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BCTOO, Ellen Meiksins Wood - DEMOCRACIA CONTRA CAPITALISMO a renovacgao do materialismo histérico O DEMos versus “NOs, 0 Povo”: DAS ANTIGAS AS MODERNAS CONCEPGOES DE CIDADANIA © antigo conceito de democracia surgiu de uma experiéncia histérica que conferiu status civil nico as classes subordinadias, criando, principalmente, aque- 1h formagio sem precedentes, 0 cidadio-camponés. O conceito moderno perten- ce, em tudo ~ ou em grande parte ~, exceto no nome, a uma trajetéria hist6rica diferente, cujo exemplo mais evidente é a experineia anglo-americana. Os princi- pais marcos a0 longo da estrada que leva a democracia antiga, tais como as refor- mas de Sélon e Clistenes, representam momentos fundamentals no processo de levagio do demas condigio de cidadania, Na outra histSria, que se origina nao nna democracia ateniensc, mas no feudalismo europeu e que culmina no eapitai ‘mo liberal, os grandes marcos, tais como a Magna Carta ¢ 1688, marcam a ascen- so das lasses proprieitias. Neste caso, nose tata de camponeses que se libertam da dominasio politica de seus senhores, mas da afirmagio pelos préprios senhores de sua independéncia em relagio as reivindicagées da monarquia. E esta a origem dos principios constitucionais modernos, das idéias de governo limitado, da separacio de poderes etc, prineipios que deslocaram as implicagies do “governo pelo demos” — como 0 equilfbrio de poder entte ricos e pobres ~ como 0 critério central da democracia. Se 0 cidadio-camponés ¢ a figura mais representativa do primeiro drama histérico, a do segundo € 0 bario feudal e o aristoccata Whig! Se cidadania é © conceito constitutivo da democracia antiga, o principio funda- ‘mental da outra variedade ¢, talvez, 0 senboria, O cidadio ateniense afirmava nio ter senhor, ndo ser servo de nenhum homem mortal. Nio era devedor de servico nem de deferéncia a nenhum senhor, nem se preocupava com a obrigagio de enriquecer com seu trabalho algum tirano, A liberdade, eeuseria, que sua cidadania tornava possivel era aliberdade do demas em relagto ao senhorio, A Magna Carta, a0 conteé Fo, nfo foi um documento de um demo live, mas dos préprios senhores que afi- -maram privilégios feudais ea liberdade da aristocracia canto contra a Coroa quanto a multidéo populas, asim como a liberdade de 1688 representou o privilégio dos senhores proprietétios de dispor como quisessem de sua propriedade e de seus servos. Dexocmcin conta canrastna Nacuralmente, a afirmagio do privlégio ariscocrdtico contra a invasio das monarquias produziu a tradigao da “soberania popular” de que deriva a con- cepgio moderna de democracia; ainda assim, 0 "povo” em questo nfo era o demos, mas uum estrata privilegiado que constituiu uma nagio politica exclusi- va situada no espago puiblico entre a monarquia e a multidio. Enquanto a democracia atenicnse teve 0 efeito de quebrar a oposicio ancestral entre go- vernantes ¢ produtores, ao transformar camponeses em cidadios, a divisao en- tte proprietirios governantes ¢ siditos camponeses foi condigio constitutiva da “Soberania popular” que surgi no inicio da Europa moderna. De um lado, 2 fragmentagio do poder do soberano ¢ poder da aristocracia que constitul. ram 0 feudalismo europeu, 0 controle da monarquia ¢ da centralizagio do Estado exercida por esses principios feudais, seriam a base de uma nova espé- cie de poder “limitado” de Estado, a fonte do que viriam a ser chamados de principios democraticos, tais como o constitucionalismo, a representagio ¢ as liberdades civis. De outro, 0 reverso da aristocracia feudal era um campesinato dependente, enquanto a “nacio politica” que emergiu da comunidade de se- nhores feudais manteve sua cxclusividade e a subordinagio politica das classes produtoras. Na Inglaterra, a nacfo politica exclusiva se corporificou no Parlamento, que, ‘como escreveu Sir Thomas Smith na década de 1560, em 0 poder de todo o reino, a cabesa e o corpo. Pois toda inglés deve ld estar presen- fe, ou em pessoa, ou por meio de procuradores e representantes, seja qual for sua preeminéncia, dignidade, ou qualidade, desde o Principe (Rei ou Rainha) até a pes- 50a mais humilde da Inglaterra. E a anuéncia do Parlamento deve ser entendida como a anuénela de todos.? E importante observar que um homem era considerado “presente” no Parla- ‘mento mesmo que nio tivessedireito de eleger seu representance. Thomas Smith, assim como outros antes ¢ depois dele, nfo questionava o fato de uma minoria de proprietirios ter 0 direito de representar toda a populacio. A doutrina da supzemacia parlamentar viria a operar contra o poder popular mesmo quando a nagio politica jd no se restringia a uma comunidade relativa- ‘mente pequena de proprietirios © quando se ampliou a idéia de “povo” para in- cluir a “multidéo popular”, Na Inglaterra de hoje, por exemplo, a politica é a reserva especial de um Parlamento soberano. O Parlamento ¢ o responsive tti- ‘mo perante seu eleitorado, mas 0 “pov” nao é realmente soberano. Para todos os efeitos, néo existe politica pelo menos politica legitima — fora do Parlamento, De fato, quanto mais inclusivo se comava o termo “pove”, mais a ideologias politicas dominances ~ dos conservadores & corrente principal do trabalhismo ~ insistiam na despolitizacio do mundo fora do Parlamento e na deslegitimacdo da politi “extraparlamentar”, Paralelamence a esse processo, ocorret uma centralizagao cres- 5 SMITH, Shomer nbn dire Macy Dem Cambie, 1982.0 8,

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