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ANTONIO JOSE AVELAS NUNES re UMA INTRODUGAO A ECONOMIA POLITICA QUARTIER LATIN O AUTOR ANTONIO JOSE AVELAS NUNES E Professor Catedritico da Faculdade de Direito de Coimbra, onde se doutorou com uma tese sobre Industrializagdo € Desenvolvimento ~ A Economia Politica do “modelo brasileiro de desenvolvimento”, ‘editada n0 Brasil pela Quartier Latin, com um prefécio de Celso Furtado. Foi membro dos cinco primeiros Governos de Portugal imediatamente a seguir a Revolugio dos Cravos (25 de Abril de 1974), com a tutela do Ensino Superiore da Investigagao Cientfica. Foi Director da Faculdade de Direito de Coimbra entre 1996 © 2000. Exerce, desde 2003, as fungdes de Vice- Reitor da Universidade de Coimbra. £, desde 1995, Director do Boletim de Ciéncias Econémicas, revista especializada editada pela Faculdade de Direito de Coimbra. membro dos Conselhos Consultivo ou Editorial da Revista da Universidade Federal do Parand, da Quaestio luris (revista da P6s-Graduacio em Direito da UER)), da Revista da Faculdade de Direito da USP eda Revista de Direito do Estado. Por convite da Direego da CAPES, participou, em 2001 € em 2004, como observador estrangeiro convidado, nos trabalhos da Comissio de Avaliagio ‘Trienal dos Programas de Pés-Graduagio em Direito (Mestrado e Doutorado). Aceitou idéntico convite para participar nos trabalhos da mesma Comissio de Avaliagdo,em Agosto de 2007. E Vice-Presidente da Direccao do Instituto de Direito ‘Comparado Luso-Brasileiro. £ membro da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Em 1999, foi-lhe ‘concedido, pela Associagdo dos Advogados de Minas Gerais, 0 Diploma e a Comenda “Professor Gerson Boson’. £ Doutor Honoris Causa da Universidade Federal do Parané e Professor Honoris Causa da Universidade Federal de Alagoas. E autor de varios livros, editados em Angola, no Brasil, na Hungria, no México e em Portugal, para além de vérias dezenas de trabalhos publicados sobre ‘matérias da sua especialidade. Foi agraciado pelo Presidente da Repablica Federativa do Brasil com a Ordem do Rio Branco. Uma INTRopu¢AO A ECONOMIA PoLfrica QUARTIER LATIN Editora Quartier Latin do Brasil Rua Santo Amaro, 316 - CEP 01315-001 Vendas: Fone (11) 3101-5780 Email: vendas@quartierlatin.art:br Site: www.quartierlatin.art br ‘TODOSOS DIREITOS RESERVADOS. Probida a prods tot ou paca, por qualquer meio ou procesnespecimente or sisters grifcosmcrfnicos, fogs, progres, fonogrficos videogrificos Vedas amemoriasio lou recpersio totaou para bem como a inchs de qualquer pute desta obrem qualquer sistema de procestmento de dados. Ess probes splican sc tumbém i caractertcagdficar ce obra un ediorato A volo dos direitos auras € pune como crime (at 184 « parr do Céigo Penal), com pena de prisioc mult, buscae apreensloeindenizasdes divers arts. 101 a 110daLLa9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais). ANTONIO JosE AVELAS NUNES Professor Catedrdtico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra Doutor Honoris Causa da Universidade Federal do Parand Professor Honoris Causa da Universidade Federal de Alagoas Uma IntTrRopbucAO A ECONOMIA PoLirica (as Dabs lielian Le Could hy buck be Sinks Editora Quartier Latin do Brasil Sao Paulo, inverno de 2007 quartierlatin@quartierlatin.art.br www.quartierlatin.art.br Editora Quartier Latin do Brasil Rua Santo Amaro, 316 — Centro — Sao Paulo Coordenagio: Vinicius Vieira Diagramacio: Paula Passarelli Revisio: Danilo S. Paes Landim Capa: Studio Quartier ‘Nunes, Anténio José Avelis ‘Uma Introdugio a Economia Politica - Sio Paulo : Quartier Latin, 2007. ISBN 85-7674-208-X 1, Economia 2.Direito I. Titulo Indices para catélogo sistemitico: 1. Brasil : Economia SUMARIO Comegando pelo Principio: O que éa Economia Politica? Referéncias Bibliogréficas . PARTE I Os Sistemas Econémicos - Génese e Evolugao do Capitalismo, 59 Introdugio .... 1.A teoria dos sistemas econémicos I]. Assolugdes 1. A teoria dos “estadios econémicos” 2. A teoria dos modos de produgio 3. A Teoria dos “tipos de Coordenagai IIL. Apreciagio Critica .. Capitulo I - Do Comunismo Primitivo ao Capitalismo .... A-OComunismo Primitivo ... B-O Esclavagismo C-O Feudalismo 1. Caracterizasao geral .. 2. A desagregacio da sociedade feudal D- A Transigao para o Capitalismo - A acumulacio primitiva do capital .. 1. A acumulagio do capital ... 2. A proletarizacao dos camponeses pobres: as enclosures e a ‘revolugao agricola’. 3. A proletarizagao dos trabalhadores da indiistria artesana’ a indistria capitalista 4. A Reforma... 5. A formacao dos estados modernos na Europ 6. A ‘Revolugao Inglesa’... 7. A revolugio industrial . 8. A Revolugio Francesa 11 SL 60 61 61 63 70 71 77 79 87 87 91 101 102 107 111 120 Capitulo II - Do Capitalismo de Concorréncia ao Capitalismo Monopolista de Estado... 175 A-O Capitalismo de Concorréncia 178 B-O Capitalismo Monopolista ...! 182 1. A concentracao capitalista. Seus factores ... 183 2. A exportagio de capitais privados eo recrudescimento do imperialismo ... C-O Capitalismo Monopolista de Estado 1, Enquadramento Histérico 2. Caracterizagio Geral .. 3. A finalizar, uma nota sobre a globalizacio .. 197 Capitulo III - Capitalismo e Socialismo .... 241 1. A tese da convergéncia dos sistemas... 242 2. Capitalismo e Socialismo - elementos essenci 244 3. Um sistema misto? . 246 3.1. A perda de significado da propriedade privada . 247 3.2. A existéncia de um sector puiblico 3.3. A planificacao nos paises de economia capitalista 260 Referéncias Bibliograficas ..... 273 PARTE II Histéria da Ciéncia Econémica. O Pensamento Econémico, 281 Nota Prévia . 282 Capitulo I - O Pensamento Econémico na Antiguidade e na Idade Média 285 1. O Pensamento Econémico na Antiguidade .. 286 2. O Pensamento Econémico na Idade Média Capitulo II - O Mercantilismo .... 1. O “Sistema Mercantil”: o Mercantilismo 2. Os ‘Mercantilismos Nacionais’ 289 290 2.1. O Bulionismo Espanhol .. 2.2. O Mercantilismo Industrial (Franga) 2.3. O Mercantilismo Comercial (Inglaterra) 3. As grandes linhas do pensamento mercantilista . 3.1. Uma politica Nacionalista 3.2. © Populacionismo ... 300 301 3.3. As teses dos mercantilistas no dominio monetério 3.4. Economia e politica sio inseparaveis: 0 papel do estado 4. A controvérsia acerca do mercantilismo 4.1. Os mercantilistas e a “mania da regulamentagio’ 4.2. O ouro a prata constituem a verdadeira riqueza de um pais? 4.3. A importancia do ouro e da prata .. 312 4.4. Teoria da balanga comercial ¢ teoria quantitativa da moeda. “dilema mercantilista” .. esis 4.5. O mercantilismo eo seu tempo. A transigfo parao liberalismo ween. 322 Capitulo II - Os Fisiocratas .. 327 1. A fisiocracia: os “economistas” . 328 2. A “Ordem Natural” 330 2.1. Lei natural, lei fisica lei moral .. 332 2.2. A propriedade, “base de todas as sociedades”. Propriedade, liberdade e igualdade 334 2.3. O individualismo e a harmonia dos interesses. O “laisser-faire, laisser-passer” 337 2.4, Natureza e fungdes do estado 340 2.5. A ciéncia econémica como “ciéncia fisica”, como “fisica econémica” 344 3..O conceito de riqueza .. 345 4, A nosio de trabalho produtivo . 346 5. O conceito fisiocritico de excedente (produit net). 348 6. As classes socizis na anilise do tableau. 350 7.O Tableau Economique, processo de producio e o processo de circulagio das mercadorias 8. Algumas questies te6ricas suscitadas pelo Tableau Economique 357 8.1. A actividade econémica como processo auto-renovavel 357 8.2. A conexio entre a produgao e a circulacdo numa economia mercantil .._ 357 8.3. A moeda como simples intermediario nas trocas .. 358 9. A importancia do excedente no modelo de reprodugio do Tableau Economique... 358 10. O aumento do excedente agricola co crescimento. econémico (0 bon prix para os cereais, 0 impét unique e o laissex-faire, Iaissex-passer) .. 359 11. A nogao de capital e a importancia do investimento .. 362 11.1. Os Avances Foncitres .. 363 11.2. Os Avances Primitives 365 11.3. Os Avances Annuelles .. 366 12. Juizo acerca do significado e da importincia das teses fisiocraticas .. 366 12.1. Uma perspectiva global: a importincia das teorias fisiocraticas na histéria da andlise econémica 366 12.2. Os limites tedricos da abordagem do Tableat aauséncia de uma teoria do valor .... Capitulo IV - A Escola Clissica .... 377 Capitulo V- Adam Smith . 383 1. Adam Smith ¢ o seu tempo. 384 2. A teoria do valor... 388 2.1. O padrio de medida do valor 391 2.2. A origem do valor ... 394 3. A teoria da distribuicao do rendimento .. 402 3.1. A teoria do salaric 3.2. A teoriada renda 4B 3.3.A teoria dolucro 418 4, As causas da riqueza das nagées . 422 4.1. A divisio do trabalho 424 4.2. A acumulagao do capital 425 5. A filosofia social de Adam Smith... 432 Capitulo VI - Jean-Baptiste Say 443 1. A utilidade e a teoria do valor .. 444 2. A teoria dos trés factores de produgio 445 3. A figura do “empresario”.. 447 4. A lei dos mercados dos produtos (Lei de Say) . 448 Capitulo VIL-Thomas Robert Malthus .. 1.0 ‘principio da populagio” 2. A teoria da renda .... 3.O problema da “procura efectiva’ .... Capitulo VIII - David Ricardo .. 1. Ricardo, fundador da economia politica abstracta 2. A teoria do valor .. 3. A teoria da distribuigao do rendimento 3.1. A teoria da renda diferencial ... 3.2. A teoria do salério 3.3. A tendéncia para a baixa da taxa de lucro 4, Ricardo ea lei de Say 5. O livrecambismo e a teoria do comércio internacional Capitulo IX - As Reacgdes contraa Escola Clissica 1. A critica metodol6gica 2. A critica do livrecambismo 3. A critica ‘socialista’. Capitulo X- Do ‘Socialismo Utépico’ ao ‘Socialismo Cientifico’ Capitulo XT - Karl Marx... 1. Marx: a critica da economia politica 2. A concep¢ao materialista da histria 3. As leis da economia politica marxist: 4. A teoria do valor e a mais-valia 5. A teoria da exploragao. 6. A teoria do salario.... 7. A teoria marxista das classes. A luta de classes .. 8. A teoria da concentracio 9. Tendéncia para a baixa da taxa média de lucro, 10. A teoria das crises . 11. A teoria da revolusio e a construsao do comunismo... 451 452 455 456 469 470 474 476 477 483 484 485 485 502 Capitulo XII - O Marginalismo ea Rotura com a Perspectiva Clissica-Marxista ... 1. Say: as classes sociais fora da anélise econémica 2. Os precursores da teoria subjectiva do valor 3. A “revolugio marginalista” 4. Anova economia subjectivista-marginalista 5. A sintese de Lionel Robbins ... 5.1. A lei da escasseze a conduta econémica 5.2. Uma definigdo analitica da ciéncia econémica .. 5.3. A ciéncia econémica é neutra em relacao aos fins 5.4. A Economia como “ciéncia da escolha” 5.5. A Economia configurada como ciéncia dedutiva 5.6. A Economia estuda relagdes entre homens e bens econémicos 6. A critica do marginalismo .. 6.1. ambito da Economia marginalista 6.2. O significado do homo oeconomicus 6.3. A ciéncia econémica pode ser uma 6.4. A Economia marginalista néo pode compreender 0 capitalismo “iéncia dos meios”? Capitulo XIII - Da ‘Revolugao Keynesiana’ a Contra-Revolugio Monetarista .. 1. AGrande Depressio: 0 fim do laissez-faire 2. Keynes: a opgao pela politica financeira .. 3. A fundamentagio econémica do estado-providéncia 4, Aestagnacio e a “ascensio do monetarismo” ... 5. Acontra-revolucao monetarista: do “estado minimo’ “morte da politica econémica” 6. A tese do “desemprego voluntario” .. 7. O problema do emprego visto como problema de salirios 8. Os “monopélios sindicais” ¢ as “imperfeigdes” do mercado de trabalho 9. A critica monetarista ao “principio da responsabilidade social colectiva” 10. Sintese da controvérsia entre keynesianismo e neoliberalismo Referéncias Bibliogrificas ... 559 585 586 586 588 590 591 594 595 599 602 621 COoMEGANDO PELO PRINCiPIO O que£A Economia Potitica? 1.—Etimologicamente, a expressio economia politica significa administragio do patriménio da cidade (do patriménio do estado, do patriménio publico), uma vez «que tem a sua raiz nas palavras gregas oikonomia (oikos— casa, patriménio; nomas —ordem, lei, administrago) e politica (relativa & polis, a cidade-estado dos gregos). Embora com um sentido nao coincidente com 0 seu significado etimolégico, admite-se em geral que a designacao de economia politica tenha sido adoptada pela primeira vez por Antoine de Montchrestien, mercantilista francés (1576-1621), no seu célebre Traité d'Economie Politique (1615). Virias outras designacées foram sugeridas ou utilizadas para traduzir 0 com- plexo de questdes que hoje constituem o objecto da nossa disciplina (v.g, economia civil, economia puiblica, economia nacional, economia social), embora a mais corrente, desde os clissicos ingleses, seja a de economia politica. Depois de Montchrestien, esta designagao foi adoptada por James Steuart (Inquiry into Principles of Political Economy~1770), tornando-se de uso corrente depois da publicagio dos trabalhos de Ricardo, James Mill e outros autores clasicos. 2. = A nossa disciplina surgiu como Economia Politica. Mas a partir de 1890 (1* ed. dos Principles of Economics, de Alfred Marshall) generalizou-se a desig- nacio Economics. Com o éxito da ‘revolugio marginalista’, a op¢ao pela designagio Economics revela a preocupagio de apresentar a disciplina como uma feoria pura, como uma ciéncia teorética pura, ’semelhanga da matemitica (mathematics) ou da fisica (phi- sits) e, por parte de alguns autores, 0 propésito de por em relevo que o que interes- sa€ 0 individuo e nio os grupos, a sociedade ou 0 estado. Nao teri mesmo faltado quem tenha pretendido reservar a designagao Economia para a ‘economia cientifi- ca’ (ou economia positiva) e a expressio Economia Politica para a ‘economia ideo- légica’ (ou economia normativa). No mundo de lingua inglesa, por meados da década de 1950, a designagio Political Economy 36 muito raramente era utilizada (quase exclusivamente na lite- ratura de inspiracdo marxista, contrapondo a economia politica dos classicos ingle- ses e também de Marx e de Engels & nova economics), o que tera levado John Hicks a defender que Political Economy & tio 36 “the older name of Economics”. Esta 12 - Uma InTRODUCAO A ECONOMIA PouiTiCa situagio comegou a mudar a partir do inicio da década de 80. E nos paises francé- fonos manteve-se a designagao tradicional de Economia Politica. Cremos que nao tém razdo os que atribuem a expresso Economia Politica co- notagdes ideolégicas ou implicagdes metodolégicas que anulariam a natureza ci- entifica da sua abordagem dos problemas econémicos. Nao vemos fundamento para se apontar a Economia como cientifica e a Economia Politica como nao-cien- tifica, ou vice-versa. De todo 0 modo, pensamos que a designacao Economia Politica se liga, em regra, uma nota metodolégica especifica dentro da abordagem cientifica dos pro- blemas econémicos. A Economia Politica nao representa um paradigma auténomo, e talvez devamos admitirque nao ha uma economia politica homogénea, mas varias economias politicas. Colocando-se numa perspectiva interdisciplinar, a Economia Politica abre 0 ca~ minho a diferentes ponderagdes acerca da importancia dos elementos nio-econé- micos (histéricos, politicos, culturais, religiosos, filos6ficos, ideoldgicos) e a diferentes combinagdes destes elementos. Masa Economia Politica apresenta actualmente, como traco comum, uma atitu- de critica perante a mainstream economics, especialmente no que toca 4 sua preten- sio de ser uma ‘ciéncia pura’, aos seus postulados individualistas, a sua defesa do equilibrio e da harmonia, a sua recusa em considerar a perspectiva historica e os factores dinamicos. Do nosso ponto de vista, poder dizer-se também que, embora se perfilem ‘leitu- ras’ da realidade ou propostas de politica progressistas ou conservadoras tanto por parte dos que se colocam na éptica da Economics como por parte dos que adoptam a perspectiva da Economia Politica,a Economics veicula,em regra, a aceitago conserva- dora do status quo, colocando-se a Economia Politica, em regra, numa perspectiva de transformagdo da sociedade (para alguns de natureza revolucionéria). Deixando de lado outros aspectos, sublinharemos que os que integram o “clube dos economistas politicos” (Kurt Rothschild) defendem também que a feoriaeco- némica se confunde com a histoire raisonée de que fala Schumpeter a propésito da teoria econémica de Marx. Segundo esta perspectiva, “o objecto da ciéncia econd- mica é essencialmente um processo histérico continuado” (Schumpeter), porque a nossa disciplina s6 pode aspirar ao estatuto de ciéncia “interpretando a historia, incluindo o presente na histsria” (Joan Robinson), tendo sempre presente que “as ideias econémicas so, sempre ¢ intimamente, um produto do seu proprio tempo e lugar, e nao podem ser tidas como coisas distintas do mundo que interpretam”. (J. K, Galbraith) ‘AvetAs Nunes - 13 3.- Vale a pena analisar, muito rapidamente, o contexto hist6rico (econémico, social, cultural, ideolégico) em que surgitt a actividade cientifica no dominio de que nos ocupamos e quais os caminhos da sua evolugio, como produto social, até aos dias de hoje. ‘Comegaremos por dizer que a ciéncia econémica nasce, verdadeiramente, no século XVII, com 0 advento do capitalismo como sistema produtivo (como modo de produgio auténomo, se quisermos utilizar a linguagem de Marx), durante 0 periodo em que a sociedade capitalista emergente se contrapunha a velha socieda- de feudal, fazendo caminho a custa da transformagao e da destruigao desta. Dir-se-4 que antes desta época - muito antes mesmo - varios autores, desde Aistételes aos mercantilistas, formularam proposicdes e escreveram livros sobre temas de economia. E verdade. Mas a verdade também € que essas proposicdes se integravam em discursos diferentes, relativos 4 moral, 4 politica ou ao direito, muito longe de configurarem uma ciéncia econémica auténoma relativamente a essas outras disciplinas. Nao se aceitava na pritica nem se concebia no plano teorético que os processos econdmicos pudessem gerar os seus prdprios imperati-~ vos, originar as suas proprias leis ou proporcionar as bases de uma disciplina intelectual auténoma. Antes do século XVIII, a esfera da actividade econdmica nao era considerada aut6noma: a economia era vista como um simples meio a0 servico da realizagao de valores ow fins de ordem moral ou religiosa, ou - no caso dos mercantilistas -um meio de construir, de manter ede aumentar o poder poli- tico do soberano e do estado. Tanto na esfera da produgao como na esfera do consumo, tudo é decidido segundo critérios de poder (de poder politico, que se confunde com o poder econé- mico). Nas formagées sociais pré-capitalistas, a produgio esta em absoluto subor- dinada ao consumo, mas o consumo nio é um fim em si mesmo, nio passando - como observa Claudio Napoleoni - de simples condigao material para o desenvol- vimento das actividades (a cultura, a guerra, etc.) que entio se admitia correspon- derem a ‘dignidade’ do homem. O consumo encontra a sua ‘justificagao’ fora do Pprocesso econdmico, nao constituindo, por isso, um elemento integrante do pro- cesso de produsio. Mesmo as relacées de troca (monetiria ou no), que tinham por objecto uma parte do excedente apropriado pelos senhores, diziam respeito apenas a esfera da circulagao, completamente desligadas da esfera da producao (e dos custos de pro- ducio). $6 com 0 advento do capitalismo as relagées de troca reflectem as relagdes de producio e sio determinadas por elas (as mercadorias trocam-se no mercado umas pelas outras tendo em conta os seus custos reais de produgio). Foi isto o que 14- Uma InTRODUCAO A Economia PouiTica compreendeu, desde logo, Adam Smith, que fez da Economia Politica, essencial- mente, uma teoria da produgao e do crescimento econémico. Esta situagao alterou-se profundamente com as revolucées burguesas, que vie~ ram por termo ao estatuto de servidao, proclamando que todos os individuos (in~ cluindo os trabalhadores) sao seres livres, sujeitos de direitos e de deveres. Os trabalhadores passam a poder dispor livremente da sua forga de trabalho (que entao surge como mercadoria auténoma), substituindo-se 0 trabalho servil pelo trabalho assalariado. O capitalista adquire os meios de producao (incluindo a forca de trabalho) ¢ desencadeia o processo produtivo com o objectivo de obter lucros e de transformar uma parte deles (uma parte do excedente) em meios de produgio adicionais ¢ estes em maior quantidade de bens produzidos, destinados a venda no mercado com fins lucrativos. Por outro lado, a propriedade feudal (pro- priedade imperfeita) é substituida pela propriedade capitalista (perfeita, absoluta e excluente). E a Revolugio Industrial trouxe consigo a afirmagio do processo co- lectivo de produgao, a divisio interna do trabalho, o aumento da produtividade, a multiplicago da produgio efectiva de bens, assim como a consciéncia social de que tudo isto se estava a verificar. O processo econémico ganha entio a sua autonomia nao apenas em relaco a0 discurso metafisico, teolégico ou ético, mas também relativamente ao discurso politico e a légica do poder politico. A ciéncia econémica ocupa-se agora da sociedade econdmica (ou sociedade civil) concebida como um sistema, como um con- junto de relagdes sociais reguladas por leis préprias (eis naturais, independentes da vontade dos governos, que podem ser descobertas pela investigacio). Maso advento da nova era burguesa nao ficou marcado apenas por transforma- ‘ges econémicas e sociais. A ‘revolucao’ fez-se sentir também na filosofia, na ciéncia no mundo das ideias em geral, percorrendo um caminho que se inicia com 0 Renascimento e com as viagens oceanicas de portugueses e espanhéis. O homem europeu rompe com os velhos fabus escolisticos e parte a descoberta de novos mun- dos, de novas gentes e de novos produtos, desperto para a observacio da naturezae para a experimentagao, para a capacidade de aprender sistematicamente com o que se ‘vé claramente visto’, para a compreensio de que “todo o mundo é composto de mudanga” (parafraseando Camées), para a afirmacio do homem como faber mundi (e nao apenas como viater mundi), para a confianga optimista no homem e na sua capacidade de dominar a natureza e de ser senhor da sua propria historia, para a substituigdo de deus pelo homem, consciente da sua capacidade de “dar novos mun- dosao mundo”. ‘AvetAs Nunes - 15 A revolugao burguesa é também a revolugio racionalista, intimamente associada & revolugao cientifica e ao método cientifico moderno introduzido por Bacon e por Descartes. Os fil6sofos do séc. XVIII abandonaram a concepgio religiosa do mundo, da vida e das relagées sociais, substituindo-a pelo conceito de ordem natu- ral e proclamando um mundo de harmonia e de justica (lei natural = lei moral), governado por /eis naturais, tio rigorosas como as da Fisica. E neste ambiente que nasce a Economia Politica, empenhada em aplicar a0 estudo das relagdes entre os homens (considerados como elemento da “ordem natural”) o método cientifico do racionalismo. Como escreveu Maurice Dobb, a Economia Politica classica “exerceu uma influéncia revolucionaria sobre os con- ceitos e a pritica tradicionais”, formulando o “conceito de sociedade econémica como um sistema determinista, i.6, como um sistema regido por leis préprias, de acordo com as quais poderiam fazer-se os clculos e predig6es dos acontecimen- tos”, ¢ sustentando que “nas questdes humanas existia um determinismo compara- vel ao determinismo das leis naturais”. Entendendo-se que o sistema capitalista de produgio partilhava da ‘racionalida- de’ inerente 4 ordem natural, 0 objecto da ciéncia econémica passa a ser o de desco- briras /eis naturais que regulam o processo de produsio e de distribuigao do produto social, compreendendo-se que, a esta luz, o capitalismo fosse considerado (pelos clissicos ingleses, vg.) como uma construcao definitiva, como 0 fim da histéria. O conceito de ordem natural surgiu contra 0 ancien régime, autoritétio, discrimina- torio, regulamentador. Ao autoritério direito divino opunha-se o direito natural liber- tador dos individuos, reconhecendo acada um o direito de prosseguir o seu proprio interesse. Desta forma, a ordem econémica, fancionando por si propria, seriaregida por uma lei natural que asseguraria os melhores resultados para a comunidade. Contra a orientagio mercantilista - que considerava o ‘governo da economia’ pelo estado, através da regulamentacao minuciosa e da intervengao permanente e generalizada, indispensavel para livrar do caos 0 ‘sistema comercial’ -, 0s fisiocra- tas, para além de defenderem o principio do /aisser-faire, laisser-passer, ven procla~ mara existéncia de uma “ordem natural” (“a mais vantajosa para os homens reunidos em sociedade”), governada por “leis soberanas”, “estabelecidas para todo o sempre pelo Autor da Natureza”, leis que sio /eis fisicas, num mundo em que “a ordem moral é tragada pela ordem fisica’, em que “as leis morais nao sio mais do que injung6es 4 nossa liberdade no sentido de obedecer 4s leis fisicas”. A lei fisica e a lei moral confundem~se em favor da primeira na unidade da lei natural. A moral nao pode ter outro sentido que nao seja o de mero instrumento de realizagao fisica da ordem que resulta da lei natural. 16 - Uma InTRODUCAO A ECONOMIA POLITICA A filosofia moral implicita nos trabalhos dos economistas classicos (a filosofia da liberdade natural ou filosofia da lei natural) e 0 seu apelo aos conceitos fundados na natureza humana serviram, consciente ou inconscientemente, o objectivo de encontrar uma justificagao moral para o capitalismo nascente. ‘A Economia Politica propée-se, segundo Adam Smith, “enriquecer tanto os individuos como o soberano”. Mas este desejo de enriquecer surge ao arrepio dos valores que dominaram a civilizagdo cristi europeia anterior 4 Reforma e que se mantiveram até a consolidacao da nova civilizacao burguesae capitalista. Para que 0s novos valores se impusessem contra a moral tradicional era necessirio encontrar para eles uma justificagdo moral. A filosofia da lei natural queinformou a Economia Politica smithiana deu a resposta a esta necessidade, ao ligar o desejo de enriquecer a principios universais decorrentes da natureza humana e da razto humana. A natureza a razdolegitimavam uma pratica que a feologia condenava. E esta forma de justifi- cagéo moral casava-se perfeitamente com o ambiente cultural do tempo. Os conceitos normativos da teoria econdmica classica entroncam na tradigio da lei natural dos séculos XVII e XVIII, perfodo em que a natureza ea razao substi- tuiram Deus como fundamento da ordem social. A ideia da /ei natural -jé presente nos fisiocratas -, com raizes na teologia crista, constitui uma simbiose entre prin- cépios normativos (que vinham da jurisprudéncia romana e da teologia medieval, com asua ideia de uma ordem justa, uma ordem de justica) e principios cientificos (as ‘leis naturais’ partilham de um certo cientismo mais ou menos determinista entio em voga). Enquadrada pelos pressupostos da filosofia da lei natural, a Economia Politica clissica extraiu os seus principios da natureza e da razao, trazendo implicita a conclusio de que tais princfpios conduziriam a uma ordem social justa, num tempo em queo progresso das relagdes de produsio capitalistas coincidia com 0 progres- so da sociedade e em que os interesses ¢ os projectos de transformagao social da burguesia poderiam facilmente identificar-se com os de todos os grupos sociais que nao integravam as clases dominantes feudais. Parece claro, pois, que a Economia Politica nasceu enquadrada na nova ideolo- gia burguesa. A filosofia social presente em A Riqueza das Nayées assenta na defesa do individualismo, na confianga no “sistema de liberdade natural’, na afirmagao deuma antropelogia optimista (ultrapassando o pessimismo hobbesiano do home homini lu- (pus), que servia integralmente o objectivo ideol6gico fundamental da nova classe burguesa: a afirmagio de que os seus interesses so objectivamente coincidentes com os da sociedade como um todo (desde que 0 estado nfo intervenha € a economia funcione de acordo com as suas leis imanentes). ‘Avevas Nunes - 17 Nio sera, por isso, descabido que aqui se acolha a tese - sustentada por Marx epelos autores marxistas - segundo a qual a Economia Politica classica surgiu ¢ desenvolveu-se como ciéncia da burguesia, num periodo em que a burguesia ascen- dente, em luta para ocupar a posigao de classe dominante, na economia, na socie- dadee no estado, eraa classe em condigSes de (e interessada em) analisar objectivamentea sociedade e os mecanismos da economia. 4, - Nao € facil definira ciéncia econémica, por mais estranha que esta afirma- io possa parecer. Apetece dizer, com Alfred Marshall, que “todas as afirmagoes breves sobre Economia so falsas (excepto esta, talvez)”. Hi pouco mais de um século, foi exactamente Alfred Marshall quem definiu a ciéncia econémica como “o estudo da humanidade nos assuntos correntes da vida” (“the study of mankind in the ordinary business of life”). Poderiamos deixar esta definigio, que parece de bom senso, e passar & frente, embora com a consciéncia de, com ela, poucoadiantarmos acerca do objecto da nossa disciplina. Mas, hoje, teriamos de assumir igualmente que a definicao de Marshall € inconsistente com o ‘conceito vazio’ apresentado por Jacob Viner ao definir a ciéncia econémica através da mera descrigdo agnéstica dela como “aquilo que os economistas fazem”. E que hoje nao falta quem defenda que, gracas ao desenvolvi- mento da ciéncia econémica e gragas a uma certa crise por que ela passa, a maioria dos economistas faz coisas que pouco tém a ver com as preocupagoes correntes das pessoas de carne ¢ oss0. Talvez estejamos longe, talvez estejamos mesmo a afas- tar-nos, afinal, da concretizagio do maior desejo de Marshall, manifestado em 1885 na ligéo inaugural da sua citedra de Cambridge: o de enviar os seus estudan- tes para a vida “com cabeas frias mas com coracdes quentes (...), com capacidade para atenuarem os sofrimentos sociais que os rodeiam”. Em regra, os manuais limitam-se a dar a nogio de ciéncia econémica que o seu autor considera mais correcta. Nao adoptaremos aqui esta solugao, por conside- rarmos preferivel - desde logo no plano pedagégico - problematizar a questio, enunciando e mostrando o significado das principais perspectivas analiticas em confronto, estimulando os alunos a participar num debate sempre aberto, sem fornecer receitas nem impor dogmas, embora sem esconder que esta problematiza- gio nao pode deixar de reflectir as nossas proprias ideias. Partilhamos, a este propésito, o ponto de vista dos autores (Paul Sweezy, Joan Robinson, entre outros!) que defendem perfilarem-se actualmente duas grandes correntes (ou paradigmas) acerca da ciéncia econémica: 1 CicClaudio NAPOLEON, sicracia, Smith, Ricardo, Man, trad. esp, Oikos, Barcelona, 1974(I4ed italiana, 1973) Captulol. 18 - Uma InTRODUCKO A ECONOMIA PouiTica Por um lado, a perspectiva cldssica~marxista, que se inicia com os fisiocratas, passa por Smith e Ricardo e vem desembocar em Marx, tendo sido modernamente renovada por Piero Sraffa. Por outro lado, a perspectiva subjectivista-marginalista, que vem de Jean-Baptiste Say e de William Nassau Senior, que se afirmou com a chamada ‘revolugio mar- ginalista’, levada a cabo, a roda de 1870, por William Stanley Jevons, Carl Men- gere Léon Walras, e que hoje se apresenta como a perspectiva académica dominante, a mainstream economics, que tem no ja classico ensaio de Lionel Robbins sobre a natureza e o significado da ciéncia econdmica -1 ed., 1932 - a sua sintese mais elabo- rada e representativa. Vale a pena ler Paul Sweezy?: “A economia politica ortodoxa considera o sistema social existente como um facto estabelecido, como se ele fizesse parte da ordem natural das coisas. No interior deste quadro imutivel, ela procura harmonizar os interesses dos individuos, dos grupos, das classes, das nag6es; ela estuda as tendéncias que conduzem 20 equilibrio, e ela supoe que a mudanga se opera de modo progressivo e nao através de transformagoes bruscas. Penso que, para ilustrar e apoiar estes propésitos, no seri necessirio mais do que lembrar que toda a economia ortodoxa se baseia no cequilibrio geral e/ou parcial (os dois tipos de equilibrio, longe de serem incompa- tiveis, implicam-se, de facto, reciprocamente). E, no que se refere & concepsio ‘gradualista’ da mudanga, limitar-me-ei a lembrar esta divisa impressa na primei- 1a pagina do magnum opus de Alfred Marshall (Principles of Economics): natura non facit saltum —a natureza nao dé saltos. (...) E praticamente no mesmo momento em que se desencadeava a revolugio marginalista, em que a ciéncia econémica (distinta ento da economia politica clissica) se tornava numa ideologia apologética, que Karl Marx propde um modo de anilise do sistema econémico dominante radicalmente diferente ¢ ‘posto ao precedente. Em vez de harmonia, ele encontrou o conflito. Em vez das forgas tendentes ao equilibrio, insistiu nas forgas tendentes a romper ea destruir 0 status quo. Em ver das transformagbes progressivas, ele encontroua descontinuidade qualitativa. Natura factsaltum poderia perfeitamente figurar na primeira pagina de O Capital”. E também Joan Robinson’: “As diferengas fundamentais entre a economia marxista e a ortodoxa tradicio~ nal so as seguintes: primeira, a de que 0s economistas ortodoxos aceitam 0 sistema capitalista como parte da ordem eterna da Natureza, enquanto Marx o 2 Cc Paul SWEEZY, “Pour une critique de'téconomie politique” em L:Homme eta Soci 15, Jan-Mar/1970, 139/140. 3._CinJoan ROBINSON, Economia Marist, rad. Brasil, Fund de Cultura, Rio de Janeiro, 1960 (ed. nglesa, 1942), 13/14. ‘AvetAs Nunes - 19 encara como uma fase passageira na transigio da economia feudal do passado para a economia socialista do futuro; segunda, a de que os economistas ortodo- os argumentam em termos de uma harmonia de interesses entre proprietisi- 05, que nao trabalham, e trabalhadores, que nada possuem. Estes dois pontos de diferenga nao sio desconexos, pois se o sistema é aceite e a participagio das varias classes no produto social é determinada pela lei natural inexorivel, todos 105 interesses se unem para pleitear um aumento no total a ser dividido. No entanto, umavez admitida a possibilidade de alteragio do sistema, aqueles que esperam ganhar e aqueles que temem perder com a mudanga ficam imediata- mente separados em campos opostos. Os economistas ortodoxos, comoum todo, identificaram-se com 0 sistema € assumiram o papel de seus apologistas, enquanto Marx se propés entender 0 funcionamento do capitalismo a fim de apressar a sua derrocada, Marx estava consciente deste propésito. Os economistas ortodoxos, numa inconsciéncia total. Estes escreveram da tinica forma que lhes pareceu possivel fazé-lo, ¢ acreditaram-se dotados de imparcialidade cientifica. Os seus preconceitos apa~ ‘recem mais nos problemas que escolheram para estudare nas hip6teses sobreas. {quais trabalharam do que numa doutrina politica aberta”, A luz da primeira perspectiva, a ciéncia econémica tem no conceito de exce- dente social seu niicleo essencial e é construida a partir dele ¢ 4 volta dele. Desde os fisiocratas que a ciéncia econémica se interroga acerca da origem da rigueza e da natureza do excedente e procura explicar como € que ele se distribui entre as varias clastes sociais, em sociedades caracterizadas pelo conffito social. E cremos que, desde os fisiocratas, se foi construindo a ideia - que ficou clara com Adam Smith, Ricardo e Marx - segundo a qual as leis (ou os principios) que regulam a distribuigio do excedente esto intimamente ligadas as regras (ou prin- cipios) que enquadram o processo social de produgao (ou, na terminologia de Marx, esto intimamente ligadas & natureza das relasées sociais de produgao).. ‘A segunda perspectiva pode distinguir-se pelo facto de assentar numa concep- gio atomistica da sociedade, de nao incluir as classes sociais na anilise econémica, de ignorar a conflitualidade social ¢, com ela, os problemas do poder (do poder econémico e do poder politico), de reduzir a vida econémica ao mercado, a um mundo de vendedores e de compradores, de fazer das ideias de equilibrio dos mereados e de harmonia social o pano de fundo da sua construgao, de se afirmar como ciéncia pura, como ciéncia positiva, por contraposigio & economia politica ideolégica e doutrindria. 5.— Apesar da equagio comum que fazem da problematica central da ciéncia econémica, a partir da concepgao global e de certos conceitos langados pelos fisi- 20 - Uma lntrooucAo A Economia Pouitica ocratas, vamos encontrar, nas correntes que integram a perspectiva classica-~mar- xista, a economia politica dos classicos ingleses e a critica da economia politica desen- volvida por Marx. 5.1. - Os trabalhos dos classicos ingleses no dominio da economia politica foram obras cientificas mas também instrumentos conscientes da luta ideolégica e da luta de classes em que a burguesia se encontrava empenhada contra as velhas classes feudais. Neste periodo inicial do capitalismo - enquanto nao se revelou e no veio para o primeiro plano da luta de classes 0 conflito entre a burguesia industrial e a nova classe proletéria surgida com a industria capitalista -, a econo- mia politica burguesa empenhou-se em analisar criticamente os mecanismos que mantinham ainda de pé a velha sociedade feudal, mostrando como as instituigdes feudais, a organizagao corporativa e os regulamentos da politica mercantilista en- travavam o desenvolvimento econdmico e como as novas relagGes capitalistas ar- rastavam consigo o progresso econémico e social. Nestas condigées, a economia politica classica foi, conscientemente, um ins- trumento ao servigo da transformasao da realidade social, contribuindo poderosa- mente para acelerar a derrocada da velha sociedade. A defesa dos principios do /aissex-faire ea demonstragio da racionalidade e da eficiéncia da mao invisivel e da concorréncia perfeita, v.g., constituiram, verdadei- ramente, uma critica da ordem social anterior. O liberalismo ¢ 0 livre-cambismo, que sio fontes inspiradoras dos trabalhos de Adam Smith e de David Ricardo, representam a critica as rendas (monopolistas) dos grandes senhores da terra e aos ganhos de monopélio assentes em privilégios suportados pelo estado e em restrigdes impostas a circulagio da riqueza e ao livre desenvolvimento do comércio interno e externo. Na sua esséncia, sao a critica de relagdes de propriedade ja ultrapassadas, que sobreviviam gragas a protecgaio do estado e que entravavam o desenvolvimento das forcas produtivas, na medida em que favoreciam 0 consumo em detrimento da acumulagao, ao mesmo tempo que restringiam a mobilidade do capital ¢ a expansio dos mercados. As nogoes de érabalho produtivo e trabalho improdutivo vieram para por em evidéncia a natureza parasitaria das velhas classes feudais e das camadas sociais a elas ligadas, as quais consumiam de modo improdutivo uma parte significativado produto social (obtido pelo trabalho das outras classes), em contraste com o papel dinamico e progressivo da burguesia, que acumulava o capital e desenvolvia a industria e o comércio em novos moldes, os tinicos capazes de promover o desen- volvimento econémico. ‘AvetAs Nunes -21 William Petty, vg., referia-se aos senhores feudais ¢ as camadas sociais a eles ligadas como pessoas que “nao fazem nada mais do que comer, beber, cantar, tocar, bailar e cultivar a metafisica”. E Adam Smith escreveu:* “O trabalho de muitas das mais respeitiveis classes sociais, tal como 0 dos criados, nfo produz qualquer valor, no se fixando nem corporizando em qual- quer objecto durivel ou mercadoria vendivel que continue a existir uma vez terminado o trabalho, e que permita atingir, mais tarde, igual quantidade de trabalho. O soberano, por exemple, bem como todos os funcionétios tanto da justiga como da guerra que servem sob as suas ordens, todo o exército e toda a marina, (0 trabalhadores improdutivos. Sao servidores do publico e é uma parte do produto anual da actividade dos outros individuos que os mantém. ( Na mesma classe teremos de incluir tanto algumas das mais sérias ¢ importan- tes profissdes, como algumas das mais frivolas: os eclesidsticos, os advogados, (0s médicos ¢ os homens de letras de todos os géneros, os actores, os bobos, os isicos, os cantores de pera, os bailarinos, etc. O trabalho dos mais insigni- ficantes membros destas profissdes tem o seu valor, regulado pelos mesmos principios que regulam o de todas as outras espécies de trabalho, e mesmo o dos mais nobres e mais titeis nada produz que permita mais tarde adquirir ou obter igual quantidade de trabalho. Tal como a declamagio de um actor, a arenga de um orador oua melodia de um miisico, o trabalho de todos eles deixa de existir no proprio momento em que é produzido”. A teoria do valor-trabalho (mnicleo teérico das criticas a velha sociedade), con- siderando o trabalho como a tinica fonte criadora de valor, punha em relevo, no fim de contas, a oposicao entre a igualdade e a justica burguesas e a opressio ¢ 0s privilégios feudais. As concepgées liberais, por sua vez, significaram uma critica empenhada em acabar com as sobrevivéncias feudais e em transformar a sociedade e a economia no sentido que correspondia, entio, nao sé aos interesses da burguesia, mas tam- bém as necessidades do desenvolvimento econémico e social da Inglaterra. No plano das relagGes internacionais, o livre-cambismo (isto é, a defesa da liberdade do comércio internacional, sem restrigées artificiais impostas por qual- quer estado) correspondia aos interesses da burguesia industrial inglesa cujo mo- nopélio tecnolégico dispensava o recurso a ac¢ao do estado, para proteger a sua posi¢ao de dominio, Em sintese: assim como o desenvolvimento das ciéncias naturais assegurava & burguesia os instrumentos indispensiveis 4 permanente renovaco das forgas pro- dutivas — na qual assentava a reprodugio das relagdes de produgio capitalistas ¢ 4 hr Riqueza das Nagées,ed. cit , 582/583. 22 - Uma INTRODUGAO A ECONOMIA PotiTica dos correspondentes mecanismos de apropriagio do excedente, e, portanto, a ri- queza e aimportancia social crescentes da burguesia ~, a economia politica burguesa funcionava como arma no combate aos velhos vinculos que limitavam a iniciativa a actividade econdmica, ao mesmo tempo que punha em relevo, perante a pré- pria classe burguesa e perante as camadas populares (cujo apoio a burguesia entio procurava e estava em condigées de obter), a natureza economicamente produtiva esocialmente progressiva da nova burguesia industrial. 5.2.- No entanto, a partir do momento em que a burguesia se instalou como classe dominante e, sobretudo, a partir do momento em que anova classe operiria comecoua ganhar consciéncia da sua prépria posicao no processo produtivo soci- ale do antagonismo entreos seus interesses de classe e os interesses da burguesia, esta deixou de ter interesse no desenvolvimento da economia politica enquanto ciéncia orientada para a descoberta das leis econémicas do funcionamento e da evolugao da sociedade capitalista. Por esta altura, a economia politica comecava a por em causa o caricter de leis naturais das leis econémicas especificas do modo de produgao capitalista; comegava a interrogar-se sobre os beneficios ~ para as massas populares e, sobretudo, para a classe operiiria emergente com o desenvolvimento do capitalismo na industria -, da liberdade de actividade econémica de que gozava a burguesia; comecava, enfim, a porem dtivida que a burguesia continuasse a ser a classe economicamente produtiva e socialmente progressiva que tinha sido no periodo da viragem do feudalismo para o capitalismo. Interrogagoes deste tipo ressaltam dos trabalhos de Sismonde de Sismondi (1773-1842), cuja obra principal (Nouveaux principes d’économie politique) foi pu- blicada em 1819, e - aindaem vida de Ricardo - das obras dos chamados socialis- tas ricardianos, com destaque para Thomas Hodgkin (1787-1869), que publicou, em 1825, um trabalho significativamente intitulado Defesa do trabalho contra as pretensbes do Capital, cujas conclusées poderio sintetizar-se nesta sua afirmagao: “é necessirio o capital, mas nao os capitalistas”. A economia politica cientéfica deixava de ser titil a burguesia. A economia poli- tica burguesa perdia entio o seu caricter de anilise cientifica da evolugao econémi- cada sociedade e transformava-se em ideologia, no sentido de ma consciéncia (ou de falsa consciéncia), 1.6, de instrumento de defesa dos interesses da classe dominan- te na sociedade capitalista (a burguesia), contra a ideologia da classe operiria. No Preféicia a 12 edigio de O Capital (1867), advertia Marx: “No campo da economia politica, a investigagio livre e cientifica encontra muitos mais inimigos do que nos outros campos. A natureza particular do assunto de que se trata ergue contra ela e leva para o campo de batalha as ‘AvetAs Nunes - 23 paixSes mais vivas, mais mesquinhas e mais odiosas do coragio humano, todas as fiirias do interesse privado”, Mas € no Posfiicio 4 2 edigao alema de O Capital (1873) que Marx faz uma sintese de todo o proceso que acabamos de referir: “A economia politica enquanto burguesa ~ isto é, enquanto vé na ordem capita- lista nfo uma fase transitéria do progresso histérico, masantes a forma absoluta definitiva daprodugio social -, pode permanecer uma ciéncia enquanto a luta de classes permanecer latente ou s6 se manifestar por fendmenos isolados. (...) © periodo de 1820 a 1830 distingue-se, na Inglaterra, por uma vida ‘exuberante no dominio da economia politica. E a época da elaborasio da teoria ricardiana, da sua vulgarizagao e da sua luta contra todas as outras escolas resultantes dadoutrina de Adam Smith. (..) A situagio dessa época explica a ingenuidade desta polémica, embora alguns escritores sem partido tenham ja feito da teoria ricardiana uma arma ofensiva contra o capitalismo, Por um lado, a grande indiistria ainda estava a sair da sua infincia, pois que 0 inicio do ciclo periédico, tipico da sua vida moderna, s6 surge com a crise de 1825. Por outro lado,a luta de classes entre © capital e o trabalho era atirada para segundo plano: no plano politico, pela uta dos governos e do feudalismo, agrupados a volta da Santa-Alianga, contra ‘a massa popular, conduzida pela burguesia; no plano econdmico, pelas disputas do capital industrial com a propriedade aristocratica da terra que, na Franga, se ‘ocultavam sob o antagonismo da pequena e da grande propriedade, e que, na Inglaterra, se manifestaram abertamente, ap6s a “leis dos cereais”. (...) Consideremos a Inglaterra - continua Marx. O perfodo em que a luta de classes ainda ai nfo esta desenvolvida, é também o periodo clissico da econo- mia politica, O seu tiltimo grande representante, Ricardo, é 0 primeiro econo- mista que faz deliberadamente do antagonismo dos interesses de classe, da ‘oposigio entre salério, lucro e renda, 0 ponto de partida da sua investigasio. Este antagonismo, que € efectivamente inseparivel da propria existéncia das classes que compoem a sociedade burguesa, formula-o ele ingenuamente como alei natural, imutavel, da sociedade humana. Era atingiro limite, que a ciéncia burguesa nfo transpori. A critica ergueu-se perante ela ainda em vida de Ricardo, na pessoa de Sismondi. (...) E em 1830 que rebenta a crise decisiva. Na Franga e na Inglaterra, a burguesia apodera-se do poder politico. A partir dai, a luta de classes reveste, na teoria como na pritica, formas cada vez mais declaradas, cada vez. mais ameagadoras. E ela que da o toque de finados da economia burguesa cientifica. Doravante, ja se nfo trata de saber se tal ou tal 24- Uma INTRODUGAO A Economia Potiica teorema é verdadeiro, mas sim se ¢ agradivel ou desagradavel, se é aprazivel ou nio A policia, util ou prejudicial para o capital. A investigagao desinteressada cede 0 lugar ao pugilato pago, a investigagio conscienciosa a ma consciéncia, aos miseriveis subterfiigios da apologética. No entanto, os pequenos tratados com que a Anti-corn Law League, sob os auspicios dos fabricantes Bright e Cobden, incomodou o piiblico, ainda oferecem algum interesse, sendo cientifico, pelo menos histérico, por causa dos seus ataques contra a aristocracia fundis Mas a legislacao livre-cambista de Robert Peel arranca bem depressa economia vulgar, juntamente com o seu tiltimo motivo de queixa, a sua tiltima garra”. Com base na ideia de que a Economia Politica é uma ciéncia de classe, os autores marxistas costumam, alids, distinguir varias fases na evolugo da economia politica burguesa, fases que coincidiriam, grosso modo, com os varios estidios de evolugio do capitalismo:$ 1) Umpertodo de andllise cientéfica da realidade econémica. ¥. 0 periodo de ascen- sio da burguesia, em que a classe burguesa era inovadora ¢ progressista, sendo, portanto, a classe em condigées de detectar o fenémeno econémico: é o periodo de elaboragio da teoria do valor, de William Petty (1676) a David Ricardo (1817); 2) Um periodo de controversia e de cisao. Depois da ascengao da burguesia capi- talista, com 0 aparecimento do proletariado, dé-se inicio a uma luta de classes que vem determinar uma nova orientagio da economia politica, na medida em que foram postas & prova as contradigbes da teoria burguesa do valor - trabalho, origi- nando a cisao entre a ‘escola’ marxista e as varias escolas burguesas pés-ricardianas; 3) Um pertodo de cardcter apologético. A medida que a burguesia consolida defi- nitivamente a sua posi¢ao de dominio (pela eliminaco das antigas classes domi- nantes) e A medida que o proletariado vai intensificando a sua luta contra 0 capitalismo, a economia politica burguesa perde o seu cardcter cientifico e vai assumindo um caracter apologético, de instrumento de defesa dos interesses da burguesia contra os interesses da classe trabalhadora. E 0 periodo de declinio da economia politica burguesa: a teoria do valor-trabalho é substituida pela economia vulgar (eclética) e depois pela escola marginalista. 4) Um pertodo de pragmatismo, que se iniciaria depois de Grande Depressao de 1929-33. Com efeito, essa foi uma crise que espalhou a confusio e a rufna nos meios financeiros ¢ industriais dos EUA, reflectindo-se depois gravemente na Europa capitalista. Apés uma crise dessa envergadura, em que foram postas em Seguimos aqui a proposta de E. MANDEL (Trait. cit, 9/10). 0. ANGE (caps. Veil do "vol. de Economia Polit... ct) faz uma anslse mas profunda e menos esquemstica da evoluc3o da economia polftca burguesa. causa as estruturas do sistema capitalista, a posi¢ao apologética anterior deixou de ter sentido, por ja nao ser eficaz. Por isso, a economia politica burguesa passou a ter um sentido pragmdtico, capaz de assegurar a sobrevivéncia do sistema. Transformou-se numa técnica de consolidagao pratica do capitalismo. Esta fase iniciar-se-ia com John Maynard Keynes. A revolugdo keynesianae a utilizacdo das novas técnicas econométricas na economia politica correspondem a uma necessidade pritica do sistema capitalist. Com efeito, morto o capitalismo de concorréncia e adiantado ja 0 processo de monopolizagao, a obra de Keynes significou a elaboragao tedrica correspondente as necessidades do capitalismo, num estadio da sua evolugo em que a intervengio do estado no dominio da eco- nomia passou a ser entendida, nas palavras de Keynes, “como 0 tnico meio de evitar uma completa destruicao das instituigdes econdmicas actuais”. 5.3.- Vimos ja que a economia politica marxista surgiu como critica da econo- mia politica classica, repudiando o seu cardcter a-hist6rico, que correspondia consideragdo do capitalismo como a forma acabada, definitiva, de organizacio econdémica € social, correspondente a ordem natural das coisas e cujo funciona- mento era susceptivel de ser apreendido através de leis imutaveis, de validade eterna e universal. Ao assumir-se como classe dominante, a burguesia perdeu o interesse no de- senvolvimento da economia politica enquanto ciéncia que abarca o conjunto das relagdes econdmicas entre os homens, e, acima de todas, as relagdes de produgdo. O lugar da cigncia — observa Oskar Lange - € ocupado pela apologética, que se limita a “exprimir de forma pseudo-cientifica um sistema de juizos a priori sobre 0 capitalism, pretendendo que exista harmonia entre os interesses de todas as clas- ses sociais, ¢ identificando as categorias e as leis econémicas do capitalismo com as categorias e os principios universais da racionalidade econémica”. Este o resultado de um proceso evolutivo da economia politica burguesa no sentido de liquidar esta disciplina enquanto ciéncia que estuda as relagdes sociais de producao e distribuigao. Esse processo iniciou-se com o que Marx chamou a “eco- nomia vulgar” e continuou depois com as correntes subjectivistas ea escola historica. As primeiras, negando o caracter social das leis econémicas e substituindo a eco- nomia politica clissica pela psicologia ou pela légica da escolha racional; a se- gunda, embora reconhecendo 0 caracter social do processo de produgio e distribuigdo, nega existéncia de leis que governam esse processo, o que significa asubstitui¢ao da seoria econdmica pela historia econdmica. Aos olhos de Marx, foi entio a vez de a classe operaria e os intelectuais a ela ligados chamarem a sia tarefa do desenvolvimento cientifico da economia politi- 26 - Uma INTRODUGAO A ECONOMA Potinica ca, a qual se converteu de ciéncia da burguesia em ciéncia do proletariado. Em 1873, no Posficio 428 edigao alema de O Capital, Marx afirmava: “a compreensio que 0 Capital rapidamente encontrou em largos circulos da classe operaria alemi é a melhor paga do meu trabalho”. E em 1886, no Prefiicio 41° edicdo inglesa de 0 Capital, Engels referia que ele era entao correntemente designado como “a Biblia da classe operaria”, de tal modo a condigao social e as aspiracoes da classe operdria se encontravam reflectidas na anilise de Marx. Enquanto ciéncia do proletariado, a economia politica marxista afirma-se um instrumento cientifico apto a propiciar 4 classe operdria a compreensio da sua posigio de classe explorada na sociedade capitalista e do seu papel hist6rico de classe transformadora desta mesma sociedade, ao mesmo tempo que, através do conheci- mento das leis de funcionamento e das perspectivas de desenvolvimento futuro do capitalismo, fornece ao movimento operitio os elementos indispensaveis para a eficicia da ac¢do pratica orientada para acelerar a derrocada da sociedade capita- lista ¢ para abreviar o periodo de gestagio e minorar os males do nascimento da sociedade futura.® Neste sentido, a economia politica marxista passa a constituir um elemento es- sencial do socialismo cientifica, corpo tedrico que visa superar a espontaneidade do desenvolvimento social e dar vida a relagSes sociais em que a acgo das leis econé- micas se desenvolva segundo a vontade humana. 5.4. -O que fica dito conduz-nos directamente ao problema das relagdes entre ciéncia econdmica ¢ ideologia, que € apenas um dos campos em que se coloca a problemitica da relagao entre ciéncia e ideologi “Aeconomia poltica, concetida como ciéncia das condigbes e das formas em que as diversas sociedades tém pproduzido, trocado edisribuldo os produtos de forma corespondente, so é, aeconoria politica em toda a sua cextensio esté ainda por fazer -escrevia Engels em 1878. O.que possulimos de ciéncia econdmica até 0 presente — continua Engels -reduz-se, quase exclusivamente, a génese e evolusio da forma de produc ‘apitalista. Eta ciéncia comesa com critica dos restos das formas feudais de produco.ede roca; demonstia anecessidade da sua substituic3o pelas formas capitalisas; desenvolve, depois, as leis do modo de produg3o capitalist eda roca correspondente na sua fase positiva, 6, no sentido em que as dita leis favorecem os firs gers da sociedade; e termina com aertica socalista do modo de producSo capitalista, ou seja, com a expo- sito de tais leis na sua fase negativa, mostrando como esse modo de producio tende, pela sua propria evolu- ‘0, para um ponto em que também se torna impossivel” AntiDubring, tad. pot, ed. cit, 187). ‘Masa economia politica mansista fois desenvolvendo a medida da evolu3o do proprio modo de produc30 capitalista, volando a sua atengo para novos campos: anslise mais partcularizada do desenvolvimento do capitalism nos viios pases estudo dos problemas dareproducao da acumulacio e das crises econdmicas; ‘estudo dos novos fendmenose das leis econGmicas proprias da fase do captalsmo monopolist; elaborac3oda teoria do imperialismo, da eoria da crise geral do capitalism e da teoria do desenvolvimento desigual na ‘6poca imperialista; andlise da problemstica relacionadas com a economia poltica das formacdes socials pré- capitalistas, especialmente do modo de produ30 feudal formulacdo da impossitilidade da revolucao socia- lista em todos 0s pass simuitaneamente; enunciado dos principios fundamentais da economia politica do soxialismo. ‘AvetasNunes -27 Na ptica do pensamento marxista, o primeiro ponto a referir é 0 de que Marx nunca considerou como ideologia o seu préprio sistema de ideias. E, nos seus primeiros trabalhos, quer Marx quer Engels referiam-se sempre a ideologia como ideologia mistificadora da realidade, como falsa consciéncia. Na Ideologia Alema(1845) a ideologia é considerada como um sistema de ideias falsas que constituem, no espirito das pessoas, um reflexo deformado das condigoes materiais da vida social. Mas a ideologia constitui, ao mesmo tempo, um sistema de ideias criadas pela classe dominante: “as ideias da classe dominante - escreve Marx - sio em cada época as ideias dominantes”, dado que “a classe que disp6e dos meios da produgio material dispde ao mesmo tempo, por isso mesmo, dos meios da produgio intelec- tual, de tal modo que a esta ficam globalmente subordinadas as ideias daqueles aos quais faltam os meios da produgio intelectual”. S6 mais tarde os classicos do marxismo comegam a conceber a ideologia como sistema de ideias sociais, aproximando-se da no¢ao que Gramsci consa- graria e que hoje € correntemente acolhida na literatura (marxista ou nio), segundo a qual a ideologia é “uma concepsao do mundo que se manifesta impli- citamente na arte, no direito, na actividade econémica, em todas as manifesta ges da vida individual e colectiva”. ‘$6 com Lenine e Gramsci se consolidou, porém, entre os autores marxistas, 0 entendimento de que também as ideias sociais do movimento operitio (isé, 0 soci- alismo cientifico e, no seio deste, 2 economia politica marxista) sao ideologica- mente enquadradas. Nesta conformidade, poderemos dizer que, para os autores marxistas, as con- cepgdes cientificas tém que ver, directa ou indirectamente, com as relacdes sociais, ¢, por isso mesmo, constituem uma parte da ideologia, i, do conjunto das ideias, sociais correntes em determinada formacio social, ideias com base nas quais os homens valorizam, directa ou indirectamente, as relagGes sociais. No que tange as ciéncias sociais, sendo o seu objecto, justaménte, as relages sociais, isto significa que os seus enunciados cientificos influem na valoragao des- tas relacdes. As ciéncias sociais apresentam, por isso, claramente, um caricter ideolégico, integram-se na ideologia existente em cada formacio social. Indepen- dentemente dos propésitos dos homens de ciéncia individualmente considerados de buscar a verdade objectiva, as ciéncias sociais - ¢ entre elas a economia politica ~ inserem-se em cheio na luta ideolégica, dado que o proceso social do conheci- mento cientifico se desenvolve em condigées sociais determinadas, e no quadro do sistema de ideias que caracteriza cada formagio social concreta.

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