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(Co)movendo a Psicologia Arquetípica

Aline Fiamenghi
A Psicologia Arquetípica foi fundada na década de 1960, em Zurique, pelos analistas junguianos James
Hillman, Rafael Lopez-Pedraza, entre outros (Berry, Giegerich, Stein etc.). O movimento surgiu dentro da
escola junguiana, porém, com algumas diferenças às conceituações metafísicas e hermenêuticas de seu
fundador Carl Gustav Jung e de seus seguidores.
Jung, por muitas vezes escrevia ao longo de sua obra, que usava conceitos metafísicos e filosóficos
somente a serviço da compreensão da psique. Ele declarava-se um empirista e por vezes, um
fenomenólogo, com preocupação nas manifestações da psique. Apesar de sua psicologia ter sido fundada
em conceitos como Si-mesmo, totalidade, teoria dos opostos, compensação e individuação, no sentido de
uma integração psíquica e uma unidade, foi ele um dos primeiros autores a se filiar à psicologia
dissociacionista de Pierre Janet, que mais tarde, possibilitou o desenvolvimento da teoria dos complexos ,
ilhas psíquicas com altas concentrações emocionais. Dentro dessa concepção a psique tem uma natureza
plural e dissociada.
De acordo com Quintaes (2008), após dirigir o centro de estudos do Instituto C. G. Jung, em Zurique, por
10 anos, Hillman afasta-se intempestivamente da comunidade junguiana, criando uma relação “tensa e
delicada” com ela. Seu trabalho passa a ser visto com reserva, e seu pensamento crítico se distancia da
maioria dos grupos oficiais.
Consideramos que Hillman, ao se afastar da perspectiva junguiana, fica com a pedra fundamental da
psicologia de Jung: a teoria dos complexos. Passa a afirmar e radicalizar, em sua produção, a pluralidade
da psique, seguindo as pistas deixadas por Jung. Dentre as muitas e ricas fases da produção de Hillman,
a que mais nos interessa aqui se dá, principalmente, na década de 1970, e é herdeira direta da teoria dos
complexos.
A fase do pensamento deste autor, na década de 1970 (embora ele recuse veementemente que sua obra
seja pensada em fases), caracteriza-se por um pensamento crítico e “revisionista” da obra de Jung e de
seus conceitos, principalmente o caráter metafísico da noção de arquétipo.
Ao afastar-se da Metafísica, ele radicaliza o trabalho com às imagens (Hillman, 1977, 1978, 1979),
fundando a diferença do termo “arquetípico”, usado por sua escola. Isto marca uma importante distinção
entre os dois tipos de pensamento e evidencia a retórica jocosa do autor.
Ao usar o termo “arquetípico”, Hillman subverte o conceito de arquétipo em Jung e propõe um movimento
do substantivo (arquétipo) em direção ao adjetivo (arquetípico).
Hillman não se preocupa com a coisa em si, considerando toda busca de origem uma fantasia metafísica.
Sua preocupação volta-se para o fenômeno e para a experiência. Ele atém-se à manifestação arquetípica,
à imagem arquetípica que passa a ser definida por seu valor. É uma operação que implica função,
depende de um valor, de sua qualidade de afetar. Samuels (1990), resume o arquetípico como “aquilo que
afeta”. Esta é a passagem do substantivo ao adjetivo: a imagem depende de uma perspectiva, de um
olhar, “de como se vê e não do que se vê.”
Segundo Knox (2003), o conceito de arquétipo aparece na obra de Jung sob os seguintes aspectos: como
entidade biológica que provê informações e padrões de comportamentos; como uma ideia platônica
(eidos), carregando representações, significações ou imagens universais, nas quais ancora o conceito de
inconsciente coletivo, como molduras mentais organizadoras, sem conteúdo ou representação. Ou seja,
como forma, mesmo que ainda de maneira muito limitada; e, por fim, como entidade metafísica eterna,
inacessível per se e, por isso, fora do campo da psicologia.
Apesar das reformulações, Jung não abandonou a ideia de uma estrutura, forma, elemento vazio ou
possibilidade dada a priori na maneira de ser de uma representação. Isto é, não abandonou o caráter
kantiano do conceito.
Hillman (1977) estava menos preocupado com essa faceta do arquétipo, atentando especialmente para as
imagens consteladas na psique. Considerando as imagens como manifestações diretas de arquétipos,
elas são o que realmente chega à psique: são fenômenos psíquicos e, ao mesmo tempo, sua matéria-
prima, é com este material que que opera o trabalho analítico.

Seguindo a tradição junguiana: psique é imagem, Hillman, como um fenomenólogo, se afasta de alguns
traços marcantes da teoria precedente e busca a fenomenologia das imagens, única maneira possível, ao
seu ver, de acessar a experiência psicológica.
Para a Psicologia Arquetípica, uma imagem pode ser arquetípica ou não. Trata-se de um fator que não
depende de hierarquia, procedência coletiva ou ligação com um arquétipo, mas depende do valor dado
pelo indivíduo que é atravessado por ela. O arquetípico, então, não é uma categoria ou substantivo. É,
sobretudo, uma operação de valor. Em outras palavras, um movimento que se faz em direção à imagem,
uma atitude de atenção e comprometimento com suas potencialidades metafóricas, ou sua profundidade.
Com o postulado deixado por Jung (1999 [1971]): “ficar com a imagem”, a Psicologia Arquetípica funda-se
com uma ética da imagem, uma proposta de implicação do indivíduo com as imagens que o acometem.
Esta ética significa uma atitude de comprometimento e construção, a partir do que nos advém: as
diferentes vozes, as vontades contrárias, os impulsos estranhos ao ego, ou seja, a partir da multiplicidade
do psiquismo, a seguinte pergunta se impõe: O que isso quer de mim?
A teoria de Jung anunciou uma base poética da mente, exercida na imaginação ativa. É uma psicologia
que não começa na fisiologia, na linguagem ou na estrutura da sociedade, mas sim nos processos da
imaginação. Ao declarar que a psique cria realidade todo dia, e a isso dá-se o nome de fantasia, Jung
(1999 [1971]) cunhou a realidade psíquica sobre as imagens.
Inspirado por Jung, que não considerava a imagem uma representação, Hillman distancia-se muito das
relações “objetais” e de técnicas como a associação livre. Por exemplo, para nos aproximarmos de um
sonho, devemos ficar o mais próximo possível das imagens que se apresentam, para podermos
metaforizá-los, e não interpretá-los ou traduzí-los em um conceito qualquer. Não há nada por trás do
fenômeno: a imagem acontece na superfície do discurso.
Parte do que a Psicologia Arquetípica está tentando fazer é seguir consequentemente Jung ao longo das
linhas que ele abriu. Uma das linhas é a poética: a exploração do “fazer-alma” ou da imagem em palavras.
Este é o objetivo da Psicologia Arquetípica: mover os sentidos literalizantes dos eventos em direção à
experiência metafórica. A análise ou qualquer trabalho que utilize esta abordagem se colocará ao lado da
produção das imagens, da busca de sua retórica, de seu modus operandi, de criar intimidade com suas
repercussões metafóricas.
Hillman contesta que o trabalho com as imagens não apresenta relação com a subjetividade, acreditando
que esta é possessiva. Assim como as imagens não são redutíveis aos aspectos da personalidade do
indivíduo, também não podem ser reduzidas aos objetos da realidade externa: nem imago, nem
representação. A imaginação tem uma realidade autônoma que transcende o indivíduo; as imagens
provêm de uma realidade que ele nomeia de Mundus Imaginalis – mundo imaginal.
O termo Mundus Imaginalis foi usado pela primeira vez por Corbin, em 1972. Este termo é retirado da
tradição mística e deve ser diferenciado de “imaginário”. Imaginário é algo oriundo do sujeito e tem
característica representacional, enquanto a noção de imaginal é dissociável do sujeito, possui realidade
própria, sui generis. Da exterioridade em um certo plano de existência é que consiste seu “corpo de
aparição”. O imaginal é “apresentação”, e não “re-presentação”. O Mundus Imaginalis é o mundo das
ideias-imagens.
Nessas tradições, o significado (conteúdo espiritual) enviado por Deus também é captado pelo homem por
um tipo de imaginação ativa, cujo órgão é o coração. A perda da capacidade imaginal e a atrofia de seu
órgão, o coração, levará ao esvaziamento do mundo exterior e interior e ao esgotamento de toda sua
significação espiritual. (Cromberg, 2003).
Inspirado por tais ideias, Hillman (1981) insiste que o coração é o órgão da imaginação, e seu pensamento
é aquele das imagens. Neste sentido, o autor separa a imaginação – como esfera transubjetiva do
imaginal – do subjetivo, privilegiando a primeira. Ele propõe que, para um diálogo entre estas duas
esferas, o ego precisa ter uma qualidade mais flexível, mais porosa ou menos heroica, para se deixar
afetar e atravessar pelo politeísmo que se apresenta. Descentralizando o papel do ego ao considerá-lo
apenas como mais uma imagem entre tantas, ele propõe uma relativização do discurso monoteísta,
característica do ego a favor da imaginação.
Este é o Hillman do Pensamento do Coração e de outros textos da década de 1980, como Anima Mundi,
que já ensaiava sua volta à Metafísica, explícita em Back to Beyond, Cosmology for Soul e seu cume (e
cúmulo) em Código do Ser, anos mais tarde. Sustentando a proposta de que não há alma sem Metafísica,
o autor afirma que a realidade da psique tem uma necessidade transcendental.

Quando Hillman ressalta que as imagens não têm relação com a subjetividade, mas com uma esfera que
transcende o sujeito, ele quer dizer que elas não são possuídas por um eu. Parece que Hillman, às vezes,
coloca o eu e o sujeito como idênticos, e definitivamente não são. Não precisamos considerar realidades
transcendentais, pois, caso contrário, voltamos à mesma questão que o separou de Jung: a Metafísica. Ao
falarmos de um sujeito do inconsciente, por definição, falamos de algo que é maior que o eu. Talvez aqui
se apresente uma brecha na teoria hillmaniana, que muito raramente usa o termo “inconsciente”.
Entendemos por mundo imaginal um locus psíquico onde a alma aparece. Uma metaxy - espaço
intermediário - uma região possibilitadora da imaginação. A alma é efêmera, ela não está em nenhum
lugar, mas aparece como a luz da lua, emprestada ou refletida.
Na profundidade da subjetividade, não há um “eu”, como bem intui Deleuze (2007), mas sim uma
composição singular, uma idiossincrasia, uma cifra secreta como a oportunidade única de que justamente
tais entidades tenham sido as retidas, queridas, de que realmente a combinação tenha sido tirada, “essa”
e não outra. Assim, o problema da Psicologia torna-se o seguinte: Quais são as entidades subjetivas e
como elas se combinam? “Quem” são, e não de “onde” provêm.
“Quem?” é a pergunta chave na Psicologia Arquetípica. Esta é uma psicologia politeísta porque se refere à
dissociabilidade inerente à psique e à localização da consciência em múltiplas figuras e centros (Hillman,
1976).
Dentro da tradição junguiana iniciada por Pierre Janet, ao considerar o caráter dissociacionista da psique
e, a posteriori, a teoria dos complexos, o politeísmo psicológico proporciona um continente arquetípico
para diferenciar a dissociação, pensando na interconexão entre deuses e deusas, e, assim, “re-significar” a
patologia. Hillman chamará as personalidades periféricas ou “dissociadas” de “little people”: há sempre
alguém em nós cantando em uma direção.
O fenômeno da dissociação sempre parecerá uma doença para o ego, caso não se considere o campo
psíquico como um todo. Fora do imperialismo egoico, as partes ganham individualidade. Está fora de
questão pensar numa psicologia sem ego, mas cabe questionar sua autoridade e hegemonia.
O modelo de ego heroico é questionado por Hillman, no Livro do Puer (1998), como um entre outros
modelos alquímicos. Ele propõe o dragão como daimon da imaginação, e não algo a ser aniquilado.
Parece que o modelo do herói serve a uma psicologia desenvolvimentista, no sentido de oferecer uma boa
metáfora ao ego forte e destemido que, ao matar os aspectos sombrios, integra-os e amplia sua
consciência.
Uma das funções do ego é mediar as experiências. Ele pode ser considerado um cavalo, um veículo, um
barco, um corpo que carrega uma imensidão de personagens imaginais: desde um orixá velho do
candomblé, uma dançarina esvoaçante, um animal louco e até uma mãe enciumada ou um marido zeloso.
Um ego imaginal se conforta com mais de uma história para viver, ou morrer. Um ego heroico está
identificado com um só mito: o da salvação.
Com sua fantasia do “Declínio de Roma”, de desintegração e paganização da sociedade, Hillman (1976)
descreve que, quando o ego enfraquece, a consciência deixa de ser escrava do centro egoico, sendo
liberada de sua identificação. Roma e as províncias, o centro e a periferia apresentam diferentes sistemas
de valores, padrões de fantasias e graus de força. Mas o ego “central” não é mais consciente do que os
estranhos estilos dos outros complexos. A consciência é “re-distribuída” e “re-interpretada” como estilos
diferentes de consciência (Hillman, 1976, p. 44).
A consciência passa a não ser privilégio do ego. Ela é uma qualidade ou um estilo e, apesar de focal, pode
estar em muitos lugares psíquicos, mas não ao mesmo tempo. Nos sintomas ou nas personificações dos
complexos, por exemplo, temos um estilo muito preciso de consciência. Não é por acaso que nossas
atitudes sempre nos levam para o mesmo lugar, para o beco escuro da Consolação cheio de ciganas e
mulheres de rua, enquanto o que queremos mesmo é ir em direção ao Paraíso.
Jung diria que os deuses tornaram-se doenças. Poderíamos pensar, então, que, no sintoma, eles impõe
um modo de consciência que vai sugerir uma característica específica de relação. O estilo de consciência
está diretamente ligado a qual fantasia inconsciente o indivíduo está inserido. Por isso, trata-se mais de ir
em direção à consciência da imagem do que tornar a imagem consciente.
Hillman propõe que os mitos são capazes de ofertar possibilidades metafóricas, capacidades de
consciências e também de fantasias. Estas não têm a ver com os mitos em si, ou com seus conteúdos,
mas elas agem com um senso mítico, um senso metafórico. O psiquismo opera por dispositivos míticos.
A bricolage, a ciência do concreto, o pensamento mágico, o pensar por oposições, os deslizamentos
semânticos são característicos de operações psíquicas.
Considerar os deuses como qualidades consiste em um sentido arquetípico. Quando o autor refere-se a
estilos de consciência, ele considera que determinadas fantasias são regidas por específicos deuses. Por
exemplo, o modo como Héracles entra no mundo dos mortos, com um tacape, é diferente do modo como
Orfeu penetra o Hades, com uma lira. Ou ainda, o estilo de Dionísio participar das batalhas - fugindo para
o mar - é diferente da atitude de Hércules, e assim por diante.
Os variados estilos seriam elementos metafóricos ou, como Hillman prefere chamar, seriam diferentes
modalidades de consciência. São elementos com os quais só um ego imaginal pode se relacionar e
suportar, por sua pluralidade e versatilidade.
Porém, ao sugerir estruturas míticas para formas variadas de consciências, será que Hillman não cai
exatamente no que tanto critica nos junguianos? Considerar que a consciência pode assumir muitas
formas é diferente de falar quais as formas que ela pode assumir. Precisamos ter cuidado para não fazer
um uso tipológico da mitologia, que nos afasta do que ele mesmo chamou de um senso mítico, ou seja,
considerar que a vida e os eventos são apresentados em uma narrativa que se aproxima da narrativa
mítica, que é plural, simultânea, tem texto, contexto e tecedura, além de ser penetrada pela imaginação.

Referências:
DELEUZE G. Lógica do Sentido. São Paulo: Perspectiva, 2007.
HILLMAN, J. An inquiry into image. Spring In: Spring Journal: Zurich, 1977, 1978, 1979.
-----------------. Suicídio e Alma. Petrópolis: Vozes, 1998
JUNG, C.G.(CW6) Tipos Psicológicos. Petrópolis: Vozes, 1991 [1971].
--------------. (CW16/2) Ab-reação, Análise dos Sonhos, Transferência. Petrópolis: Vozes, 1999
[1971].
PIERI, P. Dicionário Junguiano. São Paulo. Paulus, 2002.
QUINTAES, M. in MARLAN, S. Archetypal Psychologies: Reflections in honor of James Hillman.
Lousiana, Spring Journal Books, 2008.

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