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Segundo Soares (2002) A perspectiva histórica apresentada por Gilberto Freyre, em Casa- grande e
Senzala, aproxima-se da “Escola dos Annales e, particularmente, de um dos seus precursores, Lucien
Febvre, que também considerava que não é pela história política e militar que se percebe a verdadeira
história de um povo, e sim pelo seu cotidiano ou pela sua rotina de vida. Para Gilberto Freyre é
exatamente nesta rotina de vida que se nota a continuidade social, o próprio caráter de um povo e sua
história mais íntima”.Disponível em: <http://www.afroasia.ufba.br/pdf/27_6_gilberto.pdf.>. Acesso
em:14 jul 2010.
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marca do homem branco e senhor, é uma versão que agrada a elite. Embora enalteça a
contribuição do negro na composição da nossa “brasilidade” e ostente a mestiçagem
como algo que temos que nos orgulhar, o autor deixa escapar um tom deliberado de
saudosismo e resistência:
Neste contexto situamos a problemática que permeia todo o estudo, a saber: Qual o
lugar da mulher e a criança no referido cenário?
A trajetória da Mulher e da criança3 na obra Casa Grande & Senzala aparece
intimamente imbricada. Em diferentes escalas as relações de submissão fortemente
exercidas pelo senhor de engenho tomam corpo no cotidiano, sejam elas do Senhor
sobre a família e escravos, da Sinhá-dona em relação aos escravos, da sinhá-moça sob
as mucamas, ou entre os meninos brancos e os meninos escravos. A prática da opressão,
que subjuga o mais fraco, tem lugar de destaque no convívio estabelecido entre os
indivíduos.
As marcas de um Brasil agrário, regido pela monocultura, patriarcal e
escravocrata “continuaram a influenciar a conduta, os ideais, as atitudes, a moral sexual
dos brasileiros” (FREYRE, 2006, p.51) durante a constituição de uma sociedade pré-
urbano-industrial que se configurava no final do século XIX. Este novo modo que se
instituía não suplantou as práticas existentes no antigo regime; elas conviveram e
paulatinamente transformaram-se, atingindo ritmos e uma abrangência temporal e
territorial diversa, nas quais é possível observar os contrastes em diferentes relações.
A expressão da subserviência tinha uma dimensão diferente dos dias atuais, era
regida por modos e práticas próprias do período. É possível identificar “um não lugar”
das mulheres (brancas e negras) e das crianças. A separação entre os tempos criança/
mulher era difusa e a relação de posse e domínio estavam expressas nas transações
matrimoniais que assumiam um caráter de “negócio”:
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Peter Burker (1997), enfatiza a preocupação de Gilberto Freyre referente à infância: “Ele também
tinha algo a dizer acerca das crianças. Em 1921, o jovem confidenciou a seu diário sua ambição. ‘O que
eu desejaria era escrever uma história como suponho ninguém ter escrito com relação a país algum: a
história do menino brasileiro - da sua vida, dos seus brinquedos, dos seus vícios -, desde os tempos
coloniais até hoje’. Entre 1921 e 1930, a versão publicada do diário de Freyre refere-se ao projeto da
história da criança no Brasil não menos do que sete vezes. Quatro dos artigos que escreveu para o Diário de
Pernambuco nos anos 20 tratavam da infância, das crianças e seus livros e brinquedos. A história da criança
atraiu seu interesse por si mesma, como uma desculpa para discutir sua própria infância, e como um
microcosmo da cultura brasileira.Embora Freyre nunca tivesse realizado seu plano original, não o
abandonou completamente. Se voltamos para Casa-grande & Senzala, logo fica óbvio que fragmentos
substanciais do ‘projeto secreto’ estão embutidos no texto, indo das bonecas, pipas, piões, bolas e outros
brinquedos e jogos das crianças brancas, negras e índias até o ‘sadismo patriarcal’, os estudos e a
disciplina dos colégios jesuítas e a breve discussão sobre a educação das meninas. Freyre argumenta, como
Philippe Ariès iria fazer no caso da Europa moderna nascente, que no Brasil colonial meninos com dez
anos de idade eram ‘obrigados a se comportarem como gente grande.’ ” (cf. Freyre, 1933, p. 215 ss,
613 ss, 632 ss). Disponível em:< http://www.cefetsp.br/edu/eso/patricia/freyrenovahistoria.html>.
Acesso em:13 jul, 2010.
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Ariès (1981) destaca que a vida já foi repartida de acordo com o número de planetas, signos do zodíaco,
ou mesmo meses do ano. Já a invenção da infância no formato que conhecemos é algo recente. O
desenvolvimento da ciência e, sobretudo, da medicina, ditou os esforços de uma categorização frente a
heterogeneidade dos critérios para compreender e descrever o desenvolvimento humano. No entanto,
diferentes áreas fazem este recorte de forma diversa. Na religião os rituais dos sacramentos vinculam-se a
diferentes idades, ou ainda em sociedades indígenas temos rituais de passagem que inserem a criança na
vida adulta, na psicologia adotamos fases do desenvolvimento psíquico, no campo legal temos um outro
recorte etário, enfim, a necessidade de enquadramento das diferentes idades é algo da modernidade.
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GONDRA, José; GARCIA, Inará. A arte de endurecer “miolos moles e cérebros brandos”: a
racionalidade médico-higienista e a construção social da infância.Revista Brasileira de Educação. nº 26,
Maio/Ago, 2004.
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Na obra Casa Grande & Senzala o cenário que se descreve é o da região agrária,
enquanto na cidade se moldam as transformações. Observamos que nas casas-grandes e
nas senzalas. Assiste-se a resistência à mudança, há um esforço para ignorar os novos
códigos de conduta que se instituíam. A escravidão nas fazendas perdurou fortemente
durante um longo período.
Durante muito tempo a condição da mãe escrava e seu filho, que compunham o
“estoque de negros” que trabalhavam nas fazendas, revelam a faceta atroz das relações
estabelecidas. A título de exemplo, Freyre destaca que, no Maranhão, havia fazendeiro
que “obrigava as escravas negras a deixarem seus filhos, crianças ainda de mama, no
tejupabo, metidos até o meio do corpo em buracos para esse fim cavados na terra”
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Não é foco deste texto descrever e analisar como se constituíram os indícios do processo de
escolarização apresentado por Gilberto Freyre, mas compreender como nas relações domesticas o
domínio da leitura e da escrita tornam-se moedas de troca e revelam o descompasse entre as demandas
oriundas da cidade em oposição à resistência presente na casa grande.
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É importante destacar que a condição do negro trazido para o Brasil está colada
a sua condição de escravo. A escravidão desenraizou o negro de seu meio social e da
família, o trouxeram da África e o largaram numa terra estranha, com uma gente hostil.
Ao longo da obra, Gilberto Freyre se empenha em destacar as inúmeras contribuições
do negro para a constituição do povo brasileiro, constrói argumentos para se opor aos
pesquisadores que atribuem a inserção do negro no Brasil a causa do atraso e da
decadência do país.
Em oposição à inicial recepção agressiva empreendida aos negros pelos brancos,
Gilberto Freyre apresenta elementos que minimizam as relações de antagonismo e busca
um equilíbrio, que em muitos momentos mascara a aviltante condição de escravo.
Descreve a docilidade exercida pelas amas negras no trato com as crianças no interior
da Casa Grande, são elas as contadoras de histórias que enriquecem o imaginário
infantil, são elas que ninam os meninos numa fusão de cantigas que incorporam
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elementos de diferentes origens. São as mães negras que moldam o duro português
adotado como língua nos processos de socialização instaurado entre elas e os nhonhôs,
de forma que “a ama negra fez muitas vezes com as palavras o mesmo que fez com a
comida: machucou-as, tirou-lhe as espinhas, os ossos, as durezas, só deixando para a
boca do menino branco as sílabas moles” (FREYRE, 2006,p.414). Ela transgrediu a
linguagem geral, a fala solene de gente grande e cunhou outro modo de lidar com a
língua, para tanto contou com a anuência de seus cúmplices.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BURKE P. Gilberto Freyre e a nova história. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S.
Paulo, 9(2): 1-12, out de 1997. Disponível em:<
http://www.cefetsp.br/edu/eso/patricia/freyrenovahistoria.html>. Acesso em: 13 jul,
2010.
FREITAS, M. C. de. Fazer história da Educação com Gilberto Freyre: achegas para
pensar o aluno com o repertório da Antropologia.In: FARIA FILHO, Luciano Mendes
de. (Org.)Pensadores sociais e história da Educação. 2 ed.-Belo Horizonte: Autêntica
editora, 2008.
FREYRE, G.. O escravo negro na vida sexual e de família do brasileiro. In: FREYRE,
G. Casa- grande & senzala.51ª Ed. rev.- São Paulo: Global, 2006.
O Brasil sob outro olhar Gilberto Freyre, sob um novo olhar. Disponível em:<
http://www.sescsp.org.br/sesc/revistas/revistas_link.cfm?Edicao_Id=78&Artigo_ID=78
3&IDCategoria=958&reftype=2> Acesso em:13 jul 2010.