presidencialista de governo ¢ as leis eleitorais se constituiram no alvo privilegiado das propostas de reforma institucional. O presidencialismo deveria ser preterido em fungdo de sua tendéncia a gerar conflitos institucionais insoltiveis, enquanto a legislago partidéria deveria ser alterada com vistas & obtengdo de um sistema par- tidério composto por um nimero menor de partidos, dotados de um mfni- mo de disciplina. De acordo com este diagnéstico, a férmula institucional adotada pelo pais levaria ao pior dos mundos: a explosiva combinagao entre presidencialismo e um sistema pluripartidério baixamente institu- cionalizado. A sorte da democracia brasileira, em uma palavra, dependeria do exercfcio da engenharia institucional. A Constituigdo de 1988 nao adotou qualquer das reformas defendidas pelos adeptos da engenharia institucional. O presidencialismo * Para a realizagtio deste trabalho contamos com 0 apoio da Fapesp 20 projeto temético Instituigées politicas, padres de interago Executivo-Legislativo ¢ capacidade governativa” e com bolsas de pesquisa concedidas pelo CNPa. Parte deste trabalho foi desenvolvido no mbito do projeto Reconfiguragao do Mundo Publico Brasileiro: Sistema Politico ¢ Reforma do Estado, apoiado pela CAPES, CNPa, FINEP ¢ Mare. Agradecemos aos membros do sem- indrio temidtico “Instituigoes politicas © reforma do Estado”, no XXI Encontro Anual da Anpocs, especialmente a Marcus Melo, pelos comentérios a versio preliminar deste texto, Agrademos também os comentarios de Otavio Amorim Neto. 82 LUA NOVA N° 44 — 98 foi mantido e o plebiscito de 1993 jogou a pa de cal sobre a “opedo parla- mentarista”. Da mesma forma, a legislaco eleitoral nao sofreu qualquer alteragdo significativa. O principio proporcional ¢ a lista aberta continuam a comandar 0 processo de transformaciio de votos em cadeiras legislativas. Por estas razGes, os analistas insistem em afirmar que a base institucional que determina a légica do funcionamento do sistema politico brasileiro nao foi alterada e que, portanto, continua a ser a mesma do sistema criado em 1946. Sendo assim, dever-se-ia esperar um sistema com fortes tendéncias A inoperdncia, quando nao & paralisia; um sistema politico em que um pre- sidente impotente e fraco se contraporia a um Legislativo povoado por uma mirfade de partidos carentes de disciplina. No entanto, o quadro institucional que emergiu apés a promul- gagiio da Constituigao de 1988 esta longe de reproduzir aquele experimen- tado pelo pais no passado. A Carta de 1988 modificou as bases institu- cionais do sistema politico nacional, alterando radicalmente o seu fun- cionamento. Dois pontos relativos ao diagndstico resumido acima foram alterados sem que a maioria dos analistas se desse conta destas alteracées. Em primeiro lugar, em relagdo & Constituigo de 1946, os poderes legisla- tivos do presidente da Republica foram imensamente ampliados. Na reali- dade, como j4 observamos em outra oportunidade (Figueiredo e Limongi 1995a), neste ponto, a Constituigdo de 1988 manteve as inovagées consti- tucionais introduzidas pelas constituigdes escritas pelos militares com vis- tas a garantir a preponderdncia legislativa do Executivo e maior presteza a consideragao de suas propostas legislativas. Da mesma forma, os recursos legislativos & disposi¢ao dos lideres partidérios para comandar suas ban- cadas foram ampliados pelos regimentos internos das casas legislativas. A despeito de todas as mazelas que a legislaco eleitoral possa acarretar para 0s partidos politicos brasileiros, 0 fato € que a unidade de referéncia a estruturar os trabalhos legislativos sao os partidos ¢ nao os parlamentares. O sistema politico brasileiro opera, hoje, sob bases radicalmente diversas daquelas sobre as quais operou o regime de 1946. Resultados apresentados em trabalhos anteriores (Figueiredo e Limongi 1995, 1996, e 1997; Limongi e Figueiredo 1995 e 1996) questionam as conclusdes e inferéncias encontradas na literatura comparada e nacional acerca do fun- cionamento do sistema politico brasileiro. Nao encontramos indisciplina partidéria nem tampouco um Congresso (CN) que agisse como um veto player institucional. Os dados mostra, isto sim, forte e marcante prepon- derancia do Executivo sobre um Congresso que se dispde a cooperar e vota de maneira disciplinada. BASES INSTITUCIONAIS DO PRESIDENCIALISMO DE COALIZAO 83 A luz do que sabemos sobre os partidos politicos e as bases sobre as quais é possfvel construir a disciplina partidaria — uma fungao direta da capacidade do partido de exercer influéncia positiva sobre as chances eleitorais de seus membros —, encontramo-nos diante de um fato que pede explicagao. A teoria existente nos diz que ndo deveria haver dis- ciplina partidéria no Congreso brasileiro. A previsao foi falsificada pelos fatos. Em média, 89,4% do plendrio vota de acordo com a orientagao de seu lider, taxa suficiente para predizer com acerto 93,7% das votagdes nominais (Limongi e Figueiredo 1995; Figueiredo e Limongi, 1996a, 19974). Como explicar 0 padrao observado? Ademais, a separagao dos poderes caracterfstica dos governos presidencialistas, segundo a teoria dominante, levaria ao comportamento irrespons4vel dos parlamentares, uma vez que a duragio de seus mandatos nao € influenciada pelos infortinios politicos do presidente. Somente os membros do partido presidencial teriam algum incentivo para cooperar. Para os demais, a estratégia dominante, mais rendosa do ponto de vista politico, seria a recusa sistematica & cooperagdo. Da mesma forma, presidentes teriam poucos incentivos para buscar apoio do Congresso, em face da origem prépria e popular de seu mandato. Seguindo esta linha de raciocinio, chega-se & conclusao de que governos presidencialistas multipartidérios néo podem contar com 0 apoio politico dos congressistas e tendem & paralisia. No perfodo pés-Constituinte, porém, a taxa de aprovagdo das matérias introduzidas pelo Executivo foi elevada e, ademais, contou com apoio politico estruturado em linhas partidérias (Figueiredo e Limongi 1997c). Uma vez mais, os dados que apresentamos questionam as inferén- cias baseadas nos argumentos usualmente invocados pelos especialistas. Quer nas explicages centradas na legislagao eleitoral, quer naquelas derivadas das caracteristicas préprias A forma de governo presiden- cialista, inferéncias sao feitas a partir de uma estrutura de incentivos deter- minada exogenamente. As estratégias dos parlamentares e presidentes sio derivadas e totalmente definidas pelo que se passa no campo eleitoral. As andlises encontradas na literatura comparada ¢ aquelas sobre o sistema politi- co nacional param, por assim dizer, as portas da primeira sesso legislativa. Instituigdes contam. Porém, contraditoriamente, contam apenas as que esto situadas fora do contexto que se pretende explicar. Ainda que inspiradas pelo movimento neo-institucionalista, tais explicagdes se esque- cem dos ensinamentos que esto na origem deste movimento: a impos bilidade de inferir resultados de decisdes coletivas a partir do conhecimen- to das preferéncias individuais. A literatura sobre o funcionamento do sis- 84 LUA NOVA N’ 44 — 98, tema politico brasileiro nacional est fundada, justamente, sobre esta fald- cia pr6pria ao raciocfnio pluralista. As instituigdes que regulam o processo decisério no Legislative sio ignoradas. Os poderes legislativos do presidente nao sio considerados e, da mesma forma, a estruturagao dos trabalhos legislativos € deixada de lado. Para a literatura corrente, as relacdes Executivo-Legislativo depen- derdo sempre e exclusivamente do sistema partiddrio e das regras que re- gulam a competigao eleitoral, ¢ partidos desempenhardo o mesmo papel no interior do Legislativo, independentemente dos direitos legislativos asse- gurados regimentalmente aos lideres partidérios. Somente quando todas as demais instituigdes politicas, que nao as relativas & legislago eleitoral e & forma de governo, so anuladas se pode entender as conclusdes a que chega Mainwaring (1997, p.109): “Entre 1985 e 1994, os presidentes brasileiros tiveram dificuldade para realizar a estabilizagdo e a reforma do Estado, em parte em devido & com- binagdo de um sistema partidério altamente fragmentado, partidos indisci- plinados e federalismo. Essa combinagio tornou dificil para os presidentes obter apoio legislativo para a estabilizagdo econdmica e para a reforma do Estado. Os presidentes enfrentaram problemas para superar a oposicaio no Congresso ¢ para implementar as reformas mais importantes quando sua popularidade ja havia se dissipado. Eis porque a auséncia de base majoritéria confidvel no Congresso apresentava problemas para a eficdcia governamental. E essa é a razdo pela qual Sarney, Color e Franco encon- traram muita dificuldade para implementar suas agendas, a despeito das amplas prerrogativas constitucionais de que estavam investidos. No perfo- do 1985-94, a consisténcia da politica piiblica foi muitas vezes prejudica- da em decorréncia dos esforgos presidenciais para obter apoio iio Congresso e entre os governadores.” Pode ser verdade que a legislagio eleitoral brasileira contenha fortes incentivos para que os politicos cultivem o voto pessoal em detrimen- to do voto partidério. Nestes termos, os parlamentares brasileiros, no que tange ao tipo de conexo eleitoral a ser perseguido, estariam muito préximos dos parlamentares norte-americanos (Carey e Shugart 199Sb). No entanto, a existéncia dos incentivos derivados da arena eleitoral nao garantem que estes venham a se tornar efetivos. Na literatura norte-americana sobre 0 tema, 0 argumento a respeito da prevaléncia do voto pessoal como estratégia eleitoral requer como complemento um padrao peculiar de organizagao dos trabalhos legislativos. Como se sabe, 0 legislative norte-americano é altamente descentralizado, uma vez que seus trabalhos so estruturados a partir das comissdes, no interior das quais os partidos tém pequeno poder. BASES INSTITUCIONAIS DO PRESIDENCIALISMO DE COALIZAO 85 O padro organizacional do Legislativo brasileiro € bastante diferente do norte-americano. Os trabalhos legislativos no Brasil sao altamente centralizados e se encontram ancorados na agao dos partidos. Ademais, enquanto o presidente norte-americano possui Simitados poderes legislativos, o brasileiro é um dos mais poderosos do mundo (Shugart e Carey 1992). A ligdo a ser extraida desta breve comparagdo entre Brasil e Estados Unidos diz respeito, sobretudo, ao foco da andlise. Varidveis organizacionais préprias & extruturagdo dos trabalhos legislativos podem e devem ser tomadas como varidveis independentes. Da mesma forma, nao € possivel desconsiderar os poderes legislativos do presidente. Na medida em que estas varidveis sao deixadas de lado, assume-se, implici tamente, que sejam irrelevantes, Inferéncias sobre os efeitos de governos baseados na separagdo de poderes tenderam a deixar na sombra os proprios poderes em questao. O presente artigo tem por objetivo integrar as andlises que desenvolvemos separadamente em trabalhos anteriores, isto é, pre- tendemos demonstrar a interdependéncia entre a preponderdncia legislati- va do Executivo, 0 padrao centralizado de trabalhos legislativos ¢ a disci- plina partidéria. O Executivo domina 0 processo legislative porque tem poder de agenda e esta agenda é processada e votada por um Poder Legislativo organizado de forma altamente centralizada em torno de regras que distribuem direitos parlamentares de acordo com princfpios par- tiddrios. No interior deste quadro institucional, 0 presidente conta com os meios para induzir os parlamentares & cooperagio. Da mesma forma, par- lamentares ndo encontram 0 arcabouco institucional proprio para perseguir interesses particularistas. Ao contrério, a melhor estratégia para a obtengdo de recursos visando retornos eleitorais € votar disciplinadamente. artigo pretende oferecer uma discussio te6rica sobre as bases institucionais dos poderes de agenda presidencial ¢ partiddrio. Conforme notamos acima, nosso objetivo é oferecer uma explicagdo para os padrées empiricos observados e por nés apresentados em trabalhos anteriores, Procuraremos mostrar como 0 controle sobre a agenda permite a estrutu- ragio de maiorias partidérias a partir de preferéncias dadas, minimizando as dificuldades caracterfsticas A agdo coletiva. Mostramos ainda que o Executivo, por controlar 0 acesso & patronagem, dispde de recursos para impor disciplina aos membros da coalizdo que o apéia. Nestes termos, 20 dispor de meios para ameagar e impor sangGes, 0 Executivo & capaz de obter apoio partidério consistente. 86 LUA NOVA N° 44 —98 eee A independéncia da origem e da sobrevivéncia do Executivo e do Legislativo € uma das caracterfsticas que define o presidencialismo. Shugart e Carey notam que o fato de o chefe do Executivo ser dotado de poderes legislativos é outra caracterfstica definidora desta forma de gover- no. Para eles, quanto a este aspecto, hé grande variaggio no interior de go- vernos presidencialistas. As relac&es entre Executivo e Legislativo sao afetadas pela exten- sao dos poderes legislativos controlados pela Presidéncia. Shugart e Carey argumentam que os poderes legislativos presidenciais incidem sobre a dis- posigao presidencial para buscar ou nao a cooperagao do Legislativo para a aprovaciio de seus projetos. Isto é, como afetando, tdo-somente, a estrutura de incentivos presidenciais. Presidentes com pequenos poderes legislativos so forcados & negociagdo, pois sabem que sem concessdes nio terdo sua agenda aprovada. Presidentes situados no outro extremo do espectro procurario go- yernar contornando as resisténcias dos congressistas ¢ buscando forgar o Legislativo a ceder. Por isto mesmo, neste caso o padrao de relagdes que se estabelece entre os dois poderes € mais conflituoso do que no primeiro. A nosso ver, os efeitos dos poderes legislativos presidenciais sio de outra natureza. Eles determinam o poder de agenda do chefe do Executivo, entendendo-se agenda no duplo sentido do termo: como a capacidade de determinar quais propostas serio objeto de consideragao do Congresso e quando o serdio. Um maior poder de agenda implica, portan- to, a capacidade do Executivo de influir diretamente nos trabalhos legisla- tivos ¢, desta forma, minorar os efeitos da separago dos poderes, ao tempo que pode induzir parlamentares & cooperagio. Reconhecido este fato, o tratamento do presidencialismo e do parlamentarismo como duas formas radicalmente distintas de governo, regidas por Idgicas dispares ¢ irreconcilidveis, pode ser matizado. A lite- ralura tem frisado as diferencas entre os dois sistemas, deixando de perce- ber aproximagGes e similaridades. Presidentes dotados de amplos poderes legislativos no so, como quer a literatura comparada, antipodas dos primeiros-ministros. Na literatura internacional, reconhece-se que primeiros-mi- nistros contam com amplos poderes de agenda (ver, por exemplo, os arti- gos reunidos em Laver e Shepsle 1994) e que estes determinam a prepon- derancia do Executivo sobre a produgio legislativa assim como a estrutu- rago das bases de apoio politico-partiddrio que garantem a aprovagio desta mesma agenda (Cox 1987). Tsebellis (1997: 98), por exemplo, afir- ‘ma que “em geral, seja por dispositivos constitucionais, seja pelo processo BASES INSTITUCIONAIS DO PRESIDENCIALISMO DE COALIZAO 87 de barganha no interior da coligagdo, 0 governo recebe poderes extra- ordindrios de definigdo de agendas. Um exemplo do primeiro caso é 0 extraordindrio arsenal legal de que dispde 0 governo francés (principal- mente 0 artigo 49.3 da Constituigdo), que Ihe permite evitar a introdugdo de emendas e até mesmo votagées finais no plendrio (...). O resultado de todos esses procedimentos de definigdio de agenda é que em mais de 50% de todos os paises os governos encaminham mais de 90% dos projetos de lei. Além disso, a probabilidade de que esses projetos sejam aprovados é muito alta: mais de 60% passam com uma probabilidade superior a 0,9 mais de 85% so aprovados com uma probabilidade maior de que 0,8”. ‘Tsebellis (1997: 113) afirma que, neste aspecto, reside uma dife- renga fundamental e insuperdvel entre as duas formas de governo: “Nos sistemas parlamentaristas, o Poder Executivo (0 governo) controla a agen- da e o Poder Legislativo aceita ou rejeita as propostas, enquanto nos sis- temas presidencialistas o Legislativo (0 Parlamento) formula as propostas ¢ 0 Executivo (0 presidente) as sanciona ou veta”. Contudo, se tal caracterizagao das relagGes Executivo-Legislativo descreve acuradamente o que se passa nos Estados Unidos, nao se aplica, em absoluto, ao caso brasileiro e A maioria dos regimes presidenciais, nos quais, em geral, 60 presidente quem formula as politicas. Os dados relativos a pro- duo legal no Brasil pés-Constituinte nao diferem daqueles apresentados por Tsebellis. Das leis aprovadas no perfodo, 85,2% foram propostas pelo Executivo. A probabilidade de uma proposta do Executivo ser rejeitada em plenario é de 0.026 (Figueiredo e Limongi 1997c). Presidentes também podem controlar a agenda. Segue que a diferenga frisada por Tsebellis no decorre da forma de governo, mas de outros aspectos institucionais. Na verdade, sdo raras as Constituigdes que vedam ao presidente o direito de iniciar legislagiio. Somente os presidentes norte-americano ¢ venezuelano, entre os regimes presidencialistas puros, so impedidos de propor legislagdo. Mesmo nestes casos, isto nao impede que presidentes “formulem propostas”. Em muitas Constituigdes presidencialistas ocorre, por paradoxal que possa parecer, o inverso, isto 6, veda-se ao préprio Legislativo a pos- sibilidade de iniciar legislagdo em determinadas areas. O que implica, ‘obviamente, o seu contrério: confere-se ao presidente prerrogativa exclusi- va de propor alteracdes nestas mesmas éreas. A Constituigdo brasileira de 1988, por exemplo, confere iniciativa exclusiva ao presidente em matérias ‘orgamentarias ¢ veda emendas parlamentares que impliquem a ampliagdo dos gastos previstos. O presidente brasileiro tem ainda a exclusividade de iniciativa em matérias tributérias e relativas 4 organizagdo administrativa.

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