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ANDANÇAS E REFLEXÕES TRANSFRONTEIRIÇAS:
ROTEIRO MIGUEL DE UNAMUNO –
EDUARDO LOURENÇO
Coordenação de
Rui Jacinto
Valentín Cabero
IBEROGRAFIAS
34
Colecção Iberografias
Volume 34
Âncora Editora
Avenida Infante Santo, 52 – 3.º Esq.
1350-179 Lisboa
ancora.editora@ancora-editora.pt
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O Centro de Estudos Ibéricos respeita os originais dos textos, não se responsabilizando pelos conteúdos, forma e
opiniões neles expressas.
A opção ou não pelas regras do novo acordo ortográfico é da responsabilidade dos Coordenadores.
Apoios:
POR TERRITÓRIOS DE MIGUEL DE UNAMUNO E DE EDUARDO LOURENÇO 7
Coimbra 73
Coimbra – Miguel de Unamuno 74
Tempos de Coimbra – Eduardo Lourenço 79
Guarda 93
Guarda – Miguel de Unamuno 94
Oito séculos de altiva solidão – Eduardo Lourenço 99
Salamanca 149
Salamanca – Miguel de Unamuno 150
Atardecer de estio en Salamanca 155
Oda a Salamanca 157
O Novo destino da Península – Eduardo Lourenço 162
POR TERRITÓRIOS DE
MIGUEL DE UNAMUNO E DE
EDUARDO LOURENÇO
Andanças e reflexões transfronteiriças
Valentín Cabero
Rui Jacinto
Sabemos bem que as relações entre Espanha e Portugal atravessam um bom momento. Em
maio de 2017, Portugal foi o país convidado da Feira do Livro de Madrid, na qual o pensador
e intelectual Eduardo Lourenço proferiu a conferência inaugural, recém cumpridos os 94 anos.
Perante o Rei de Espanha e o Presidente da República de Portugal, com uma lucidez única expôs
o significado de livro na cultura ocidental, a perda de fé no laicismo e os seus temores ante o
futuro da Europa. Uns anos antes, por ocasião da atribuição do Prémio Extremadura (2006),
Eduardo Lourenço tinha refletido sobre as relações entre Espanha e Portugal: “O iberismo deve-
ria ser o nosso estado natural, é a nossa realidade histórica de muitos séculos. A Península sempre
foi uma confrontação de diversidades que se levaram bastante bem muitas vezes. As dificuldades
de convivência costumavam vir do exterior. Agora vivemos um iberismo prático, sem conotações
centralistas ou imperialistas. Ninguém quer unificar-nos pela força. É admirável como Espanha
maneija dialogando as tentações de fugas separatistas, que por outro lado são irreais. Os portu-
gueses, à nossa maneira suave, arranjamo-nos para impor de forma natural a nossa autonomia,
relativa como todas, àquele velho centralismo intolerável. A Europa e o mundo têm hoje tal am-
bição de uniformidade, que a tentativa de edificar castelos individuais já não coalha facilmente”1.
Neste contexto, devemos recordar alguns feitos recentes e vinculados ao VIII Centenário
da Universidade de Salamanca como a visita de Estado do Presidente da República de Portugal
a Espanha que culminou no Paraninfo da própria Universidade, um lugar sagrado para os de-
fensores do pensamento ilustrado, a sabedoria, a tolerância e a liberdade. No dia 18 de abril de
10 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço
nunca: morre sempre no mar que foi teatro das suas façanhas e berço e sepultura de suas
glórias“5. Incorporamos o texto desta obra (pp. 107-115), correspondente à Guarda, es-
crito em Salamanca, em dezembro de 1908.
É talvez no seu livro Andanças e visões espanholas6 no que se recolhem com maior refle-
xão crítica seus pensamentos e ideias sobre a complexidade e rica diversidade da Península
3
Ver amplamente em Miguel de Unamuno: “Sobre la europeización (Arbitrariedades)”, La España Moderna,
1906, nº 216, pp. 64-83. Recordemos que esta posição de Unamuno traria uma polémica intelectual com
o outro grande pensador José Ortega y Gasset que verá na Europa a solução de todas as dores de Espanha.
4
As relações de Unamuno com Portugal foram objeto de investigação precoce entre os estudiosos da obra de
Unamuno. Devemos citar Miguel de Ferdinandy: Unamuno y Portugal, Cuadernos de la Cátedra Miguel
de Unamuno, 1951, nº 2, pp.111-131; também John E. Englekirk: En torno a Unamuno y Portugal,
Hispania, vol 42, nº 1 (Mar.,1959), pp.32-39; uma menção mais próxima e atualizada é a do Professor
Ángel Marcos de Dios: Unamuno, paradigma de las relaciones de España con Portugal, en Aula Ibérica
(Ángel Marcos de Dios, Editor), Aquilafuente, 123, Ediciones Universidad de Salamaca, 2007; mais
recentemente, o jornalista zamorano Agustín Remesal recriou as andanças unamunianas no seu livro, uma
novela de viagens, Por Tierras de Portugal, edición del autor, 2013.
5
Miguel de Unamuno: Por Tierras de Portugal y de España, Biblioteca Renacimiento, Madrid, 1911, pp.6 y 7.
6
Miguel de Unamuno: Andanzas y visiones españolas, Renacimiento, Madrid, 1922.
e suas ilhas. O seu olhar sobre a natureza e as paisagens de terras e vilas, de montanhas,
vales e povoações, alcançam uma grande profundidade e suas descrições merecem uma
leitura pausada e serena. Diz-nos Unamuno: ”a genuina paisagem é de pequenos recan-
tos. Ali é onde se colhe a alma do campo”7. Nas viagens, particularmente as que realiza
a lugares solitários e afastados, como os do Sistema Central (Sierra de Gredos, Sierra de
Francia…), Unamuno procurará a partir da visão do topo e dos cumes “o silêncio re-
criador”, “a majestade da montanha”, “a paz perpétua” ou “acalma absoluta”. Desta obra
propomos a leitura das páginas destinadas a Salamanca (pp. 127-133) e a Coimbra (pp.
134-141), escritas na Figueira da Foz, em agosto de 1914. E com um sentido poético e
também metafórico incluímos os belos versos de “Atardecer de estío en Salamanca” (pp.
278-279), que figuram no final do livro supra citado.
Ao falar aqui das paisagens e das viagens8 de Unamuno não nos podemos esquecer das
suas visitas à raia e aos povos agrícolas e ganadeiros do Oeste salmantino, que ficam resu-
midas no seu texto sobre os Arribes del Duero. Como nos explica nestas páginas recolheu
as notas e experiências de uma viagem realizada em 1898 e de outra em 1902; na primeira
entra por Masueco, na segunda por Fermoselle, atravessando a comarca de Zamora de
Sayago. Deste texto deveríamos sublinhar as manifestações relacionadas com os “senti-
mentos da natureza” que na realidade atravessa toda a obra unamuniana, que em algumas
descrições deste artigo alcança uma alta intensidade e profundidade, dividindo e contras-
tando tais sentimentos com uma aproximação inteligente aos saberes e expressões popula-
res dos lugares da raia9. E não podemos esquecer os contatos e o esboço que nos deixa do
seu amigo, o escritor e poeta português, Guerra Junqueiro, autor de “Os Simples”.
O ensaísta e pensador Eduardo Lourenço (de Faria) nasceu em 1923 numa aldeia
adjacente à fronteira, S. Pedro do Rio Seco, concelho de Almeida, filho mais velho de sete
irmãos de Abílio de Faria, oficial do Exército, e de Maria de Jesus Lourenço. Reconhecido
pela sua capacidade de interpretar a nossa realidade, enquadra o ambiente filosófico do
existencialismo a partir dum pensamento crítico, recebeu as mais altas honras em Portugal
e França, embora a riqueza de estudos humanísticos e literários se situem para além de
compartimentos estanques e de classificações académicas.
Frequentou a Escola Primária em S. Pedro do Rio Seco, antes de entrar no Liceu da
Guarda e de terminar os estudos secundários no Colégio Militar em Lisboa. Em 1940
entrou para o Curso de Histórico-Filosóficas, da Faculdade de Letras da Universidade de
Coimbra onde concluiu a sua Licenciatura, em 23 de julho de 1946, com uma Dissertação
intitulada “O Sentido da Dialética no Idealismo Absoluto”. Assumiu, então, as funções de
Professor Assistente na Universidade de Coimbra que desempenhou até 1953.
11
Ver el estudio de Luciano González Egido: Salamanca, la gran metáfora de Unamuno, Ediciones Universidad
de Salamanca, 1983.
A longa itinerância que iniciou acabaria por o levar como Leitor de Língua e Cultura
Portuguesa, entre 1953 e 1958, às Universidades de Hamburgo, Heidelberg e Montpellier.
Em 1954 casou com Annie Salomon. Foi Professor Convidado na Universidade Federal
da Baía (Brasil), em 1958 e 1959, onde ministrou a disciplina de Filosofia. Regressou a
França para ocupar o lugar de Leitor, a cargo do Governo francês, nas Universidades de
Grenoble e de Nice, desempenhando posteriormente as funções de Maître-Assistant, nesta
última Universidade, até à sua jubilação no ano letivo de 1988-1989. Em 1975, ano em que
fixou residência em Vence (Nice), recusa o convite feito por Vítor Alves para ser Ministro da
Cultura. Foi nomeado Adido Cultural junto da Embaixada de Portugal em Roma e, a partir
de 1988, Diretor da Finisterra – Revista de Reflexão e Crítica; desde 2002 é administrador
não executivo da Fundação Calouste Gulbenkian. Em 7 de Abril de 2016, tomou posse como
Conselheiro de Estado por designação do Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa.
Eduardo Lourenço aborda nos seus ensaios temas complexos que nos interpelam e
desassossegam os nossos dias, problemas bem diversificados de indubitável atualidade, en-
trelaçados pela reflexão filosófica, ensaio social e político, análise literária comparada, reve-
lando sempre uma enorme curiosidade intelectual e um grande compromisso cívico. A sua
vastíssima obra inicia-se, em novembro de 1949, com a publicação dum primeiro livro,
Heterodoxia I, em edição de autor, desencadeando uma torrente produtiva incessante,
amplamente reconhecida como atestam os inúmeros e prestigiados prémios que lhe foram
concedidos, onde relevam o Premio Camões (1996) e o Prémio Fernando Pessoa (2011)12.
A persistente participação em inúmeros eventos académicos e outras iniciativas cultu-
rais, cívicas e políticas granjearam a Eduardo Lourenço enorme prestígio e muitas distin-
15
Jorge Gaspar (2017), Saudação a Eduardo Lourenço, Iberografias 13, pp.: 333-336. Intervenção na sessão solene,
em 28 de setembro 2017, que acolheu Eduardo Lourenço como membro da Academia das Ciências de Lisboa.
16
Manuela Cruzeiro e María Manuel Baptista, “Tempos de Eduardo Lourenço – Fotobiografia”, Campo das
Letras, Coimbra Capital Nacional da Cultura e Centro de Estudios Ibéricos, 2003.
17
O Centro de Estudos Ibéricos, na sua Coleção Iberografias, assegurou várias edição sobre Eduardo Lourenço:
(1) O outro lado da lua – Inéditos de Eduardo Lourenço, 2004 (Seleção de textos e entrevistas de Maria Manuela
Batista; Coleção Iberografias, nº 3); (2) Existencia e Filosofia – O ensaísmo de Eduardo Lourenço, 2008 (João
Tiago Lima; Coleção Iberografias, nº 12); (3) Vida Partilhada – Eduardo Lourenço, o CEI e a Cooperação
Cultural, 2013 (Edição comemorativa do 90º aniversario do autor. Compilação de textos de Eduardo Lourenço
entretanto publicados; Coleção Iberografias, nº 21); (4) Falar Sempre de Outra Coisa – Ensaios sobre Eduardo
Lourenço, 2013 (João Tiago Pedroso de Lima; Coleção Iberografias, nº 22); (5) Metafísica da Revolução –
Poética e Política no ensaísmo de Eduardo Lourenço, 2013 (Teresa Filipe; Coleção Iberografias, nº 23).
Por ocasião da inauguração da Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço (BMEL), em 27 de Novembro de 2008,
o CEI editou duas publicações com outro registo: (1) Leituras de Eduardo Lourenço. Um labirinto de saudades,
um legado com futuro, 2008. Contem uma extensa bibliográfia do autor, publicada até à data, bem como a lista,
com perto de 3.000 títulos, doados ao Município da Guarda e que fazem parte dos fundos da BMEL; (2) Um
(e)terno olhar. Eduardo Lourenço, Vergílio Ferreira e a Guarda, 2008, catálogo de uma exposição homónima.
europeus à modernidade contemporânea e atual (Dostoiesvski, Kafka, Camus…). Não faltam
nesse universo intelectual os seus magistrais estudos e aproximações ao genial Fernando Pessoa,
cuja difusão e conhecimento nos sublinha o próprio Eduardo Lourenço na tradução para
espanhol de Ángel Crespo, reconhecendo e recordando neste preâmbulo a sua honestidade
intelectual e iberismo. Assinalemos, pois, entre estas obras: “Heterodoxia” (1949).
Para um conhecimento mais amplo deve consultar-se a sua obra completa, que começou
a ser publicada pela Fundação Calouste Gulbenkian18, instituição cultural de referência em
Portugal a que Eduardo Lourenço se encontra estreitamente vinculado. Pelo que acabamos
de ver a obra de Eduardo Lourenço “tem muitas entradas sendo uma possível a do L de local:
um itinerário continuadamente feito e acrescentado, do local para o global – um global feito
de múltiplas visitações locais. Um global sobre o qual Eduardo Lourenço tem muitas dú-
vidas, mormente no plano cultural, pois “uma World culture não é a cultura de ninguém”,
apenas permitiu que se chegasse à Disneylândia planetária” (Jorge Gaspar, 2017).
20 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço
18
A obra completa de Eduardo Lourenço, que a Fundação Calouste Gulbenkian está a editar, proporcionou,
até ao momento, os seguintes títulos: (1) Heterodoxias (I Volume), Coordenação: João Tiago Pedroso de
Lima; Carlos Mendes de Sousa (1ª ed., 2011; 2ª ed. 2012); (2) Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista e
Outros Ensaios (II Volume), Coordenação de António Pedro Pita; ed. lit.: João Tiago Pedroso de Lima;
Carlos Mendes de Sousa (1ª ed., 2014); (3) Tempo e poesía (III Volume), Coordenação de João Tiago
Pedroso de Lima; Carlos Mendes de Sousa (1ª ed., 2016).
Em distintas entrevistas recentes, Eduardo Lourenço fala-nos do seu itinerário vital
e recorda-nos que “nessa terra de fronteira – onde nasce – vivi como se estivesse num
pequeno paraíso. Era uma terra naquele tempo muito distante da capital. O País em que
estamos agora é um país que tem muito pouco que ver com aquele. Nesse país estão todas
as minhas raízes, todos os meus passados”. E em relação a este sentimento de “saudade”
que nos permite entender melhor Portugal diz-nos que “é expressão destilada na educação
de Portugal, e não só na sua identidade interna, mas também entre os portugueses que a
levaram consigo ao emigrar. Primeiro a todo o mundo, mas ultimamente para a Europa.
Assim surgiu uma “saudade” que tem menos razão de ser que no passado, porque a dis-
tância é muito menor. Ir para a Europa não é o mesmo que ir para a Índia no século XVI.
Mas é como se os portugueses não se pudessem desprender do signo que os representa no
mundo: o país da “saudade”.19
A obra de Eduardo Lourenço, ampla e complexa, por paradoxal que pareça não deixa
de ser “referenciada no tempo e no espaço, desenhando um atlas com aberturas para múltiplos
territórios, que acabam por desenhar as geografias do espírito. Mas prevalecem as geografias
de viagens, da viagem, que são como que o destino de quem nasce na raia: de São Pedro
de Rio Seco à procura do Mundo, ou o Mundo à procura de São Pedro de Rio Seco, de
19
Entrevista a Eduardo Lourenço de Alfonso Armada en ABC Cultural, 29-05-2017.
Biblioteca Joanina (Universidade de Coimbra) (RJ)
22 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço
22
Era um sentimento comungado por muitos colegas seus contemporâneos:
– Alfredo Fernandes Martins (Coimbra, 1919-1982), escreveu o seguinte sobre a sua cidade: “Amo as
gentes e as terras à minha maneira: de coração aberto, olhos nos olhos, retinas presas na paisagem, e
bem atento o juízo valorativo, não vá a correcta atitude psicológica descair em sentimentalismos piegas
pródigo, meio século depois, em dois momentos capitais: para receber a maior distinção,
quando foi agraciado com o título de Doutor Honoris Causa (1996); para legar à sua
Faculdade de Letras, no ano do Centenário da sua fundação (2011), a parte da sua biblio-
teca relacionada com Filosofia, História das Ideias e da Cultura.
A passagem de Eduardo Lourenço pela Universidade de Coimbra (1940-1953) ocor-
reu quando “era uma universidade ainda muito familiar, e daí cheia de ritos, de gente que
tinha tradições académicas que passavam de pais para filhos. Coimbra era realmente um
núcleo um pouco à parte, mas quando me refiro à mitologia coimbrã penso fundamental-
mente que esta cidade, além de ser o Studium Universalis foi também a cidade da juven-
tude portuguesa que aqui estudava e onde há uma espécie de continuidade não de tipo
ficcional, mas de tipo poético. A poesia em Portugal fazia-se na Universitária”.
Aqui começou o seu envolvimento com a literatura ao comprometer-se com um pu-
nhado de companheiros empenhados na demanda de novos horizontes estéticos, culturais
e políticos, numa altura em que ainda se houviam os ecos da chamada “Questão Coimbrã”:
“a gente sabe que a mitologia coimbrã tem o seu ponto mais alto, sobretudo pelo estatuto
literário, no famoso texto de Eça de Queirós dedicado a memória de Antero de Quental,
onde toda a mitologia moderna do lugar cultural e também de vocação ideológica da aca-
demia de Coimbra é invocada como qualquer coisa de representativa de uma nova leitura
do passado cultural deste país. As conferências tiveram lugar em Lisboa mas foram reali-
zadas por antigos estudantes, quase todos estudantes de Coimbra, entre os quais Antero
e Eça de Queirós. E Eça, nostalgicamente, escreve esse famoso texto em que se identifica
com Antero e instala na nossa mitologia moderna um discurso sobre Coimbra”.
A “Questão Coimbrã” havia sido desencadeada em 1865 quando velhos poetas român-
ticos, onde pontificavam António Feliciano de Castilho e Pinheiro Chagas, censuraram
jovens contestatários, da Escola de Coimbra, acusando-os, entre outras coisas, de falta de
“bom senso e bom gosto”. Antero de Quental, um dos diretamente visados, instituciona-
liza a contenda, que a história fixou como “Questão Coimbrã”, replicando com um texto
que intitulou, precisamente, de “Bom Senso e Bom Gosto”23. A polémica desencadeou um
forte movimento que apostava na modernização e inovação da literatura portuguesa, con-
trapunha o realismo e o positivismo e considerava inevitável a intervenção na sociedade a
partir duma arte independente que rompesse com convenções e comodismos instalados 24.
A geração de Eduardo Lourenço, que se revia nesta herança, também irá lançar um
movimento contestatário, nos anos 40, centrado na literatura e nas artes, embora de al-
cance mais vasto, assim recordado: “na nossa Queima das Fitas, um bocadinho tocados,
íamos no desfile pela Sá da Bandeira abaixo a dizer “nós somos a nova geração de setenta”.
Felizmente não ficou registo daquelas loucuras que, naquela altura, eram compreensíveis.
Mas esta assemelhação era muito interessante porque era para nós estarmos a reivindicar,
25
A revista Vértice, fundada em Coimbra em 1942, centrou o seu foco na cultura e arte. A nova direcção, que assumiu
funções em 1945, fez da revista coimbrã a “principal tribuna do movimento neorealista português e um instrumento
de resistência à ditadura do Estado Novo”. Apareceram nas suas páginas alguns dos mais importantes escritores e
artistas da época, onde se destacaram Joaquim Namorado, Carlos de Oliveira, João José Cochofel, Fernando Namora
(Coimbra), bem como Mário Dionísio, Alves Redol, Manuel da Fonseca e Fernando Lopes Graça (Lisboa).
26
O célebre texto de Eça de Queiroz – Um génio que era um santo -, publicado originalmente em 1896, no In Memoriam
de Antero de Quental (ver Notas Contemporâneas), começa assim: “Em Coimbra, uma noite, noite macia de Abril ou
Maio, atravessando lentamente com as minhas sebentas na algibeira o Largo da Feira, avistei sobre as escadarias da Sé Nova,
romanticamente batidas pela lua, que nesses tempos ainda era romântica, um homem, de pé, que improvisava.
A sua face, a grenha densa e loura com lampejos fulvos, a barba de um ruivo mais escuro, frisada e aguda à maneira siríaca,
reluziam, aureoladas. O braço inspirado mergulhava nas alturas como para as revolver. A capa, apenas presa por uma ponta,
rojava por trás, largamente, negra nas lajes brancas, em pregas de imagem. E, sentados nos degraus da igreja, outros homens,
embuçados, sombras imóveis sobre as cantarias claras, escutavam, em silêncio e enlevo, como discípulos.
Parei, seduzido, com a impressão que não era aquele um repentista picaresco ou amavioso, como os vates do antiquíssimo século
XVIII – mas um bardo, um bardo dos tempos novos, despertando almas, anunciando verdades. O homem com efeito cantava o
céu, o infinito, os mundos que rolam carregados de humanidades, a luz suprema habitada pela ideia pura e
…os transcendentes recantos
Aonde o bom Deus se mete,
Sem fazer caso dos Santos
A conversar com Garrett!
Deslumbrado, toquei o cotovelo de um camarada, que murmurou por entre os lábios abertos de gosto e pasmo:
– É o Antero!…”
(ii) Rua do Loureiro, eixo estruturante de qualquer geografia literária de Coimbra,
tem por extremos os Largos (da Feira e do Salvador) e a Torre do Anto e, a meio, a
Casa da Escrita. É uma rua onde viveram Eça de Queiroz e Virgilio Ferreira; a partir
dela podemos aceder a ruas adjacentes onde é possivel encontrar outras referências do
imaginário literário coimbrão, tais como: (a) Rua das Flores, onde viveu José Régio e
nasceu a Revista Presença; (b) Rua das Matemáticas, onde nasceu Alfredo Fernandes
Martins e se encontra, hoje, a Real República Rás-Te-Parta27, fundada em 27 de Março
1943, na Rua dos Estudos, nº17-2º, donde transitou, em 1949, por altura da demoli-
ção da Alta; (c) Couraça dos Apostolos onde viveram Carlos Oliveira, Fernando Namora
e Afonso Duarte.
(iii) Casa da Escrita, antiga casa de João José Cochofel, situada no encontro da Rua do
Loureiro com a Rua João Jacinto, ponto de encontro e lugar de tertúlia do grupo neor-
realista; numa das salas do edifício foi instalado o espólio doado por Eduardo Lourenço à
Câmara Municipal de Coimbra.
(iv) Sé Velha, centro cívico da Coimbra antiga, tem nas suas imediações o local onde
funcionou o Instituto (Rua da Ilha), a revista Vértice (na antiga Livraria Portugália, que
funcionou ao cimo do Quebra Costas), além doutras referências do imaginário coimbrão,
ligadas às letras e à canção: têm os seus nomes perpetuados em memoriais que assina-
lam as casas onde viveram Artur Paredes (guitarrista), pai de Carlos Paredes, Edmundo
Bettencourt e José Afonso, figuras incontornáveis do Fado de Coimbra, como outros
(v) Baixa, sobretudo o canal entre a Portagem e Santa Cruz, onde a cidade pulsava,
até aos anos 70, espaço indissociável até esta época da vida académica e literária de
Coimbra. Aqui se localizavam livrarias e cafés, lugares de tertúlia, partilha de cumpli-
cidades e troca de ideias, onde fervilhava um certo modo de vida coimbrão. A Baixa,
entretanto, desertificou-se, ficou despida destas funções e vivências, sem livrarias nem
cafés onde as pessoas possam repousar ou atormentar ideias. A livraria França Amado,
a Atlântida ou a Coimbra Editora tiveram o mesmo destino que o Café Montanha, o
Arcádia, a Brasileira, o Nicola e a Central; os cafés que se tentaram reinventar com o
O filme Capas Negras, estreado em 1947, foi rodado nesta República, com realização de Armando de Miranda.
27
A película ficaria famosa por ter sido o primeiro grande êxito de Amália Rodrigues e por lançar a canção
Coimbra é uma lição de amor. Esta composição de Raul Ferrão com letra de José Galhardo, mais conhecida
como Coimbra, foi eternizada por Amália; em 2004 foi editado um disco com 24 versões desta mesma canção.
Entre muitos estudantes residentes, a República contou entre os seus membros uma das grandes vozes do
Fado de Coimbra: Adriano Correia de Oliveira. Foi ainda nesta “República” que, em 23 de Fevereiro de
1959, foi recebido Erico Veríssimo, de visita à cidade, na companhia de Miguel Torga.
mesmo nome são uma pálida imagem dos seus antepassados. Acrescenta-se a este rotei-
ro, a Portagem, pela memória do consultório médico de Adolfo Rocha, perpetuado no
memorial a Miguel Torga, colocado no edifício e com prolongamento num varandim
sobre o Mondego.
(vi) Locais de residência. No que diz respeito a Eduardo Lourenço assinale-se ainda os
lugares onde morou, a começar pela Rua João de Deus, junto ao Campo de Santa Cruz, Rua
António José de Almeida, Quinta da Ribeira (Casa do Sal) e Bairro S. José. É uma outra
geografia urbana de Coimbra que se começou a consolidar a partir de meados do século XX.
Guarda: altiva solidão. A Guarda descrita por Miguel de Unamuno não coin-
cide com o eloquente retrato de Eduardo Lourenço, feito em 27 de Novembro de 1999,
nas comemorações de Oito séculos de altiva solidão. A impressão que cada cidade nos
deixa difere consoante a maneira como é vivida, se resulta dum encontro passageiro
ou, pelo contrário, a demora foi suficiente para sedimentar fundas memórias que ali-
mentam uma lembrança espetral. As razões que ditaram a nossa relação com os lugares
fazem a diferença na maneira como lhe captamos o espirito. Umas vezes, o que nos
leva ao seu encontro, o que “Siempre me han atraido esos lugares y villas que desfilan
a nuestros ojos segun va el tren ganando tierra, campos adelante. Son los mas de ellos
pueblos sin historia, donde a nadie conocemos. Yo no se si sera que en mi, como en
casi todos los hombres, duerme el nomada, el peregrino andariego y errante, y despierta
30 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço
de cuando en cuando. !Ver pueblos! !ver nuevos pueblos, ver los mas posibles! !Poder
decir: tambien ahi he estado! Porque, en resumidas cuentas, el fruto mayor que de mi
visita a Guarda he sacado, es el poder decir alguna vez, cuando de Guarda se hable o se
la mente: tambien la he visto”
O tempo e a geografia, grandes escultores da fisionomia dos lugares e da identida-
de das pessoas, também moldaram a Guarda e o “destino desta velha terra, consagrada
à defesa e vigilância de um pequeno reino, que não sabia ainda que seria grande e dis-
perso como um arquipélago, não era o da viagem mas o da vigília, do ensimesmamen-
to e, em todos os sentidos do termo, da solidão”. Estamos em terra de interior, duma
“efectiva interioridade, mais filha da história do que da geografia, não para assinalar
uma condição de isolamento, difícil de viver e aceitar, mais a mais num espaço tão
pequeno como o nosso, em que tudo está próximo de tudo, mas para a pensar. Só em
termos modernos, o ser interior é vivido e percebido como uma espécie de maldição
ou fatalidade. (…) Estas terras, esta cidade e a muralha intermitente de castelos com
que o céu se emparceirou, não eram ainda a ex-fronteira sem emprego de um país
com os olhos no vasto mundo, mas os guardiães da casa comum que confiava na sua
vigilância”28.
A cidade e as suas funções mudaram; embora pouco reste da sua ascendência militar, o
tempo nunca apagará tão indeléveis marcas: a torre de menagem, as portas de entrada no burgo
medieval, a morfologia da antiga urbe continuarão a denunciar o traçado das muralhas entre-
tanto desaparecidas. Se a posição próxima da extrema com a Espanha determinou a localização
da Guarda, o acidentado do sítio ditou a organização do espaço urbano e a implantação das
principais referências patrimoniais: “Salí á ver la Catedral, por fuera más de ver que por dentro.
Tiene, sin embargo, su adusto carácter de fortaleza, y desde la terraza un hermoso panorama.
Todo el anfiteatro de montañas de la sierra de la Estrella, y al outro lado tierras de España.”
Guarda. Vista Geral (RJ) 31 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço
28
O texto de Eduardo Lourenço tão assertivo desculpa uma transcrição mais longa: “Esta Beira foi o Portugal profundo,
o Portugal do arado, da cruz e da espada, confundidas como era lei do tempo, terra e gente em luta com uma natureza
avara, ganhando, com suor e sangue, o que ninguém lhe dava de graça e sempre pronta para ir, não para o mar, mas
além dos mares, para sítios que nem os sonhos avistam, fosse o Brasil, fosse o Oriente, fosse a Austrália, fosse o Canadá.
Nesse mundo e nessa época, ninguém sofria de interioridade. Simbolicamente sede de um dos mais prestigiados bis-
pados do reino, a Guarda não sabia – ninguém se preocupava muito com essas fantasmagorias – que um dia seria por
dentro menos do que era então, uma cidade coroada por uma Sé fortaleza, navio de pedra ao alto de uma montanha.
E esse navio às avessas é ainda hoje o brasão de uma história que só espera de nós que descubra outra vocação, outro
rumo, para ter tanto sentido como o tinha nesse tempo em que a sombra de Castela não nos deixava dormir.
A evocação ou a referência ao passado só é interessante por pôr em causa o presente e explicar as suas nos-
talgias ou o seu mal-estar. Ser interior hoje, ser capital ou cidade de interior é vivido como punição, como
empobrecimento efectivo e simbólico, como fatalidade”.
Miguel de Unamuno visitou a Guarda (1908) poucos anos depois do comboio ter
chegado à cidade, começando a quebrar o secular isolamento, quando a estação ainda era
longe do centro: a Linha da Beira Alta abre ao público e o comboio chega à Guarda em
1882, sendo inaugurado o troço entre Vilar Formoso e Salamanca a 23 de maio de 1886;
a ligação Lisboa a Paris, pelo traçado da Linha da Beira Alta, só permitirá a circulação do
famoso Sud Express, a partir de 1 de julho de 1895.
Depois da partida e várias décadas de itinerância exterior Eduardo Lourenço apro-
xima-se das origens; porque não situar o regresso simbólico aos territórios de infância
e juventude no dia do oitavo centenário (27 de novembro de 1999), quando o milénio
se finava. Este reencontro acontece num tempo novo em que a Guarda vive uma enor-
me ânsia de futuro. O autor ficará irremediavelmente ligado, tanto do ponto de vista
espiritual como materialmente, a este novo ciclo da cidade: espiritualmente pela aposta
estratégica que foi feita na cultura, assumindo Eduardo Lourenço como referência e
como mentor; materialmente porque dois modernos equipamentos, marcantes desta
“nova Guarda”, têm o filósofo como figura tutelar: a Biblioteca Municipal que recebeu
o nome de Eduardo Lourenço (BMEL) e o Centro de Estudos Ibéricos que o assumiu
como Diretor Honorífico.
Além desta marcas impressivas inscritas na cidade, são de incluir em qualquer
roteiro que assinale as passagens de Miguel de Unamuno e de Eduardo Lourenço pela
Guarda29:
(i) Estação da Guarda e Pensão Santos. A estação de caminho de ferro é a porta de
entrada, onde se toma o pulso a cidade e recolhem as primeiras impressões. Passando
32 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço
“com frequência pela linha da Beira, Unamuno ficou sempre com a curiosidade de, a
partir da Estação de Caminho de Ferro (Guarda-Gare) subir lá ao alto da cidade que,
“sobre a montanha levanta as suas torres contra o céu.” Assim aconteceu. Num dia
de Outono (em Novembro) subiu até à cidade. “Ali passei um dia, todo um mortal
dia, nessa Guarda fria, ventosa, húmida, feia, denegrida e forte, que vigia a Espanha.“
”Naquela destemperada tarde outoniça”, vagueou pelas ruas da Guarda e deparou-
-se com padres embuçados nos seus mantos negros e também estudantes do Liceu
com as suas capas remendadas, imitando os de Coimbra. Unamuno pernoitou na
Pensão Santos”, edifício encravada na muralha que lhe confere uma identidade pecu-
liar. “Antes de se deitar, aliás bem cedo, provavelmente num quarto da Pensão Santos,
bem perto da Torre dos Ferreiros, onde lhe deu nas vistas a imagem do Senhor dos
Aflitos, no recanto entre os dois arcos, diante da qual, reflexivamente, se quedou uns
instantes. Adormeceu lendo algumas páginas de Camilo, autor que deveras admirava.
29
Um agradecimento especial ao António José Dias de Almeida pelas informações e precioso contributo; o
texto deste apartado entre comas é da sua autoria.
Curiosamente, a rua que, junto à Torre dos Ferreiros desce em direcção ao Jardim,
chama-se Rua Camilo Castelo Branco...”.
(iv) Eduardo Lourenço e a “nova Guarda”. Dois equipamentos culturais ocupam lugar
de destaque na paisagem urbana mais recente :
(a) “Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço (inaugurada em 27/11/2008). As principais
salas da BMEL são designadas por títulos significativos da obra do Autor. Assim acontece
com a sala Tempo e Poesia; com A Nau de Ícaro, sala onde, num espaço qualificado, está
organicamente depositado o espólio de cerca de 3000 livros doados à Câmara Municipal
da Guarda. Aí podemos encontrar um magnífico acervo de obras muito representatrivas
de autores da Literatura Portuguesa Contemporânea com dedicatórias muito sugestivas e
que vale a pena consultar; finalmente, a sala dedicada aos mais novos que ostenta o título
Nós Como Futuro” 30.
(b) “Centro de Estudos Ibéricos (CEI) resultou de uma luminosa ideia de Eduardo
Lourenço manifestada no discurso proferido na sessão solene das comemorações do 8º
Centenário do foral dado à cidade da Guarda, cuja sede se situa no Parque Alarcão e tem
Eduardo Lourenço como Director Honorífico”.
(v) Eduardo Lourenço e a cidade vivida. “Eduardo Lourenço frequentou o ensino primário
na escola da sua aldeia (São Pedro de Rio Seco) à excepção da 3ª classe que frequentou numa
escola primária da Guarda (?), mas regressou à aldeia onde frequentou a 4ªclasse e fez o respec-
tivo exame final. Voltou posteriormente à Guarda e aí realizou o exame de Admissão ao Liceu
(então Liceu Afonso Albuquerque – actual Escola de Santa Clara). No Boletim de Matrícula
(1933–34) o pai indica como residência a Rua do Encontro. Terá aí residido quando frequentou
com aproveitamento o 1º ano no Liceu Afonso de Albuquerque. Sendo o pai militar de carreira,
matriculou-se posteriormente no Colégio Militar, em Lisboa, onde completou o ensino liceal.
As férias eram passadas na Guarda, onde residiam os irmãos e a mãe – primeiramente, na Rua
Batalha Reis e posteriormente numa casa no Bairro do Bonfim. Próximo da sua residência na
Batalha Reis, o “célebre Sanatório de onde se escoavam às vezes para as ruas da cidade criaturas
pálidas que atravessavam, desviando-se das pessoas sãs, como fantasmas”. Perto vivia o autor
de Maria Mim. “Dos vivos, vi passar na rua, envolto em soturnidade, Nuno de Montemor,
a caminho do Lactário desta cidade”. Também na Guarda, num edifício já inexistente,
34 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço
30
“Na Biblioteca que leva o seu nome, tem participado em diversas iniciativas, v.g. na entrega do Prémio
Eduardo Lourenço a várias personalidades que o obtiveram, nomeadamente, Agustina Bessa-Luís (represen-
tada pela sua filha Mónica Baldaque), Mia Couto, Luís Sepúlveda, Fernando Paulouro Neves, entre outros.
A primeira grande figura da Cultura Portuguesa agraciada com o prémio foi a Professora da Universidade
de Coimbra, Maria Helena Rocha Pereira numa cerimónia que teve lugar na sala da Câmara Municipal da
Guarda, actualmente designada Almeida Santos.”
Regresso sem fim: S. Pedro do Rio Seco, a fronteira e as aldeias
raianas. Terra de fronteira, “São Pedro é uma velha aldeia, anterior mesmo à na-
cionalidade, com séculos sem memória celebrada”. Quem sempre teve as fronteiras
por companhia, fossem as politica, as disciplinares e as do espirito, está habituado a
conviver com a radicalidade de tal presença, contornando-as ou superando-as. Em dife-
rentes momentos que pontuaram a sua (re)aproximação às origens Eduardo Lourenço
recorreu à palavra fronteira até à exaustão, utiliza-a como inspiração para multiplas
metafóricas reflexões: O duplo rosto da frontera; As fronteiras que não têm fronteiras; Jogos
de fronteira, jogos de memoria.
“Na verdade, esta aldeia, como muitas das aldeias de Portugal, não pertence ao que se
chama a grande história, com as suas crónicas memoráveis. Com actores e gente célebre,
celebrizada. Pertence mais aquilo que Unamuno, o nosso famoso vizinho, o autor do
“Sentimento trágico da vida”, o nosso vizinho de Salamanca, chamava a intra-história.
Quer dizer, a não história do comum de todos nós e que é aquela que nós, os meus ante-
passados, viveram durante séculos, sem que isso tivesse constituído para eles uma tragédia
particular”. Estamos na meseta, esse imenso chapadão que Unamuno fixou em inolvidá-
veis páginas (p. ex.: Los Arribes del Duero), essas “terras novas de Ribacoa, que o bom rei
Dinis soube trazer para Portugal, terras de falas diferentes, terras de pontes, no espaço e
no tempo, onde os nomes dos lugares ajudam a escavar muita da História e da Cultura
embebidas no território: Calçada, Castelo Mendo, Cinco Vilas, São Pedro de Rio Seco.
Embebido, um conceito caro a Eduardo Lourenço, um termo que também é relevado
pelos geógrafos. Ora a Geografia, os geógrafos, percorrem, embebidos, a obra de Eduardo
observar o mundo todo sem sairmos da nossa aldeia (Quem vê o seu povo vê o mundo todo).
Continuemos a visita a S. Pedro do Rio Seco a partir de alguns apontamentos Eduardo
Lourenço: “Os tempos mudaram. Esta aldeia, que parecia tão isolada do mundo, naquela
36 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço
época, também o estava: podia passar-se o ano inteiro que mesmo relações de vizinhança,
a cinco quilómetros, não se frequentavam umas às outras. Só por ocasião de uma festa. Os
únicos sítios de relacionamento, já de tipo social, eram Vilar Formoso e Almeida. (…) Em
matéria de invisibilidade, esta nossa aldeia, irmã gémea de tantas da nossa província, ela
própria tão isolada. Naquele tempo a nossa aldeia não estava ainda, digamos, dissolvida
como todas, num mundo real a que pertencia e hoje está talvez dissolvida, como todos
nós, numa espécie de esfera virtual, que de facto é de toda a gente e de ninguém”.
A aldeia é um universo complexo e mutante, vivida e imaginada de modo distinto
pelos que ficam e pelos que partem: se na aldeia paira sempre a presença dos ausentes, a
relação dos que partiram com o lugar donde saíram nunca mais é a mesma, fica irreme-
diavelmente comprometido no instante em que a ausência quebra o vínculo umbilical ao
torrão natal. Em pequenos fragmentos diarísticos escritos durante a breve permanência no
Brasil, Eduardo Lourenço simula através dum dialogo com o vento, num tom melancóli-
co, a tentativa de reatar tais vínculos perdidos pela ausência, fios duma teia que talvez aju-
dassem a (re)encontrar um mitifico caminho de regresso ao paraiso perdido: “num segundo
volto com ele à aldeia parada de granito solto e pobreza unida onde pela primeira vez eu me
encontrei comigo ao encontrar-me com ele” 31.
O diálogo prossegue essa contínua “viagem imaginária” dum regresso sem fim e sempre
adiado: “Tudo o vento deu ao garoto ávido, ardente e pobre de há trinta anos. Exactamente
o que os trinta anos seguintes, mais terrível vento, foram deixando de menos. Neste interva-
lo, os livros, as amizades, as mortes, os pecados inumeráveis, as falências, os deslumbramen-
tos, os falsos paraísos outrora reclamados pela voz do meu futuro, muitas vezes relegaram
o meu companheiro de infância para o rol das coisas abandonadas nos cantos da casa. Mas
eis que súbito o amado imortal, passando por cima dos mares e das montanhas, abre à minha
volta as suas asas de silêncio e num segundo volto com ele à aldeia parada de granito solto e
pobreza unida onde pela primeira vez eu me encontrei comigo ao encontrar-me com ele.
Há trinta anos. A sua voz tem ainda as dimensões do mundo. As crestas dos horizontes
por onde passou ferem de expectativa o impaciente coração. (…) Nos últimos tempos en-
tregara-se aos sonhos que as palavras libertas da nossa cegueira podem conceder-nos. Sua
estranha arquitectura respondia à viagem imaginária interrompida pela fatigante chuva da
cultura. Estava de novo próximo do mundo incorrupto do cardo, do ribeiro, do lilás, da nuvem,
do gaio, do fogo onde jovem habitara cheio de espanto e deslumbramento. O universo conver-
tera-se em palavra sacra. Com silencioso gesto iniciara-se nele a viagem de regresso. Lenta,
circular como os dias antigos e duros da sua raça camponesa. Cada dia o círculo se tornava
mais pequeno e denso. Conheceu que o seu fim estava próximo. As palavras começaram a
ter a dimensão exacta da sua necessária morada. Ficou a pão e água. Estes únicos alimentos
reconstruíam a sua habitação de sempre. O mármore, a seda, o ouro, o livro foram disper-
31
Eduardo Lourenço (2015), Do Brasil. Fascinio e Miragem, Lisboa, Gradiva.
A caminho dos Arribes del Duero: encinas no Campo Charro (SS)
escreveu e trabalhou, segundo as suas palavras. Aqui chegou desde Bilbao em 1891.
Os nomes das suas ruas e praças são verdadeiramente evocadores e baixo os seus “celagens
e céus platónicos” guardam-se a memória do passo dos séculos e dos homens. Também
suas pedras de arenisca, “doces e suaves, douradas pelo sol”, e talhadas com habilidade por
pedreiros e artesãos recordam-nos e ensinam o devir da cidade românica, gótica e plateres-
ca, renascentista, barroca e neoclássica, nas que descobrimos marcas arquitetónicas e sím-
bolos ornamentais capazes de nos fazer sonhar e de acalmar o nosso espírito. Da mão dos
textos de Unamuno, tanto dos seus ensaios como da sua poética, podemos afundar na casa
e no lugar, no seu “genius loci”, a partir de um itinerário e alguns marcos urbanos bem
assinalados na vida e imagem desta cidade Património da Humanidade.
(i) Na histórica Calle Libreros e na envolvente do edifício histórico da Universidade
ou de Escuelas Mayores e seu claustro central, com o Patio de Escuelas Menores, a Reitoria,
a Casa- Museu Miguel Unamuno, configura-se um espaço monumental e académico ple-
namente vinculado à vida de Unamuno como professor e Reitor durante quarenta e cinco
anos. Os sentimentos e pensamentos da sua escrita estão marcados pelo espírito do lugar.
Assim o manifesta ao falar-nos
Salamanca. Vista Geral (VG)
desse pátio frente à fachada plateresca do século XVI: “Não dou por nada do mundo esse
pátio – com seu brônzeo Fray Luis no centro -, preenchido no seu silêncio de rumores
seculares, esse pátio sem ruído de tranvias nem de comboios nem de vã agitação humana”.
(v) Mais abaixo, e do outro lado do arroio de Santo Domingo, no grandioso convento
de San Esteban dos dominicanos, com quase oitocentos anos de vida na cidade, encontrará
abrigo Unamuno nos momentos de crise existencial do “homem de carne e osso” e de de-
sassossego religioso” (1897). Um bom asilo para o diálogo teológico, filosófico, científico
e humano na Academia de Santo Tomás. Boa parte da sua obra Do Sentimento Trágico da
Vida (1912) inspira-se no debate e discussão com os frades, particularmente com o Padre
40 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço
Miguel de Unamuno
Y esto, ¿qué relación tiene con el problema espiritual de España? ¿Es algo más que una
posición pura y exclusivamente individual, es decir, arbitraria? Todo eso, ¿lo siento como
español? ¿Es el alma española la que me lo sugiere?
Se ha dicho que con los Reyes Católicos y la unidad nacional se torció acaso el curso
de nuestra historia. Lo cierto es que, desde ellos, y, mejor aún, después de ellos, con el des-
cubrimiento de América y nuestro entrometimiento en los negocios europeos, nos vimos
arrastrados en la corriente de los demás pueblos. Y entró en España la poderosa corriente
del Renacimiento, y nos fue borrando el alma medieval. Y el Renacimiento era en el fondo
todo eso: ciencia, en forma sobre todo de Humanidades, y vida. Y se pensó menos en la
muerte, y se fue disipando la sabiduría mística.
Se ha dicho muchas veces que el español se preocupa demasiado de la muerte; y en
todos los tonos y de todas las maneras, en especial de las más ramplonas, se nos ha dicho
que la preocupación de la muerte no nos deja vivir a la europea y a la moderna. Hasta de
la mortalidad y de la suciedad y de la falta de salud se le echa la culpa al llamado culto a la
muerte. Y a mí, en cambio, me parece que se piensa demasiado poco en ella; mejor dicho,
que se piensa a medias.
Y se piensa y se medita en ella a medias, porque pretendemos ser europeos y modernos
sin dejar de ser españoles, y eso no puede ser. Y hemos hecho una infame mezcla de sabidu-
46 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço
Y para mí una de las cosas más tristes para España sería que los españoles pudiésemos
volvernos frívolos y joviales. Entonces dejaríamos de ser españoles para no ser ni europeos
siquiera. Entonces tendríamos que renunciar a nuestro verdadero consuelo y a nuestra
verdadera gloria, que es eso de no poder ser ni frívolos ni joviales. Entonces podríamos re-
petir de coro todas las insustancialidades de todos los manuales de vulgarización científica,
pero nos incapacitaríamos para poder entrar en la sabiduría. Entonces tendríamos acaso
mejores vinos, vinos más refinados, aceite menos áspero, mejores ostras; pero habríamos
de renunciar a la posibilidad de un nuevo Quijote, o de un Velázquez y, sobre todo y ante
todo, a la posibilidad de un nuevo San Juan de la Cruz, de un nuevo Fray Diego de Estella,
de una nueva Santa Teresa de Jesús, de un nuevo Íñigo de Loyola, ortodoxos o hetero-
doxos, que para el caso es igual.
Y acaba diciendo Baroja: «Triste país en donde por todas partes y en todos los pueblos
se vive pensando en todo menos en la vida».
Y esta arbitrariedad provoca la mía, y exclamo: ¡Desgraciados países esos países eu-
ropeos modernos en que no se vive pensando más que en la vida! ¡Desgraciados países los
países en que no se piensa de continuo en la muerte, y no es la norma directora de la vida
el pensamiento de que todos tenemos un día que perderla!
Todo esto parecerá arbitrario, y para los demás casos lo sea; lo es ciertamente. ¿Qué le
he de hacer?
«Basta – dirá algún lector lógico y europeo moderno – ; ya te tengo cojido: tú mismo
confiesas que tus afirmaciones carecen de base, que son arbitrarias, que no pueden pro-
barse, y a tales afirmaciones no se les debe hacer caso». Y yo le diré a ese pobre lector
lógico, europeo y moderno, enamorado, de seguro, de la ciencia y de la vida, que el que
una afirmación sea arbitraria y no pueda probarse con razones lógicas, ni quiere decir que
carezca de fundamento, ni menos que sea falsa. Y, sobre todo, eso no quiere decir que la
tal afirmación no sea excitadora y animadora del espíritu, corroboradora de su vida íntima,
de esa vida íntima que es muy otra cosa que la vida de que está enamorado el lector lógico
y cientificista.
Aquí dejé este ensayo hace dos días, para continuarlo, reanudando su hilo, así que se
me ofreciera ocasión, cuando he aquí que acabo de leer hoy, 13 de mayo, una frase que
tuerce el curso de mi discurso. Así les pasa a los ríos, que un peñasco que se les presente
les desvía el cauce y puede hacer que vayan a desembocar a muchas leguas de distancia de
donde hubieran desembocado en otro caso, a otro mar tal vez.
Es curioso lo que pasa con las ideas. Tenemos en el espíritu muchas veces una tropa de
ellas que se arrastran vegetativamente en la oscuridad, mustias, incompletas, sin conocerse
unas a otras y huyéndose mutuamente. Porque en la oscuridad las ideas, lo mismo que los
hombres, se tienen miedo. Y están acurrucadas, evitando todo contacto, disociadas. Pero
he aquí que de pronto entra una idea nueva y luminosa, arrojando lumbre, e ilumina aquel
rincón, y al verle las otras, y al verse unas a otras las caras, se reconocen, se levantan, se
agrupan en torno a la recién llegada, se abrazan y forman hermandad y recobran plena vida.
Con una porción de ideas mustias y penumbrosas que tenía yo desperdigadas en un
rincón de mi espíritu, me ha sucedido así al entrar hoy en éste una idea que acabo de leer
en el número de La Correspondencia de España, diario de Madrid, correspondiente al día
de ayer, 12 de mayo.
Es el caso que en un artículo que en él publica Fabián Vidal, titulado «La actualidad –
Cánovas», dice el autor: «Sagasta comprendió a los españoles, pero no a España. Cánovas
no supo jamás de qué madera estaban formados sus compatriotas».
Leí esto, y al punto me di cuenta, por iluminación súbita, de la diferencia que va del
alma de España al conjunto de las almas de los españoles todos que hoy vivimos, a la sínte-
sis misma de estas mismas almas. Y recordé lo que a raíz de la última guerra civil carlista,
50 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço
siendo yo un mozo, oí en mi pueblo a un sujeto que decía: aunque todos los bilbaínos
nos hiciéramos carlistas, Bilbao seguiría siendo liberal. Paradoja, es decir, profunda verdad
arbitraria, verdad de pasión, verdad cordial, que no olvidé después nunca.
«Sagasta comprendió a los españoles, pero no a España». Y todos los gobernantes
vulgares, los que se dejan llevar de la corriente y disfrutan de largos años de poder, y todos
los escritores vulgares, los que hacen copiosas tiradas de sus libros y los venden, y todos los
artistas vulgares, y todos los pensadores vulgares, comprenden a sus compatriotas, pero no
a su patria. Así es.
En el alma de España viven y obran, además de nuestras almas, las de los que hoy
vivimos, y, aún más que éstas, las almas de nuestros antepasados. Nuestras propias almas,
las de los hoy vivos, son los que menos viven en ella, porque nuestra alma no entra en la de
nuestra patria hasta que nosotros no la hayamos soltado, hasta después de nuestra muerte
temporal.
¿De qué sirve que queramos hacer pensamiento europeo moderno con una lengua que
ni es europea ni es moderna? Mientras nos empeñamos en hacerle decir una cosa, ella se
empeña en hacernos decir otra, y así no decimos el pensamiento que pretendemos decir,
sino el pensamiento que no queremos decir, ése decimos.
Nos empeñamos – es decir, se empeñan muchos – en deformar su espíritu conforme a
un patrón de fuera, y no conseguimos ni hacernos como aquellos a quienes pretendemos
remedar ni ser nosotros mismos. De donde un hórrido mestizaje espiritual, casi un hibri-
dismo infecundo.
Y aquí viene lo más curioso y más sorprendente del caso, algo que se comprenderá
algún día, si es que llega aquel en que alguien se ocupe en investigar el estado espiritual
de nuestra España en el tránsito del siglo XIX al XX; y es lo más curioso y lo más sorpren-
dente que los que pasan por más españoles, por más castizos, por más a la antigua, por
más genuinos españoles, son los más europeizantes, los más descastados en el fondo de su
alma, los más exóticos; y, por el contrario, hay quienes pasando para muchos inocentes
por espíritus exóticos, anglicanizados, germanizados, afrancesados o anoruegados, son los
que tienen sus raíces más en contacto con las raíces de los que hicieron el alma española.
He observado con cuánta frecuencia una casticidad cortical, de formas exteriores grama-
ticales y retóricas, se acompaña del más profundo desarraigo en el alma patria, y todo lo
contrario. He conocido un solemne majadero, literato en un tiempo reputado, que leía
a nuestros místicos para aprender en ellos castellano y a bien escribir, y a quien no se le
pegó nada del alma ardiente de aquellos casticísimos espíritus, y conozco, por otra parte,
quien no habiéndolos leído, y no cuidándose ni poco ni mucho de seguir ni su tradición
literaria ni su ortodoxia religiosa, ha respirado en el ambiente espiritual de la patria el aire
de aquella mística que en ese ambiente se cierne.
lugares comunes.
He pensado muchas veces que el gongorismo y el conceptismo son, en cierto modo,
expresiones de pasión. Del conceptismo lo afirmo, desde luego arbitrariamente, por su-
puesto. Casi todos los grandes apasionados que conozco en la historia del pensamiento
humano, contando al gran africano de que hablé antes, han sido conceptistas, han vertido
sus ansias, sus anhelos, en antítesis, en paradojas, en frases que, a primera vista, parecen
no más que ingeniosas. Y acaso ello dependa de que la pasión es enemiga de la lógica, en
la que ve una tirana, pues la pasión quiere que sea lo que ella quiere, y no querer lo que
tiene que ser, y el conceptismo es, en el fondo, una violación de la ló- gica por la lógica
misma. Juega con los conceptos y violenta las ideas aquel a quien los conceptos y las ideas
le estorban, porque no puede hacer con ellos lo que su pasión le pide.
Yo necesito la inmortalidad de mi alma; la persistencia indefinida de mi conciencia
individual, la necesito; sin ella, sin la fe en ella, no puedo vivir, y la duda, la incredulidad
de haber de lograrla, me atormenta. Y como la necesito, mi pasión me lleva a afirmarla,
y a afirmarla arbitrariamente, y cuando intenta hacer creer a los demás en ella, hacerme
creer a mí mismo, violento la lógica y me sirvo de argumentos que llaman ingeniosos y
paradójicos los pobres hombres sin pasión que se resignan a disolverse un día del todo.
El apasionado, el arbitrario, es el único verdadero rebelde, y nada me hace mayor efecto
de grotesquez que el encontrarme con esos sujetos, afrancesados por lo común, que se dicen
emancipados de todas las tiranías, amantes de la libertad, espíritus fuertes, anarquistas a las
veces, ateos con frecuencia; pero fieles devotos de la lógica y del código del buen gusto. Leen
a Moratín y se jactan de ser hombres de sentido común. ¡Buena pro les haga!
Sí; el énfasis, la hinchazón, el conceptismo, el paradojismo, son el lenguaje de la pa-
sión, y, en cambio, nada menos natural, para nosotros los españoles por lo menos, que
eso que llaman naturel los franceses, y que suele ser producto refinado de una exquisita y
artificiosa elaboración.
No sé qué francés ha dicho que la literatura francesa es la que expresa elocuentemente
los grandes lugares comunes humanos; pero lo que yo diría es que en esa literatura, que tan-
tos estragos ha hecho y sigue haciendo en España, se expresan y hallan su forma adecuada
todos los sentimientos medios y todas las ideas medias, y no caben bien en ella ni las ideas
ni los sentimientos extremos. Es una literatura sensual y lógica, y, por lo tanto, luminosa
y alegre. Y nosotros los españoles somos, en general, más apasionados que sensuales y más
arbitrarios que lógicos. Lo somos, y debemos seguir siéndolo. Es decir, debemos volver a
serlo, porque acaso no lo somos tanto, ni mucho menos, como en otros tiempos lo fuimos.
Observad que el espíritu francés no ha dado ningún gran místico, ningún verdadero
gran místico puro. En Pascal, aunque un poco arbitrario y apasionado, la geometría había
dejado profunda huella. Y cuenta que es Pascal uno de los espíritus franceses que mejor po-
Tengo la profunda convicción, por arbitraria que sea – tanto más profunda cuanto
más arbitraria, pues así pasa con las verdades de fe – , tengo la profunda convicción de que
la verdadera y honda europeización de España, es decir, nuestra digestión de aquella parte
de espíritu europeo que pueda hacerse espíritu nuestro, no empezará hasta que no trate-
mos de imponernos en el orden espiritual a Europa, de hacerles tragar lo nuestro, lo ge-
nuinamente nuestro, a cambio de lo suyo, hasta que no tratemos de españolizar a Europa.
Y hoy, vergüenza y desmayo causa el decirlo, cuando a un español le pasa por las
mientes entrar en Europa, es decir, tratándose de literatos ser traducido, de lo que se cuida
es de deformarse, de desespañolizarse, de no dejar a quien haya de traducirle más trabajo
que el de traducir la letra, el lenguaje externo. Y así se oyen cosas como aquello que un
francés me dijo, hablándome de una traducción de una novela española contemporánea,
y afirmándome que estaba en francés mejor que en español, y es que me dijo esto: la han
devuelto a su lengua original.
Cada poder humano tiene su método; es decir, su procedimiento, su modo de condu-
cirse. Lo que llamamos lógica es el método de la razón, el modo de buscar conclusiones
que a la razón satisfagan. Así se hace la ciencia. Pero, cuando ni se trata de hablar a la razón
ni de satisfacerla, no hace falta la lógica. Y, por mi parte, raras veces, muy raras veces, me
dirijo a la razón de los que me oyen o me leen, y esas veces no soy yo propiamente quien les
hablo o les escribo, sino es un sujeto postizo, y por postizo, quitadizo, que me han echado
encima los que me oyen o me leen.
Se ha dicho que el corazón tiene su lógica; pero es peligroso llamarle lógica al método
del corazón; sería mejor llamarle cardíaca.
Y hay también el método de la pasión, que es la arbitrariedad, a la cual no hay que
confundirla con el capricho, como con frecuencia ocurre. Una cosa es ser caprichoso, y
otra, muy distinta, ser arbitrario.
La arbitrariedad, la afirmación cortante porque sí, porque lo quiero, porque lo nece-
sito, la creación de nuestra verdad vital – verdad es lo que nos hace vivir – , es el método
de la pasión. La pasión afirma, y la prueba de su afirmación estriba en la fuerza con que es
afirmada. No necesita otras pruebas. Cuando algún pobre intelectual, algún europeo mo-
derno, me viene con raciocinios y argumentos en oposición a alguna de mis afirmaciones,
me digo: ¡razones, razones y nada más que razones!
«Aquí – diréis – nada se prueba».
No fue español, aunque por ello merecía haberlo sido, sino inglés, el que escribió estos
perdurables versos:
For nothing worthy proving can be proven
Nor yet disproven: wherefore thou be wise,
Cleave ever to the sunnier side of doubt,
Diciembre de 1906
Nós, a Espanha, a Europa
Eduardo Lourenço
A Espanha e nós34
Eduardo Lourenço, 1988, “A Espanha e Nós”, Nós e A Europa ou As Duas Razões, Lisboa, Imprensa
34
tão distintas como Rodrigo Calderon, Inácio de Loyola, Teresa de Jesus, El Greco, Goya,
Buñuel ou Picasso, incorporações sucessivas do seu evidente agonismo, do seu gosto e
da sua paixão pelo que é extremo. Nos seus grandes indivíduos, que o são não o sendo à
maneira europeia, o povo espanhol é um dos raros povos da terra, se não o único – que é
sujeito da sua própria História. Este traço cultural, que ninguém exemplificou e “teorizou”
melhor do que Unamuno, não desapareceu da cena espanhola. Seria uma tristeza sem
nome que essa vocação para o “incomparável”, única na Europa, essa nota individualista,
mesmo no domínio que menos a consente, como o religioso, soçobrasse no caos resplande-
cente de uma “novidade” suscitada por atrasado mimetismo de culturas que não possuem
a espessura da que criou D. Quixote. Porventura custa sempre caro, para uma sociedade
no seu conjunto, estar como que condenada a suscitar “génios” que, além da excepção que
constituem, exprimem mais a sua “doença” colectiva do que uma certa mediania existen-
cial. Tudo se passou sempre com a cultura espanhola como se ela estivesse disposta a pagar
esse preço. E, quando o não está, desaparece do horizonte, ou conhece misteriosos eclipses.
De qualquer modo, foi sempre o que nela houve – ou há – de excessivo que a instituiu,
mesmo aos olhos de outras culturas dispostas a escandalizar-se ou a ironizar acerca desse
excesso, como uma das poucas culturas míticas do Ocidente.
Cultura agonicamente diferente – mais do que cultura da diferença, como outras –,
a cultura espanhola foi sempre vivida pelo resto da Europa como um fenómeno incon-
tornável, de permanente ambiguidade. Por sua vez, a Espanha especializou-se – ao menos
em certas épocas – em viver a sua relação com o “outro” como uma espécie de “mal neces-
sário”, ou de remédio, não menos necessário, para se salvar dos seus próprios fantasmas.
É por isso que o diálogo dessa Europa com a nova Espanha importa tanto à definição
cultural da sociedade espanhola, como ao destino da cultura europeia no seu conjunto.
Pela primeira vez, desde o século XVI (e ainda parte do XVII) existem as condições de
um diálogo intenso intra-europeu e como componente capital dele, a novidade de um
convívio partilhado e partilhável entre a pátria de Cervantes e de Goya e a outra Europa.
Estranhamente, o pequeno país seu vizinho, o nosso, de portugueses, pensa-se ou
vive-se por dentro, como fazendo mais parte dessa “outra” Europa do que do todo penin-
sular, marginalmente europeu, que a Península tem sido. Seria excessivo dizer que somos
“Europa outra” mas na nossa relação com a Espanha algo disso aflora. Mas chegou o
tempo de repensar a mitologia e o discurso onírico das nossas relações de estranheza, pois
talvez os actores dela estejam sofrendo neste momento uma metamorfose radical. Talvez
ninguém possa medir melhor do que nós, portugueses, o que representa, na labiríntica
história cultural da Europa, esta emergência espectacular da Espanha como nação de refe-
rência em todos os planos e, em particular, no da Cultura, onde, até há pouco, a víamos,
também, como subcultura” em relação ao espaço hegemónico europeu.
Espanha, esta nova e dinâmica Espanha, deve ser para nós um espaço privilegiado, natural-
mente apto e aberto não só para ler hoje Pessoa como nós líamos ontem Lorca ou Machado, a
título de excepção, mas para compreender os nossos jovens criadores em todos os domínios
como nós devemos compreender os jovens ou menos jovens autores espanhóis. Brandir
Gamas contra Colombos, solidificar um presente vivo em torno de polarizações míticas
sem sentido, é uma provinciana e absurda perspectiva. Até porque é fácil manipular o nosso
óbvio benfiquismo patriótico para iludir o sempre carenciado seio lusíada.
A grande questão cultural que temos hoje – embora em termos diversos e até, na apa-
rência, opostos aos de outros – não é com o outro em geral, e o espanhol, o francês ou o
americano em particular. A grande questão, para lembrar um dos poetas mais lúcidos do
seu tempo, é connosco mesmos enquanto sujeitos e actores de uma Cultura que no seu
espaço natural de irradiação – o que fala efectiva ou possível em língua portuguesa – não
alcançou nunca aquela visibilidade e presença que a cultura espanhola ostenta. São essa
visibilidade e presença de Espanha que permite ainda hoje ao seu Rei passear como em
casa, não apenas na “sua” (dele) América Latina, mas no hispânico espaço linguístico do
próprio Tio Sam. Justa reparação do destino para quem tão humilhada foi há um século
por um imperialismo mais jovem do que o seu. Mas mais natural reconhecimento de um
povo por conta de quem Colombo descobrindo-a inventou a América.
Natural e gloriosamente imersos na recordação dos nossos altos feitos, a aventura de
Colombo ocupa um lugar secundário na nossa memória cultural. Num dos seus poemas
menos felizes, Pessoa faz-se eco desse curioso recalcamento. Os “Colombos” são para ele
aqueles que acharam o que nos desdenhámos. Pouco importa aqui a “verdade-Colombo”.
Como mito não apenas espanhol, mas universal, tal como Claudel o celebrou, Colombo
adequa-se mais à figura daqueles a quem toca
a Magia que evoca
O Longe e faz d’elle história
“Emprestada” ou não, é a sua glória que a Espanha, a América e o mundo celebrarão
daqui a seis anos, convictos como os cronistas do século XVI que a sua aventura “é o mais
importante acontecimento da História desde a Encarnação de Jesus Cristo”. Nas celebrações,
o celebrado é um pretexto para o celebrante. É bom que nós, portugueses compreendamos
de uma vez para sempre que não é apenas nem essencialmente Colombo, o mais ditoso dos
homens do Destino, que servirá de pretexto à Espanha para orquestrar a sua fabulosa festa.
O que a Espanha vai celebrar tem menos a ver com o passado do que com o presente.
A Espanha vai comemorar, festejar o seu aggiornamento, recuperar em termos do século XXI a
sua imagem perdida ou diminuída. Esse acontecimento não é apenas espanhol. Todo o mundo
hispânico, a outra América estão envoltos nas consequências do achado de Colombo, em si,
uma peripécia de perfil anómalo no interior da empresa dos Descobrimentos. No fundo, por
De repente, Portugal descobriu Espanha. Podia ser uma excelente ocasião para se desco-
brir a si mesmo como naturalmente “hispânico”, mas os sinais apontam para outra tentação.
Ou antes, para o secular hábito que a nossa classe dirigente sempre teve de poder em paz
consumir sem sobressaltos a magra herança do nosso exíguo jardim. Chama-se a isto patrio-
tismo, nacionalismo, amor natural de preferência pelo que é nosso ou nós somos. Mas as
proporções que o fenómeno está tomando, o pânico real, imaginário e, sobretudo, cultivado,
que a nova Espanha começa a inspirar entre os guardiães desse nacionalismo, merece mais do
que esta simples alusão irónica. Protegido pela Europa de uma eventual absorção – fantas-
ma que, a sério, só durante os anos após a Restauração leva alguma consistência – Portugal
acordou de súbito com o sentimento kafkiano de ter dormido, sem dar-se conta, durante
três séculos, lado a lado, com a avó do Capuchinho Vermelho. Este pânico é uma aberração
e não é por acaso que está sendo encenado neste momento pelos herdeiros de tudo quanto
há de mais reaccionário no plano político e ignaro no plano da cultura. E como se isso não
bastasse, esses cavaleiros andantes da lusitanidade em transe patriótico ignoram que um tal
reflexo é a expressão crua da falta de confiança nas capacidades históricas do país real que jul-
gam promover mobilizando o que há sempre de infantil no chamado sentimento nacional.
Este surto do ultranacionalismo, de puro recorte ideológico e demagógico, surge pre-
cisamente no momento em que a Espanha também nos descobre, não apenas como espaço
(pequeno) de investimento económico, mas como espaço cultural digno de atenção e até
inspiração da geografia imaginando a nossa península como uma ilha e pondo-a a derivar
no Atlântico em direcção ao Sul. Com isso, José Saramago sugeria que a península não era
europeia ou que ele talvez não desejava que o fosse. Essa extravagante e original ficção é um
discurso acerca da península (não apenas nem sobretudo de ordem geográfica) suspenso pelo
fio de um certo complexo de ressentimento do que somos ou nos sentimos como peninsu-
lares em relação à Europa mas é igualmente uma reivindicação da nossa autonomia ibérica.
É o que eu nesse livro Nós e a Europa designei como dupla postulação em relação à
Europa: ressentimento e fascínio. No tempo em que nós, peninsulares, tínhamos o senti-
mento de não sermos vistos ou aceites como europeus de primeira, esse reflexo ou sentimen-
to de diferença e de uma certa excentricidade em relação à Europa tinha a sua explicação,
embora não a sua justificação. Isso sucedeu quando a Península entrou no que chamamos
a idade barroca separando-se histórica, e sobretudo simbolicamente, de uma Europa que
36
Intervenção no Colóquio “A Ibéria no Contexto Europeu”, Guarda, 26/11/2001, in Revista Iberografias,
nº 1 (2005). Guarda: Centro de Estudos Ibéricos. Republicado em: Vida Partilhada. Eduardo Lourenço, o
CEI e a Cooperação Cultural. CEI-Ancora, Coleção Iberografias Nº 21, pp. 61-67.
entrava plenamente na era burguesa, que tinha no protestantismo a sua tradução ideoló-
gica e, mais do que tudo, por complexas razões, começava a criar entre a prática científica
além-Pirinéus e aquém-Pirinéus uma distância que tanto nos faria sofrer e tão graves conse-
quências geraria, e que ainda hoje, pelo menos no que diz respeito a Portugal, são visíveis.
Começava então a problematizar-se a nossa relação com a Europa e essa Europa a pro-
blematizar a Península. Na verdade, quando tomámos maior consciência dessa Europa, já
então a duas velocidades, não era tanto a Europa que se constituía num problema para a
península, mas a península que era problematizada por essa Europa.
Hoje percebemos melhor que aquilo que mais tarde se transformou num tópico de que
a península era uma civilização, uma cultura em processo de decadência, quer dizer, em vias
de se afastar do paradigma clássico da modernidade, tinha pouco a ver com o olhar que a
Europa da revolução científica, económica e depois política e ideológica era ou considerava
a península. Era sobretudo o nosso próprio olhar de antigos e naturais actores de história da
Europa do séc. xv e do séc. xvi, conscientes de ter saído dos seus respectivos esplendores. Foi
só bem tarde que um certo discurso das luzes, já nos finais do séc. xviii nos começou a habi-
tuar à ideia e a insistir no nosso famoso atraso e a dar-nos conselhos para que o resolvêssemos.
No séc. xvii – no famoso século do Génio, o de Decartes, Pascal, Leibniz e Newton
– mas, sobretudo, no das sociedades científicas que começavam a marcar a paisagem cul-
tural europeia através das quais a ideia e o sentido de progresso entrava na história, – nin-
guém considerava as pátrias de Cervantes, de Lope, de Calderón, de Gracian, de Francisco
Manuel de Melo como uma ilha em vias de se separar culturalmente da Europa. O século
de Luís XIV não tem leitura sem a osmose profunda entre a cultura peninsular – então no
tentou impor ou jogar um jogo igual com as potências europeias mais representativas: a
Inglaterra ou a França. Portugal, nessa época integrado no projecto político da Casa de
Áustria, é então mais europeu do que nunca mais o será. Sê-lo-á ainda na Guerra dos Sete
anos, onde a Europa, independentemente do seu espaço de colonização se bate entre ela
ou em família. Nessa altura estávamos a ser Europa como um todo à força circunstancial.
Foi a Revolução e as guerras napoleónicas que puseram fim a esse artificial mas simpá-
tico equilíbrio. Com a chegada dessa era numa Europa que era ainda a da guerra de rendas
e com a Revolução, entrámos na época de ferro europeia, a que está terminando sob os
nossos olhos e somos excentrados da história da Europa. É a partir de então que as nossas
relações com a Europa, em todo o caso na vertente guerreira, económica, política e até
cultural, se problematizam. É então que a Europa se torna um problema para a Península.
Nós, portugueses, temos muita dificuldade em conceber como um todo o corpo pe-
ninsular. Como história, como política, mesmo como cultura, em sentido profundo, a
Península foram sempre “penínsulas” que se expressaram quer nos seus conflitos internos,
quer nas suas relações diferentes com a Europa e com o mundo. Portugal e a Espanha
viveram, durante séculos, destinos extremamente análogos, por vezes paralelos, mas sempre
como dois actores. Vivemos juntos, por exemplo, o período do fim da colonização espanho-
la na América? Vivemos juntos, – ou a Espanha viveu a nossa perda do Brasil como qualquer
coisa que a afectasse a ela directamente? Vivemos nós a perda, inclusivé, do fim do grande
império espanhol que tem lugar no fim do século xix em Cuba como se fosse qualquer coisa
que nos atingisse profundamente – e atingia – mas para o vizinho que suportava a dor e o
peso e a reflexão dessa perda? Tomaram os espanhóis as nossas dores quando a Inglaterra nos
enviou um ultimato colocando-nos naquele lugar que em termos de força e de potência e
de poderio ela considerava que era o nosso, quer dizer o mais subalterno realmente possível
e pouco europeu no sentido imperialista em que a Inglaterra se afirmava? – Não.
Como peninsulares, compartilhando a dupla face do conflito, portugueses e espanhóis
só realmente viveram e ressentiram em comum a tragédia espanhola, refiro-me natural-
mente à Guerra Civil. Mas essa tragédia não foi apenas peninsular nem única e verda-
deiramente espanhola. Foi um conflito específico onde a Europa e o mundo já estavam
implicados e que teria as suas consequências. Com o fim da Segunda Guerra Mundial e
sobretudo o fim do confronto entre leste e oeste, o nosso relacionamento peninsular com
a Europa sofreu uma alteração radical. Não tivemos nisso, nós portugueses nem espanhóis,
nenhum papel de actores, porque o sujeito dela foi a própria Europa.
Embora os traços das antigas querelas, ambições, medos e prevenções permaneçam, o
actual relacionamento do povo europeu, dos povos europeus uns com os outros e neles, os
nossos – de portugueses e espanhóis – essa problematização tradicional da nossa relação
com a Europa, mesmo no que nela havia de onírico ou de absurdo recolheu ao museu da
no seu conjunto, desde o norte até ao sul da Patagónia. Essa América não é o nosso pas-
sado, é, eu penso, neste momento, de uma maneira muito forte, o nosso futuro, no sen-
tido mais empírico do termo. Agora estamos já normalizados e felizes, de algum modo,
em termos europeus daqui. Mas a Europa não está normalizada nem feliz em termos de
Europa aquela que não tem mais horizonte do que essa própria Europa. Mas nós inventá-
mos, construímos – ou através de nós constituiu-se e inventou-se – uma outra Europa, e
em última análise uma Europa outra, a de um “novo mundo” que não está só no passado.
A famosa problematização do nosso destino que nos causava tantos problemas enquanto pe-
ninsulares que se viam como actores políticos de segunda grandeza, de segunda instância. Se nós
pensamos que, particularmente a América Latina, é filha directa da Península nós não podemos
ser problematizados a esse título. A esse título, já sem o sabermos, essa existência transatlântica
fazia que não sentíssemos tanto as humilhações que tínhamos em relação à “outra” Europa.
Estávamos construindo algo que nós nem sabíamos o que era, maior do que nós e isso não é o
nosso passado, isso é o nosso presente e penso que será realmente o nosso futuro. O nosso futuro
está naquilo que realmente inventámos, trazendo à Europa uma Europa que ela não conhecia.
ROTEIRO MIGUEL DE UNAMUNO –
EDUARDO LOURENÇO:
COIMBRA–GUARDA–SALAMANCA,
UM EIXO CIENTIFICO E CULTURAL
COIMBRA
Mientras arde e incendia la guerra por esa Europa dentro, ¡qué encanto el de vivir en el
remanso de paz de este rincón del pequeñito Portugal, lejos de horrores y junto al mar sus-
pirante! Y desde aquí, desde esta playa de Figueira da Foz, esto es, de la hoz del Mondego,
a ver una vez más la ciudad de encanto, cuyos pies bañan las lágrimas del Mondego,
henchidas de recuerdos de la tragedia de Inés de Castro.
Cuando al acercarme en tren se me apareció la visión panorámica de Coimbra, tre-
pando sus casas por la colina en que se asienta y dominada por la Universidad a que hace
cabeza su torre, la saludé como a una vieja conocida. Es una torre académica, no una torre
eclesiástica, la que corona a la ciudad, académica también, de Coimbra. Ninguna de sus
dos catedrales, ni la vieja ni la nueva, se destaca para lo lejos.
La catedral nueva de Coimbra, iglesia del antiguo colegio de jesuítas, debido a la
munificencia de D. Juan III, es un templo... jesuítico. Nada tiene que admirar. Mas en
cambio la antigua – a Sé Velha – , que recuerda nuestra catedral vieja de Salamanca, es una
especie de fortaleza románica del siglo XII, que produce en el inteligente que se alberga en
la robusta solemnidad de sus naves un sentimiento como de rejuvenecer nuestra vieja alma
cristiana colectiva. Una dulce penumbra de edad media invade al espiritu, que se siente
asentado sobre si mismo al ver la poderosa fábrica asentarse como si arraigara en tierra. Es
una fuerza que desciende y posa, y no una que se levanta como en las catedrales góticas.
74 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço
37
Miguel de Unamuno (1922), Andanzas y visiones españolas. Renascimiento, Madrid, pp.: 134-141.
Allí, en Santa Cruz, y en un magnífico túmulo, duerme, sin oir ahora el fragor de la
conflagración europea, don Alfonso Enríquez, el fundador de la monarquia lusitana.
En este viaje no cruce el río para ir a ver la sepultura de la reina santa, Isabel de
Portugal, la aragonesa. Y lo sentí.
Deseaba volver a ver la hermosísima imagen en talla de madera y policromada de la
santa reina, obra de este maravilloso escultor, Teixeira Lopes, que aún puede producir
nuevas obras maestras. Recuerdo que esa imagen, cuando la vi por primera vez, hace unos
años, me hizo la impresión de algo aéreo, de algo sólo línea y color, sin tangibilidad, de
algo que se elevaba como una llama dulce.
Y como no pasé el puente, tampoco volví a ver la Quinta de las Lágrimas, la de la
leyenda de Inés de Castro, la que inmortalizó con una estrofa eterna Camoens, la que
Mauricio Barrés no quiere morirse sin baber visitado.
Visité, en cambio, el monasterio de Celias, cuya última monja, benedictina, murió
en 1883. En aquel recojido claustro, hoy desierto, todo luz y reposo, entre aquellos his-
toriados capiteles del siglo XIV, !cuán lejos nos encontrabamos de la brutal tragedia que
está asolando a Europal Pero en medio de una silenciosa tragedia también, de una tragedia
mansa e idílica, a la portuguesa. Acompañábanme mis tres hijos mayores y el gran poeta
portugués Eugenio de Castro, con el mayor de los suyos. Y yo espero algo de la pluma de
Castro sobre ese humilde claustro benedictino de pobres monjas.
Mas en Coimbra lo que hay que ver, ante todo y sobre todo, es su Universidad, aunque
no sea, como monumento arquitectónico, lo mejor, ni mucho menos, que la ciudad tiene.
Pero es la verdadera razón de ser de ésta, su hogar.
pero asi como a este Pueblo no se le conoce por sus filósofos, sabios, técnicos o eruditos – y
eso a pesar del formidable comtista Teófilo Braga, a quien he visto hace poco apodado, y
no sin gracia, homo sapiens lusitanus – y si por sus grandes descubridores, por los heroicos
marinos que abrieron las islas Orientales y buena parte de las Occidentales, y por algunos
de sus poetas – aunque estos menos conocidos que merecen – ; asi creo puede asegurarse
que en el genuino estudiante de Coimbra el amor era más que el estudio. El amor a mujer,
quiero decir, no el amor a la ciencia.
Aunque, ¿es que en el fondo son cosas tan distintas? ¿No serán mas bien una sola? ¿No
habrá algo de mas profundo que algunos creemos en aquello de identificar la tentacion del
conocimiento, de probar la fruta del árbol de la ciencia del bien y del mal, con la tentacion de
la carne… de mujer? He protestado más de una vez de esta identificacion y del sentido grosero
que por lo común se da a la profundísima leyenda de la calda paradisíaca y del pecado original,
pero no habrá en ello algo mas sabio de lo que creemos los que contra ello nos revolvemos?
En la ciencia, en el conocimiento de las razones de las cosas, de la ley de los movi-
mientos, en la matemática, en fin, buscan unos hombres y unos pueblos el secreto del
universo, de la vida y de la muerte. Otros le buscan en la religión y rogando a Dics que
nos lo revele, rogándole tal vez – ! tremenda paradoja! – que nos diga si existe y es algo
más que nuestro anhelo de divinización, pidiéndole, como los judíos, señales. Y hay quien
busca en el amor el secreto de la vida, de la muerte y del universo, y su razón de ser.
Tal creo, aquí, en Portugal.
Quien haya leido en los poetas portugueses, y sobre todo a su gran lírico erótico y
elegíaco – ¿pero es que cabe ser lo uno sin lo otro? – Joao de Deus, sabrá bien que no hay
otra literatura alguna en que el amor haya hablado una lengua tan directa, tan sencilla, tan
pura, tan libre de pedantería. Como que aquí apenas hay otra pedanteria que la del amor.
Y el amor hermano de la muerte, el que cantó Leopardi, el que cantó también Antero,
el portugués, el poeta suicida, en aquel admirable soneto Mors-Amor.
En un negro corcel, tenebroso y sublime, a quien le estremece no se sabe que horror
en las agitadas crines, cabalga un caballero de expresión potente, formidable, pero de porte
plácido, vestido de reluciente armadura, y el negro corcel dice ser la muerte y el caballero
responde que es el amor. Amando se suicida Portugal, buscando en el amor, en el amor a
la mujer, el secreto de la vida. Ahora, deslumbrados por lo que oyen de la gran tragedia de
la guerra europea, y para hombrear con su alianza con Inglaterra, hablan a las veces de dar a
ésta tantos o cuantos miles de hombres – ! hay que ver estos soldados! – pero eso es para
pasar el rato. Lo mismo en república que en monarquía el gran problema portugués es o
namoro, el amorío. ¿La guerra? Todos pueden decir aquí lo que Antero en aquel soneto:
Em quanto outros combatem:
Esto no es decir, claro está, que aquí no interesen a nadie los grandes problemas fi-
losóficos, religiosos, científicos y artísticos. Es mas, la escasa producción intelectual por-
tuguesa hace que les sea aquí necesario conocer otras lenguas, y entre los estudiantes hay
aquí muchos más que en España que conozcan bien el francéss y aún el inglés aunque en
esto se haya adelantado enormemente en estos últimos años en mi patria. Coimbra tiene
menos población que Salamanca, aunque el contingente académico sea en aquella mucho
mayor que en esta. Coimbra es una ciudad predominante y casi exclusivamente acadé-
mica de comercio e industria parasitarias, mientras que en Salamanca, centro agrícola y
pecuario, hay un comercio activo y hasta alguna industria. Pues bien, Coimbra, siendo
menos populosa que Salamanca, se encuentra mejor surtida de libreria. Ahora sí, en las
dos o tres grandes librerias de Coimbra se encuentran libros franceses, ingleses – españoles
muy pocos, poquísimos, y ellos malos, “de esas infames bibliotecas económicas y la mayor
parte malas traducciones de libros malos – y, fuera de los de texto pocos, poquísimos libros
portugueses.
Y es que el libro portugués tiene una circulación limitadísima, sobre todo si es clásico.
Los grandes clásicos portugueses, sus cronistas, sus historiadores de Indias, sus poetas re-
nacentistas, apenas si se los lee. Un editor tiene aquí que contar con el Brasil, y en el Brasil
no interesan las cosas clásicas; en el Brasil – me dicen aquí – apenas se lee sino superficia-
lidades frivolas o esas cosas científicas hediendo a pedantería positivista, noveluchas bule-
varderas o elucubraciones sociológicas, y yo no se que es peor, si la bagatela o la sociología.
Estuve un rayo oyendo las quejas del benemérito editor coimbrano Franca Amado.
Me regaló, entre otras cosas, la vieja crónica del condestable Nunalvares Pereira, y la estoy
leyendo. Pero cuántos habrá que lean estas cosas, y más en estos dias? Y, sin embargo, para
límpiarse la vista y los oídos de lo que se lee y se oye de esta guerra, hay algo mejor que
leer cosas asi? Cabe mayor descanso de la baraúnda periodística acerca del combate de
Lieja que leer la Peregrinaçam, de Fernan Mendes Pinto, aquel aventurero portugués que
anduvo por el Extremo Oriente cuando eran aquellas tierras un misterio todavía?
No, no, nada de vivir al día; hay que vivir a los siglos.
Coimbra, Coimbra, tierra de encanto, ciudad bautizada por las lágrimas de Inés, vive-
ro de la poesia de un pueblo que vive por el amor y por el amor muere, Coimbra posada
78 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço
Por ordem deste curioso colóquio centrado não sei porquê na minha pessoa, tenho que
cumprir este exercício narcísico de estar aqui, direta ou indiretamente, a referir-me a parte
do meu percurso de vida.
Quero, antes de mais agradecer a todos os que tiveram a gentileza de vir até aqui nesta
manhã um pouco sombria, em particular à grande Helenista, Doutora Maria Helena da
Rocha Pereira, de que tive a sorte de ser o primeiro condiscípulo na Universidade que nós
frequentámos já há longo tempo, e que tem sempre a gentileza de ter acompanhado de
uma maneira ou de outra o percurso deste amigo voador, difícil de localizar e mesmo de
algum modo in-localizável.
Também queria agradecer ao Senhor Prof. Fernando Rodríguez de la Flor, grande pro-
fessor universitário de Salamanca, especialista do Barroco e que tem tido a gentileza de par-
ticipar nos trabalhos do Centro de Estudos Ibéricos e dar, com outros, a presença concreta
a esta ideia que esteve na génese do Centro, uma espécie de três pólos sobre os quais nos
se inscreve o conceito do CEI. Três pólos não será uma figura geométrica muito correta,
mas é a realidade, e desses pólos, dois são as duas universidades mais importantes da penín-
sula, podendo mesmo dar uma ordem de prioridade, e sobretudo, de eficácia no tempo,
à Universidade de Salamanca, que foi um dos grandes centros universitários, não apenas
ibéricos mas europeus, que uma parte dos nossos estudantes frequentou, da Idade Média
muito subjectivista e romântica, uma vez que a geração de que eu estive próximo em certo
momento estava muito implicada numa luta já de um novo tipo, ideológico e político, que
se reclamava das tradições europeias e até universais. Desde a revolução de 1917 a Europa
continuaria, durante mais de setenta anos, a ser confrontada com essa ideologia que pre-
tendeu, pretende e continua a pretender ser uma ideologia de alcance universal. Na minha
geração muitos dos meus amigos conheciam e eram influenciados pelas teorias Marxistas
e o que havia ali era a ideia de que o país onde a revolução se tinha dado era um novo
horizonte, não só ideológico, mas até cultural, e que durante mais de cinquenta anos foi
um dos pólos em torno dos quais girou toda a cultura não só a europeia, como a universal.
Em Portugal estas coisas eram muito atenuadas mas a verdade é que essa geração
deixou marcas, bem patentes no famoso texto do Antero em que se refere à “primeira
geração que teve consciência que saía dos carris de tradição”, que, a par do texto de Eça,
ficou como uma das referências culturais para a minha geração. Nos anos setenta quando
se celebrou o centenário da Geração de Setenta vim a Coimbra fazer uma conferência e
sugeri que esta Coimbra devia ter uma lembrança de Antero de Quental completa, viva,
erigindo-lhe uma estátua. Até hoje. Antero teve realmente que pagar aquele atrevimento,
aquela audácia, aquele desafio a todo um passado cultural, para além do desafio a si mesmo
que pagou como se sabe. Antero de Quental continua à espera que seja um dia homena-
geado nesta terra como merece. Para a minha geração ele pertence aquelas referências, aos
ícones culturais e de memória, para além de ser um grande poeta.
Ainda que promovamos a adolescência a primeira juventude ao momento mítico do
silêncio, a verdade é que cada geração se reinventa e se remitifica, sobretudo numa cidade
como esta, uma cidade com todo um passado cultural extraordinário e ao mesmo tempo
uma cidade de onde partiam iniciativas e movimentos, quer poéticos quer ideológicos, de
grande importância.
Nos anos sessenta, quando o país é confrontado com uma das maiores crises da sua
história, quando o império português é ameaçado pela onda da descolonização e se apro-
xima o seu crepúsculo, também há uma geração e que deixou marcas na história por razões
de ordem ideológica e política. As universidades são sempre focos de contestação poten-
tes, mas eu já não vivi cá esse tipo de mitologia, mas em França, no famoso Maio de 68.
Mas aqui são razões nacionais, de uma juventude académica que vai ser confrontada não
só com o desafio genérico em relação ao estatuto do país como país independente e dos
últimos países colonizadores.
Coimbra tem todo esse percurso e quando começam a aparecer outras universidades
pelo país, sobretudo depois de Veiga Simão, o paradigma continua a ser, às vezes caricatu-
ralmente, o paradigma coimbrão – tudo quer ser a sua Coimbra. O meu período coimbrão
foi, do ponto de vista cultural, decisivo e foi aqui nesta cidade que aprendi alguma coisa.
Largo da Portagem e inicio da Rua Ferreira Borges. Rua Ferreira Borges, no cruzamento para a Porta de 91 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço
Sobre a esquerda o Memorial a Miguel Torga sob a Almedina. No edificio de esquina funcionou a livraria
janela que foi do seu consultório (RJ) Coimbra Editora (RJ)
Coimbra: lugares onde viveu Eduardo Lourenço
Entre los diez y siete lugares de Portugal que merecen ser visitados, según reza en el
mapa excursionista que en los vagones de primera de los trenes ha hecho fijar la Sociedad
Propaganda de Portugal – cuyo lema es pro patria omnia – , no figura Guarda. Pero siem-
pre que había yo pasado por la línea de Beira, ya al ir, ya al volver, habíanseme ido los ojos
tras de aquella ciudad que allá en lo alto, sobre la montaña, levantaba sus torres contra el
cielo. El que la Sociedad ésa no nos la recomende era razón de más para que me escociera
el visitarla. Y allá fuí, de vuelta de Lisboa, á quedarme un día.
¿Guarda, Guarda, de qué? Oigámosle á Tomás Ribeiro, en su lamentable Don Jaime.
Dice: «No cimo de monte inhóspito – junto da nevada Estrella – , se ergue urna cidade e
n’ella – que vamos, leitor, entrar. – E fría, ventosa é húmida – feia, denegrida e forte – que o
reino, contra a má sorte – era obrigada á guardar – . Por isso é guarda ó seu nome – pois sem-
pre voltada á Hespanha – , de pé na sua montanha – á espía no seu lidar – . E hoje, rotos os
muros – veterano sem guarita – , ja sem farda e sem marmita – mas sempre firme aguardar!»
Y allí pase un día, todo un mortal día, en esa Guarda fría, ventosa, húmeda, fea,
denegrida y fuerte, que vigila España. Tiene razón la Sociedad Propaganda de Portugal.
Pero cuando se llega a un sitio hay que sacarle el jugo, sobre todo nosotros los forza-
dos del cálamo. Es cosa terrible esto de ver algo para escribir de ello más bien que escribir
porque se ha visto. Pero el oficio... y, una vez allí, no iba a perder el viaje.
94 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço
38
Miguel de Unamuno. Por tierras de Portugal y de España, 1911.
Voy á ver la puesta del sol; un incendio volcánico entre montañas de ceniza. Y luego
me envuelve la melancolía otoñal de una villa desconocida. Pensando en cosas melancóli-
cas voy á comer, que es una brutalidad fisiológica independiente del alma, según Camilo.
Por fortuna, los últimos días de Noviembre son muy cortos y pude acostarme á las
siete, con una novela de Camilo á la cabecera de la cama. No sin antes dar un paseo por la
villa y pararme ante la imagen del rincón del arco para pensar: ¡de qué tragedias calladas
habrás sido mudo confidente!
Y luego, ¡qué encanto el que le despierte á uno el sol en un silencio puesto de relieve
por lejanos y apagados toques de corneta militar, por campanadas de la iglesia próxi-
ma. Incorporarse y leer otra vez Camilo. Leer Camilo es viajar por Portugal, pero por el
Portugal de las almas.
Salí á ver la Catedral, por fuera más de ver que por dentro. Tiene, sin embargo, su
adusto carácter de fortaleza, y desde la terraza un hermoso panorama. Todo el anfiteatro
de montañas de la sierra de la Estrella, y al otro lado tierras de España.
Uno de mis desencantos fueron las farmacias. Son nuevas, modernas, hasta elegantes.
Yo soñaba con ver la vieja botica del padre de Tomasa, la heroína de “O filho natural”, de
Camilo, que acabo de leer, y en esa botica el tierno practicante enamorado.
¡Estos personajes camilescos!... Los llevo tan grabados como los de Dickens; éstos están
pintados a la flamenca, botón por botón y pelo a pelo, y los otros a cuatro brochazos; pero
en vida no les ceden.
Fuí a ver el Liceo, un Liceo nacional donde se cursan los cinco primeros cursos, con
unos 150 alumnos. Cosa deplorable, pobrísima, de la que lo mejor es no hablar.
11-908 y firmado Joaquim Martins. (Estos detalles vienen a que se vea que quiero ser pro-
lijo y documentado. Y no se me negara que, aunque escribiendo de cosas contemporáneas,
soy en ellas erudito.) El cual comunicado empieza de esta solemne manera: «todo silencio;
como el gran criminal refugiado en el bosque, donde la menor sombra o el más vago
ruido le amedrenta. Silencio vergonzoso que viene denunciando un pedir tregua para que
no vaya a levantarse la cortina que nos esconde asuntos criminosos, tal vez de la más alta
significación. El asesino, después de consumar el atentado que llevo a efecto con gran pre-
meditación, termina su obra, pónese en huída, y hermánase con el remordimiento; pero
las entrañas ferinas siguen insaciables de sangre. Así el señor presidente de la cámara...»
es decir, lo que en España llamamos el alcalde.
Díganme ahora si este preludio es solemne. Empieza con aquel solemnísimo “todo
silencio” – ¿lo habrá tomado de alguna novela de Pérez Escrich ? – y luego viene lo de
hermanarse con el remordimiento y lo de las entrañas ferinas. Y todo ello es metafóri-
co, altamente metafórico, pues no se trata de asesino alguno, sino solo del pobre señor
presidente de la cámara.
El resto del comunicado es de la misma fuerza cómica inconsciente. Hablase en el de
quien «le escalpele las heridas llenas de pus repugnante» al señor presidente de la cámara mu-
nicipal de Sabugal, por nombre – ¡Quede para siempre en la picota! – José Fernandes Simoes
Junior. Y todo ello, según puede adivinarse, por haber cambiado de partido y caciquear.
Un diario de una de estas ciudadillas perdidas entre campos y aldehuelas, es un te-
soro de humorismo. Su lectura desopila el hígado – y empleo aquí una expresión muy
pintoresca que he aprendido en Portugal, donde aún se usan muchas por el estilo.
¿Qué iba á hacer en aquella Guarda, en aquella terrible Guarda, sino comentar el dia-
rio local republicano? Los compañeros de mesa que me veían tomar notas del modestísimo
periódico, se dirían: ¿quién será este sujeto y para que tomara esas notas? ¿Y no es acaso
uno de los encantos en los viajes el de intrigar a los que nos ven y, si es posible, hacerse
pasar por personaje misterioso?
Y otra vez a correr las calles y ver a aquellos estudiantinos que, dejando en el suelo sus
remendados manteos, se ponen a saltar al burro, agitándoseles los faldones de las levitas.
Suenan acaso en Coimbra, en la hermosa Coimbra, henchida de leyendas estudiantiles.
Y yo también, al verlos, me acuerdo de Coimbra, y de los días que, hace ya unos años,
pase en ella, en aquella encantadora Coimbra, donde resbala el Mondego entre los chopos
sollozando las estrofas que Camoens dedicó a Inés de Castro y murmurando cantos de
Joao de Deus.
¿Qué tendrá este Portugal – pienso – para así atraerme? ¿Qué tendrá esta tierra, por de
fuera riente y blanda, por dentro atormentada y trágica? Yo no sé; pero, cuanto más voy a
él, más deseo volver. He llegado a creer si no será que estos extremos occidentales se han
Neste século, há apenas trinta e poucos anos, Vergílio Ferreira consagrou à Guarda da
sua adolescência, fremente e inquieta, a mais espectral evocação que o antiquíssimo burgo
de D. Sancho mereceu até hoje. Não por acaso, esse seu romance se chama Estrela Polar,
estrela álgida, solitária, a quem incumbimos da missão de nos guiar na noite escura do
mundo. A ele voltarei.
O mesmo Vergílio Ferreira, sempre tão presente na minha lembrança, num discur-
so memorável, em Bruxelas, disse que da nossa língua se vê o mar. Ele pensava, como
todos nós, na numerosa corte de poetas, que desde os cancioneiros a Sophia de Mello
Breyner, passando por Camões, Antero, Nobre, Pessoa, envolveram a nossa imagem de
portugueses nas ondas do mar, que nos foi destino. É curioso que o tenha dito, porque
da sua língua natal, da língua desta beira serrana e da sua capital, cercada de um silêncio
de séculos, físicos e simbólicos, não se vê o mar. Sabe-se que existe, pressente-se talvez,
adivinha-se, sonha-se com ele como Adamastor com uma Tétis que o não anda cercando.
O mar é, e foi-nos, porta para o mundo. Mas o destino desta velha terra, consagrada à
defesa e vigilância de um pequeno reino, que não sabia ainda que seria grande e disperso
como um arquipélago, não era o da viagem mas o da vigília, do ensimesmamento e, em
todos os sentidos do termo, da solidão. Da grande solidão das Beiras falou o etnólogo e
antropólogo Jorge Dias.
Oração de Sapiência de Eduardo Lourenço na sessão solene das Comemorações dos Oitocentos Anos da Guarda,
39
26 de Novembro de 1999. Publicado em Baptista, Maria Manuel (2005). O outro lado da lua – A Ibéria segundo
Eduardo Lourenço. Guarda: Campo das Letras/Centro de Estudos Ibéricos.
Guarda. Rua Alves Roçadas e, ao fundo, a Igreja da Misericórdia (RJ)
Estas terras, esta cidade e a muralha intermitente de castelos com que o céu se em-
parceirou, não eram ainda a ex-fronteira sem emprego de um país com os olhos no vasto
mundo, mas os guardiães da casa comum que confiava na sua vigilância. Em nome de
100 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço
xa e mais divertida, em todo o sentido do termo) mas é uma interioridade que é sobretudo
intimidade, longa conversa de séculos sem eco planetário nem sequer caseiro. Assim foi
no passado ou assim pensamos que fomos, pelo menos quando nos contemplamos nos
espelhos, acaso mais imaginários que reais onde os outros se nos mostram mais satisfeitos
de si do que nós o somos.
No presente, esta Beira e esta cidade multicentenárias e mais jovens do que eram nesse
passado sem regresso, adivinham-se ou apraz-me imaginá-las como um grito suspenso,
uma sufocação insuportável e inconformada com a sua herança insuficientemente parti-
lhada com o resto do país e do mundo, uma espécie de grito contido à espera de hora e vez.
Li, não sei onde, que as gentes desta cidade de alturas se interrogavam seriamente a
respeito do que devia ou deve ser a sua vocação. Creio que o texto não se referia a nenhum
projecto ou programa de vida de configuração pragmática, de tudo quanto é necessário e
urgente para que esta velha e um pouco melancólica capital de distrito ascenda aos níveis
de conforto, de vida, de progresso cultural, dignos de uma cidade moderna neste tempo
e em Portugal. Suponho que a Guarda, ou quem escrevia por ela, sonhava com qualquer
coisa que lhe desse um perfil particular, que lhe definisse, se não uma missão, uma vocação
que desse sentido ao seu futuro.
Estar na fronteira como sempre esteve, mas agora mais próxima da Europa do que o
resto de Portugal, não acordou nela outras exigências e uma outra vocação? A Beira, com
a sua cidade, está mais no caminho da Europa até nós do que de nós até à Europa. Foi
sempre assim. A Europa passa-lhe à porta, mas pouco mais do que isso. Compreende-se
que um genérico projecto europeu a não contente ou exalte ou esteja fora do seu alcance.
Esse é o projecto de Portugal no seu conjunto.
Que resta à Guarda? Mobilar melhor a sua estelar solidão histórico-cultural, sem ter,
enfim, o sentimento de a quebrar?
Só os caros cidadãos egitanienses podem definir os seus sonhos e as suas aspirações.
Para quem de dentro e de fora contempla a nossa altiva solidão, o caso não parece deses-
perado. O mar, que a Beira e a sua cidade não receberam em companhia, está há séculos
diante desta cidade. Como ameaça mais ou menos onírica, mas simbólica para a sua e
nossa identidade. Já não se chama Castela, chama-se Espanha, não porta para a Europa,
mas a Europa vizinha, a Europa próxima, interland natural do nosso rectângulo mágico.
Em suma, que a mais lusitana das fronteiras, no momento em que elas se apagam,
podia ser a mais ibérica e dialogante das terras, a do diálogo aberto e vivificante com o
deserto de que nos separámos e continuou a florir em nós no silêncio. Cumpre-nos a nós
ser o elo natural do novo diálogo em que a invenção da Europa converteu a Península. O
futuro o dirá.
E aqui suspendi o texto porque parecia que estava cometendo uma heresia, ou que as
Antigo Convento de S. Francisco onde estave instalado o Batalhão de Caçadores 7 e Eduardo Lourenço,
em 1947, prestou serviço militar como oficial miliciano (RJ)
Liceu Afonso Albuquerque, Rua Batalha Reis (RJ)
actual Escola de Santa Clara (RJ)
CEI (Centro de Estudos Ibéricos), instituição de que Eduardo Lourenço é Diretor Honorífico (RJ)
Fronteira, traço de união:
espaços e aldeias Raianas
España está, en gran parte, todavía por descubrir y no menos en el aspecto pintores-
co que en otros diversos aspectos. Nuestra principal producción lo es de productos en
bruto, de primeras materias, de lo que se llama caldos, por ejemplo, más que de vinos
elaborados com arte. Nos enamoramos fácilmente de lo tosco y bravio, hasta de lo basto,
y tendemos con frecuencia á desdeñar el refino que á la naturaleza presta el arte, que es, á
su modo, una segunda naturaleza. Llévase esto á punto de desdeñar en todo los debidos
trasiegos y decantaciones.
Así sucede con nuestros paisajes, que permanecen en bruto, como primera matéria
de recreo y solaz para el espíritu, por falta de viajeros que los refínen á nuestros ojos con
artísticas descripciones. Porque es indudable que mucho de la belleza de un paisaje está en
los ojos que lo miran y que los educados á mirarlo le sacarán mucha mayor substancia de
beleza que los incultos.
No crea el lector por lo dicho que vengaá descubrirle ningún Mediterráneo ni á embe-
llecer desconocidos paisajes; vengo sólo á indicar el rumbo de uno de tales descubrimien-
tos y quiera Dios que alguien logre sacar á flor de vista hermosuras enterradas en un casi
abandonado rincón de esta provincia de Salamanca.
La Sierra de Francia con su famoso santuario y proverbial retiro de las Batuecas se lleva
112 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço
en la provincia de Salamanca la fama del paisaje y casi nadie se acuerda de los arribes de
la ribera del Duero y de su hermosísimo retiro, hoy en ruinas, de Laverde. Y, sin embar-
go, yo, que he visitado una y otra región, no sabria á cuál otorgar mi preferencia como
desinteresado espectador.
Baja el Duero por tierra de Zamora tendido en la llanada y espaciándose por ella, mas
al ir a entrar en la provincia de Salamanca, dividiendo á ésta de Portugal, hacia donde le
rinde el Tormes sus aguas, entre Fermoselle y Villarino, se meten las entrañas de la meseta
castellana para ir a entrar en la tierra portuguesa. Resquebrájase la meseta en hondos des-
garrones, mostrando al descubierto sus berroqueñas entrañas, pedernosos cimientos de la
ceñuda tablada de Castilla. El agua terca, que talla las rocas gota á gota con secular trabajo,
ha ido carcomiendo su peñascoso lecho y buscando salida entre esquinces y revueltas.
A la distancia nadie adivina el hondo tajo por donde el Duero corre: la ondulante llanada
parece ir á perderse suavemente y sin solución alguna de continuidad en las estribaciones
de la sierra de la Estrella, que cierran, hacia Portugal, el horizonte. En uno de los repliegues
40
Notas de un viaje por la raya de Portugal ilustradas con 15 fotografías. In Hojas Selectas. Revista para Todos.
Año Cuarto. Barcelona, Establecimento Tipo-Litográfico Editorial de Salvat Y Cª, 1908.
Fermoselle (SS)
Fermoselle (SS)
cinco partes del mundo. Sólo en Buenos-Aires, me han asegurado que pasan de cien los
fermosellanos alli establecidos. Cuando pasamos por Fermoselle llenaba aquellos contor-
nos con su fama el Doroteo, de fin trágico, un imitador de Juan Moreira el gaucho, el cual
Doroteo murió cazado por el pueblo un día de Corpus. De el he de escribir.
De Fermoselle, por entre empinados berruecos, bajamos al Tormes para cruzarlo y
pasar á Villarino. Y es inolvidable la paz inmensa de un río que discurre en lecho de pie-
dra, entre árboles que agarran á la roca con sus raíces. El recato del agua en estas soledades
infundem pureza en quien lo mira.
Antes de entrar en Villarino, á poco de haber subido del Tormes, nos desviamos para
montar al teso de San Cristóbal, en que se celebraba aquel día, uno ó dos de Mayo, ro-
mería. Y no la olvidaremos nunca, pues la llevamos agarrada á los hondones de la retina
del espíritu. En aquel teso de piedras, como amontonadas para contemplar más piedra,
crecen azucenas, y allí, ante la ermita, en una explanada, bailan mozos y mozas, á la vista
de las vastas soledades. Ellos de traje pardo, obscuro, y ellas con sus refajos y dengues gual-
dos, rojos, verdes ó morados, parecían al danzar acordadamente, al compás del tamboril,
gigantescas flores de retama, brezo y azucena, sacudidas por un viento loco. Era el palpitar
de la vida en el regazo pedernoso de la ceñuda Castilla. Un enorme berrueco, casi redondo,
coronado por una banderita, presidía la fiesta.
Atravesamos Villarino por frondosas arboledas, camino de Pereña, y hubo un trecho,
en un ancho descampado, en que tuve la sensación inmediata de lo que por noticia reflexi-
va sé, y es que en estas llanuras castellanas todo es cima. Senti hallarme en la cumbre de
una vastíssima montaña, cumbre que se pierde de vista en redondo.
Ya tarde, cuando se derretían las sombras invadiéndolo todo, dimos vista á la cascada
de los Humos, entre Pereña y Masueco. Habíala visitado en mi primer viaje á la Ribera, en
1898. Entonces fuimos desde Masueco por una deliciosa quebrada, festoneada de frutales,
hasta avistar el agreste paisaje, en el tajo de un afluente del Duero. A un lado se alza, do-
minando la barranca, un inmenso cuchillo de roca, y tras él se pierde la garganta del rio.
Vadeando éste y por un senderito de un empinado arribe, se da plena vista á la cascada.
Es singular la atracción del agua. Estaríase uno las horas muertas mirándola fluir y
oyéndola rumorear, dejándose ganar el espíritu por la sensación purísima que su constante
curso nos produce. El agua es acaso lo que nos depara mejor imagen de la quietud en el
movimiento, del reposo supremo que del concierto de las carreras de los seres todos surge.
En un estanque duerme el agua espejando al cielo, pero con no menos pureza lo espeja en
el cristal de un sosegado rio, cuyas aguas, siempre distintas, ofrecen, sin embargo, la misma
sobrehaz siempre. Y en la cascada misma, por donde se despeña bramando, preséntanos
una vena compacta, una columna que acaba por parecer sólida. ¡Enorme fuerza la que, sin
aparato alguno de ella, con la sencillez del coloso, despliega! Hubiérame estado las horas
medio de región montañosa, en el interior de algún país alpestre. Nadie diría que ganando
las crestas se extiende á la vista la inmensa meseta ondulada.
Se da vista al Duero y con él á un paisaje dantesco, tal cual Gustavo Doré los ima-
ginara. En lo alto apuntados picos que asoman al abismo, peñas y aserradas crestas: á lo
largo inmensas escotaduras que encajándose de un lado y de otro, en la disposición lla-
mada de cola de milano41, forman la garganta por cuyo hondón corre el rio. Los enormes
cuchillos van perdiéndose en gradación de tintas hasta ir á confundirse en la lontananza.
Allí arribota, arribota, en la cresta del escarpado frontero, verdean trozos de trigo, nun-
cios de una campiña serena, y asoma su copa algún que otro arbolito que denuncia á
un pueblecillo portugués. Juegos de luz animan la dantesca garganta: peñas en claro se
destacan sobre el tono obscuro de las peñas en sombra, y allá en lo alto, dominando al ce-
ñudo paisaje, algún milano se cierne empapándose en luz. Suben del río perezosas nieblas,
El novelista catalán Mariano Vayreda tiene en Sanch nova una expresión muy gráfica para designar esto, y
41
es que las sierras se compenetraban alternadas como los dedos de dos manos en cruz (alternades com els dits
de dues mans en creu).
que se agarran á los peñascos, fingiendo sus almas que de ellos se desprenden con pesar.
El Duero, que dibujando su vena central, su líquido senderillo de espuma, corre encajo-
nado en el fondo de estas gargantas, es el mismo que pasa solemne y amplio, abrazando á
la feraz llanura, y como gozándose en ella, por tierra de Zamora. Todas estas gargantas son
obra de él, labra de la lenta labor del agua. El fuego bosquejó á la tierra su esqueleto, dio el
bloque, y es el agua el artista pacienzudo y tenaz que modela sus contornos.
En el fondo de estos tajos incuba el sol que da gloria. No lejos de Laverde hay en
la garganta un paso llamado de la Bodega, tal vez por esta incubación. El sol caldea los
arribes, resguardados de los vientos y las brisas que hielan la meseta, y saca de ellos una
vegetación potente y propia de otras latitudes. Crecen olivos ingeridos en zambullo ó ace-
buche, tapizan las vertientes oloroso tomillo, flores de monte, nardos; la cubren gamonas,
jaras, madroñeras, anguelgues, jidigueras ó cornipedreras, y retuerce sus recias y nervudas
ramas entre rocas el bravio joimbre (42), cuyas raíces luchan con las entrañas de la peña
para dar de beber á su enmarañada mata luz del sol. La mano del hombre ha acudido á
fomentar la naturaleza. En los repliegues de los arribes dan al sol su tono de verde claro
los limoneros y crecen los naranjos, y aqui y allí salpican al tinte pardo de los escarpes
los blancos copos de los almendros en flor. En poyatas ó tablas talladas en el terreno y
sostenidas por paredones, se alzan olivos.
En una de estas laderas del tajo del Duero, en medio de los restos de una que debió
de ser huerta frondosa, se alzan las ruinas del convento de Laverde, retiro en un tiempo de
frailes menores. En la poterna, sobre la puerta y debajo de un escudo con los cinco estigmas
franciscanos, se lee, enteramente ahumada, esta inscripción: «Entre la vida y la muerte no
llama el montadero de los frailes: á una peña que forma á modo de asiento, le llaman la
silla del guardián. Alli cuentan también que viniendo Santa Marina perseguida de los
moros y cansada del camino, al llegar á una peña le dijo: «¡Ábrete, peña cerrada, que
viene Marina cansada!» En la peña hendida á tal conjuro se colocó un altar á la santa, y
sobre ella se alzó la capilla de Santa Marina, cercana al convento. La cuadrada torre de
éste, mostrando al descubierto el enladrillado de su cupulilla, mira al contorno y con-
templándola recordé dos hermosísimas estrofas que pone Verdaguer en boca del campa-
nário de San Martín en su espléndida poesía Los dos Campanars. También esta torre vió
marchar á sus frailes y que se volvían para mirarla, y acaso aguarda, hace setenta años, á
que vuelvan. Y eso que hoy buscan las ciudades y poblados, para luchar en el mundo, y
no la soledad, para huir de él.
Hoy en día no habitan la barrancada, fuera del rentero que explota lo que los frailes
dejaron, más que los carabineiros españoles de este lado del río, y del outro los guardiñas
portugueses, vigilando el paso de la barca. El contrabando es lo único que á las veces anima
á la hoz. Algunos desgraciados se ponen de acuerdo, lanzan de un lado al otro del rio un
Dibujos de Unamuno hechos en Traguntía en la misma
época en que visitaba los Arribes del Duero
nan los arribes y aun encontramos en alguna calleja bolilleras ó encajeras, que hacen encajes
al bolillo, industria que tuvo su época de florecimiento, llevando tras de sí el comercio de
encajería que hacían los fermosellanos por villas y lugares. En Bilbao hay uno que habiendo
empezado por vender de casa en casa los encajes, acabó por establecerse y ha hecho un buen
capital. Pero las fábricas han matado esa pequeña industria, más que doméstica, callejera, así
como la filoxera, matándoles las viñas, les ha obligado á emigrar al Brasil.
Desde los altos de Vilvestre que dominan los arribes, Peño Corvo y el Castillo de
Narbona, – extraño nombre para un desnudo berrueco, se abarca con la vista, como desde
elevada cornisa, un sitio en que la hoz se ensancha, adulciguándose el paisaje. En las ver-
tientes portuguesas fronteras empiezan ya los tan famosos vinos de Oporto, procedentes
no pocos, y no de los menos ricos, del Duero alto. En el fondo, entre floridos almendros,
el rio se perdía á trechos de vista en repliegues del terreno, para reaparecer más adelante,
de un verde obscuro á la sombra, y brillando al sol con el tono con que á éste refleja la hoja
del maíz. Allá abajo, en un vallecito, cantaba un gañán, llevando la mancera del arado, y
su canto subía limpio, espontánea eflorescencia del trabajo.
Masueco (SS)
Mucho habría que decir del paisanaje de la Ribera, de sus costumbres, de su traje, de
su carácter; de su interesantísima habla sobre todo, pero no cabe ello en impresiones como
éstas.
Ofrece la provincia de Salamanca, en el aspecto antropológico, amplísimo campo de
O Prémio que este ano o Centro de Estudos Ibéricos, através do seu júri luso-espa-
nhol, atribui ao homem da fronteira e jornalista de televisão, Agustín Remesal, tem um
significado muito particular. É o primeiro que é concedido a um homem dos “media” e,
ao mesmo tempo, a um intelectual que, ao longo do seu percurso, se tem interrogado de
uma maneira apaixonada acerca da vivência singular de um dos espaços “raia” da nossa
Península, o que, desde há séculos, separa Portugal de Castela e, mais latamente, Portugal
de Espanha. A História da nossa Península não é propriamente a história de Penélope,
uma espécie de tela misteriosa em perpétua urdidura histórica.
Na Europa, “a raia quebrada” a que Agustín Remesal consagrou um excelente e inédito
documentário, é um autêntico paradoxo. Ela não é propriamente os Pirinéus ou o Reno,
ou o Elba ou o Vistúla, realidades separadoras e obstáculos de densidade palpável, histori-
camente quase intransponíveis em termos guerreiros.
Fisicamente – geograficamente – nada, nada de diferente separa Portugal da fronteiri-
ça Espanha. É a mesma meseta que nos continua, a mesma planura da Extremadura e com
mais força simbólica, os mesmos rios que, como se soubessem onde está o mar deles, recor-
lado – como se não estivesse. Tradições culturais de milénios, religiosas, falas tão próximas,
deviam tornar, por assim dizer, invisíveis as nossas mútuas fronteiras – e penso que, simboli-
126 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço
camente, e não apenas como bem vindos turistas, os nossos amigos espanhóis assim a atraves-
sam. Paradoxalmente, fizemos da “semelhança” e do mimetismo, para lembrar René Gérard,
a mais sólida das fronteiras, feita de quase nada, apenas da vivência secular de uma diferença
local que o estatuto de Nação, na Europa e fora dela, universalizou com o nome de Portugal.
Tudo isto podia ser apenas coisa do passado, já sem importância, no momento em
que a Europa se desenha como espaço comum – ou assim se sonha – e em que por
definição a problemática da fronteira ou os seus problemas – deixam de ser preocu-
pação politica ou militar, como durante séculos. Somos um continente em paz. Isto
parece um dado adquirido. Mas que paz? A antiga paixão que a fronteira assinalava
como signo de confronto mortal está, sem dúvida, adormecida. É uma boa ocasião para
pensar o que é uma fronteira, e não apenas imaginar que desapareceu, magicamente.
Mesmo um pequeno país, como a Bélgica, a fronteira pode ser ainda a rua vizinha da
Flandres. A nossa, assumida há muito como algo natural, não nos interpela ou nos
preocupa como drama virtual.
Temos, agora, todo o tempo para revisitar a fronteira que fomos e ainda somos, ane-
xando como algo familiar e positivo, como faz o nosso premiado Agustín Remesal. Temos
sobretudo, tempo para pensar e viver a fronteira como algo positivo. Não apenas o que
separa ou ameaça. Mas como algo que nos põe limites que são de espaço e de memória.
E que, por isso, paradoxalmente, nos define. E bem pensada é já um diálogo em si mesma.
Devemos estar gratos a Agustín Remesal por ter ilustrado, tão concretamente, com a sua
paixão pela raia que nos separa e une, a virtude nova em folha deste diálogo de fronteiras
em terras da Europa que bem precisa dele.
Somos nós todos, em particular, eu, que lhe agradeço o ter tido a gentileza e a hu-
mildade de aceitar este Prémio. Bastava este discurso de agradecimento do premiado para
que eu tivesse consciência da razão de ser deste Centro de Estudos Ibéricos, consagrado ao
diálogo dos dois países: colmatar, não o diálogo mítico que nunca existiu, mas um certo
obscurecimento dele, sobretudo nos dois últimos séculos.
O Premiado de hoje é ao mesmo tempo um poeta, um grande jornalista, um escritor,
um cronista, e coisa que é um pouco o sonho, mais ou menos escondido e inconsciente, de
todos os intelectuais, que é quererem ser homens de acção. Alguns o são, mas não muitos.
E no caso dele é não só um escritor, no sentido forte da palavra, um poeta, um gran-
de cronista, um grande humanista, como se viu, mas foi, uma parte da sua vida, um dos
Intervenção na Sessão de Entrega do Prémio Eduardo Lourenço 2010 a César António Molina, in Revista
44
Evocou-se aqui Ángel Crespo, que também foi alguém que procurou, com uma
forte exigência, dar expressão ao conjunto das criações de tipo peninsular e que talvez
tenha experimentado essa necessidade com mais violência por ter estado na América,
propriamente espanhola, durante algum tempo. Dali ele viu, perfeitamente, que a
Península Ibérica não era apenas esta espécie de ilha, um pouco paradoxal, em relação
à restante Europa, mas que era, de facto, uma ilha mundo e uma ilha que marcou o
mundo pela sua presença.
Portanto, é este iberismo aquele que está presente em toda a obra escrita de César
Antonio Molina, não um iberismo narcísico, mesmo se, historicamente, a Ibéria foi, com
as suas duas nações, Portugal e Espanha, uma nave que deu a volta ao mundo. Uma Ibéria
que é em si mesma, realmente, um mundo, com uma autonomia cultural, uma alma, uma
cultura e, esperemos, um futuro que é uma das grandes apostas que a humanidade tem
sobre si mesma, sob a forma das nossas duas línguas. A César Antonio Molina os meus
agradecimentos por ter aceitado este Prémio.
Vilar Formoso: Edificios da Fronteira; Antiga Alfândega; Estação de Caminho de Ferro; Vilar Formos, Fronteira
da Paz. Memorial aos refugiados e ao Cônsul Aristides de Sousa Mendes (RJ)
Em termos americanos onde é a nossa fronteira? Em parte nenhuma, nem naquela que
temos à vista e atravessamos a pé enxuto, como César o Rubicão. A verdadeira fronteira é
simbólica, não natural, como essa mesma do célebre riacho italiano que separava a ordem
de Roma, da desordem do capricho ditatorial. As fronteiras chamadas naturais pertencem
mais à geografia que à história. Nelas não se joga o destino, individual ou colectivo, sob
imperativo ético. Como dizia Hegel, uma montanha é só o que é. Não deixa passar ou só o
consente através do esforço incomum. Só porque eles eram Aníbal e Napoleão, a travessia
dos Alpes foi história e não mera geografia.
Uma fronteira é um paradoxo incarnado: “natural” deixa de significar, simbólica
nem precisa de se materializar. A ordem humana é uma ordem de olhares e os seus
conflitos dirimem-se, como num “western”, em campo árido para que a violência se
45
Introdução ao catálogo Fronteira, emigração, memória (2004). Guarda: Centro de Estudos Ibéricos.
exprima, se exorcize e, acaso, se redima. De quê? Da original realidade da violência
que institui a cidade pondo à sua volta uma fronteira como fez Rómulo. É estra-
nho pensar que o nascimento do paradigma da urbe é um “ghetto” voluntário. Só
tenho casa minha, só tenho interioridade, inventando a exterioridade, o território
do outro como inimigo do meu. Pelo menos é essa a escolha do sedentário. Uma
escolha oposta à de Ulisses, o nómada, o que não tem casa ou a perdeu e erra para
voltar a ela. As aventuras da interioridade, as do simples homem ou da humanidade
terminaram há muito. Ninguém tem casa, ou tudo se passa como se a não tivesse.
Como um deus de ficção, estamos em toda a parte e em nenhuma. É o refúgio que
se tornou inconcebível. Ou só acessível aos raros que o podem mandar vigiar, como
o velho Marlon Brando, na sua ilha de nómada insone. Já no berço é-nos concedi-
do o dom da ubiquidade. Somos enfim aqueles deuses de que o texto sagrado se ri
e agora se riem de todo o texto sagrado, mistério esvaziado junto do mistério em
plena luz da Internet.
O que é fronteira no tempo da Internet? Todas as mensagens são conexas como
rizomas, proliferação insensata num espaço virtual sem lugar para qualquer vivência
que possa assimilar-se a uma fronteira e, muito menos, a um repouso. Estamos num
rio-tempo que corre em todas as direcções até para a nascente. E é agora que nada nos
prende e nada nos detém – mas também nada nos chama ou nos fascina como a antiga
fronteira – que a sua falta nos interpela e nos inquieta. Que somos sem fronteiras? E
que novas fronteiras podemos imaginar para ter de novo uma casa (a casa), uma cida-
de (a cidade), uma pátria (a pátria), sem perder a humanidade que com tanto custo
130 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço
meá-los, de nenhuma maneira, mas queria destacar algumas pessoas, os ausentes e os que
se deram ao trabalho de vir de tão longe: o Presidente da Fundação Gulbenkian, em que
tenho a honra de ser Administrador Executivo, Emílio Rui Vilar, os meus colegas, Marçal
Grilo, Diogo Lucena e o antigo Ministro, e meu amigo, Mariano Gago, Isabel Alçada e
outras pessoas ilustres que estão nesta assembleia. Queria igualmente saudar, com particu-
lar afeição, a presença de alguém que me é muito caro, Pílar del Rio, que muito admiro e
que está aqui por ser quem é e só por estar ela também está a presença de alguém que pôs
Portugal no mapa do mundo.
Saúdo igualmente o Sr. Bispo da Guarda, D. Manuel Felício, e agradeço-lhe a sua
presença. Eu sou um baptizado e nasci na cristandade, nesta terra de grande história cristã,
pelo que não vejo razão nenhuma para me renegar, naquilo que é superior a mim, que me
foi transmitido por pessoas, gerações inteiras que estão atrás de mim, que testemunharam
uma certa fé, comportamentos e que obedeceram a certos valores.
Vejo também nesta sala muitos intelectuais, que são, digamos, da mesma família so-
ciológica a que eu pertenço. Não é a melhor das famílias, mas é a nossa. Não os vou
nomear todos, mas estou a olhar aqui para o Prof. Gomes Canotilho, estou a ver os meus
amigos das letras, escritores, o Almeida Faria, que embora seja de nova geração é como
se fosse um irmão mais novo, Manuel António Pina, o meu amigo Manuel Alexandre e
muitos outros que estão nesta sala e que eu realmente saúdo e perdoem-me, realmente, os
respectivos esquecimentos.
Naturalmente que os meus familiares que estão aqui não precisam que eu lhes agrade-
ça porque eu sou eles e eles são eu, sobretudo nesta circunstância. Vejo que está também
nesta sala alguém para quem tenho uma dívida muito especial, a antiga Governadora Civil
da Guarda, Dra. Maria do Carmo Borges, a quem eu devo a minha interiorização cívica,
a minha adopção como alguém que tem alguma coisa a ver com o distrito da Guarda, se
não em particular com esta aldeia que aqui está. Provavelmente sem aquela cerimónia da
Guarda, nada disto, nada desta espécie de coisas teria, realmente, acontecido.
Agradecimento por fim para aqueles a quem não sei como agradecer, que são a maio-
ria dos que estão também nesta sala, gente de estatuto social, que é o estatuto social mais
próximo daquele que era o meu e dos meus na minha infância e ainda hoje.
Eu tinha um texto preparado, só que uma das minhas irmãs, sem o ler, decidiu que
seria muito chato. De maneira que nem sei se terei realmente a coragem de o repetir. E
o texto intitulava-se e vai intitular-se, provavelmente, “Quem vê o seu povo vê o mundo
todo”, que é também uma expressão dessa minha tia dos provérbios. Ela falava como o
Sancho Pança pois tinha provérbios para tudo. O texto tinha um subtítulo, e vai ter, natu-
ralmente, que eu vou começar a ler:
“Quem vê o seu povo vê o mundo todo” ou “As andorinhas” (esta parte, a segunda
nessa sociedade miticamente sem classes, que a si mesma, em certo momento e em língua
russa se auto-designou, a si mesma, como a “inteligencia”.
A mera lembrança de Diógenes ou de Rousseau, para não me lembrar de Grouxo Marx,
bastaria para não tomar essa pretensão a sério. Mas nenhuma ironia me redime de ser o
que se chama um autor nada popular, naturalmente, é um eufemismo. Em nada isso im-
portaria se não significasse, como significa, que as poucas pessoas que me lerão ou ainda
lêem, só ocasionalmente pertencerão, fundamentalmente, aos meus, aos da minha raça,
aos da minha tribo dessa época, com algumas excepções. Separados de mim, e eu deles,
por aquilo que, mais do que tudo, nos devia ligar, unir, nós que comungámos, em tem-
pos, desse famoso tempo da infância, do mesmo húmus, do mesmo espaço, que bebemos
das mesmas fontes.
A cultura, a chamada cultura, não é apenas aquela música celestial, onde nós vivemos
ou somos vividos, como se fossemos os anjos de nós mesmos. A cultura também é o que
separa e misteriosamente desfaz os laços daquelas vivências sem verbo, que as letras das
coisas visíveis, do tempo de criança, em silêncio, nos ensinavam.
S. Pedro do Rio Seco. Casas e ruas da aldeia (RJ)
Em suma, não soube ou não pude tanto quanto me pedia a exigência do meu coração
infantil comunicar com os meus, por serem do mesmo tempo, herdeiros do mesmo passado,
amassados no bairro obscuro, de uma terra obscura e luminosa como todas, de uma aldeia igno-
timável. Esses 700 habitantes eram gente que vivia no limiar da pobreza, alguns confiados
na pobreza. Não havia, propriamente, mendigos. Os mendigos não existiam. Os mendigos
vinham de fora, como no poema do Guerra Junqueiro. A pedir, com grandes barbas, na-
quela altura. Mas não havia propriamente pobres de pedir, realmente, entre nós, mas havia
grande pobreza, mas havia também um sentimento do que era uma comunidade e que essa
comunidade tinha um certo sentido, que espero que ainda hoje tenha, de outra maneira.
Os tempos mudaram. Esta aldeia, que parecia tão isolada do mundo, naquela época,
também o estava: podia passar-se o ano inteiro que mesmo relações de vizinhança, a cinco
quilómetros, não se frequentavam umas às outras. Só por ocasião de uma festa. Os únicos
sítios de relacionamento, já de tipo social, eram Vilar Formoso e Almeida.
Em Vilar Formoso aparecia o comboio, o comboio que nos trazia a Europa, o com-
boio que trazia as stars da época, pintadas, que nós dizíamos ir ver como quem ia ver anjos,
quando calhava. E Almeida era a nossa capital distrital, providencial.
A tantos anos de distância, os poucos anos, apenas dez, que vivi verdadeiramente nesta
terra, com um ano que saí para a Guarda, parecem cada vez mais meus… uma espécie de férias
grandes, prolongadas. Mais tarde tomaria consciência de que a minha situação era uma situa-
ção um pouco privilegiada: eu era filho de um militar modesto, um sargento, mas um sargento
era já a passagem para qualquer coisa que eu só mais tarde, quando se começou a falar das
classes e das suas hierarquias, soube que era a “pequena burguesia”. Eu era um pequeno bur-
guês, nem era burguês, nem era pequeno, as duas coisas ao mesmo tempo, situação realmente
inconfortável, mas que constituía uma espécie de privilégio. Mas o privilégio maior foi eu ser
filho de alguém que, num oceano de gente pouco letrada, tinha o gosto das letras, que ele tinha
cultivado por si próprio, solitariamente, como o filho maior de uma família que o tinha deixa-
do aqui nesta aldeia, justamente com essa famosa tia, que lhe terá ensinado alguma sabedoria.
E esse pai que fez estudos de Comércio, ao mesmo tempo que era militar no Porto,
tinha uma mala pois saía muitas vezes para fazer os seus tirocínios para seguir na carreira.
Todos temos a nossa mala, não é só o Pessoa, eu também tenho a minha malinha, ou antes,
a malinha do meu pai. E nessa malinha havia o tesouro dos tesouros, de toda a infância: um
livro. Não era a Bíblia propriamente dita, era só As Pupilas do Sr. Reitor e A Morgadinha dos
Canaviais, de um autor delicioso, maravilhoso, chamado Júlio Dinis. Que era um autor que
se dava nas escolas porque não era indecente, não era escandaloso e porque, de algum modo,
dourava um pouco a pílula das dificuldades, das realidades grosseiras e cruéis do verdadeiro
mundo, do verdadeiro mundo real. Encontrei aí, caí nele como Astérix na famosa poção, caí
no Júlio Dinis, com algum Júlio Verne à mistura, que também existia na arca, o que foi cair
numa coisa que eu só mais tarde soube que se chamava literatura. Mas aquilo não foi realmen-
te a literatura, mas antes entrar num universo mágico, de onde nunca mais sairía, nem quero
sair, nem há saída possível quando se entra nesse reino de uma vez por todas e sobretudo cedo.
vida, o que se vê, o que se sente, os únicos momentos em que uma pessoa tem um sentimento
de que existe verdadeiramente e não por procuração, e não ao segundo grau ou terceiro grau,
em que eu sou grande especialista. Não, eram coisas simples. Um tanque que era uma espécie
de silêncio em vez de ser um volume de água. Os pássaros que enchiam a aldeia. Os estorni-
nhos que nos eclipsavam os crepúsculos violentos, quase tropicais, de certos dias. O cuco que
pontuava como um relógio. Este ar transparente que nos cerca. As nuvens, as nuvens sobre-
tudo, que eram de cinema divino, um cinema sem autor onde nós podíamos escrever todos
os sonhos, todas as revelações, todos os fantasmas que se podem ter numa vida de criança.
E sobretudo, aqui é que vêm as andorinhas, eu não podia esquecer as andorinhas. As
andorinhas, que foram mestras não sei de quê, mestras de uma coisa que não pode ser
nomeada e que nós nomeamos chamando-lhe felicidade. Era como se fossem umas dança-
rinas de Deus. Que todas as Primaveras voltavam para recuperar, sobre os beirais da minha
casa, o ninho que tinham deixado. Vinham, e era uma festa a chegada e todo o tempo
que elas permaneciam aqui, cruzando-se, descruzando-se, reinventando coreografias que
nenhum coreógrafo pode imaginar, verdadeiramente celestes.
E são essas andorinhas que eu lembrava, que também tinham alguma coisa a ver com
essa arca, para mim mágica, que o meu pai deixou quando saiu da aldeia, ou ia para fora
da aldeia. Nessa arca havia, cuidadosamente guardado, o jornal do dia da morte de Guerra
Junqueiro, o autor sulfuroso de A velhice do padre eterno, celebérrimo, como não se pode
imaginar que alguém tivesse sido nesse país mais do que ele o foi realmente nessa época,
aqui e nos países de língua portuguesa, sobretudo no Brasil onde hoje ainda é autor. Nós
estamos muito mais adiantados, podemos esquecer os Guerra Junqueiros.
O meu pai tinha o jornal cuidadosamente guardado, eu acho que era A Batalha, havia um
dos poemas mais célebres do Guerra Junqueiro, e ainda hoje, um poema que merece ser conhe-
cido e lido, um poema que é um poema de um outro tempo, que já não existe, provavelmente
já existiria quando ele o escreveu. Mas para isso existem realmente os poetas. Que eu pensava
que era um poema dos Simples um dos mais lidos, dos mais famosos dos seus livros, mas não é.
Esse poema foi uma amiga minha aqui presente, que eu saúdo, Ana Maria Almeida Martins,
que me disse que era mesmo um poema que precede “A velhice do padre eterno”.
A minha confusão é ainda maior porque esse poema se chama “Aos simples” e esses
simples são uma evocação da nostalgia, de alguém que sabe que está traindo uma parte
do seu passado, de uma fé sem dúvidas, de uma espécie de aceitação do sentido pleno do
mundo ainda sem fendas e que vem de algum modo penitenciar-se antecipadamente do
sacrilégio que ele vai cometer escrevendo e provocando um país que está mudando tam-
bém de alma com a famosa “A velhice do padre eterno”.
É nesse poema que estão as andorinhas, as andorinhas de que eu me lembrava, além
das andorinhas reais, que dormiam sob o beiral da minha casa. E leio a última passagem,
Edifício da Junta de Freguesia, antiga Escola Primária, frequentada por Eduardo Lourenço.
O edifício tem as seguintes lápides:
Fronte: “A Eduardo Lourenço/ Figura cimeira da cultura e do pensamento portugueses e
europeu contemporâneos /Homenagem de seus conterrâneos lembrando
a escola onde aprendeu as primeiras letras / Dia 8 de Setembro de 1995)
Topo: “Praça Eduardo Lourenço / Eduardo Lourenço de Faria / Escritor” (RJ)
Hortas (RJ)
Igreja de S. Pedro (RJ)
S. Pedro (RJ)
Hortas (RJ)
S. Pedro: o tempo e o modo (RJ)
143 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço
Arribes del Duero
Desembocadura del río Huebra, Saucelle (SS) Río Duero. Mirador de Mafeito, La Fregeneda (SS)
144 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço
Bancales en los Arribes del Duero. Antigua vía férrea. La Fregeneda (SS)
Polares (SS)
Río Duero. Vilvestre (SS) Almendros en flor. Vilvestre (SS)
Dehesa de encinas en el Campo Charro. Provincia de Salamanca (SS) Villarino de los Aires. Salamanca (SS)
Paisaje con cortinas de piedra. Mieza (SS)
148 // Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço
debe decirse la verdad, pero hay muchas más verdades que decir que tiempo para decirlas, y si
digo las verdades a, b, c y d, que usted quiere que digo, dejaré de decir las verdades x, y y z, que
son las que quiero decir. Y no cabe decir dos cosas a un tiempo, ya que la palabra se desarrolla
en tiempo y no en espacio. No es, pues, que yo tema decir lo que usted quiere que diga; es que
tengo que decir otras cosas que me parecen de más momento o por ahora me interesan más.
Y voy ahora a lo que otro me dice, y es cómo, habiendo escrito aquí de tantos pueblos como
en mis correrías por España y Portugal he visitado, no he dedicado una sola correspondencia
a describir a mis lectores esta Salamanca en que vivo y trabajo. La cosa me parece sencilla. En
primer lugar, los otros pueblos los visito y los describo como turista o viajero curioso, y éste, en
que vivo, no lo visito; éste es mi hogar. Además, ¿no están mis correspondencias todas llenas de
esta Salamanca en que vivo y escribo y trabajo? ¿No vibra en ellas su ambiente todo? Porque si
no es así, os declaro que estas mis correspondencias no valen nada, absolutamente nada.
Más de uno me ha reprochado la personalidad de mis escritos; el que me pongo en
ellos; el que siempre se me ve allí; el que yo, el yo que unos llaman impertinente y otros
47
Miguel de Unamuno: Andanzas y visiones españolas, Renacimiento, Madrid, 1922.
satánico, se mueve y agita en sus líneas todas. Confieso, en efecto, que no profeso las
doctrinas de Flaubert respecto a la impersonalidad en el arte; es más, que creo que esas
doctrinas no son sinceras y que si gusto tanto de los escritos de Flaubert, de sus novelas, es
porque veo en ellas a Flaubert mismo y mucho más desde que leí su extraordinaria corres-
pondencia privada. Los únicos escritores perfectamente impersonales son los que carecen
de toda personalidad, y entre ellos los puros eruditos y los meros informadores.
No puedo evitar el ponerme en mis escritos, y como nadie es más que el producto de
la sociedad en que vive y de la que vive; como todos somos condensación del ambiente en
que vivimos, todo el que acierte a ponerse en sus obras pone a su patria, chica y grande,
en ellas. Y yo os digo que quienes sigan con alguna atención mis escritos conocen esta mi
Salamanca mucho mejor que cuantas ciudades haya descrito en ellos. Permitidme una
comparación aunque a alguien pueda parecerle presuntuosa. Hay cuadros de Velázquez y
del Greco en que apenas hay fondo de paisaje, pero a través de aquellas figuras de hom-
bres, de hombres solos que llenan todo el cuadro, se ve el paisaje castellano, se ve su celaje.
Recuerdo un cuadro moderno, de pintor vivo, que representaba un viejo marino mirando
desde una atalaya al mar. En el cuadro no se veía ni el más pequeño retazo de mar, pero a
los que conocemos a éste os aseguro que el mar se nos presentaba allí mucho más vivo que
pintado. En los ojos del viejo marino, en su mirada, veiámos el mar.
Sí, yo podía describiros esta ciudad y ejercitar mi mayor o menor virtuosidad en la
descripción literaria. Podría deciros cómo esta ciudad de Salamanca, asentada en un llano,
orillas del Tormes, es uná ciudad abierta y alegre, sí, muy alegre. Cómo el sol, que sobre
ella brilla, ha dorado las piedras de sus torres, sus templos y sus palacios, esa piedra dulce y
vegante y comercial, trasportó ideas más bien que las creó, las puso en circulación. Fué
un pueblo hierático, sacerdotal, el Egipto, el que realmente inventó el alfabeto, y fué un
pueblo mercantil Fenicia, el que para utilidad de sus letras de cambio, desamortizó y civi-
lizó – esto es, hizo civil-ese secreto sacerdotal.
Nací, me crié, me eduqué y viví hasta mis veintisiete años en un puerto y después me
vine a esta ciudad interior, de la meseta, por donde corre un río que no trae ni lleva más
que sus aguas; pero puedo aseguraros que si allí, en mi nativo Bilbao, se me despertó y
aguzó el sentido de la curiosidad universal, de la inquisitividad – páseseme la palabra -aqui
no me ha faltado materia en que ejercerlo. Y acaso con ventaja.
¿Pero a qué he de hablaros más de esta ciudad? Siempre que os hablo de mi, de mi
España, de cualquier otra cosa, os estoy hablando de ella. No la juzguéis por mi solo, pero
creed que si hay algo en mí y en mis escritos que os satisfaga, a esta ciudad de Salamanca
se debe ello en mucha parte.
de reveza,
soltando su jugo,
su savia de eterno,
y en tus aguas se miran los siglos
dejando a la historia
colmar tu regazo
con frutos de otoño.
Cuando puesto ya el Sol, de tu seno
rebotan tus piedras
el toque de queda
me parecen los siglos mejerse,
que el tiempo se anega,
y vivir una vida celeste
– quietud y visiones! –
Salamanca!
(VG)
Oda a Salamanca49
que de plateros
en sed de vida.
de portugueses, velhos reflexos de defesa, de desconfiança ou até de íntima recusa. Nos últimos
dois anos, sobretudo, e no quadro de uma mais vasta desregulamentação da esfera económica,
industrial e financeira, imposta ou sugerida pela Comunidade Europeia, vários títulos da nossa
imprensa mais influente se tornaram eco desses receios multi-seculares, como se de novo e de
forma mais subtil estivéssemos a pontos de nos dissolver, sem dar por isso, no espaço dinâmico
de maior expressão europeia que o nosso, da vizinha e influente Espanha. Já não é só a propó-
sito de homéricos desafios de futebol que os nossos naturais reflexos de velha nação peninsular
independente se manifestam, mas a propósito de negócios, de questões ecológicas, de instala-
ção espectacular de redes bancárias, de supermercados, de indústrias. Como se se tratasse, ao
menos, sob uma forma mais ou menos cândida, de uma variedade de colonização” que mais
do que antigas tentativas ou tentações, pusesse em perigo a nossa tão cara identidade, vivida,
como tem sido quase sempre, com inextricável mistura de exaltação e fragilidade.
Não é raro constatar nesses títulos um vago pânico diante da “nova invasão espanhola”
que é de facto a de uma presença espanhola de importância indiscutível. Como indiscutível
50
Eduardo Lourenço, “O Novo Destino da Península”, Finisterra, Revista de Reflexão e Crítica, n.º 17, 1995:
7-11 (Revista dirigida por Eduardo Lourenço. Tema do volume, ‘Espanha e Nós’).
é, também, uma presença portuguesa de novo estilo, de acordo com as nossas capacidades,
num espaço económico-financeiro peninsular de nova configuração que impõe a Portugal
e Espanha não só uma revisão de “clichés” sem emprego, como uma estratégia, tanto
quanto possível, inovadora em todas as ordens que a “nova ordem europeia” e internacio-
nal a ambos impõem. Claro que Espanha já tem ocupação suficiente com os problemas
que lhe são próprios e que Portugal nem como nação – hipótese impensável -, nem como
objectivo a qualquer título decisivo para os seus destinos como potência europeia e ex-po-
tência colonizadora, é assunto de qualquer preocupação de relevo propriamente político.
O contrário é menos verdadeiro, como é óbvio, porque Espanha, quer nós o queiramos
quer não, existe mais para nós (apesar da famosa imagem de países de costas voltadas um
para o outro) e daí que não seja tão surpreendente – embora vão e mesquinho – ver a nossa
imprensa sublinhar este ou aquele desvario diplomático espanhol, esta ou aquela vitória
nossa sobre candidaturas vizinhas a postos de relevo internacional, reflexos, no fundo,
sem grandes consequências, como querelas entre primos. Mais justo e mesmo necessário
é reagir contra o que nos parece gravoso em matéria, não só de solidariedade ibérica ou
latamente europeia, em matérias que deviam ser de interesse comum ou ao menos discuti-
das nessa óptica, como a atitude de Espanha no caso de Timor ou da Indonésia em geral.
É natural que Portugal salvaguarde em tudo os seus interesses vitais – quando o são – de
nação independente, mas não menos importante é perceber que Espanha tem os seus
interesses e que nada de pior nos pode suceder do que imaginar-nos na pose heróica do
Quixote que ela inventou.
Em suma, tudo se passa – na mesma medida em que Portugal e Espanha estão inte-
Catedral (VG)