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ADAUTO NOVAES
"Certas coisas são produzidas pela necessidade, outras pelo acaso, outras,
enfim, por nós mesmos." Epicuro
Mas, ao trabalhar a idéia de opostos, nossa atenção está voltada também para
outro problema fundamental: o oposto (a imaginação, o acaso, as paixões...)
não deve ser entendido apenas como o outro radicalmente incomunicável com
a razão -não se pode pensar em subordinação absoluta de um dos termos. Caso
contrário, cairíamos em um determinismo insuportável, e o próprio ciclo de
conferências não teria sentido. Em toda determinação racional existe uma
margem de indeterminação, um dado ainda a determinar, certamente provocado
pelo oposto da razão, criando o movimento ou passagem de uma razão latente
à razão manifesta. São experiências racionais e imaginárias desfeitas e refeitas
no curso do tempo.
Ora, a razão não é a autonomia plena que existe fora do seu contrário, mas uma
autonomia que se constitui no triunfo sobre cada um dos contrários, não fugindo
deles, mas lutando com eles e submetendo-os. Este é o movimento que permite
a criação permanente e concreta da razão, uma vez que ela não cessa de ser
interrogada pela presença do termo suprimido. Estamos, pois, diante não de um
conceito racional instituído, mas de um pensamento em ação, uma razão
"instituinte", que existe não apesar dos contrários, mas graças também à ação
destes contrários. Só a religião e a racionalidade técnica -dois momentos de uma
lógica semelhante- podem apresentar-se como razão absoluta, um Deus que não
se discute, harmonia plena.
A razão, no sentido forte do termo, traz nela mesma uma lógica atormentada,
que, a cada momento, presta contas do poder que exerce. Assim, toda razão é
enigma se entendermos razão como o encontro com os opostos em um
movimento sem fim. Neste sentido, crise e razão têm um só e mesmo destino:
se formos à origem do vocábulo, vemos que a palavra "crise", derivada do grego
"krinein, que quer dizer julgamento, decisão, capacidade de julgar; o "logos
grego (ou a "ratio latina) também quer dizer julgar, faculdade de pensar, e
pensar, como todos sabem, é pesar, decidir.
Crise e razão já nasceram de mãos dadas. Como nos lembra, por exemplo,
Cornelius Castoriadis (no texto "Imaginário Político Grego e Moderno), a
democracia traz em si, desde a origem, a idéia do trágico; é um regime sujeito
à "hybris, à sua autolimitação: "A tragédia é também, e principalmente, a
exibição dos efeitos da 'hybris' e, mais do que isto, a demonstração de que
razões contrárias podem coexistir (é uma das 'lições' da 'Antígona') e que não é
insistindo na própria razão que se torna possível a solução dos graves problemas
que pode ter a vida coletiva (o que não tem nada a ver com o consenso indolente
da época contemporânea).
"A Crise da Razão vai pôr também em discussão outro problema essencial: a
partir da criação dos opostos resultou a idéia de que a razão é sempre
exterioridades, isto é, ela é sempre aquilo que não somos. No seu livro "A
Solicitude da Razão, Ferdinand Alquié nos mostra que, nesse sentido, para ser
racional, é preciso primeiramente submeter-se e ceder à força externa: "A
ordem dos objetos -escreve Alquié- constitui sempre para o meu desejo uma
ordem à qual é necessário obedecer e, portanto, uma ordem imperativa. Mais
ainda, se o racionalismo é verdadeiro, eu mesmo devo ser explicável: a razão
não é, portanto, o que em mim trago, mas antes o que me conduz e pode
explicar-me.
O que Alquié propôs, e o que outros filósofos contemporâneos desenvolvem, é
a criação de um racionalismo metafísico. Ou melhor, aquilo que Merleau-Ponty
chamou de "metafísico no homem, entendendo por metafísica não uma
construção de conceitos "por meio das quais tentaríamos tornar menos sensíveis
nossos paradoxos; é a experiência que fazemos dela em todas as situações da
história pessoal e coletiva -e das ações que, assumindo-as, transformam-nas em
razão. Talvez este seja um dos caminhos contra irracionalismos e superstições
que afirmam o não-valor do mundo e a racionalidade técnica que se impõe aos
homens e às coisas.