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oJNCRfVEL CONGRESSO
DE FUTUROLOGIA
Um salto para o futuro. Qual futuro?
Este ou outro semelhante, mas um fu-
turo admissível e verossímil? O romance
de Stanislaw Lem procura, através de
um argumento apaixonante e original,
dar a possível resposta a uma pergunta
de todos os dias. Como será o futuro?
Num país imaginário, Costarricana,
num Hotel imaginário (aliás chamado
Hilton) realiza-se num futuro re-
lativamente próximo o Incrível Con-
gresso de Futurologia que dá origem ao
livro. Nas ruas, a revolução, a desordem,
há feridos e mortos. O protagonista, ljon
Tichy, membro do~ongresso, é ferido .. --~ ·-'
·' gravemente e posto em hibernaç~o . . : .:;Jz!~~::<~:-;:1
até o ano de 2039. Descobre entao o ~:i~··.-~. .
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Leia
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O INCRÍVEL
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ST ANIS LAW LEM
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O INCRÍVEL
CONGRESSO DE
FUTUROLOGIA
(Das Memórias de ljon Tichy)
Tradução de
DONALDSON M. GARSCHAGEN
EDITORA
NOVA
<~~ FRONTEIRA
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. ~
Capa:
Rolf Gunther Braun
\ Escultura c!e Geza Toth
Diagramação:
Valdecir Rodrigues de Mcllo
Revisão:
Alvaro Tavares
FICHA CATALOGRAFICA
(Preparada pelo Centro de Catalogação-na-fonte do
S indicato Nacional dos Editores de Livros, RJ)
Lem, Stanislaw.
L563i O Incrível Congresso de Futurologia; tradução de Donaldson
M. Garschagen. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1977.
140 p.
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·7
. d articipantes e pela confusão. A apresentação
excesstvo e P stá inteiramente fora d e cog1taçao, · - e elas têm
oral das teses e ,. . . _ .
.d com antecedencta. Todavta, nao houve tempo
de ser l 1 as -
· · ·sa alguma naquela manha, porquanto a gerência
nara 1er co1 . . ,.
· .,: f ceu bebidas gratuitamente. Essa pequena cenmonia
nos o ere .
· eu normalmente exceção fetta ao fato de haverem
transcorr ' _
· t' d alguns tomates podres contra a delegaçao norte-ame-
a 1ra o d . .
ricana. Eu estava calmamente toman o meu mart1n1 quando
·soube por Jim Stantor, conhecido repórter da U . P . I., que
naquela madrugada tinham sido . seqüestrados um ~ônsul e
um adido da Embaixada Amencana na Costa R1ca. Em
troca dos diplomatas, os seqüestradores estavam exigindo a
libertação de todos os prisioneiros políticos. Para darem
maior peso & exigência, esses extremistas já haviam enviado,
à Embaixada e a vários órgãos do governo, um dente de
cada um dos reféns, prometendo uma escalada anatômica
.no caso de suas exigências não serem atendidas. Ainda a~
. sim, esse contratempo não perturbou a atmosfera cordial
. desse coquetel matutino. Dele participou, aliás, o próprio
embaixador dos Estados Unidos, que pronunciou breves pa-
lavras acerca da necessidade de cooperação internacional -
.breves teriam mesmo que ser, porquanto estava rodeado de
.seis guarda-costas à paisana, muito corpulentos, que manti-
veram suas armas apontadas para nós todo o tempo. Cum-
pre-me confessar que essa situação me deixou bastante
des~oncertado, principalmente quando o moreno delegado da
lndta, que estava a meu lado, desejou assoar o nariz e pro-
curou o" l~nço no bolso da calça. O porta-voz da Associação
Futurolog1ca asseguro u-me, postenormente,
· que essas medt- .
das eram a um só t empo necessanas " . e humanitárias. Expli-
cou-me ele que os guard a-cos t as h OJe . em d1a . empregam ar-
mas de grosso cal·b1 re e b aixo · poder de penetração do tipo
que ?~ agentes de segurança levam· a bordo dos a~iões co-
merctats, e graças às . .
ridas N quais pessoas Inocentes não ficam fe-
. o passado ocorria com f .. " .
prostrava 0 sup t' requencta que a bala que
do seu curso os o autor
. . de um a entad o trespassava, segmn-
t .
, mats cmco ou s · .
dando de seus p " . eis pessoas que, embora cut-
ropnos afazeres, encontravam-se diretamente
.
·8
- . . -- ··-· ·- -- -·-- ---·--- - ------ - - - ~
13-
vista, uma vez que àquela ~poca havia na Costa Rica muito
mru·s futurólogos do que dtplomatas. , .
Um hotel de cem andares e um organtsmo tão vasto, e
tão confortavelmente isolado do resto do mundo, que as no..
tícias chegam a ele como se proviessem de outro hemisfério.
Até 0 momento, os futurólogos não haviam demonstrado pâ-
nico; a agência de viagens do Hilton não estava assediada
por clientes desejosos de reservar lugares de volta aos Esta-
dos Unidos ou qualquer outro país. O banquete e a ceri-
mônia de instalação do congresso estavam marcados para
as duas horas da tarde. Como eu ainda não mudara de
roupa, corri a meu apartamento, vesti-me e tomei um ele-
vador para o Salão Púrpura, no 46<? andar. No vestíbulo,
duas moças encantadoras, com os seios desnudos e pintados
com miosótis e flocos de neve, aproximaram-se de mim e
me entregaram uma pasta brilhante. Sem examinar seu con-
teúdo, entrei no salão, que ainda se encontrava vazio, e fi-
quei estupefato ao contemplar as mesas - não porque o
serviço fosse, como era, de esplêndida qualidade, mas porque
as travessas de hors d' oeuvres, os montículos de patê, os
pratinhos com cogumelos, e até as terrinas de salada, tudo
enfim estava disposto de modo a figurar, inequivocamente,
·Órgãos genitais. Não havia como pensar em alguma ilusão
de ótica, pois alto-falantes discretamente dissimulados difun-
diam uma canção, muito popular em certos círculos, que
I começava com as seguintes palavras: "Para fazer sucesso
nas artes, exiba suas partes íntimas! Os críticos dizem que
não se ofendem com falos ou outros órgãos!"
Foram chegando os primeiros comensais cavalheiros de
barbas e.spes.sas e densas suíças, ainda que, ~a verdade, fos-
sem ~Uito Jovens, alguns vestidos em pijamas e outros nus
elm pelo. Quando seis garçons trouxeram o bolo e pude vis-
umbrar aquela · d t' . '
. m ecen ISSima sobremesa dissiparam-se todas
a~ midnhas dúvidas: eu me enganara de ~alão e estava parti-
ctpan o do ban t d .
não . que e a Literatura Liberada. Pretextando
conseguu encont . h
apressada rar mtn a secretária, bati em retirada
i·' ,,
ir ao Sal-mente
p,
e tomei o eI evador, descendo um andar para
ao urpura (por equívoco, eu fora para o Lavan-
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da), que a essa altura já se encontrava à cunha. Disfarcei
da melhor maneira possível meu desapontamento ante a dis-
crição da recepção. Estava sendo servido um buffet frio, e
não havia mais lugares para sentar; todas as cadeiras tinham
sido removidas, de modo que para comer alguma coisa ti-
nha-se de agir com a habilidade própria a essas ocasiões,
sobretudo se considerarmos que se haviam formado verda-
deiras multidões ao redor dos pratos mais substanciais. O
Senor Cuillone, representante da seção costarriquenha da
Associação Futurológica, explicou, com um sorriso cativan-
te, que uma abundância pantagruélica de acepipes estaria
inteiramente fora de lugar naquele banquete, pois havia que
levar em conta que um dos principais temas na agenda da
conferência era a ameaça de fome que pairava sobre a hu-
manidade, em escala mundial. Houve, naturalmente, os céti-
cos que comentaram que com toda certeza as verbas da As-
sociação tinham sido cortadas, porquanto somente tal fato
poderia explicar frugalidade tão espartana.
Os jornalistas, já acostumados a passar fome, trabalha-
vam com afinco, tentando entrevistas com vários luminares
estrangeiros da ciência dos prognósticos. Em lugar do em-
baixador dos Estados Unidos, somente compareceu o tercei-
ro-secretário da Embaixada, protegido por um verdadeiro
batalhão de guarda-costas. Era a única pessoa a usar
smoking, talvez porque fosse difícil esconder um colete à
prova de balas sob um paletó de pijama. Soube que os con-
vidados costarriquenhos tinham sido revistados na portaria;
ao que parecia, já era grande a pilha de armas confiscadas.
As reuniões propriamente ditas só começariam às cinco
da tarde, o que significava que tínhamos tempo para descan-
sar, e por isso voltei a meus aposentos no 1009 andar. Eu
sentia uma sede terrível devido ao excesso de sal na salada
de repolho, mas como 'o bar de meu andar tinha sido pra-
ticamente tomado de assalto pelos contestatários-dinamita~o
res estudantis e por suas namoradas e, de qualquer manetra,
uma única conversa com o papista - ou antipapista - ~ar
budo já tinha sido mais do que o suficiente, contentet-me
com um copo de água da pia do banheiro.
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De repente·, todas as luzes se
- · , apagaram
nao Importa ·o numero que eu d' ' e o telef
_ . Iscasse, só f . one,
uma gravaçao da história de Rapunzel T a~Ia transmiti
ele va d or, mas tam b"em estava enguiçado · O entet descer Pelor
tavam em .coro, disparando suas armas . s estudantes can..
. . ao compass0 d
SJca - e rezet para que estivessem v· d a Inú-
. ua as para
1a d o. Essas coisas acontecem até nos m lh ~ outro
· e ores boteis
ne1n · por tsso são menos irritantes. Entretant ' mas
" . o, o que m .
me causava especte eram minhas próprias reaço- M ats
" . es. eu es
·t a do de esptnto, bastante azedo desde aquela co -
. nversa com·
o assassino do Papa, · melhorava agora a olhos visto T
, s. a-
tean do a volta do quarto, derrubei alguns móveis e co ·
· · d 1 mecet
~ nr 1n u gentemente no escuro. Mesmo depois de ferir
0
JOelho, ao esbarrar numa mala, o incidente não diminuiu
minha sensação de boa-vontade em relação a toda a huma-
nidade. Sobre o criado-mudo encontrei os restos da refeição
ligeira que eu havia pedido que fosse mandada ao aparta~
mento;_ peguei um dos folhetos da convenção, enrolei-o e o
impregnei com a sobra da manteiga, acendendo-o com um
fósforo. A tocha improvisada assim obtida estalava e fume-
gava exageradamente, mas proporcionava iluminação satisfa-
tória. Afinal, eu tinha de encher o tempo durante mais de
duas horas, contando com pelo menos uma hora nas escadas,
. j.á que o elevador n ão estava em funcionamento.
Acomodei-me numa poltrona e fiquei a observar, com
énorme interesse, as flutuações e mudanças de ânimo que
ocorriam em mim. Eu estava alegre, nunca tinha estado
mais feliz. Ocorreu-me um sem-fim de razões para esse ma-
ravilhoso estado de coisas. Com toda seriedade, parecia-me
que aquele quarto de hotel, mergulhado nas trevas infernais,
cheio do fedor e da fumaceira provocados pela tocha de
ri-Ianteiga, inteiramente isolado do resto do mundo, com um
telefone que contava histórias da carochinha - que aquele
quarto era um dos lugares mais agradáveis na face da T~r~a.
Além disso, eu sentia uma vontade irresistível de acancxar
a cabeça de alguém, ou pelo menos apertar sua mão e
·olhar longamente, cordialmente, dentro de seus olhos.
... . .t,. , ,4 /
16- . .\
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Q . \ \ absolutmente nada em relação a eles. Ora, isso era verda-
- deiramente alarmante. Com uma das mãos na torneira ni-
quelada e com a outra segurando o copo vazio, senti um
calafrio. Lentamente, abri a torneira, enchi o copo, levan-
tei-o e depois, contorcendo o rosto numa careta feroz -
eu podia ver a batalha no espelho do banheiro - despejei
a água pelo ralo do lavatório.
A água da torneira. Naturalmente. Aquelas mudanças
em mim tinham começado no instante em que a bebi. Era
óbvio que havia alguma coisa nela. Veneno? Mas eu nunca
ouvira falar de um veneno que seria capaz de. . . Um mo-
mento! Eu era, afinal de contas, assinante assíduo de todas
as revistas científicas importantes. Precisamente na última
edição de Science T oday tinha sido publicado um artigo
sobre alguns novos agentes psicotrópicos do grupo dos cha-
mados benignizantes (os N, N-dimetilpeptocriptomidas), que
induziam estados de alegria e beatitude indiscriminadas. Sim,
sim, isso mesmo. Eu podia quase ver aquele artigo diante
de mim agora. Hedonidol, Euforil, Inebrium, Felicitin, Em-
pathan, Ecstasine, Halcional e toda uma série de derivados!
Pel~ substituição de um grupo de aminas por uma hidroxila,
pod~a~s~ obter, inversamente, Furiol, Antagonil, Frustraciol,
Sadtstmtna, Dementium, Flagellan, Agressium e diversos ou..
tros, ~stimulantes poliparanoidais, do grupo dos chamados fre..
nologtcos, que induziam aos comportamentos mais perversos,
18
J '
19
.. J •
. de repente, aJo. elhado .sobre uma . mala, d esva..
sorte! VI-me, , cura de algum art1go e valor
f ticamente, a pro .
ziando-a rene al um necessitado.
que pudesse doar a gd 'b . vozes de alarma irromperam
Mais uma vez, as e ei~consciente: "Atenção! Perigo!
-desesperadamente em meu b su da, Lute! Morda! R eststa.
. ' A ta-
e uma em osca . . 'd'd d .
.E um truqu ' t va como que dtVI 1 o em Ois.
A. d ,, Eu me encon ra .. . d b
·que! JU e. d . ado por aquela ans1a e ou-
Sentia-me d~ tal ~or~: a:~~: fazer mal a uma mosca. Era
dade que nao se~Ia P H'lton não tivesse camundongos,
uma pena, pensei, que oC 1o eu trataria bem aqueles bi-
t ' algumas aranhas. om
e ae M .t moscas ratos pulgas e perce-
chinhos indefesos! ?squi os, 1 • ' amadas de Deus! Na
. todas as cnaturas amavels e .
veJos - b
falta desses adoráveis seres, eu a ençoav a a mesa ' 0 abaJur ,
·minhas próprias pernas. .
No entanto, nem todos os vestígios da tazao me ha:
·viam abandonado, de modo que com a mão esquerda batt
na direita, que bendizia tudo quanto havia no q~arto,. gol-
peando-a até me contorcer de dor. Essa sensaçao foi en-
corajadora. Talvez ainda restasse algumas esp.eranças... Por
sorte a ânsia de fazer o bem encerrava em s1, tambem, o
' . .
desejo de automortificação. Para começar, belisquei-me na
boca algumas vezes; meus ouvidos zumbiram e eu vi estrelas.
ótimo, excelente! Quando meu rosto ficou entorpecido, co-
mecei a desferir chutes em minhas próprias canelas. Por
felicidade, eu estava calçando botas pesadas, de biqueiras
duras. Com isso, após a aplicação terapêutica de vários chu-
tes, eu me senti muito melhor - isto é, muito pior. Para
experimentar, imaginei o que sentiria se pudesse também
chutar um certo senhor C. A. Essa idéia já não se afigurava
tão impossível.
Meus tornozelos queimavam como brasas vivas, mas no
entanto, talvez devido a essas autoflagelações, já me sentia
capaz de dispensar o mesmo tratamento ao velho M . W.
Esquecendo a dor, continuei a me chutar sem parar. Ob-
jetos pontiagudos seriam úteis também, e me servi de um
garfo e de alguns alfinetes, tirados de uma camisa nova,
ainda sem usar. Eu estava fazendo . progressos, mas havia
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arma mata-papas ainda estava lá, encostada numa mesa~ e
notei dois pares de pés, um deles descalço, que apareciam
sob o balcão mas isso não indicava absolutamente nenhuma
irregularidad;, nada de anormal. Um casal_ de estudantes mi-
litantes jogava baralho a um canto do salao, enquant~ outro
estudante dedilhava um violão e cantava urna cançao po-
pular.
No andar de baixo, o saguão estava apinhado de futu-
rologistas. Estavam-se dirigindo para a primeira sessão do
congresso (sem deixarem o Hilton, naturalmente, pois um
salão de convenções tinha sido reservado expressamente pa-
ra nosso conclave, na parte inferior do edifício) . De início,
surpreendi-me com a normalidade de tudo, mas logo refleti
que num hotel daquele gabarito ninguém jamais bebia água;
no caso de se sentir sede, bebia-se Coca-Cola ou Schweppes,
e sempre havia à disposição sucos de frutas, chá ou cerveja,
ou mesmo água mineral. Todas as bebidas vinham engarra-
fadas. E mesmo que, por negligência, alguém houvesse re-
petido meu erro, não estaria ali, e sim em seu quarto, com
as port~s ~rancadas, _imerso na embriaguez do amor universal.
Cheg~e1 a c~nc~usao de que seria mais conveniente não
mencionar
h d ·o mcidente - afinal de contas' eu era recem- "
c ega ~ ah, e poderiam não me dar crédito. Achariam que
tudo nao passava de alucinação. E o que poderia ser mais
fnaturald' dnos tempos corrent es, d o que suspeitar
. que alguém
osse a o ao uso de drogas?
Posteriormente criticaram
ostra (ou de ave t ) -me por adotar essa política de
- 8 ruz ' com o argument d ·
vesse exposto tudo ab t , o e que se eu ti-
evitada Mas · ' - er amente, a catastrofe poderia ter sido
. tsso nao passa de t 0 1' .
hipóteses, eu teria alert d lce, po1s, na melhor das
a o apenas h"
0 que acontecia no II'lt _ os ospedes do hotel, e
nhum efeito sobre· 1 on nao exercia· absolutamente ne-
a marcha dos acontecimentos
.
c osta Rica. políticos na
A ca~inho do salão de -
~an~a de Jornais e revistas /onvençoes, detive-me numa
ocrus, como é meu h "b' a tm de comprar vários jornais
que vou, naturalmentea Ito. Não os compro em toda parte
22 , mas um hornem educado sempre
apreende o essencial das coisas em espanhol, mesmo que
não fale a língua.
Sobre a tribuna havia um cartaz, muito elegante, mos-
trando a agenda do dia. O primeiro assunto do ternário era
a crise urbana mundial; o segundo, a crise ecológica; o ter-
ceiro, a crise da poluição atmosférica; o quarto, a crise de
energia; o quinto, a crise de alimentação. Nesse ponto, os
trabalhos seriam suspensos. As crises tecnológica, militar e
política seriam abordadas no dia seguinte, e então a mesa
receberia moções do plenário.
Como havia muitos delegados inscritos para falar -
nada menos de 198, de 64 países - cada orador teria di-
reito a quatro minutos para apresentar sua tese. Para ajudar
a acelerar os trabalhos, todos os relatórios tinham sido dis-
tribuídos e estudados com antecedência, e ao orador caberia
tão-somente mencionar números, chamando a atenção, as-
sim, para os parágrafos mais relevantes de seu trabalho.
Para melhor receber e processar tal riqueza de informações,
todos nós ligamos nossos gravadores portáteis e nossos .com-
putadores de bolso (que mais tarde seriam interligados para
a discussão geral). Stan Hazelton, da delegação norte-ame-
ricana, provocou de imediato agitação entre os participantes
do congresso, ao repetir enfaticamente: 4, 6, 11 e, por con-
seguinte, 22; 5, 9, portanto, 22; 3, 7, 2, 11, do que se de-
duzia que 22, e apenas 22! Alguém pôs-se de pé, admitindo
que sim, mas 5, e que, aliás, o que dizer de 6, 18 ou 4?
Hazelton replicou com a afirmativa contundente de que, de
qualquer forma, 22. Procurei a chave dos números de sua
tese e descobri que 22 significava o fim do mundo.
Seguiu-se Hayakawa, do Japão, que apresentou planos,
recém-elaborados em seu país, para a casa do futuro -
oitocentos pisos, com alas de maternidade, creches, escolas,
centros comerciais, museus, jardins zoológicos, teatros, rin-
gues de patinação, crematórios. Os planos previam o arma-
zenamento, no subsolo, das cinzas dos entes queridos, TV
em quarenta canais, salas para se embebedar e uma clínica
para cura de alcoólatras, ginásios especiais para a prática de
sexo grupal (indicação da atitude progressista dos arquite-
23
'
I e catacumbas para comunidades subculturais inconfot-
tos)
mistas. Uma idéia nova consistia em fazer com que cada
família ..nudasse de habitação a cada dia, passando de apar-
tamento para apartamento como peças de xadrez, imitando,
por exemplo, os movimentos de peões ou de cavalos. Esse
:sistema contribuiria para minorar o tédio.
Além disso, esse edifício, que teria um volume de dezes-
:sete quilômetros cúbicos, alicerces cravados no leito do ocea-
no, e cujo teto atingiria a própria estratosfera, possuiria
seu próprio sistema de processamento de dados para fins
matrimoniais - escolhendo os casais segundo princípios sa-
domasoquistas, pois, segundo análies estatísticas, cônjuges
com tais propensões antagônicas mantinham casamentos es-
táveis (cada um deles encontrava, em tal união, a resposta
a seus sonhos) - e contaria também com um centro de
prevenção de suicídios, que funcionaria vinte e quatro horas
por dia.
H~kayawa, o segundo delegado do Japão, demonstrou
para nos um modelo operacional do edifício, numa escala
de. 1O. 000 para 1. A torre possuiria usina de oxigênio pró-
~na, mas não contaria com reservas de alimentos ou de
a~~a, uma ~ez que funcionaria inteiramente segundo 0 prin-
cipio. de reci~lagem: todos os detritos, produtos de excreção
e dejetos senam recuperados e reprocessados para consumo.
:ahakawa, o terceiro membro da equipe japonesa leu
hsta de. todos os manJares · .
que podenam ' uma
ser reconstituídos
a parttr dos excrementos humanos Entre I '
banana pão d 'b · e es, contavam-se
a ff . 'I· e gengt re, camarão, lagosta e até vinho tudo
r I Icia ' apesar de sua origem . ,
assim obtido rivalizava em ala~: tanto ofensi~a, o vinho
borgonhas da França A p r com os ma1s afamados
· mostras dessa b b ·d
foram distribuídas pelo ~ 1_ . e 1 a maravilhosa
rafas, como também a ao em pequeninas e elegãntes gar-
embrulhadas em pape;mlost~as d de s~lsichas para coquetéis,
/ amina o· fetta a d' t 'b .
guem deu mostras de t ' 1s n u1ção, nin-
es ar com sede .
depositadas discretament b e as salstchas foram
. e so as cadeira A ·
ced1 da mesma maneira. s. o ver 1sso, pro-
24
. - ···- --- ....:,._~,. . ..- -...~.·~-------- ________
- · ----..
~, - . ..,..
~
um panfleto no qual se exortava à iniciação de incestos em
massa). Agora, reunidos no saguão, comportavam-se da ma-
neira mais imprópria possível - principalmente em vista da
seriedade da situação. Com exceção de alguns poucos, que
estavam exaustos ou se encontravam em estado de estupor,
causado por narcóticos, todos se conduziam de modo posi-
tivamente escandaloso. Ouvi gritos na recepção, onde tele-
fonistas estavam sendo estupradas, e um cavalheiro de ven-
tre dilatado, vestido com uma pele de leopardo, irrompeu
pelo vestiário do andar, brandindo um cachimbo de haxixe,
enquanto perseguia os serviçais. Foram necessários vários
porteiros para detê-lo. Nesse momento, alguém que se en-
contrava na sobreloja atirou sobre nossas cabeças cartazes
que mostravam, em cores vivas e abundância de detalhes,
os modos como um homem poderia satisfazer seus impulsos
lascivos con1 outro homem, e muitas outras coisas.
Foi aí que os primeiros tanques apareceram nas ruas,
e podíamos vê-los claramente das janelas. Filumenistas e
estudantes contestatários, tomados de pânico, começaram a
sair dos elevadores. Pisando nos pratinhos de patê e nas
travessas de salada a que nos referimos anteriormente (e
que os editores tinham trazido consigo), esses recém-chega-
dos dispersaram-se em todas as direções. Entre eles estava
o antipapista barbudo, que urrava como um touro e brandia
seu mata-papas, derrubando todos quanto encontrava no ca-
minho. Afastando as pessoas, a cotoveladas, foi postar-se
do outro lado da rua, na frente do hotel, escondendo-se atrás
de uma construção. Com meus próprios olhos, vi quando
ele começou a disparar contra as pessoas que passavam.
Pelo visto, em que pese sua ideologia extre-m ada e seu tre-
mendo radicalismo, pouco lhe importava quem fosse seu
alvo.
O saguão, cheio de gritos de horror e indignação, tor-
nou-se palco de uma cena de completo pandemônio quando
as enormes janelas panorâmicas começaram a se estilhaçar.
Tentei localizar meus amigos jornalistas e, vendo-os correr
rua acima, segui-os. Na verdade, a atmosfera no interior do
Hilton tinha-se tornado opressiva demais. Atrás de um muro
28
. de concreto, ao lo~go da. ramp~ de acesso ao bote~,
batxo achados dois cinegrafistas, filmando tudo frenetl-
estavarn ag que altas,
. , fazia
· pouco senti'do, . uma vez que to..
carnente, 0 ' . . . ·-
que a pnmetra co1sa que acontece nessas ocasioes
dos sabem .
, incêndio de um carro com placa estrangeira. Chamas
e o d , d .
rolos de fumaça já se elevavam a area e estacionamento
~o hotel. Mauvin, de pé a meu lado, esfregou as mãos e
riu ao ver seu Dodge se contorcendo em meio às chamas
..- ele o tinha alugado à agência Hertz. Não obstante, a
maioria dos correspondentes americanos não achava nenhu-
ma graça no que sucedia.
Notei que ·algumas pessoas tentavam apagar o fogo;
eram, na maioria, homens já idosos, vestidos pobremente, e
traziam água em baldes de uma fonte próxima. Aquilo me
pareceu estranho. A distância, na extremidade da Avenida
de la Salvación e da Avenida de la Resurrección, reluziam
capacetes de policiais; no entanto, a praça em frente ao ho-
tel, cercada de relvados e palmeiras luxuriantes, ainda estava
vazia. Aqueles velhos trôpegos, que se chamavam uns aos
outros com vozes roucas, rapidamente formaram uma briga-
da de incêndio, apesar de suas bengalas e muletas. Aquela
valentia era admirável, mas lembrei-me então do ·q ue havia
acontecido naquele mesmo dia, e imediatamente transmiti
minhas suspeitas a Mauvin. O espocar das metralhadoras
e o trovão das granadas de artilharia dificultavam a conversa;
por alguns momentos, o rosto do francês demonstrou incom-
preensão, mas de repente seus olhos se iluminaram. - Aha!
- ele gritou em meio à balbúrdia. - A água! A água de
beber! Deus do céu, pela primeira vez na História . . . crip-
toquimiocracia! - E após proferir tais palavras correu de
volta ao hotel, como um possesso. Aparentemente, para
c~nseguir um telefone. Era estranho que os serviços telefô-
nicos ainda funcionassem.
Eu estava ali, no acesso ao hotel, quando o Professor
Trottelreiner, um dos futurólogos suíços, veio ter comigo.
A essa altura, a polícia estava fazendo o que devia ·ter feito
horas antes; usando capacetes negros, escudos e máscaras
contra gases, armados com pistolas e bastões, formaram um
29
cordão em torno de todo o complexo Hilto.n , a fim de man-
ter afastada a população que nesse exato tnstante começava
· do parque que nos separava da zona teatral da
a surgir . · · d , .
cidade. Com grande habilidade, un1dades espec1a1s ~ ~ohcta
armaram lança-granadas e dispararam contra a multtdao; as
explosões foram extraordinariamente débeis, embora levan-
tassem grossas nuvens de uma fumaça esbranquiçada. De
início, julguei tratar-se de gás lacrimogênio, mas as pessoas,
ao invés de fugirem e se sufocarem, enfurecidas, começaram
claramente a se reunir em torno dos vapores diáfanos. Seus
gritos logo se calaram e daí a pouco eu as ouvi cantando
- estavam cantando hinos. Os jornalistas, indo e voltando,
a correr, do cordão de isolamento à entrada do hotel, com
suas câmaras e gravadores, ficaram inteiramente perplexos
com aquilo, conquanto fosse mais que óbvio que a polícia
estava usando algum novo produto químico pacificador, em
forma de aerosol. Mas então, vindo da Avenida de la ...
(não me recordo qual), surgiu outro grupo de pessoas, que
de al.guma forma pareciam incólumes às granadas. Mais tar-
de, .vim a saber que .aquele grupo tinha continuado a avançar
a fim ~e confraternizar com a polícia, e não com 0 intuito
d: ata_:a-la. No entanto, quero seria capaz de inferir distin-
çoes tao sutis em meio ao caos generalizado?
Houve ~árias outras salvas de granadas, ~eguidas pelo
estrondo e silvo característico de uma manouel·ra a .
char á . o esgm-
ar se e:;h~u edop~~s:~~ ;s metralhadoras abriram fogo e o
valer e por . IO e balas. Agora estavam atirando para
' Isso me escondi at " d 0 .
como trincheira e m . ras muro batxo, usando-o
, e VI entre Sta t H
Washington Post Bastar n or e aynes, este do
· am-me algu
ra colocá-los a par d . _ mas poucas palavras pa-
a sttuaçao p · f .
passado tal segredo d · lcaram unosos por eu ter
. . , merece or de t't 1 u1os d e pnmeira
.
pnmeiro a um ho d página
mem a AFP '
toda velocidade para 0 h I· ' e voltaram rastejando a
~entos estavam de volt ofte '. no entanto, daí a alguns mo-
á - f . a, unosos' p ots · as hnhas
.
J nao unc10navam c telefônicas
o of . I . ontudo Sta t .
. ICia encarregado d d f ' n or praticamente agarrara
ftcara sabendo . que av·- a e esa do h 0 t e1 pelo colannho . e
xoes transportando bombas de A'TP
30
Teu Próximo) estavam a caminho naquele instante.
(Ama os ordens de ab andonar a area" e todos os policiais
Rece e b m , .
. ·param com mascaras contra gases, com filtros espe-
~e~1 , "
. · Também a nos foram dadas mascaras.
c1a1s. . .
Quis a sorte que o Professor Trottelretner fosse especia-
lista no campo da farmaco~ogia psicotr~p~ca, e ele me ad-
vertiu que não usasse a mascara em htpotese alguma, uma
vez que ela deixaria de funcionar diante de concentrações
de aerosol suficientemente elevadas. Isto daria ensejo ao cha-
mado fenômeno de sobrecarga de filtro, e em um segundo
poder-se-ia inalar uma dose muito maior da substância do
que se respirasse o ar sem a ajuda da máscara. A única
proteção segura, ele disse, antecipando-se à minha pergunta,
estava num aparelho de oxigênio. Por isso, fomos ao hotel,
conseguimos encontrar uma recepcionista ainda em seu pos-
to e encontramos, com sua ajuda, um depósito cheio de
equipamento de combate a incêndio, entre o qual grande
número de máscaras de oxigênio, da marca Draeger, com
circulação fechada.
Com essa proteção, o Professor e eu regressamos à rua,
bem a tempo de escutar o assovio pavoroso e ensurdecedor
que anunciava a chegada dos primeiros aviões. Como todos
sabem, o Hilton foi acidentalmente atingido por bombas de
ATP logo após o começo do ataque. As conseqüências desse
equívoco foram desastrosas. Na verdade, o ATP atingiu ape-
nas a ala mais distante da estrutura inferior do hotel, onde
a Associação de Editores de Literatura Liberada havia co-
locado stands com exposição de suas obras, de modo que
nenhum dos hóspedes foi acometido de danos imediatos. En-
tretanto, as unidades policiais ali postadas para nos defender
foram atingidas em cheio. Paroxismos de an1or logo varre-
ram suas fileiras, assumindo proporções de massa. Diante
de meus olhos, policiais arrancaram as máscaras dos rostos
e, derramando lágrimas copiosas de remorso, caíam de joe-
lhos, pedindo perdão aos manifestantes colocando os bas-
tões em suas mãos, com súplicas fervor~sas para que fossem
severamente espancados. Após um outro bombardeio de
ATP, que elevou a concentração da droga ainda mais, esses
31
----:- .--":~~ - --·-- -~· .. --- ___ __ _.
,. -- --- -- ·
- - --- ..
33
:o. ,l s ·ur· l1c uxi~~ n•o, cu era
compreendendo que, gnu;ns n n•l•· L . ~1 . . • • .
. . . . 1 ,~ um t 10 de seu~ cuhclu~.
1 1ut.cr llht •
a unal.'a pcssou t:apaz "~
. · ·la c~· na ccdt. t,.•nalmcnlc
()uund'-l nào suporl(;'·l m~aas U'-JUC:· · '
' . . . . l . )S(O Louo me·US bra<.:O~
às suas suplu.:ns, mu•lo a ~on I U){.' · • e· .
d")iarn, e era difkil rcspirur. Huccci quo nà.o conscgur~se
e.ncont wr outro tanque de ox ig.(·nio quanJo aqu~lc 4ue . eu
· .· · ditores tanham for·
usava se esgotasse. Nesse JnlCIIm, os e ·~ .
mado uma longa fila, tremendo de impa<:iéncta pelo mo-
L'. 1 nte para me
mento de levarem sua cota de sova. · ·ma me '
livrar deles, disse-lhes que juntassem toJos aqueles enorme~
cartazes (.'Oloridos que haviam sido arremessados no sag~ào
pelas explosões de ATP na ala do Jfilton e que faz1am
com que o local parecesse uma rccdiçúo em dose dupla de
Sodoma e Gomorra. ScguinJo minhas instruçúes, amontoa-
ram os cartazes numa enorme pilha diante do hotel e o~
queimaram. Infelizmente, uma unidade de artilharia estacio-
nada no parque tomou a fogueira por alguma espécie de
sinal e abriu fogo contra nós.
Saí dali o mais depressa que pude, mas tropecei com
un1 tal de Harvey Simsworth no subsolo. Tratava-se de um
escritor que tivera a lucrativa idéia de transformar contos de
fadas em pornografia da pior espécie (era esse Simsworth o
autor de Ali Babá e os Quarenta Pervertidos), e que depois
fizera outra fortuna reescrevendo os clássicos da literatura
universal (obras como Don Coxote); empregara o artifício
simples de revelar a "vida sexual secreta" de todos os contos
tradicionais - por exemplo, o que Branca de Neve tinha
realmente feito com os Sete Anões, o que João tinha feito
com Maria, o que Aladim fazia com sua lâmpada maravi-
lhosa, etc., etc. Tentei me livrar dele, explicando que meu
braço ~stava exausto. Nesse caso, ele gritou, em prantos, que
e~ pod1a pelo menos chutá-lo. Que mais eu podia fazer? Nào
tive ânimo para recusar. ·
. Mais t~rde, completamente esgotado por esses exercí-
c!os,. arraste•-me de volta ao depósito de extintores de in-
cend 10: Ao~ de tJve
· a sorte de encontrar mais dois cilindro§
de oxtgenJo. O Professor Trottclreincr estava aJi sentado
num rolo · de mang ue1ra.· l Ja
· os art1gos
. '
futurológicos, feliz
34
por haver encontrado um momento livre, na azáfama de seus
deveres profissionais de comparecer a congressos. Entretan-
to, as bombas de A TP continuavam a cair sem cessar. O
Professor comunicou-me que em crises agudas de amor -
e de particular gravidade era um ataque de boa vontade
universal, acompanhado de convulsões acariciantes - devia-
se aplicar cataplasmas, assim como fortes doses de óleo de
rícino, alternando-se essa medicação com lavagens estoma-
caJs.
Na sala de imprensa, Stantor, Wooley (do Herald),
Sharkey e Kuntze (fotógrafo que trabalhava temporariamen-
te para o Paris-Match) jogavam baralho com máscaras nos
rostos. Como as linhas estavam interrompidas, não tinham
coisa melhor a fazer. Comecei a assistir ao jogo, mas Joe
Missinger, importante jornalista americano, entrou correndo,
aos berros, informando que haviam sido dados tabletes de
Furiol aos policiais, a fim de neutralizar os benignimizantes.
Compreendemos num átimo o que significava isto e corre-
mos para o subsolo, mas viemos ~ saber que aquilo não
passava de rebate falso. Por isso, fomos lá fora ver como
iam as coisas. Constatei, com assombro, que faltavam em
nosso hotel cerca de vinte ou trinta andares; meu aparta~
meDto, juntamente com tudo que nele havia, estava perdid~
numa montanha de destroços. Chamas enchiam três quartos
do céu. Um policial truculento, de capacete, perseguia um
rapaz, gritando "Pare, pare pelo amor de Deus, eu . amo
você", mas o adolescente ignorava essas exortações.
As coisas tinham aquietado um pouco, e os jornalistas,.
jmpelidos pelo impulso profissional de .investigar, dirigiram-
se . cuidadosamente em direção ao parque. Fui com eles. Es-
tavam sendo realizados vários cultos religiosos, missas bran-
cas e negras, dos quais a polícia secreta participava osten-
sivamente. Perto dali, um enorme grupo de pessoas chorava·
e arrancava os cabelos; seguravam sobre as . cabeças um vas-
to cartaz que dizia "CUSPAM EM NóS, SOMOS DELA-
TORES!" A julgar pelo número de penitentes, deveria ter
custado ao governo uma fábula mantê-los - fundos esses·
que · poderiam ter sido mais bem empregados na melhoria·
35
da situação econômica da Costa Rica. De volta ao Hilton,
demos com outra multidão. Cães policiais, que se compor-
tavam amistosamente como são-bernardos, transportavam
garrafas das bebidas ~ais caras do bar do hotel. ~ ~s distri-
buíam indiscriminadamente. No próprio bar, pohctats e ma-
nifestantes, abraçados, se revesavam a cantar músicas pa-
trióticas e revolucionárias.
Tentei o subsolo, mas não consegui suportar as cenas
de conversões e de ternura que aconteciam ali, de modo que
voltei ao depósito de extintores de incêndio a fim de con-
versar com o Professor Trottelreiner. Para surpresa minha,
ele havia encontrado três parceiros e estava jogando bridge.
Quetzalcoatl, estudante ainda, jogou seu ás; isso enfureceu
de tal forma o Professor que ele deixou a mesa, agastado.
Nesse exato momento, Sharkey meteu a cabeça na porta e
anunciou que havia captado o discurso do General Aquillo
no rádio: iam esmagar a rebelião lançando bombas conven-
cionais sobre a cidade.
Após um breve conselho de guerra, decidimos nos re-
tirar para a parte mais baixa do Hilton, que era um sistema
subterrâneo de esgotos. Como a cozinha do hotel tinha sido
totalmente demolida, não havia nada para comer. Famintos,
manifestantes, filumenistas e editores saciavam-se com table-
tes .de chocolate, molhos afrodisíacos e 0utras iguarias que
haviam descoberto no abandonado centro erótico da Litera-
tura Liberada, num canto daquela ala do hotel. Vi como
seus rostos se transformaram quando os estimulantes sexuais
co~tidos nos comestíveis, começ;uam a se misturar em sua~
vetas, com os benignimizantes. Era aterrador pensa; até onde
aquela escalada~ química poderia levar. 1mag1net . . o acasa1a-
mento de futurologos com engraxates índios , Imagtnet
. . . agentes
secretos nos braços de zeladores do hote1 e enormes rata-
zanas lustrosas confraternizando com t
c- 1· · · . ga os . . . enquanto
aes po tctats lambtam a tudo e a t o d os.
Nosso avanço era lento d'f" 'I .
e 1 ICI ' pots tínhamos de abrir
caminho entre uma densa lfd-
coluna, mu 1 ao, e eu estava fechando a
carregando nas costa d
s meta e de nosso!) tanques de
36
oxigénio. Afagado, beijado nos braços e nas pernas, aca,
riciado e adorado, sufocado por apertões e abraços eu b _
. d . . ' o s
ttna amente seg~1a adtante, até que escutei 0 grito triunfal
de Stant~r: ele tlnha d~s~oberto a entrada dos f!sgotos! Lan-
çando mao de nossas ui ttmas reservas de energia, afastamos
a pesada tampa do bueiro e entramos, um a um, no poço
de concreto.
Ajudando o Professor Trottelreiner, cujos pés resvala-
vam nos degraus da escada de ferro, perguntei-lhe se ele
tinha imaginado que o congresso terminasse daquela maneira.
Em lugar de responder, ele tentou heijar-me a mão, 0 que
imediatamente me despertou suspeitas. Verificamos que sua
máscara tinha-se soltado, fazendo com que ele respirasse um
pouco de ar contaminado pela droga. Sem demora, aplica-
mos-lhe torturas físicas, forçamo-lo a respirar oxigénio puro
e lemos a tese de Hayakawa em voz alta - idéia do Pro-
fessor Howler.
Por fim, Trottelreiner recobrou a razão, dando disso
prova inequívoca com uma série de pragas execráveis, e pros-
seguimos. De repente, à luz baça de nossa lanterna, vimos
que a superfície escura da galeria de esgotos estava coberta
de manchas gordurosas. Ficamos contentíssimos com isso, pois
agora nove metros de terra nos separavam da cidade bom-
bardeada com ATP. Pode-se imaginar nossa surpresa quando
constatamos que não tínhamos sido os primeiros a pensar
naquele refúgio. Ali, na plataforma de concreto, estavam sen-
tados os administradores do Hilton; aqueles prudentes senho-
res tinham-se munido de cadeiras reclináveis, infláveis, re-
tiradas da piscina do hotel, rádios transistorizados, grande
quantidade de uísque escocês e americano e de uma ampla
cesta de piquenique. Como também eles usavam máscaras
de oxigénio, havia pouca ou nenhuma possibilidade de par-
tilharem suas provisões, amigavelmente, conosco. Mas assu-
mimos uma atitude ameaçadora e conseguimos convencê-los
(de qualquer forma, estavam em inferioridade numérica)· E
assim, com alguns apertões, chegou-se a pleno acordo, e todos
nos sentamos para jantar lagosta fria. Essa refeição, não
37
programada e imprevista no programa, encerrou o primeiro
dia do congresso de futurologia.
38
cupons azuis que davam direito a cópulas, e que alguns de
nós ainda trazíamos conosco.
Coube-me o primeiro turno, juntamente com 0 Profes-
sor Trottelreiner, ~ue era um pouco mais magro e anguloso
do que eu gostana, uma vez que tínhamos de dormir jun~
tos . na mc;sma cama, ou antes, na mesma cadeira. Os que
nos seguiam, acordaram-nos brutalmente, e enquanto se aco~
modavarn em nossos lugares, agachamo-nos nervosamente na
beirada do esgoto e verificamos a pressão em nossos cilin..
dros. O oxigênio não duraria mais que algumas horas, não
havia dúvida. A medonha perspectiva de nos tornarmos víti-
mas da benignimização parecia inevitável.
Sabedores de que já experimentara aquele estado de
beatitud~, meus con1panheiros n1e interrogavam ansiosamen-
te a respeito dos efeitos da droga. Garanti-lhes que na ver-
dade não era tão ruim, mas falei sem muita convicção. O
sono nos venceu; para não cairmos no esgoto, amarramo..
nos, com tudo que servisse a esse fim, aos degraus de ferro
sob o bueiro.
Dormindo um sono agitado, fui despertado pelo baru-
lho de uma explosão n1uito mais poderosa do que qualquer
uma das que já haviam ocorrido. Olhei em torno, na escuri-
dão, pois todas as lanternas, com exceção de uma, tinham
sido apagadas, a fim de conservar as pilhas. Enormes ratos
luzidios marchavam pela beirada do esgoto, sendo digno de
nota que caminhavam em fila indiana, e sobre as patas tra-
seiras. Belisquei-me, mas verifiquei que aquela visão não era
um sonho.
Acordei o Professor Trottelreiner e mostrei-lhe aquele
fenômeno, que ele não soube como explicar. Os ratos cami-
nhavam agora aos pares, ignorando inteiramente nossa pre-
sença; pelo menos não tentavam lamber-nos, o que o Pro-
fessor considerou bom sina), pois indicava que, com toda
probabilidade, 0 ar estava limpo. Cautelosamente, retiramos
nossas máscaras. Os dois jornalistas, a meu lado, dormiam
profundamente, enquanto os ratos continuavam seu. desfile
sobre duas patas, mas então eu e o Professor espJTramos,
pois alguma coisa provocava comichão em nossas narinas.
39
-::. : .-·-::.-- ___
..,.,...
~ .. - ·-- ·-
41
- - ·. : ---~:--.~~--
/
- Que está fazendo? - rosnou o Professor, curvado
sobre 0 guidom. - Vamos em frente! . .
- Não, vou descer - respondi, decidido.
A bicicleta diminuiu a velocidade e parou. Pondo um
pé no chão, para se apoiar, 0 Professor apontou as trevas
que se estendiam a nosso redor, com um gesto amplo e
sarcástico.
- Como quiser. Boa caçada!
E pôs-se a caminho novamente.
- Obrigado por tudo! - · gritei-lhe, enquanto o brilho
vermelho da lanterna traseira desaparecia na noite. Intei-
ramente desnorteado, sentei-me num marco de estrada para
concatenar minhas idéias.
Alouma coisa me incomodava nas canelas. Distraída-
~
I
\
deserta. Precipitávamo-nos en1 frente, até que a agulha do
velocímetro encostou no batente da direita. De repente, uma
mão agarrou meus cabelos, por trás. Dei um salto. Mas as 'I
45
I
~:t i
. ... - .. - • • w ••
- -- ....... -
46
~--·--·- -·
'
---------~r~,. . . . ...
--=-"·--.. . ..
49
rulho de janelas . que se ·espatifavam, chamas e fumaça. Uma·
explosão fez balançar o corredor. .
- É uma manifestação! Uma passeata! - gntou al-
guém. Vidros partiam-se e eram esmagados sob os pés de
pessoas que fugiam. Preso irremediavelmente ~?b . o lençol,
senti uma dor aguda do lado e perdi a consctencta.
Recobrei os sentidos e me encontrei num monte de
geléia de uva, horrivelmente azeda. Estava em decúbito ven-
tral, com aiguma coisa grande e bastante macia a me esma-
gar. Um.· colchão. Empurrei-o com os pés. Lascas de tijolos
furavam meus. joelhos e as palmas de minhas mãos. Conse-
gui me levantar, cuspindo caroços de uva e areia. Era como
se uma bomba houvesse atingido aquele lugar. As esqua-
drias, das. jal\~las ..estavam soltas, com estilhaços das vidraças
pendendo dos · caixilhos, apontando para o chão. A cama de
hospital, virada de cabeça para baixo, estava queimada. Perto
de mim :havia .um cartão impresso, grande, sujo de geléia.
Peguei-o e li:
51
da? E o que fora feito dela, coitadinha? E agora, outra
vez . . • Mas o que significava toda aquela devastação?
- Olá! - gritei. - Há alguém aí?
Tomei um susto. Eu tinha uma voz magnifica, um bai-
xo forte, de cantor de ópera. Já era tempo de me olhar ao
espelho, mas não tinha coragem. Levei a mão à face. Santo
Deus, cachos grossos e densos. Baixando o olhar, vi uma
barba - hirsuta, fosca, que cobria a metade de meu peito, e
de um ruivo acentuado. Um Matusalém! Bem, sempre pode-
ria raspar aquela barba . . . Saí para o terraço. Aquele pás-
saro imbecil continuava a chilrear. Choupos, sicômoros, ar-
bustos . . . o que era aquilo? Um parque? O hospital estatal?
Havia urna pessoa sentada num banco, com as calças arre-
gaçadas, tomando sol:
- Como vai? - perguntei.
O homem virou-se. Notei que aquele rosto me era estra-
nhamente familiar. Esfreguei os olhos. Mas claro que era, se
era o meu! Com três passadas saltei para o chão, correndo
para me ver de perto, ofegando. Era eu mesmo, é claro, sem
dúvida alguma.
- Por que está me olhando desse jeito? - ele me
perguntou, nervosamente, com minha voz.
- O que. . . onde você conseguiu. . . - gaguejei. -
Quem é você? Quem lhe deu o direito de ...
- Ah, é você.
Levantou-se.
- Sou o Professor Trottelreiner.
-.- Mas. . . n1as por que, pelo amor de Deus, por que ...
o :;ennor ...
. - N~o tive nada a ver com isso - ele respondeu, fran-
Zindo a ~m~a testa. - Eles invadiram isto aqui, você sabe,
aqueles htppLes, zippies. Manifestantes. Uma granada . . . Seu
estado foi considerado desesperador, como também 0 meu.
Eu estava no quarto ao lado.
. - Desesperador, uma ova! - gritei. _ Posso ver as
cotsas, não é? Professor, como o senhor foi capaz?!
- ~as eu estava inconsciente, dou-lhe minha palavrar
O Dr. F1sher, o cirurg1·a-o-ch e f e, exp11cou
. .
tudo depots: usa-
52
I. .
53
Trottelreiner sentou-se. Observou 1neu (meu?) rosto
Havia pena em seus (seus?) olhos.
- Se quer un1 conselho, não vá a parte alguma. Ele
era procurado tanto pela polícia como pelo F . B . I. , por
inúmeros atos de terrorismo. Foram expedidos mandados de
prisão, com ordem de atirar para matar.
Como se não bastasse o resto! Meus Deus, pensei, devo
estar sofrendo uma alucinação!
- De maneira alguma! protestou energicamente
Trottelreiner. - É a pura realidade, meu caro, a realidade
pura e simples.
- Então, por que esse hospital está vazio?
- Não sabe? Ah, você estava inconsciente. . . Está
havendo uma greve.
- Dos médicos?
- De todos, de todo o pessoal. Entende, os guerri-
lheiros levaram Fisher, e querem trocá-lo por você.
· ·- Por mim?
- Claro que sim. Eles não têm a menor idéia, com-
p~eenda, de que você não é mais você, mas apenas Ijon
Ttchy ...
Minha cabeça doía lancinantemente.
-. Vou ~ometer suicídio - eu disse, com minha voz
de baixo, mmto rouca agora.
- É melhor não fazer isto. se r·tzer, sofrerá novo trans-
pI ante.
~reneticamente, vasculhei minhas lembranças, meu cére-
bro~ a procura de alguma forma de me convencer de que
aqUilo não era mesmo alucinação.
-Mas e se · · · - comecei a d'
- E se' o quê? tzer, pondo-me de pé.
- E se eu sair d aqut· montado no senhor?
tal a idéia? Rem? Que
- Montado em mi ? p
Olh · b m · erdeu o juízo?
. et em dentro de seus 11 •
abatxei-me saltei em o lOs, retesei os músculos
, suas costas ~ '
negra e pútrida quase me e cat no esgoto. A lama
· · para fora dali H ·
Jet engasgou, mas que alívio' Raste-
. ~am~m t .
ra os agora. Deviam ter ido
54
para algum lugar. Restavam apenas quatro. · Aos pés do Pro-
fessor Trottelreiner, profundan1ente adormecido,· eles jogavam
bridge, usando o baralho do Professor. Bridge? Mesmo com
a concentração invulgarmente alta de alucinógenos no ar,
seria possível que ratos jogassem bridge? Preocupado, olhei
por cima do ombro do mais gordo deles. Estava segurando
as cartas sem nenhuma ordem, e nem mesmo as · dispusera
segundo os naipes. Então, estava tudo bem . .. Dei um sus-
piro de alívio.
Mas apenas para ter certeza, tomei a firme decisão de
nao me afastar um dedo do esgoto. Já estava cansado da-
queles salvamentos, pelo menos por enquanto: No futuro,
extguta provas, pnme1ro. De outra maneira, bem·, só Deus
sab:1 o que eu começaria a ver em seguida. Apalpei o ·rosto.
Não havia nenhun1a barba, mas também nenhuma máscara.
O que tinha acontecido novamente?
- No que me diz respeito ___. disse o Professor Trottel-
reiner, com os olhos ainda fechados - sou uma moça ho-
nesta e respeitável, e espero, senhor, que leve este fato em
consideração.
Virou um pouco a cabeça, como se escutasse atenta-
mente alguma resposta, e depois acrescentou: :
- Queira acreditar, senhor, que não simulo uma mera
aparência de virtude, não estou assumindo uma atitude falsa,
como a que muitas pessoas usam, apenas para despertar pai-
xões ainda mais ardentes. É a pura expressão da verdade~
Não me toque, pois caso contrário serei forçada · a pôr ter-
mo à minha vida, usando de violência.
- Aha! - pensei comigo. - Ele também -deseja vol-
tar ao e~goto!
Isso me deixou à vontade. O fato de o Professor estar
sofrendo uma alucinação parecia provar que eu, pelo menos,
não estava.
- Deseja que eu cante algun1a coisa? - ··continuou o
Professor. - Muito bem. Uma ou duas canções inocentes
não fazem mal algum. O senhor teria a .·bondade de me
• • • ' I
acompanhar? i ... . . . · l
55
Por outro lado, ele poderia estar simplesmente falando
dornlindo. Nesse caso, nada estaria comprovado. Deveria
monta.; nele, novamente, a fim de ter certeza? Mas eu podia,
afinal de contas, saltar para dentro do esgoto sem sua ajuda.
- )rlfelizmente, acho que estou sem voz hoje. E ma-
man está esperando. Não precisa me acompanhar, por fa-
vor! - Trottelreiner fez esta última declaração com um altivo
gesto de cabeça. Levantei-me e olhei em torno, segurando a
lanterna. Os ratos tinham desaparecido. Os futurólogos suí-
ços roncavam, encostados à parede. Mais adiante, nas ca-
deiras infláveis, dormiam jornalistas e alguns gerentes do
Hilton . O chão estava juncado de ossos de galinha e latas
de cerveja. Notável realismo, para uma alucinação. Mas eu
não estava disposto a aceitar nada que não fosse uma prova
definitiva, irreversível, inequívoca. O que era aquilo lá em
cima?
Explosões, de TNT ou ATP, surdas e intermitentes. De-
pois, um som alto de água, bem perto. A superfície das
águas escuras se abriram, deixando ver o rosto contorcido do
Professor Trottelreiner. Estendi-lhe a mão e o ajudei a sair
dali. O Professor sacudiu as roupas moi h adas e disse:
- Tive um sonho ridículo.
- O senhor era uma donzela, muito bonita, não?
- Maldição! Então ainda estou sofrendo de aluci-
nações!
- Por que pensa assim? - perguntei.
- Somente nas alucinações é que outras pessoas sa-
bem o que sonhamos.
-.- Não é .isso,. é que o senhor estava falando enquanto
dorm~a . - expltquet. - Professor, ouça-me, 0 senhor é um
espectalJsta. Por acaso c h 1 ,
. on ece a gum metodo seguro para
determmar se estamos com o juízo perfeito ou não?
- Bem, sempre trago comigo um pouco de vigilax.
A embalagem está molhad · - . .
bletes. O vigilax disp a, mas tsso nao preJudtca os ta·
t d
. _ ersa o os os estados de sonolência,
transes, tlusoes fantas.
' Ias e pesadelos Quer experimentar?
56
--- O medicamento pode ter mesmo esse efeito _ mur-
murei - mas certamente não funcionará se ele próprio for
uma fantasia.
- Se estivermos sofrendo alucinaç3es, acordaremos. Se
não for esse o caso, não acontecerá absolutamente nada _
garantiu-me o Professor, metendo na boca um tablete rosa-
pálido. Peguei outro, na caixinha mo1hada que ele me es-
tendeu, coloquei-o sobre a língua e o engoli. Nesse instante,
um bueiro abriu-se com um clangor, e um soldado de capacete
berrou:
-- Vamos! Saiam já daí! E que seja depressa!
- O que vai ser dessa vez, sargento, helicópteros ou
foguetes individuais? - perguntei, zombeteiro. - Franca-
mente, acho melhor me deixarem fora disso!
Com essas palavras, fui sentar-me junto da parede, cru-
zando os braços.
-- Esse aí está de miolo mole. hein? - comentou o
sargento com Trottelreiner, enquanto este começava a subir
os degraus. Houve um grande tumulto. Stantor pegou-me pe-
los ombros e tentou me erguer, mas empurrei-o.
- Está querendo ficar aqui? - ele disse. - Como
quetra ...
- Não - corrigi-o; - o que você deve dizer é "Boa
caçada!".
Um a um, todos desapareceram pelo bueiro aberto. Per-
cebi um clarão trémulo, ouvi gritos, ordens, e depois um
rugido silvante, pelo que depreendi que estavam sendo eva-
cuados com auxílio daquelas mochilas propulsoras. Estra-
nho, muito estranho. O que significava aquilo? Seria possí-
vel que eu estivesse sofrendo alucinaç.ões por eles? Alucina-
ção por procuração? E eu ia ficar sentado ali, daquela ma-
neira, até o dia do Juízo Final?
Entretanto, não me movi. A tampa do bueiro fechou-se
com outro estrépito metálico e fiquei sozinho. Uma lan-
terna, colocada verticalmente no chão, lançava um tênue cír-
culo de luz no teto, proporcionando alguma iluminação. Pas-
saram dois ratos, com as caudas entrelaçadas. Ora, isso ti-
51
nha de significar alguma coisa, pensei comigo. Mas o quê?'
Provavelmente era melhor não fazer caso.
Alguma coisa se agitou na água, com um ruído gorgo-·
lejante. - Muito bem - eu disse, com a respiração sus-
pensa - quem será que vai aparecer agora? - A super-·
fície viscosa da água se abriu, surgindo as formas negras e·
reluzentes de cinco homens-rãs, que usavam óculos de mer-
gulho e máscaras de oxigênio, segurando armas. Um a um,.
saltaram para a plataforma e se aproximaram de mim, ba-·
tendo os pés-de-pato no concreto.
- ?H abla usted espafíol? - perguntou-me o primeiro,.
tirando a máscara. Era um homem de rosto moreno e bigo-
dinho fino.
- Não - respondi. - Mas aposto que você fala
inglês.
- Um gringo metiào a besta - ele disse para o outro..
Como se atendesse a uma ordem, todos apontaram suas ar-
mas contra mim.
- Querem que eu pule no esgoto? - perguntei diver-
tidamente.
- Encoste-se na parede! Mãos ao alto! Mais alto!
. Um_ cano de arma comprimiu minhas costelas. Aquela
al~c.maçao, observei, era bastante realista. As armas auto-
mattcas estavam até enroladas em sacos I~ f .
pedir que se molhassem. p as tcos, para Im-
- Havia outros p ·
<l' h or aqui - disse o homem de bigo-
m u a um moreno atarracado
garro (este pareda ser o líde;) qu~ tentava ~cender um ci-
vam o lugar, chutando as latas . . . . nquan~o Isso, vasculha-
b:trulheira infernal revira11d de cerveJa e fazendo uma
0
djsse: ' as cadeiras. Por fim, o oficiai
- Tem arma~?
- Não há nada com ele Cap·c1
- Posso baixar as m _ ' ao. Verifiquei.
ficando dormenteS. aos agora? perguntei. - Estão
- Vamos fazer elas
~o d dormirem
ar o serviço? · · · · · para sempre. Já pos-
58
......
59·
violenta e causticante. Comecei a escorregar pela parede,
mas ele me agarrou pelos cabelos, puxou minha cabeça para
·trás e disparou novamente, à queima-roupa, no rosto. O ~la
rão foi cegante, mas não tive tempo de escutar o estampido.
Depois disso encontrei-me numa escuridão total. sufocando-
me, durante milênios, ao que parecia; alguma coisa me le-
vantou, jogou-me de um lado para outro, não numa ambu-
lância, eu esperava, ou num helicóptero. A escuridão torna-
va-se ainda mais profunda, e por fim até mesmo aquele ne-
grume mais negro foi obliterado, até que nada restou.
Quando abri os olhos, estava mais ou menos sentado
numa cama bem feita, num quarto que tinha uma jane-
linha estreita, com vidraças pintadas de branco. Fitei a por-
ta entorpecidamente, como se esperasse alguma coisa. Não
que tivesse a mais tênue idéia de onde estava ou de como
havia chegado ali. Meus pés estavam calçados com sandá-
1ias sem salto e os pijamas eram listrados. Bem, pelo menos
havia agora um pouco de variedade, pensei, embora ao que
parecia aquele sonho não seria dos mais interessantes. A
porta abriu-se. No meio de um grupo de jovens de jalecos
brancos estava um médico baixo e barbudo, com cabelos
grisalhos arrepiados e óculos com armação de ouro no na-
riz. Segurava um malho de borracha.
- E aqui temos um caso interessante, cavalheiros -
disse ele. - Interessantíssimo. O paciente ingeriu uma dose
excessiva de alucinógenos há quatro meses. Os efeitos, na-
turalmente, se dissiparam logo depois, mas ele se recusa a
admitir isso e persiste na opinião de que tudo quanto vê
é, na realidade, irreal. Na verdade, ele chegara a tal extremo
nessa sua aberração que chegou a implorar aos soldados do
·General Díaz - estavam fugindo do palácio, que tinha sido
ocupado, através da rede de esgotos - que o executassem,
calcula~do _que a ~orte constituiria na verdade um desper-
tar da Ilusao. Sua v1da foi salva graças a três operações ex-
tremamente delicadas - duas balas removidas no ventrí-
culo. esquerdo - e ele continua a pensar que está sofrendo
·al ucmações.
60
.~. _..,. . -·· -····-· ~ -~- ....··-.--- ·--- -<· .... - - ~- - - ·- ·-- ~ ·- ............. -..,...• . - ... ..._.... _. ..~r..._,.,
61
J
explicou o atendente mais velho, um sujeito simpático. De-
cidi dar-lhe o nome de Alucinatã. Quando comecei a dor-
mir, ele se debruçou e gritou em meu ouvido: - Bons
sonhos!
Não consegui responder, não consegui mexer um só
·dedo, e durante todo o tempo - semanas, aparentemente!
- receei que se apressassem demais e me atirassem ao tan-
que antes que eu perdesse a consciência totalmente. E ao
que parece estavam mesmo um pouco apressados, pois 0
último som que escutei daquele mundo foi o espadanar pr0 ...
vocado pela queda de meu corpo no nitrogênio líquido. De-
sagradabilíssimo.
Nada.
Nada.
62
-·- -------- ---- - .. -·-..-- -~-~.... _ .1'";
63
_
.... . .
64
guma espécie de ~áquina. Nã? co~sigo me fazer entender.
De onde vem o leite? Do cap1m. Sim, sei disso, mas quem
é que come o capim para fazer o leite? Ninguém come 0
capim. Então, de onde vem o leite? Do capim. O capim pro-
duz o leite sozinho. Não, sozinho não! Ou melhor, não é
bem isso. Precisa de colaboração. A vaca colabora? Não.
Então, que animal? Nenhum animal. Então, de onde vem
0 leite? E assim por diante, em círculos.
66
embrulhos, abrir. ,.portas,
. S _ coçar as costas. Amanh-a, despe-
ço-me do ressusc1tono.
. d . ao em número de duzentos na A me"..
rica, mas atn a asstm demoras e filas já começaram a atra-
palhar os cronog~amas para descongelamento daquelas mul-
tidões que, no seculo passado, tão confiantemente dispuse-
ram-se ao congelamento. Longas filas de espera de refrige-
rados obrigaram a uma aceleração no processo de reabili-
tação. Compreendo perfeitamente esse problema. Recebi um
talão de cheques, de modo que não terei de procurar tra-
balho antes de passado o Ano Novo. Todos aqueles que
são descongelados recebem automaticamente uma conta de
poupança, com JUros acumulados, com um chamado crédito
de ressurreição.
67
. . .... --·
·--- .... ~-.. ·
dado de ouro. Foi a roupa mais conservadora que pude en-
contrar. Toda sorte de vestimentas loucas à disposição: rou-
pas que continuamente mudam de feitio e de cor, vestidos
que encolhem ante o olhar de homens, ou ainda que se
abrem como flores de noite, e blusas que passam filmes.
E pode-se usar medalhas também, de qualquer procedência
e tantas quantas se desejar. E pode-se cultivar arvorezinhas
anãs japonesas no chapéu, como também - melhor ainda
- pode-se não fazê-lo. Não creio que eu vá colocar qual-
quer coisa em meus ouvidos ou no nariz. Há uma vaga im-
pressão de que essas pessoas, tão belas, tão graciosas, tão
amáveis e serenas são de alguma forma . . . diferentes, es-
' coisa
peciais. . . há alguma ' de enigmático nelas que me deixa
inquieto. Mas o que é, não sei dizer.
./
às vezes em meu compartimento. Aileen emprestou-m
dicionário Webster,
. . 1
u~
da biblioteca do ressuscitório, ·á quee nao
existem mais hvros. Mas o que foi que os substituiu? Não
consegui acompanhar a explicação que ela me forneceu, mas
não deixei q~e percebesse, para não passar por estúpido.
Jantei com A1leen novamente, no "Bronx". Uma moça sim-
pática, sempre tem o que dizer, não é como aquelas mulhe-
res no transportador, que deixam a conversa a cargo de seus
computadores portáteis. Hoje, no Departamento de Acha-
dos e Perdidos, vi três dessas coisas conversando tranqüila-
mente num canto, até que começaram a discutir. Todo mun-
do na rua parece ofegar. Respiram com esforço. Será al-
gum cos.tume?
.r, , I\ '• - ·
sação: fusão mental." "Simulante: coisa que não existe
· · N-
parece existir. ao confundir.
com simulador, simulac , mas
bó · , uR . . , ro ro-
tt~o: . evLvaltsta: cadaver, como o de uma vítima de
h_?micidto, ao qual foi devolvida a vida." Pelo visto, ressus-
citar os mortos não é coisa rara hoje em dia. E as pessoas
- quase todo mundo - ofegam. Ofegam no elevador, nas
ruas, em toda parte. Parecem gozar de excelente saúde, têm
a face rosada, são alegres e queimados de sol, mas ainda
assim ofegam. Eu, não. Por conseguinte, não há motivo para
que ofeguem. Será um costume? Ou será outra coisa? Per-
guntei a Aileen. Ela riu de mim, e disse que não existe nada
disso. Será que ando imaginando coisas?
70
.. . ...
~ -~ -~- ---···-<o. .-·
72
Apesar do olho roxo e do susto, fui encontrar-me com
Aileen. - Santo Deus! -A ela exclamou ao me ver, com-
preendendo tud?. - Voce peg~u um interferente! _ E
Aileen me exphcou: se entre do1s programas, emitidos por
satélites, ocorrer alguma interferência prolongada, pode-se
captar um interferente, ou seja, um personagem híbrido, for-
mado de pessoas ou coisas presentes no revedor. Tal híbrido
perfeitamente sólido, é capaz de toda espécie de ruindades'
pois sua existência autônoma, depois de lesligado 0 apare:
lho, pode durar até três minutos. Acredita-se que a energia
que alimenta esse fantasma seja do mesmo tipo que causa
o fenômeno do relâmpago esférico. Uma amiga de Aileen
certa vez captou um desses interferentes durante um progra-
ma sobre paleontologia, que se misturou com um documen-
tário a respeito de Nero. Teve a presença de espírito de
saltar, mesmo de roupas, para dentro da banheira, que, fe-
lizmente, estava cheia de água. Isso salvou-lhe a vida, mas
o compartimento ficou inteiramente destruído. Podem-se ins-
talar telas de segurança, mas são caríssimas, e as empresas
dos revedores evidentemente preferem arcar com as custas
de processos criminais a equipar todos os receptores com
controles de emissão apropriados. Decidi que doravante as-
sistirei à fisivisão armado com um bom porrete. De passa-
gem, devo esclarecer que La Scarlatina del Mutango conta a
história de uma prostituta anã que se apaixona por um ho-
mem que nasceu - graças a alguma mutação programada
geneticamente - conhecendo à perfeição os segredos do
tango argentino.
73
I
rente, no interior do qual centelhas saltavam como enxa-
mes de pirilampos. Uma outra cabeça, menor e parecida
com uma versão mais jovem da principal, projetava-se de
sua nuca, e durante todo o tempo em que ali estive ficou
conversando ao telefone. É outro dos órgãos destacáveis,
como os braços a que me referi anteriormente.
Crawley perguntou o que eu estava fazendo, e assom-
brou-se ao saber que eu não estava planejando nenhuma via-
gem ao exterior. Quando eu lhe expliquei que tinha de
poupar, pois o dinheiro andava curto, pareceu ainda mais
surpreso. "Mas o senhor pode a qualquer momento sacar
do banco o dinheiro de que necessitar", disse.
Explicou-me que tudo que se tem a fazer é ir ao banco,
assinar um recibo, e receber do caixa a quantia pedida. Não
se trata de empréstimo, sequer, pois a retirada do numerá-
rio não implica qualquer obrigação jurídica. A rigor, a coisa
não acaba aí. A devolução do dinheiro não é exigida pela
lei, mas fica a cargo da consciência individual; e o sacador
pode pagar o dinheiro durante tantos anos quanto queira.
Perguntei, então, o que impede os bancos de irem à falên-
cia, se os prestamistas não são obrigados a saldar seus com-
promissos. Crawley mais uma vez mostrou-se espantado com
minha ingenuidade. Sempre me esqueço de que vivemos
na era do psiquim. As cartas enviadas ao devedor, quando
este se esquece de pagar, estão impregnadas de uma substân-
cia volátil que desperta o senso de responsabilidade de uma
pessoa, os escrúpulos do devedor, bem como o desejo de con-
seguir trabalho rendoso. Dessa maneira, o banco nunca ope-
ra com prejuízo. É claro que sempre existem indivíduos de-
sonestos que tapam o nariz ao abrirem as cartas que rece-
bem, mas, afinal, toda época tem seus caloteiros.
Lembrando-me da mesa-redonda a que eu assistira, na
qual havia sido discutido o código penal, perguntei ao advo-
gado se essa impregnação psiquímica de cartas de cobrança
não violam o disposto no parágrafo 139, que assim reza:
~~Quem utilizar meios psiquímicos com o intuito de influen-
ciar pessoas, físicas ou jurídicas, sem seu conhecimento ou
consentimento, estará sujeito a prisão, etc., etc . .. " Ao que
74
parece, esse meu comentário o agradou, e Crawley começou
a me pôr a par da natureza sutil da situação. o banco pode
legalmente lançar mão desse expediente, porquanto se 0 des-
tinatário da carta for de fato solvente e não tiver dívidas
tampouco poderá sofrer remorsos; e o desejo de trabalha;
mais intensamente do que até então não deixa de ser lou-
vável, do ponto de vista da sociedade. O advogado mostrou-
se muito gentil comigo e me convidou a jantar no "Bronx",
a nove de setembro.
Chegando em casa, concluí que já era tempo de eu
me inteirar do que acontecia no mundo de maneira direta,
sem depender exclusivamente do revedor. Comecei com uma
batalha frontal com o jornal, mas desisti quando ia ao meio
de um editorial a respeito de rezólios e gaviões. A seção in-
ternacional não foi muito melhor. Da Turquia vem uma notí-
cia de um considerável aumento do número de dissimulado-
res fugitivos, assim como de uma onda sem precedentes de
nascimentos subterrâneos, apesar dos esforços constantes do
Centro de Demopressão daquele país. Para piorar as coisas,
a manutenção dos sincretinos vem representando um forte
ônus para a economia nacional. Como previ, o dicionário
Webster não presta muitos esclarecimentos. Encontrei a pa-
lavra dissimulante, que significa um objeto que existe mas
finge não existir; mas não achei nenhuma referência a dis-
simuladores. Um nascimento subterrâneo é uma criança vinda
ao mundo ilegalmente. Foi isso que Aileen me disse. Táti-
cas demopressivas são as medidas utilizadas a fim de coibir
a explosão demográfica. Pode-se obter licença para ter um
filho de duas maneiras: preenchendo formulários e subme-
tendo-se aos exames apropriados, ou então ganhando-se o
primeiro prêmio da infantaria (loteria infantil) . A maioria
dos candidatos tentam a loteria, pois não têm outra possibi-
lidade de conseguir uma licença. Um sincretino é um idiota
~inté~ico. Isto foi tudo que consegui descobrir, o que, aliás,
e ate bastante, se considerarmos a linguagem usada nesses
arf
. Igos do Herald. Eis uma mostra: "Um profuto errado ou
zndexado incorretamente desestimula a competição, tanto
75
quanto a repetlçao; além disso, falsos profutos continuarao-
a ser explorados pelos lubricratas, que correm poucos riscos
devido às brechas da lei, dado que o Superior Tribunal aind~
se mostra impossibilitado de se pronunciar quanto ao caso
Heródoto. Já faz muitos meses que a opinião pública vem
desejando saber, em vão, quem é mais competente no tocan-
te à investigação e desmascaramento da malversação: os
contraputadores ou os superputadores?" E assim por diante.
O Webster diz apenas que lubricrata é uma palavra de
gíria arcaica, embora ainda corrente, designando a pessoa
que suborna outra. Dou-me conta, assim, que aparentemente
exiite alguma corrupção neste mundo idílico, e que as coi-
sas não são tão perfeitas como parecem ser.
Um amigo de Aileen, Willum Humberg, deseja entre-
vistar-me no revedor, mas ainda n ão temos nenhum com-
promisso definitivo. A entrevista seria em meu próprio com-
partimento, e não no estúdio da FV, pois o receptor pode
também funcionar como emissor. Isto me fez lembrar ime-
diatamente aqueles romances sombrios em que se descrevia
o futuro como uma antiutopia, em que todo cidadão era
espionado na intimidade de seu lar. Willum riu de meus te-
mores, explicando que a direção do sinal não pode ser alte-
rada sem cabal permissão do proprietário do aparelho. A
violação dessa norma implica prisão. Afinal, mediante a
simples reversão das emissões, uma pessoa poderia até mes-
mo cometer adultério, por controle remoto, com a mulher
do vizinho. Pelo menos foi isso que Willum me disse, mas
não sei se é verdade ou se ele está brincando comigo.
Passei o dia conhecendo a cidade melhor, no transpor-
tador. Não existem mais igrejas, e os locais de culto são
atualmente as farmácias. Os homens de mantos brancos e
mitras prateadas não são sacerdotes, são farmacêuticos. O
interessante é que, por outro lado, não se encontra uma
drogaria em parte alguma.
76
poJas de v~dro. C~mp~ei-a ~u~ psicodélio científico. Atual-
mente, os livros na~ sao mais lidos, e sim comidos, não são
feitos de papel, e Sim de uma substância informativa, perfei-
tamente digerível e recoberta de açúcar. Dei também um
passeio por um supermercado psiquim. Auto-serviço. Nas
prateleiras há uma infinidade de produtos em belas embala-
gens - opinionatos de baixa caloria, credibiliantes (serão do-
sezinhas de credibilidade?), extrato de abstracto! em emba-
lagens de galão, imitando garrafas antigas, reticentilhos, puri-
tases e flocos de desextasiantes. Fico desapontado por não
encontrar nenhuma Iingüicina, pois viria a calhar.
A livraria chama-se "singarnia", palavra derivada do
verbo "siengach", que significa obter alguma coisa. A teo-
singarnia, que existe na Sexta Avenida, deve ser uma livra-
ria religiosa, a julgar pelos produtos expostos. Estão arru-
mados por seções: absolventina, teopatina, genuflix, meta-
moria. É um lugar enorme, e as vendas se realizam com
um fundo de discreta música de órgão. Além disso, podem-
se adquirir ali específicos para todos os credos - cristina e
anticristina, ormuzal, arimanol, o copto-eutopco, anabaptiba-
nil, supositórios de islamax, e até aveias quaker, metodinal e
o farelo apócrifo. O sacrantal é vendido numa embalagem
com auréola resplandecente. Tudo é vendido em comprimi-
dos, pílulas, xaropes, gotas, pastilhas, e até em forma de pi-
rulitos, para as crianças. A princípio, não acreditei, mas acei-
tei essas inovações depois de engolir quatro cápsulas de alge-
brina. Daí a pouco dominava, sem saber como, a matemá-
tica superior, sem o menor esforço de minha parte. Em
suma, todo o saber é assimilado atualmente pelo estôn1ago.
Aproveitando avidamente essa oportunidade, comecei a
satisfazer minha sede de conhecimentos, mas os dois primei-
ros volumes da enciclopédia me causaram um horrível dis-
túrbio intestinal. Willum me avisou para não encher a ca-
beça com uma quantidade exagerada de fatos - afinal de
contas, o cérebro não tem capacidade ilimitada! Felizmente,
há também remédios destinados a purgar o cérebro, como a
obliterina e o amnesiol. Com ajuda desses específicos, po-
77
,. --·~ _:.~- .... - -
·---~ --· ·- ~- .......
78
.... ___.,.__ .. __ ___ _____ ...... - ....
... . . .
-· -- - ·· .. .....
-~- - ~
79
comer o dicion' · · ·
ensível! De ano Inteuo: O text_o_é ~r~ticamente incompre-
ta a. ud qualquer maneua, o dtctonano não prestaria mui..
J a. Estou começando a compreender isso. Por exemplo
esse romance· o h ero1 , · esta, mantendo uma ligação com um'
concubalão
fi, .
(ha', d uas espectes:
, · ,
converstvel-pervertível e in..
n~vel-tnfl~g~~ntavel). Be~, sei o que é um concubalão, mas
~o faço ,Ideta d~ qual seJa a reação em relação a essas Iiga-
çoes. Sera mal VIsta socialmente? E corromper um concuba-
1- ? s ,
ao· era o mesmo que chutar uma bola de vôlei? Ou será
uma coisa moralmente censurável?
80
.. -~- - .. - ·~-·
conservar ~
. toda. ligação
.. possível
. com o passado irrecuperavel.
Atleen foi VISitar sua ha. Vou jantar com G
. . ~ . eorge P.
Symmg.ton, ex-propnetano d~quele transviado. Passei toda a
tarde 1ngestando uma obra Interessantíssima, intitulada His-
tória da lnteletrônica. Quem poderia imaginar, em meu tem-
po, que os computadores digitais, ao atingirem determinado
nível de inteligência, se tornariam indignos de confiança, men-
tirosos, pois junto com a sabedoria adquirem também as-
túcia? É claro que o livro diz essas mesmas coisas em lin-
guagem mais técnica, falando da Lei da Chapulier (lei da re-
sistência mínima) . Se uma máquina é obtusa, incapaz de
reflexão, faz tudo quanto se ordena. Mas uma máquina in-
teligente começa por analisar o que mais lhe convém: solu-
cionar o problema que lhe foi proposto ou, em vez disso,
achar uma maneira de fugir dele. Preferirá o que for mais
fácil. E na verdade, por que agiria de outra forma, já que
dispõe de verdadeira inteligência? A verdadeira inteligência
pressupõe opção, liberdade interior. Por conseguinte, temos
hoje os malingerantes, os vacilistas e os molimolários, não
se falando no fenômeno especial do mimimbecilismo ou sin-
cretinismo. Um sincretino é um computador que simula a
idiotia a fim de ser deixado em paz, de uma vez por todas.
E descobri o que são os dissimuladores: são aqueles que
simplesmente fingem que não estão fingindo serem defeituo-
sos. Ou talvez seja exatamente o contrário. Tudo isso é mui-
to complicado.
Um probô é um robô em liberdade condicional, ao
passo que um servo é aquele que ainda está cumprindo pena.
Um robotch pode ser ou não um sabô, ou robô-sabotador.
Depois de engolir um frasco, fico com a cabeça rebentando
de informações e nomenclatura. Um confutor, por exemplo,
não é uma máquina que causa confusão (esta é o confu-
tador), e sim um computador que cita Confúcio. Um gramus
é um framus antiquado, um hfbrido de utensílio doméstico
e dactiprogramador, geralmente pouco digno de confiança.
Um bananalog é ur. \ blug-banana analógico. Os contraputa-
dores são misantropos, individualistas, incapazes de traba-
81
lhar em equipe; a tensão que provocavam na rede provocava
alta revoltagem, descargas elétricas, e até incêndios. Alguns
descontrolam-se inteiramente: são os dinamoks, os locomo-
tores, os ciberserks. E temos também os eletroliscos, os su-
cúbutos e os incubatores - todos eles robôs de má fama _
.
e a1nda os policaftenóides, proxenetas andróides múltiplos,
'
com seus solicitrons ilicitantes de alta freqüência, ósculo-
osciloscópios e circuitos de sedução!
O livro de inteletrônica fala também dos "sinsetos", ou
insetos artificiais, como as programoscas e os giropulgões, que
no passado eram programados para fins militares, e incluí-
dos nos arsenais. Havia, por exemplo, grande quantidade de
formigas desse tipo entre os armamentos do Exército. Uma
submáquina é um robô clandestino, isto é, um robô que se
faz passar por ser humano. Um arrivista, em suma. Os ro-
bôs velhos, jogados à rua por seus donos, são chamados de
transviados ou "defuntinhos". Infelizmente, há muitos deles.
Ao que parece, antigamente eram levados em carroças para
reservas de caça, onde eram caçados por esporte, mas a
S. P . A. (Sociedade de Proteção aos Autômatos) interveio
e fez com que esse costume fosse declarado inconstitucional.
No entanto, o problema da obsosenescência dos robôs ainda
não está resolvido, e às vezes damos com um ou outro auto-
aborto ou autocida atirado à sarjeta.
Segundo Symington, as leis estão sempre defasadas em
relação ao progresso tecnológico, e daí surgirem espetácu-
Ios melancólicos e fenômenos lamentáveis como esses. Pelo
menos os maculadores, os malversadores e os falacitores fo-
ram retirados de circulação; esses autômatos eram máquinas
digitais que há duas décadas criaram grandes crises, tanto
.econômicas como políticas. O Grande Falacitor, por exem-,
pio, que durante nove · anos esteve incumbido do programa
de desenvolvimento · de Saturno, não realizou absolutamente
nada nesse planeta, expedindo pilhas. e mais filhas de relató-
rios falsos, faturas, requisições e planos, e além disso· su•
bornava seus supervisores ou os mantinha num estado de chO.·
que eletrônico. Sua . insolência chegou a tal ponto que quan·
82
do foi removido da órbita ameaçou declarar guerra. Como '·
84
_ Muito bem - eu disse, depois de haver ficado a1't,
quieto, pelo m.enos uma h ora, de pé - mas quando vão
abrir essa portinhola?
O quê? - ele estranhou.
- Ora, a janela, naturalmente ...
- Nunca! - exclamou com júbilo o pessoal da fila.
Fiquei pasmo. Por fim, entretanto, compreendi a ver-
dade. Eu havia participado de uma atração que era tão
contrária às normas da existência como, há muito tempo
atrás, era uma Missa Negra. Pois hoje em dia, o fato de
uma pessoa ficar de pé numa fila só pode ser uma perver-
são. Na verdade, isso é bem lógico. Em outra sala do clube
havia um vagão de metrô autêntico, com todos os detalhes,
como sujeira e um relógio indicando a hora do rush. Em
seu interior reina um aperto verdadeiramente desumano, com
botões arrancados, roupas rasgadas, acotovelamentos, pisadu-
ras, xingamentos em voz baixa. É dessa maneira naturalista
que os devotos da antiguidade evocam a atmosfera de uma
época passada cujas condições de existência são hoje inal-
cançáveis. Depois, as pessoas foram fazer uma refeição e
tomar refrescos, desgrenhadas, amarfanhadas, mas quase ex-
tasiadas, com os olhos rutilantes de prazer. Voltei para casa
segurando as calças e coxeando um pouco, de tantas pisadas
que havia levado, embora sorrisse, pensando na ingenuidade
da juventude, que sen1pre busca seus prazeres no exótico e
no difícil de obter. O mais interessante é que quase nin-
guém estuda História hoje em dia, pois essa disciplina foi
substituída por uma outra matéria, chamada Porvíria, ou
seja, a ciência do que há de suceder. Como o Professor
Trottelreiner se alegraria ao saber disso! Infelizmente, po-
rém, ele não está conosco.
85
,_
86
.......
88
A companhia
. para a qual
. Symington trabalha chama-se
Procrustlcs Incorporated.
, d. S Esttve examinando 0 catálogo 1.1us-
trado em ~eu estu 10. err~s mecânicas e uma espécie de
torno. Cunoso, nunca pensei nele como um homem que se
dedicasse a qualquer aspecto da engenharia.
Acabei de. assistir a um programa dos mais interessantes.
Haverá uma vto1enta concorrência entre a fisivisão e a psi-
visão. Com esta, os programas são recebidos pelo correio,
em forma de tabletes, em envelopes. Os custos são, assim,
muito menores. O canal educativo transmitiu uma palestra
do Professor Ellison sobre a guerra antiga. Os começos da
era do psiquim foram cheios de perigos. Havia, por exemplo,
um aerosol - a criptobelina - de grande potencial mili-
tar. Quem quer que a respirasse corria em busca de uma
corda com a qual se amarrar. Felizmente, testes demonstra-
ram que a droga não tinha antídotos e que os filtros tam-
pouco eram de qualquer utilidade para neutralizá-la. As-
sim, ambos os lados envolvidos num conflito terminavam de
mãos e pés atados, literalmente, e nenhum dos lados con-
seguia qualquer vantagem. Ap6s manobras táticas no ano
de 2004, conta-se que tanto os "vermelhos" como os "azuis"
achavam-se estendidos no campo de batalha, manietados.
Acompanhei a leitura com toda atenção, julgando que final-
mente encontraria referência ao desarmamento. Contudo,
não havia uma só palavra sobre o assunto.
Hoje, fui finalmente ao consultório do psiconutrólogo.
Aconselhou-me modificar minha dieta, receitando nivelina e
olviderax. Desejaria ele que eu me esquecesse de minha vida
antiga? Joguei tudo aquilo fora, assim que cheguei à rua.
Eu poderia também adquirir um encefalostato, que vem sen-
do muito anunciado ultimamente, mas sinto uma espécie de
aversão a essas coisas e não consigo aceitar a idéia.
Pela janela chegam-me sons de uma dessas canções
· . ' , · tz" cos Não te-
Idiotas que todos cantam: "Automa-tz-cos, - · · ·
, · " Não tenho de-
mos pai nem mãe, somos automa-tt-cos · · · _
sacustina em casa mas um bom chumaço de algodao no
'
ouvido fará o mesmo efeito.
89
~3 l?C 2039. Conheci Burroughs, cunhado de Symingt
abnca embalagens falantes. Os industriais modernos ~~
P:oblemas curiosos: uma embalagem só pode recomendar ern
vutudes de seu conteúdo por meio de uma mensagem as
nora, pois não é permitido agarrar o cliente pelo colarin~
0
ou pela manga. Um outro cunhado de Symington dirige um
fábrica de portas de segurança, que só se abrem ao som da
voz ~o dono ~a casa. Outra coisa: os anúncios nas revista:
adquuem movunento, quando se olha para eles.
A Procrustics, Inc. sempre publica um anúncio de pá-
gina inteira no Herald. O fato de eu conhecer Symington
chamou minha atenção para esse anúncio. O anúncio tem
letras enormes, no alto, fonnando a palavra PROCRusncs.
Depois, aparecem sílabas e palavras separadas: BEM ... ?
POR QUE NÃO? ANIME-SE! AH! UH! OH! EPA! OHHH! SIM, SIM[
MAIS FORÇA! HANNN! . . . E nada mais que isso. Não creio
que se trate de máquinas agrícolas, afinal.
Hoje, Symington recebeu a visita de um religioso, o Pa-
dre Matrizzi, da ordem dos Inumanistas. Foi buscar alguma
encomenda. O estúdio de Symington tornou-se então palco
de uma discussão interessantíssima. O Padre Matrizzi expli-
cou-me o objetivo do trabalho missionário de sua ordem. Os
Frades Inumanistas convertem robôs. Muito embora a inte-
ligência inumana já tenha cem anos, o Vaticano ainda nega
aos robôs igualdade de direitos com relação aos sacramen-
tos. No entanto, o que seria da Igreja hoje, sem seus com-
putadores, suas encíclicas programadas e suas bulas digitais?
Ninguém se preocupa com seus tormentos interiores, c~m
as perguntas que formulam nem com o sentido de sua exts-
tência. Com efeito, não existe um só computador que não
haja se interrogado quanto às suas finalidades últimas da
vida. Para resumir, a questão que colocam é a seguinte: ser
ou não ser computador? Os Frades Inumanistas pretendem
impor a doutrina da Criação Intermediária. Um deles, 0 pa-
dre Chassis, eminente tradutor está atualmente reescreven~o
as Sagradas Escrituras a fim' de torná-las compreensívets.
' ,., . ape·
Termos como pastor, rebanho, cordeiro, etc., sao hoJe ~ es
nas verbetes ininteligíveis nos léxicos. No entanto, expresso
90
1. _ .....· ·
·- ......-:..
92
\ ..
------------------......;..· ·- ·· -
94
Compreendi então os anúncios que a companhia vinha
· bl.tcando no Herald e,. no
pu . Post. Mas por que, pensei fe-
nte tomado de pantco, por que e1e usou aquelas pa-
brilme , - .. f ,. .
? As sugestoes equestres, as re erenctas a arreios a
lavraS · , , '
rédeas e a cavalgar? Meu Deus, sera posstvel que haja tam-
bém aqui, em algum local, um esgoto, meu esgoto guardião,
meu único talismã e pedra de toque para a realidade? Mas
0
engenheiro-projetista (o que ele estaria projetando?) não
se deu conta de minhas dúvidas, ou as interpretou errada-
mente.
_ Devemos nossa libertação à química - continuou.
_ Sim, pois toda percepção não passa de uma modificação
na concentração de íons de hidrogênio na superfície das cé-
lulas cerebrais. Ao me ver, você experimenta na realidade
uma perturbação no equilíbrio sódico-potássico nas mem-
branas dos neurônios. Assim, basta enviar algumas moléculas
bem escolhidas para esses mitocondriomas corticais, ativar os
sítios causadores de transmissões neuro-humorais e de sinap-
ses, e seus sonhos mais queridos tornam-se realidade. Mas
você já sabe disso tudo - concluiu ele, em voz baixa. A
seguir, tirou um punhado de pílulas minúsculas e coloridas
da gaveta. Pareciam-se com pequenos confeitas.
- Eis aqui o mal que fabricamos, que sacia a sede
da alma aflita e ansiosa. Eis aqui a química que limpa os
pecados do mundo.
Com as mãos trêmulas, tirei do bolso um comprimido
de equanimina, engoli-o inteiro e disse:
- Tudo isso está muito bem, mas, por favor, seja mais
objetivo.
Symington franziu o cenho assentiu com a cabeça si-
lenciosamente, abriu a gaveta e 'dela tirou alguma coisa, que
comeu. Depois disse:
- Como queira. Eu estava descrevendo o modelo T
de · ··
S n~ssa nova tecnologia. . . isto é, seus inícios pn~uttvo~.
01
uçoes de garrote. As pessoas aderiram à flagelaçao e a
~efenestração imediatamente aquilo foi felicitas per extr~c-
ttanem
. pedum, mas como a' concepção era es t ret·ta demats '
as poss"b·I·d .. "d d I go perdeu
l 1 1 ades logo se esgotaram e a ·nov1 a e 0
95
· t
o m eresse.
o que se podia fazer?! Simplesmente não havia
· , E
idéias suficientes, exemplos, precedentes. a segu~r· m toda
a história do mundo, só o bem havia stdo prattca~o aberta-
mente, ao passo que o mal era ocul~o sob sua ~ascar~, ou
seja, era praticado sob pretextos acettos · · · podi~-se. pilhar,
despedaçar ou profanar, mas em nome de altos tdeais. E a
nível individual, privado, o mal não conta.va nem mesmo
com essas luzes norteadoras. O ilícito, por ISSO, era sempre
grosseiro, mal feito e improvisado, e prova disso está na
reação do público a nosso produto: nas encomendas cons-
tantes, o mesmo pedido se repetia enfadonhamente - todos
queriam bater, estrangular e fugir. Além disso, não basta a
simples oportunidade do mal; as pessoas necessitam também
de uma justificativa. Você sabe como é constrangedor, em-
baraçoso, cometer um ato de violência diante das pessoas.
Sempre haverá alguém que perguntará "Por que isso?"~
Não é nada agradável não poder dizer nada. O garrote não
é uma resposta adequada, todo mundo sabe disso. A solu-
ção está em se ter argumentos adequados para rejeitar essas
objeções, desdenhosamente. Todos desejam cometer uma vi-
lania sem sentir-se vilão. A vingança representa uma boa
desculpa ... mas o que Joana d'Arc lhe fez de mal? Apenas
ser melhor, mais nobre? Nesse caso, você está em situação
pior ainda, com o garrote ou sem ele. E ninguém quer issor
Todos nós gostaríamos de cometer os crimes mais abominá-
veis, mais hediondos, mas continuar a ser inteiramente res-
peitável, nobre. Simplesmente admirável! Quem não quer ser
digno de admiração? É sempre assim. Quanto piores são,
mais admiração querem receber. A simples impossibilidade
disso aguça o apetite. Nosso cliente não se satisfaz com ator-
mentar viúvas e órfãos. . . é preciso que, além disso, ele
se. sinta o. mais angelical dos homens. Embora seja um cri-
minoso ( amda que, atente bem, plenamente justificado), não
tem nenhum desejo de se l~ar a criminosos.
. Mas_ isso, até aqui, é coisa velha, um lugar-comum te-
dioso. ~ao, te~os d: dar a nosso cliente nada menos do que
a santtdade, e preciso tomá-lo um verdadeiro anjo, e de
uma forma tal que ele satisfaça seus instintos com a sen-
96
sação de que isso .não _ é apenasd lícito, é também 'Um dever,
uma espécie de mtssao . . sagra a. Compreende · a grande arte
que representa_ conc111a: essas contradições? Em última aná-
lise, estamos hdando nao com o corpo, e sim com: a alma
- , . .
o corpo nao e ma1s que um meto para determinado fim
.
Quem não compreender _isso não irá além da mesa do açou~
gueiro. É claro que mu1tos de nossos clientes são incapazes
de perceber esse tipo de distinção. Para eles temos 0 de-
partamento do Dr. Hopkins - Agressão e Violência, sagra-
da e profana. Sagrada? Bem, estamos numa espécie de Valé
de Josafá, onde os diabos arrebentam a todos, menos a nos-
so cliente, e no dia do Juízo o Deus Supremo; :em pessoa,
o conduz à glória celestial. Até com deferência. Há algumas
pessoas (mas isso é esnobismo de cretinos) que exigem que;
ao fim, Deus proponha trocar de lugar com .eles. Infanti..
Iidade. Mas os americanos parecem gostar desse tipo de
coisa. Esses porretins e bordoários - disse ele, mostrando
com uma expressão de desgosto o espesso catálogo ;..__ não
passam de pura selvageria. O próximo, afinai · de· contas, não
é nenhum tambor para se bater, e sim um instrumento sutil.
- Um momento - eu disse, engolindo outra pastilha
de equanimina. - Nesse caso, o que é, exatamente, que
v.ocê projeta?
, Symington sorriu com orgulho.
- Composições sof.ísticas.
- Não entendo bem. Causadoras de sofismas?
- Não, Tichy. Sof é a unidade de sofrimento.. ~o~o
compositor, eu me atenho estritamente a ·agressões espmtuats.
Minhas obras são medidas em sofs. Um sof representa a
, . . f.lh s ao ver toda sua
angustia sentida por um pai de c1nco t o
família ser assassinada diante de seus olhos. De acordo com
J , t ês sofs ao passo
essa medida, Deus aplicou a Seu servo 0 r d ' que qua-
que Sodoma e Gomorra receberam nada menos t~ativo Sou
renta. Mas não falemos mais desse aspecto ~ut~rament~ no-
. .
h as1camente um artista, e atuo n
um campo lfl et
,. sabe desen-
. . f"l , fos como voce '
vo, Inexplorado. Mu1tos 1 oso ' ." te ninguém se
. s prattcamen .
voIveram a Teona do Bem, ma déstia - detxan-
ocupou da Teoria do Mal - por falsa mo
97
0 de pessoas 1·gnorantes ou .dde,. amadores sem
do-a a carg . t errônea a 1 êla, corrente, de
·t· - É inteuamen e f'tnad o e ela-
quah 1caçao. . 1 sutil, insidioso, re
0
que se pode praucar ma adequado sem experiência nem
treinamento ' .. .
borado sem o longados e dthgentes. Para tsso
. · - sem estudos pro · ·
mspuaçao, . . nem tampouco a tuano1ogta ou
não basta a .torturometna, . adas Essas disciplinas não pas-
, · ras ou ap1tc ·
a brutahsttca,. pu _ nto Além disso, não existe
. t duçao ao assu ·
10
sam de uma ro f, mula simples, nenhuma lei univer-
nesse campo nenhuma or
sal ·- suum ma/um cULque. .' . ?
- E a firma tem muitos. . . chent~s .
· . tela é toda a humanidade. Desde a pri-
- Nossa c11en d · ·d
. . " . · 0 otinhos recebem ba1as e parnct o1
me1ra mfancta. s gar · " b
·· - seus ressentimentos. O pat, voce sa e,
para darem vazao a . · d d
é a fonte das frustrações da socteda~e. E com a aJu a e
um freudo ou dois, resolvemos raptdamente os complexos
de Edipo.
Saí da . casa de Symington sem nenhuma pastilha. Com
que então, . as coisas estão nesse pé! Que mundo! Então, é
esta a razão . por que todos ofegam tanto? Estou rodeado
de monstro~! . . .
.. . . .
99
os do coração! Recusei-me a decidir, começamos a dis .
" · . CUttr
e e1a so p1orou as co1sas ton1ando recriminol. Acusou- '
· · me
IDJUStanlente, de totnar grandes doses de invectina antes d~
n~~s? confronto (foram as palavras dela). Um momento
diftcll para mim, mas me mantive fiel a mim mesmo. De
agora en1 diante farei as refeições sozinho em casa, e ape-
nas comerei os alimentos que eu mesmo preparar. Acaba-
;nun-se os sínteos, os paradisíacos, as gelatinas luxo-extáticas
e desliguei todos meus hedoníticos. Não necessito nem d~
abstinina ne1n de protestai. Um pássaro enorme, de olhos
tristíssimos, pousou diante de minha janela, olhando para
dentro do compartimento. É uma ave muito estranha, com
fonnas de gesso em lugar de garras. O computador diz que
se chama xumbrente.
100
sim de um ~sgoto, onde sal~ar ~e ca.beça!) Será possível que
em pleno sec. XXI as hab1taçoes a1nda não sejam à prova
de som?
Comecei a brincar novamente, hoje, com 0 botão de
solidificação da FV, e acabei por quebrá-lo. Realmente, te-
nho de me decidir a fazer alguma coisa. Mas, 0 quê? Tudo
me exaspera, a menor coisa, até o correio - recebi uma
proposta do escritório da esquina, para me inscrever como
candidato ao Prêmio Nobel. Prometem colocar-me no alto
da lista, na qualidade de visitante do passado aterrorizante.
Vou enlouquecer, juro! E tenho também diante de mim um
folheto de aspecto suspeito, oferecendo "cápsulas secretas,
que normalmente não são oferecidas à venda". Só Deus sabe
o que poderão conter. Recebi ainda uma advertência contra
os contrabandistas de sonhos - traficantes de sínteos proi-
bidos. E também um apelo para não sonhar espontanea-
mente, primitivamente, uma vez que isso representa um des-
perdício de energia psíquica. Que tocante ~?reocupação pelo
cidadão! Encomendei um sínteo sobre a Guerra dos Cem
Anos e acordei coberto de equimoses.
101
~-·
102
Para dizer a verdade, eu pergüntei mais p· .
· ·d d or cortesta do
que por cunost a e, mas parece que ele não n o· t ou. 0 s gar-
çons trouxeram nossa sopa e, com ela, uma garrafa de Cha-
blis, da safra de 1997. Um ano excelente.
- A futurologia lingüística investiga 0 futu · ~
. .. ro atravcs
das poss1blltdades de transformação da Iín<Yna · ,.
. o"· ·- exp11cou
Trottelretner. ·
- Não entendo.
- O homem só pode controlar aquilo que compreen-
de, e só pode co.mpreend~r aquilo que . expressa em pala-
vras. Por conseguinte, o mexprimível é incognosCÍvel. Pelo
exame dos estágios futuros na evolução do idioma, desco-
brimos quais as descobertas, mudanças e transformações so-
ciais a língua será capaz, algum dia, de refletir.
- Espantoso. Mas como se faz isso, na prática?
- Nossa pesquisa é feita com o auxílio dos compu-
tadores de capacidade máxima, pois, sem essa ·ajuda, o ho-
mem seria incapaz de acompanhar todas as vai1a~ões. Ao
me referir a variações, estou falando, naturalment~, das per-
mutações sintagmáticas-paradigmáticas da ·I]ngu.agem, ainda
que a quantificação ...
- Professor, por favor ...
- Desculpe-me. A propósito, o Chab1is está magnífico.
Alguns exemplos esclarecerão a questão. Diga-m.e uma pa-
lavra, qualquer uma.
-Eu.
- Eu o quê? Ah, sim. Eu. Muito bem. Não ~ou um
computador, você sabe, de modo que o exemplo sera _forço-
samente simples. Então, muito bem. Eu.. Temos . e~tao eu,
meu, ego, alter ego. Mego. Teu ego, tego. Como exJSt~ ego,
pode haver, vocego. E formamos, entao, - nosego
. "-' ..r- · Vtu?•
- Não vi nada. .
.
- Mas é perfeitamente c1aro. s E tamos 'falando, pn-
meiramente da possibilidade de misturarmos 0 ~egdo co~
' f - de duas enttda es pst
o ~ego. Em outras palavras, da usao . Interessantíssimo.
0
quicas. Em segundo lugar, temos .0 noseg · . . Ja:-: dissociação
Uma consciência coletiva. Produztda, talvez, pe
103
múltipla .da. .personalidade, um multisquizismo. Out
vra, por .favor. ra Pala..
-Pé. . ..
- ótin1o. Pé, monípede, bípede, trípede quad ,
. . ' rupede
Pedal, pedaleira, pedahsmo. Pedestre, pedestrocracia p . ·
,. . p, . · ezis-
mo, pezada, .d espezad a. P eztsttca. eztco. Pedismo e d
. ~~
dismo. Acho que asstm vamos chegar a alguma coisa. p •
salidade e bipedirismo. e
-.-. Mas essas palavras não significam nada!
- Por ·e nquanto, não, mas vão significar. Ou melhor
poderão um dia adquirir significado. A palavra "robô" nã~
significava nada no século XV, mas se existisse nessa época
a futurolingüística, eles poderiam facilmente ter pensado em
autômatos.
-.- Mas o que poderia ser o . despedismo?
- Nesse caso particular não posso responder com pre-
cisão, mas apenas por não se tratar de um prognóstico, e
sim de uma coisa que já existe. O despedismo é um con-
ceito bastante recente, uma nova atitude em relação à auto·
_evoluç~o .humana.
- Quer· dizer, criar homens sem pés?
- Exatamente. Afinal, caminhar tornou-se uma ativi-
dade vestigial, e além disso já há falta de espaço.
· - · Más· ·isso é. uma loucura!
_ ::· Concordo inteiramente. No entanto, luminares como
o Professor Hatzelklatzer e o Dr. Foeshbeene são adeptos
do despedismo. Você não sabia disso quando me ·propôs essa
palavra:, não é? · ;
·- · Não~ E· as outras derivações, o que significam? .
- · Isso ··é uma· coisa que ainda não se sabe. Mas se 0
despedistno :triunfar sobre o bipedirismo, todo o resto lo.go
virá. Não · ·se ··trata de uma profecia, veja bem, mas um m-
ventário simples das possibilidades em sua forma mais pura.
Diga outra :palavra.
- Interferente.
-- Muito bem. Inter· e fero, fero, ferre, tuli, latum. CtC:
. . 00~
mo ~ palavra ~em do latim, devemos proc~rar uma ~ cta-
nuaçao nessa l~ngua. Fios, floris. Interflorenttna. Mas, e
104
ro! Trata-se da virgem que teve un1 filho com interfe-
rente, que lhe tirou a virgindade. um
_ E de onde o senhor tirou essa virgindad ?
- Fios,
,
floris
,
- flor. Ela foi deflorada
. '
ent~~deu.? No
entanto, e provave1 q~te venham a dtzcr fisigenutriz, ou fisi-
triz, em forma abreviada. Ou simplesmente mãe revi siva.
Eu lhe as~e~u_ro que. .temo"s . à nossa disposição, aqui, um
campo ferttl~ss1mo. FISI~ul.~en~. Coitus interferentus. Recep-
ção/concepçao de alta Infidelidade, inseminação heteródina.
Percebemos todo um novo mundo de padrões sociais, toda
uma nova moralidade!
- Pelo que vejo, o senhor é um entusiasta dessa nova
ciência. Vamos ver um novo exemplo. Por acaso, lembro-
me de lixo.
- Por que não? Não importa que você seja cético.
Muito bem. . . lixo, lixeira, lixai. Lixismo, líxico, catalíxico.
Lixismo, lixíria. Quando muito grande, lixórdea. Ah, sim,
naturalmente, podemos ter cosmolíxio! Tichy, você me pro-
porcionou u1na palavra estupenda! Pense bem, cosmolíxio!
- Acho que não entendo o significado. Para mim, não
te.m nenhum sentido.
- Antes de mais nada, não se diz "entender o signi-
ficado", e sim " não ter gosto". Você não sente o gosto.
Aliás, já observei que sua linguagem está cheia de anacro-
nismos. Isso não é bom. Mas falaremos disso mais tarde.
Em segundo lugar, cosmolíxio não é inteligível até agora,
mas já podemos pressentir seu sentido futuro. A palavra,
veja b~m, implica nada menos do que uma nova teori_a. ~si
cozóica! A implicação é que as estrelas têm origem artiftctal!
- De onde você tirou essa idéia?
- Da própria palavra. Cosmolíxio indica, .ou suger~,
a seguinte imagem: no transcurso de eras sem ftm, ~ .l!nt-
verso encheu-se de lixo dos detritos de inúmeras ctvthza-
ções. Os detritos atrap;lhava1n, naturalmente, as atividades
de astrônomos e cosmonautas, de modo que foram cons-
truídos gigantescos incineradores, que funcionavam a ~em
peraturas extremamente elevadas, veja bem, a fim de quet~ar
.
o I txo, e que possuíam massa suf'ICten
. t e pa ra atrair ' gravtta-
105
cionalmente todo aquele lixo. Aos poucos, o espaço r·
,' _ tcou
limpo, e Ia esta o. . . as estrelas, exatamente aquelas fo
. rna-
Ihas, e as nebulosas escuras - ou seJa, o lixo que ainda
não foi consumido.
_ Não pode estar falando a sério! Então o Univers
. o
não passa de um enorme vaza douro de 11xo? Professor, não
brinque com essas coisas!
- O problema, Tichy, não é o que eu penso ou deixo
de pensar. Apenas utilizmnos a lingüística futurológica para
criar uma nova cosmogonia, outra teoria que caberá às fu-
turas gerações analisar. Elas poderão ou não levá-las a sério,
mas o fato é que podemos articular essa hipótese! Note que
se a extrapolação morfológica existisse na década de 50, do
século passado, já naquela época poderiam ter previsto os
benignimizantes - lembra-se deles? - mediante a deriva-
ção projetiva de "benigno" e "tranqüilizante". A língua, meu
caro, é uma nüna de ouro de possibilidades, ainda que essas
possibilidades não sejam ilimitadas. Naquela época, poderiam
ter criado a palavra "ben1bas" - uma variante de bombas.
V topize-se, meu querido Tichy - já percebeu que o verbo
vem de "utopia", não? - e compreenderá o pessimismo de
muitos de nossos futurologistas. Afinal, a palavra "utopia"
significa literalmente lugar nenhum, uma terra inexistente,.
um ideal inalcançável.
A conversa chegara finalmente ao assunto que mais me
interessava. Confessei a Trottelreiner minhas apreensões, meu
ódio por aquele novo mundo. O Professor dava mostras de
não concordar, mas ouviu-me pacientemente e, como tinha
excelente alma, até começou a ter pena de mim. Pude ver
até que enfiou a mão no bolso para pegar um pacotinho de A o
106
. -- ..- ..- ... _
· - ~- - -· - ~- ~
108
ados de molho por baixo. E o que antes me pareciam
encharc d . ,
ramos pendentes e uma palmeira proxima plantada
~o S '
num vaso, converterain-se n~s cadarços das calças da pes-
a que estava sentada, JUnto com três outras, bem
sofll cima de nos," nao - num bl- a cao ou sacada, mas numa
e . - .
esP écie de prateleira, tao
. 1 estreita que era. O lugar estava
inacreditavelmente cheio.
Meus olhos praticamente saltavam das órbitas quando
essa visão apavorante começou a tremer e a se desvanecer,.
como se tocada por uma varinha de condão. Os cadarços
perto de meu rosto tornaram-se verdes e novamente assu-
miram o aspecto de graciosas folhas de palmeira, ao passo
que o fedorento depósito de lixo, a pouca distância, adquiriu
um brilho opaco e se transformou num vaso esculpido. A
superfície imunda de nossa mesa cobriu-se novamente da
mais pura brancura, as taças de cristal reluziram, a papa
hedionda tornou-se dourada, recuperando as formas de um
magnífico assado, e o zinco de nossos talheres recobrou
sua antiga cintilação argêntea. As abas dos fraques dos gar-
çons balançavam de um lado para outro. Olhei para meus
pés, e a esteira era novamente um tapete persa. Eu tinha
retomado ao mundo do luxo. Mas, examinando o peito lar-
go do faisão, não conseguia esquecer o que ele escondia ...
- Agora você está começando a compreender - mur-
murou Trottelreiner, observando-me atentamente, como -se
temesse que o choque tivesse sido grande demais. - E não
se esqueça de que este é um dos restaurantes mais caros
da cidade! Se eu não tivesse tomado as providências neces-
sárias para o caso de lhe contar o segredo, poderíamos ir
a um restaurante cuja visão poderia ter afetado seriamente
sua mente.
- Que quer dizer . . . que há lugares. . . piores?
- Isso mesmo.
- Mas é impossível!
- Aqui, pelo menos, temos mesas, cadeiras, prato~,
facas e garfos de verdade. Nesses outros, as pessoas se det-
tam em tábuas, entpilhadas umas sobre as outras, e comem
com os dedos, tirando a comida de baldes que se movem
109
sobre esteiras rolantes. E o que comem sob o disfarce de
faisão é ainda muito menos atraente, posso garantir-lhe.
- O que e. "?
_ Não é nenhum veneno, Tichy! Trata-se simples-
mente de um concentrado de grama e beterrabas, embebido
·em água clorada e misturado com farinha de peixe. Em ge-
ral acrescentam gelatina e vitaminas, além de óleos e emul-
sificantes sintéticos para evitar que o preparado agarre na
garganta. Você sentiu o cheiro?
- Se senti!
- Já sabe o que é.
- Pelo amor de Deus, professor! O que é? Por favor
tenho de saber. Diga-me. Seria alguma traição diabólica?'
·u m plano demoníaco? Uma trama destinada a destruir a
raça hun1ana?
- Francamente, Tichy! Não seja tão dramático! Não
é nada disso. Acontece apenas que vivemos num mundo
onde há mais de vinte bilhões de pessoas. Leu o H erald de
hoje? O governo do Paquistão afirma que a fome deste ano
matou apenas 970 mil pessoas no país, ao passo que os li-
deres da oposição asseguram que foram seis milhões. Num
mundo desses, onde você pretende encontrar Chablis, faisões
e filés com sauce béarnaise? O último faisão morreu há um
quarto de século. Essa ave é um cadáver, apenas magnifica-
mente preservado, pois nos tornamos mestres na arte da mu-
mificação, ou melhor, aprendemos a mascarar a morte.
- Um momento! Quero entender bem isso. Está di-
zendo que ...
- Que ninguém lhe quer mal. Muito pelo contrário,
é devido a um profundo sentido de misericórdia, e pelas
mais altas razões humanitárias, que se perpetrou este em-
buste químico, esta camuflagem, este enfeite da realidade
com plumagens que ela não possui ...
- Professor, então essa fraude existe em toda parte?
-Sim.
- saio,
- M as se eu faço as refeições em casa, se na0
como ...
110
_ Como você absorve os mascons? E é você quem me
pergunta isso, você? Eles estão no ar que respiramos, ato-
. ·zados. Lembra-se das bombas de A TP na Costa Rica, dos
.::rosóis? Aquilo não foi senão_ as primeiras experiências,
,ru
·nda hesitantes, tal como
. .
o balao de Montgolfier em rela-
. ão aos foguetes espacuus.
ç _ E todos sabem disso? E aceitam?
_ Claro que não. Ninguém sabe.
_ Mas. . . não há boatos?
_ Sempre haverá boatos. Mas lembre-se de que dispo-
·mos da amnesina. Há coisas, meu caro, que todos sabem, e
·coisas que ninguém sabe. A farmacocracia tem seu lado se-
~Creto, assim como seu lado ostensivo. O segundo depende
.do primeiro.
- Não. Não posso acreditar nisso.
- Por que não?
- Porque alguém tem de cuidar dessas esteiras de
:palha, como alguém tem de fabricar os pratos de louça que
.r ealmente usam e preparar essa papa que passa por comida.
E tudo o mais!
- Realmente. Você tem razão. Tudo tem de ser fa-
bricado e mantido. E daí?
As pessoas que fazem essas coisas vêem, sabem!
Bobagem. Seu raciocínio é arcaico. As pessoas pen-
·sam que estão indo para um palácio de cristal, com jar-
·dins de inverno. Ao entrarem, lhes são ministradas doses
·de vigilax e tornam-se conscientes das paredes nuas de con-
·creto e as mesas de trabalho.
- E sentem vontade de trabalhar?
- Com enorme entusiasmo, pois receberam também
·dosagens de abnega1ina. O trabalho torna-se assim uma con-
·sagração, um ato altruísta. E quando terminam o expediente,
·uma colherada de amnesina, ou mesmo nepetanol, é sufici-
·ente para apagar de suas memórias tudo que viram.
. - Até este momento, eu imaginava que vivia uma alu-
<Cmação. Meu Deus, como fui ingénuo! Ah, se eu pudesse
'Voltar! Daria tudo para poder voltar!
- Voltar para onde?
lII
- P~ra a galeria de esgotos debaixo do .
- Ttchy, essa sua atitude é da ma· . H.tlton.
_ . . tor trresp
~ade, para nao dizer simplesmente estúpida V " onsabili-
. oce de ·
fazendo o que todo mundo faz, comer e b b Vta estar
, N . e er como t
nos. esse caso, tena em sua corrente sang··, Odos
- , . d . . Ulnea a con
traçao necessana e otimtstol e serafinil _ 0 . . cen-
. , · . s requ1s1tos ct· -
nos mtntmos - e estana de muito bom hum or. Ia-
- Quer dizer que você serve também com0 d
do diabo? a vogado
- Pense, Tichy, por favor. Será tão satânico ,
. .
d tco mentu para esconder a verdade a seu pacient ? um me-
, . e. 0 que
eu ach o e que se temos de vtver; comer e existir dessa
. . rna-
neua, que pelo menos SeJa com envoltórios dourados. 0
mascons funcionam à perfeição, com uma única exceção .. ~
Então, que mal há neles?
- No momento não estou em condições de discutir
a questão - respondi, serenando-me um pouco. - Quero
~penas que me responda a duas perguntas, em nome de
nossa velha amizade. Em que consiste essa exceção no efeito
dos ·mascons? E como foi que se chegou ao desarmamento
universal? Ou isso também é uma ilusão?
- Não, felizmente, é real. Mas para explicar 1sso eu
teria de fazer uma verdadeira conferência, e agora está na
hora de eu ir embora.
Combinamos encontrar-nos no dia seguinte. Ao nos des-
pedirmos, repeti minha pergunta a respeito dos mascons.
- Vá ao parque de diversões - disse o Professor.-
Se você aprecia revelações desagradáveis, sente-se num
. d lho ganhar velo-
banco do carrossel mator e quan o o apare b"
1 na de sua ca ma,
cidade corte um buraco na cob ertura d e 0 , . ente
, essana exatam
com uma tesoura. Essa cobertura e nec . . d s pelos
- f tasmagonas ena a
porque, durante a rotaçao, a~ an m um deslocamen-
mascons para encobrir a realidade sofre ntolhos .. ·
to . . . como se a força centrífuga afastasse osd a belas nu·
,. . , - urge fora as
Faça isso e voce vera entao o que s
d ma-
:;ões. , . , três horas a
Estou escrevendo essas memonas as h, ais para
O que a 01
drugada, tomado de profundo desespero.
112
ensando serian1e.nte em fugir, en1 abandonar
dizer? . ~~tou _p em me perder nos ermos. Nem tnesmo as
esta civthzaçao, m mais. Uma viagem é coisa triste quando
Jas me atrae
estre te saudades de casa.
não se sen
X . Passei algun1as horas hoje andando pela ei-
2039
S M 1 pude conter meu horror ao contemplar todas as
. . - a de riqueza e prospen·d ad e. u ma ga1ena
dade. · d e arte em
exibtçoes · · · d R
ttan estava praticamente dando ongtnais e em..
Manha d 1' 1 · I ·
brandt e Matisse. E a dois passos a 1d 1av1a .
uma OJa com
. L ; XV
os móveis mais maravilhosos que se po e 1n1agtnar, u1s
e Luís XIV, aparadores de mármore, tronos, espelhos, ar-
maduras sarracenas. Leilões por toda parte, com vendas a
crédito. Minha impressão é que vivíamos num paraíso, onde
todo homem podia palaciar-se. O centro de registro pessoal
para candidatura ao Nobel, na Quinta Avenida, não cons-
titui fraude menor. Qualquer pessoa pode conquistar o prê-
mio, da mesma forma corno qualquer pessoa pode decorar
as paredes de seu compartimento com obras de arte de va-
lor inestimável - uma coisa e outra não passam de uma
pitada de pó que estimula a mente! A perfídia maior de
tudo isto está no fato de que parte dessa fraude coletiva
é ~berta e voluntária, o que leva as pessoas a acreditarem
que podem traçar un1a linha divisória entre o fato real e a
imaginação. E como ninguém mais responde espontaneamen-
te às coisas - tomam-se drogas para estudar, para amar,
para se indignar, para esquecer - deixou de existir dife-
rença entre sensações manipuladas e reais.
Caminhei pelas ruas com os punhos fechados dentro dos
bolsos. Ah, não tenho necessidade de colerina ou de furia-
sol para sentir raiva! Como um lobo faminto, no encalço
da presa, minha mente registrava todo o vazio daquela mo-
nun:enta1 mascarada, daquele embuste enfeitado que se es-
P.r~Iava para além do horizonte. Dão às crianças balas par-
ncidas, desenvolvem-lhes a personalidade com opinionatos,
contestanil e rebelium, e logo depois acalmam sua excitação
com. ~urdinan e cooperasina. Não existe polícia; e para que
servtna' quand o extste
· a gendanntna· e as ten d"enc1as
· ·
cn-
113
1ninosas são neutralizadas com ajuda da Procrusf .
Felizmente, n1antive-me longe das teosingarinias tcs, Inc.?
/ ' com se
compostos grac1genos e absolventes; um grama de us
. . . sacros..
sanhn tna permite a uma pessoa ser canonizada na
~ . mesma
h ora. E por que nao se expenmentar um pouco da ·a .
. ,. d b d . 1 vesma
d1etettca, ou o extrato e u ax ou o bramantl polissaturad ?
Aleluia! O ungüento de nazarina, com apocrifil, leva o.
. .
usuano para as pnn1euas f'l .
1 euas
d o Vale de Josafá, enquantseu
uma gota de reino-celeste descafeinado faz o resto. Glóri~
aielucinal. Paradisíacos para os piedosos, mefistolina e geeni-
nal para os masoquistas, valhallin e estiginina. . . Tive de
fazer um esforço para não entrar num farmacópio de esquina,
onde a congregação estava ajoelhada devotamente, a dizer
padre-nossos e cheirando teocredenciol como se fosse rapé.
No entanto, me contive - eles simplesmente me pacificariam
com o amnesiol ou a obliterina. Tudo menos isso!
Peguei o transportador até o Parque de Diversões, le-
vando uma tesoura na mão que suava. Entretanto, não pude
fazer o que queria, pois a lona que cobria o carrossel era
co1no aço temperado.
'Trottelreiner está hospedado num quarto alugado na
Quinta Avenida. Não se encontrava em casa quando cheguei,
à hora marcada, mas realmente ele tinha avisado que pode-
ria atrasar-se e me ensinou o assovio necessário para abrir
a porta. Assim, entrei e me sentei à sua mesa, atulhada de
revistas científicas e anotações. Por não ter nada que
fazer, ou talvez para acah11ar o tumulto que ia dentro de
min1. comecei a folhear un1 caderno de notas de Trottelrei-
. t a" ·
ner. " Cosmolíxio", "microlixistno'', "cosmículo", "prof etls
Era evidente que ele tinha estado a anotar termos d~q~e~~
sua louca futurologia. "Oraculário", "sala de ressurretçao '
"'parturista" (recordista de partos). "Obstetrônica", "bo~ba
de obstetron". Essa última expressão tinha sentido para mtm,
con1 referência à explosão demográfica. A cada segundo
nasciam oitenta mil bebês. Ou seriam oitocento~? ~a v;rd~
de, não fazia diferença. "Ideísta", ideante", "tdetgeno ·"
que seriam essas palavras? A última devia ser uma substa::
cia destinada a provocar idéias. "Mentífugo". Purgante c
t 14
rebral? Então era. assim que Trottelreiner passava 0 tempo?
Ah, Professor (tive vontade de gritar), o senhor senta-se
aqui e lá fora o mundo se despedaça! De repente, vislum-
brei um brilho entre os papéis - era o vidrinho, 0 aflitin!
Depois de um momento de hesitação, decidi-me. Cheirei 0
vidro con1 cuidado e olhei ao redor de mim.
Estranhamente, quase nada havia mudado. As estantes
de livros, os catálogos de pílulas, os arquivos, tudo perma-
necia no mes1no lugar. A única mudança que notei foi
que a lareira holandesa no canto da sala, que decorava o
cômodo com o brilho de seus metais esmaltados, havia-se
transformado num simples fogão, velho e preto, com uma
chaminé enegrecida que saía por um buraco na parede. Além
disso, o chão estava um pouco sujo de cinzas. Depus o vi-
drinho rapidamente na mesa - como se me houvessem sur-
preendido em flagrante - pois nesse exato momento Trotte-
lreiner assoviou e entrou.
Falei-lhe sobre o que tinha acontecido no Parque de
Diversões, e ele se surpreendeu. Pediu-me que lhe mostrasse
a tesoura e assentiu co1n a cabeça; depois pegou o vidrinho
e deu uma cheirada, passando-o para mim. Em lugar da te-
soura, eu estava segurando um galinho podre. Olhei para
o Professor Trottelreiner. Parecia preocupado, sem a mesma
autoconfiança da véspera. Colocou a pasta, cheia de bom-
bons conferenciais, e1n cima da mesa e suspirou.
- Tichy - ele disse - você deve compreender que
não há nada de particularmente sinistro nessa expansão dos
mascons . . .
- Expansão?
- Muitas coisas que eram reais há um mê.s ou um
ano. . . bem, foi preciso substituí-las por ilusões, uma vez
que os artigos autênticos estão ficando escassos ou desapa-
receram inteiramente - explicou. Entretanto, percebi que
ele estava preocupado com alguma coisa.
- Há três meses dei uma volta naquele carrossel -
c?ntinuou ele. - Mas não posso garantir que ainda esteja
.ta. Na verdade é bem possível que quando você comprou
sua entrada, o difusor lhe tenha dado uma borrifada de
115
roda-gigante ou carrossel, o que não deixa de ser .
.. . .. . R l racJonaJ
por ser muito n1a1s econom1co. ea mente, Tichy , ,
. d h 'd
das possessões rea1s a uman1 ade está-se reduzindo ' o campo
a um
ritmo alarmante. Antes de me mudar para cá eu m
/ H'l _ orava
numa swte . no novo 1 ton, ma~ nao pude continuar lá
depois que Imprudentemente tomei um pouco de vigila
me encontrei num cubículo do tan1anho de um armário x e
, com
o nariz metido num cocho e uma torneira a me apertar
/ as
costelas, e~quanto ~eus pes . encos~avam no armário (per-
dão, na su1te) segtunte. A m1nha ficava no oitavo andar e
custava noventa dólares por dia. Não há espaço suficiente
e o pouco que resta está acabando!
- Estão sendo realizadas pesquisas com os chamados
expansores espaciais - continuou Trottelreiner. - São de-
nominados também claustro1íticos, mas sem muito progres-
so, pois se a presença de uma grande multidão - digamos,
numa rua ou numa praça - for mascarada de maneira tal
que só vejamos alguns indivíduos isolados, começamos a tro-
peçar naqueles que foram removidos psiquimicamente, mas
não fisicamente. Essa é uma dificuldade que nossos espe-
cialistas até o momento ainda não conseguiram superar!
- Professor, estive exan1inando suas anotações - eu
disse. - DescuJpe-1ne, mas o que é isso? - Apontei a
página onde havia as palavras "multisquizol" e "proliferox
automultigen".
---.:. Ah, isso. . . Bem, existe um plano, o Projeto de
Hintemalização, nome que vem de seu autor, Egbert Hinter.
Já ouviu falar nele? O projeto pretende compensar a cres-
cente falta de espaço interno através do aumento psiquin-
duzido do espaço interno, isto é, da altna, cujas dimensões
não estão sujeitas a quaisquer limitações físicas. Você sabe,
graças à zoofonnalina, un1a pessoa pode tornar-se, ou antes,
sentir-se, temporariamente, uma tartaruga, formiga, pulga ou
mesmo jasmim, com ajuda de um pouco de inflorescinina ~e
botanil . . . subjetivamente, é c1aro. Pode-se também expen-
mentar uma dissociação em duas, três ou quatro p~rtes.
Quando as divisões de personalidade alcançarem um nume-
ro de d ots · d tgttos,
/ · · tnulttdu
surge o efeito ' · N esse ponto,
· d'tnano.
116
. ~ '
117
- Erradísshno! - exclan1ou o Profess
.
nao pod enam .
ser ptores! or. - As coisas
- Ontem mesmo o senhor tinha opin·- d'
eu disse. Iao Iferente .._
- verdade. Mas veja minha situação
É ,
estou-me inteirando do verdadeiro estado de c~·· · so agora
· h · . tsas. E 0 q
ouvi OJe, at, vou contar-lhe. . . Mas, toma. Você ue
golir você mesmo. Pode en-
Trottelreiner tirou da pasta um maço gross d
. 1 , . . o e gul o-
setmas - os re atonas mats recentes, presos co f' .
. m tblhos
multlcores, e entregou-me o amarrado por cima d
a mesa
- Antes de ficar a par desses documentos, cabe '
. . m a-
1
gumas pa1avras exp I1cattvas. A fannacocracia é a psiquimo-
cracia fundan1entada na lubricracia absoluta - este é 0 lema
da nova era. O reinado dos alucinógenos caminha de mãos
dadas cotn a corrupção política, para usarmos palavras bem
claras. E é a isso que devemos o desarmamento universal.
- Então, finalmente vou saber como aconteceu!
- Na verdade, é bem simples. O suborno serve para
duas finalidades: vender uma mercadoria defeituosa ou que
ninguém deseja, ou então, adquirir uma mercadoria de ofer-
ta escassa. Os serviços podem, evidentemente, ser classifi-
cados na categoria das tnercadorias. Para um fabricante, a
situação ideal será aquela em que recebe pagamento sem ter
de entregar nada em troca. Tenho a impressão de que as
reálises começaram com os escândalos dos malculadores e
malversadores. Você deve ter ouvido falar deles.
- Ouvi, mas o que é uma reálise?
- A decomposição, a dissolução da realidade. Ouand?
estourou o prüneiro escândalo sobre os roubos, as ap~opr~-
ações indébitas e os acobertamentos, to da a culpa fot, au-e
rada sobre os computadores. N o ent ano, t a verdade e "dosqu
,. t estavam envo1VI •
poderosos sindicatos e cartets secre os . tornar
O que estava em JOgo . era a terrurb a nagem' ou seJa, em·
os demais planetas apropnados · a' vt·d a h u manad. · 1· Era
um pre·
preendimento vital para um mundo superpovoa o. ·so rnodi..
ciso construir enonnes frotas de foguetes, era prect
118
s de Urano e Saturno. Seria, então, muito
atmosf era
ficar a~ . resolver tudo isso apenas no papel!
mais facJMl uma coisa dessas seria descoberta imediata-
- as
1 _ protestei. .. . .
ment~ De modo algum. Surgem dtftculdad~s. Imprevistas,
, ul s desconhecidos e tornam-se necessanos novos re-
obstac o . , . 'd. d. .
verbas extraordtnanas, cre ttos a tctonats .
. O p ro-
Urano por exemplo, custou 980 b.lh-
cursos,
. 1 oes
d e d o'1 ares, e
1eto ' . . , .
- se sabe se fot movtda uma un1ca pedra.
nao .. ,. . ?
_ Há comissões de vtgt1ancta.
_ Essas comissões não possuem astronautas, e sem a
preparação e o treinamento adequados não se pode, logica-
mente, realizar investigações em outros planetas. Por isso
enviaram-se administradores, plenipotenciários, encarregados,
que por sua vez confiavam inteira1nente nos materiais que
recebiam. . . recibos, fotografias, estatísticas. . . Mas do-
cumentos podem ser falsificados e forjados, ou mesmo ena-
dos pela ação de mascons, o que é mais fácil ainda.
- Ah!
- Exatamente. Imagino que foi da mesma maneira que
começou a simulação de armamentos. Afinal de contas, as
empresas privadas que recebiam encomendas dos governos
também estavam em campo para obter lucros. Embolsaram
milhões e não fizeram nada. Quer dizer, produziam real-
mente os canhões de laser, as rampas de foguetes, os mís-
seis antiantiantiantibalísticos com ogivas múltiplas de sexta
geração, os tanques voadores e os torpedos perfurantes, mas
tudo isso era tropicado.
- Tropicado?
- Psicotropicado, alucinações. Para que realizar testes
nucleares se existem as pastilhas fungílicas?
- O que é isso?
- Pastilhas que, mastigad~:s, permitem ver nuvens em
forma de cogumelo. SeJ·a como for, o processo expandiu-se
co .
mo uma bola de neve. Qual a necessidade de se tremar
~oldados? Em caso de mobilização, basta dar-lhe cápsulas
Instrutoras. E para que treinar oficiais em dispendiosas aca..
demias n1ilitares? Por acaso não existem a estrategina, 0
119
. 1,
tattco generalim, o manóbrio, o . comanderil?
0 , "Estude
Claus·~witz e será general, use estrategma e sera marechal!"
, . ?
1á ouviu esse anuncio.
-Nunca.
_ Não, porque essas drogas são sigilosas, ou pelo me-
nos não estão à disposição do .público em geral. Não é mais
necessário chamar a guarda naciOnal. Tudo que se tem a fazer
é pulverizar mascon adequado pel~ área c.onflagrada e a po-
pulaço verá o desembarque de para-quedistas, o ataque de
fuzileiros navais, tanques ... um tanque de verdade custa atual-
mente c~rca de um milhão de dólares, ao passo que sua aluci-
nação não c.usta mais do que um centésimo de centavo por
pessoa. Um destróier custa dez centavos. Hoje, pode-s·e colo-
car todo o arsenal dos Estados Unidos dentro de um só cami-
nhão. Há tancons, cadaverons, até conflagrons, ·~m estado só-
lido, líquido e gasoso. Ao que parece, existe também uma
invasão marciana, produzida por um preparado especial.
- Tudo em mascons?
- Como não? Aos poucos, o exército real tornou-se des-
necessário. Só restam hoj.e alguns aviões, acho. E para que
servem? O processo ocorreu como uma reação em cadeia, e
não houve meio de interrompê-la. E est·e, amigo, é todo o
segr~do do desarmamento. Mas o desarmamento repr·esenta
apenas uma parte da história. Já viu os novos Cadillac, Dodge
e Chevrolet?
- Claro. Não são ruins.
O Professor estendeu-me o vidro.
. - Tome. Vá até a janela e olhe seus belos carros com
ISSO.
121
reálise vai-n~s ro?bando, uma a uma,. as esferas àe atividade
genuína. Alem dtsso, estamos produzindo toda uma assusta ~~.
dora acumulação de efeitos colaterais. Tudo isso exige a ...
. . . Uti-
lização de desalucmattvos, supermascons e fixadores. . . de
efeito duvidoso.
- O que sao.- ?
_ Os desalucinativos? Un1a nova série. Criam a ilusão
de que não existe ilusão. Por ora, são ministrados apenas aos
doentes mentais, mas o número de pessoas que colocam em
suspe.ita a autenticidade dos ambientes em que vivem está cres-
cendo com grande rapidez. Os amnestivos não exercem nenhum
efeito sobre as sobreidéias ou as duplidúvidas. Pois se tratam,
estas, de fantasias secundárias, ilusões de segundo grau, en-
tende? Não entende? Bem, digamos que uma pessoa imagine
que está apenas in1aginando que não está imaginando. . . ou
vice-versa. Um problema típico para a moderna. psiquiatria,
aquilo a que chamam paranóia cumulativa ou multifásica. No
entanto, o ·mais perigoso são os novos mascons. Pois uma
sobrecarga de todos esses específicos debilitam o organismo.
Os cabelos começam a cair, as orelhas se tornam ósseas, e as
caudas começam a desaparecer novamente . . .
- Reaparecer, o senhor quer dizer.
- Não, desaparecer mes.mo. Já faz trinta anos que as
pessoas voltaram a ter caudas, em resultado do uso da orto-
grafia. Foi o preço que tivemos de pagar por aprender a es-
crever tão de.pressa ...
- Impossível. . . estive na praia, Professor, e ninguém
tinha rabo!
- Não seja bobo. As caudas são mascaradas, natural-
mente, com o anticaudalis, o que, por sua vez, provoca o des-
coloramento das unhas e dos dentes.
- Que também é n1ascarado?
- Naturalmente! Os mascons atuam de miligramas, mas,
computando-se todas as dosagens, uma pessoa normal consome
mais ou menos cento e noventa quilogramas durante um ano.
Isso é fácil de entender, se considerarn1os que é preciso simular
~óveis, instalações, comida, bebida, obediência por part~ d~s
filhos, cortesia dos funcionários públicos, descobertas. c1entt..
122
· ·~- ---------·
S
e de Rembrandts e tesouras, viagens oceânicas vôos
ficas, . pos · - de outras co1sas.
. e unl mtlhao · Nao- fosse '
0 segredo
espactais , . , .
édico, seria .p ubhco e notono que metade da população de
01
Nova York tem m~nchas, cerdas. esver~eadas que lhes cres-
cem nas costas, espmhos t!os ouv1dos, pes chatos e enfisemas,
Iém de dilatação coronanana, de tanto correrem de um lado
;ara outro nas ruas. Tudo isso tem de ser dissi.m ulado, e é exa-
tamente essa a função dos supermascons.
_ Que pesadelo! E não existe remédio, solução para a
situação?
_ Nosso congresso dis·c utirá porvírios alternativos. Os
especialistas afirmam ser necessário uma mudança radical. Até
agora já passaram por nós dezoito propostas.
- Para salvar o ·m undo?
- Talvez possamos usar essas palavras. Mas por que
você não se senta e lambe esses materiais? E além disso . . .
bem, quero lhe. pedir um favor. É uma c<?isa um pouco deli-
cada.
- Farei tudo que puder para satisfazê-lo.
- Eu contava com isso. O fato é que recebi de um co-
Ie.ga, um químico, amostras de dois produtos recentemente sin-
tetizados, da família do vigilax. Como o aflitin, que você já
conhece. Chegaram hoje pelo correio, junto com esta carta. -
Trottelreiner mostrou-me uma carta sobre sua mesa. - Ele diz
que meu restaurativo, aquele que você usou agora mesmo, não
é produto genuíno. Diz textualmente: "O Conselho Federal
de Sugestão, Divisão de Psiquemiologia, com o intuito de des-
viar a atenção dos fatividentes de muitos .fenômenos críticos,
está fornecendo, deliberadamente, e com má-fé, falsos agentes
antialucinatórios, que contêm neomascons."
- Mas isso não faz sentido. O produto que o senh?~ me
deu a inalar funciona, eu próprio senti seus efeitos. Altas, 0
que é um fatividente?
- Um cargo de elevada posição social, que algumas pes-
. ·1' · de ocupar.
soas (entre as quais eu) têm a honra e o pnvt egi 0
.. " .
A fatividencta .' . . d r vi<Yilanimidas ... com
constste no dtretto e usa e· z·d de É claro
.
0 f xm de determinar como estão as cotsa · s na rea r a ··
~- ~- - -·------ ~
--- Claro.
- Cotn relação à droga, o que rn~u amigo ."'h ,
. . de mascons mais ant'a'"' a e. q""
e1a rea 1n1en t e cance I a o e f e:to '-" C
'd h" 1 -
duz1 os a a gum tetnpo, mas que nao oblitera todos I~ Igos, Intra
.~
. 1 . e ... s, pnn
ctpa m·ente os mats rec·ent·es. - O Professor ergueu 0 . -
. _ . VIdro
N esse caso, Isso nao sena um restaurativo, e sim 0 .·
·r1 usono
" . e per
, f'd
1 o
d ,
os mascons, um anttdoto fals.eado, um du- mats
plo reagente. Ou, en1 outras palavras, um lobo em pel·~ de
cordeiro!
- Mas, por quê? Se é neoessário que alguém saiba . ..
- Necessário para o bem-estar geral, para a sociedade
para toda a ht11nanidade, mas não do ponto de vista de certos'
.políticos, certas empresas e até mesmo certos órgãos do go-
verno. Se as coisas estão piores do . que nós, os fatividentes, sus-
peitamos, então eles não desejarão que façamos soar o alarma,
e é por isso que distribuen1 essa droga. Um artifício muito se-
n1elhante ao antigo truque de pr-eparar esconderijos de valores
facilmente detectáveis por um ladrão. . . na esperança de que
ele se satisfizesse com seu primeiro achado e não continuasse
a bus.ca do tesouro real, escondido de maneira muito melhor!
Acho que entendo. Mas o que o senhor quer que eu
faça?
Quero que, enquanto você for se inteirando desses
do-cumentos, cheire o primeiro frasco, e depois o segundo. Fran-
camente, não tenho coragen1.
- Só isso? Com todo prazer, Professor.
O Professor me entr·~gou os dois frasquinhos, puxou uma
cadeira e começou a me ·explicar os su1nários das teses subme-
tidas ao Congresso de Futurologia ..A primeira tese propunha
uma completa reestruturação das atitudes, a ser obtida mediante
a introdução, na atmosfera, de n1il toneladas de reversina, 0
que provocaria uma reviravolta completa nas relações huma-
nas. Na primeira fase, após a dispersão da droga, seriam des-
pre.zadas, da noite para o dia, coisas como conforto, abundância,
comidas s.aborosas, obras de arte e eleoância enquanto a super-
e ' .
.população, a pobreza, a feiúra e a miséria seriam supervalon-
zadas. Na segunda fase, os mascons e os supermascons seriam
totalmente removidos ou neutralizados. Son1ent·e agora, confron..
124
. . r a vez em suas vidas, as
'd d pela pnmel . d
a reah a e, . . d · teriam diante de Sl tu o
das colll · fehc1da e, P015 , .
ta encontranam a . o Poder-se-ia ate atlvar os
P essoas ---es deseJaSSçffi. . ,., d
seus coraço . ar um pouco as condlçoes e
quanto f de detenor _
exacerbativos, a ltn reversina não faz exceçoes em seu
·da No entanto, como a , t. os também seriam considera-
VI • prazeres ero 1c . . d
efeito inversor, os humanidade se vena diante o
, · com o que a 24
dos detestavels, .., . ma vez por ano, e durante
f nçao Por lSSO, u . t'
perigo de ex 1 . . de ser suspenso medlante o an l-
feito da droga tena '
horas, o e . Nesse dia teríamos, sem dúvida alguma, u:n
doto apropnado. d . úmero de suicídios, mas esse feno-
nto acentua o no n . 1 A
125
vav a , em termos gerais, que , . poderia. ser. aplicada a eles uma
terapia adequada nos eutanastos nactona1s. A leitura dessa t
. . ese
fez com que eu .passasse a achar a pnmetra _ francamente b oa.
A terce:ira proposta
.
era de execuçao
,.
a longo
.
prazo e muao
.
mais drástica. Defendta a ectogenese,
, . o protestsmo
, e a tra ns •
ce.p ção universal. Do homem, so restar!a o cerebro, bem acondi-
cionado em duraplast: um globo eq_u1pado com tomadas, plu-
gues e contactos. Tal globo recebena uma carga elétrica pro-
veniente de uma pilha nuclear de maneira que a ingestão·
de alimentos, tornados supérfluos, só ocorreria ilusoriamente
estando programada de maneira adequada. O globo cerebrai
poderia ser conectado com qualquer número de apêndices,
dispositivos, máquinas, veículos, etc. Esse processo de prote-
sismo deveria alongar-se por duas décadas, sendo que durante
a primeira seria obrigatório o cumprimento de substituições
parciais, permanecendo em casa todos os órgãos desnecessários.·
Por exemplo, para ir ao teatro a pessoa soltaria seus módulos
de fornicação e defecação, pendurando-os no armário. Na
segunda década, a transcepção eliminaria as multidões e o
congestionamento das ruas, que são conseqüência da superpo~
pulação. Canais de comunicação intercerebral, por cabos ou
rádio, tomariam inúteis todas as reuniões e encontros, excur-
sões e jornadas para assistir a conferências; enfim, toda neces-:
sidade de locomoção, uma vez que as pessoas se serviriam de
sensores e radares situados em qualquer local onde houvesse
um ser humano, até mesmo nos planetas mais remotos. A pro-
dução em massa abasteceria o mercado com componentes e
acessórios internos, inclusive frenocarris para construção de
pequenas ferrovias domésticas, que permitissem aos cérebros
passear de cômodo em cômodo, por simples diversão. Nesse
momento, interrompi a leitura e observei que os autores desse
projeto evidentemente estavam loucos. Mas Trottelreiner repli-
cou azedamente que eu era um pouco apressado em meus jul-
gamentos. Tínhamos preparado nossas camas, e agora não tínha-
~os outra coisa a fazer senão deitar nelas. De qualquer forma,
d~ss: :le, o critério do bom-senso jamais tinha sido válido na
hxstona da humanidade. .
126
_ Por acaso Averroes, Kant, Sócrates, Newton, Voltaire
oderiam ter acreditado que no século XX o flagelo das cida-
~es, 0 envenenador da~ cidades," o super-homicida e ídolo de
milhões de pessoas sena uma camara sobre rodas, e que as
pessoas preferiri~m mor~er esmagadas den~ro, delas, durante
frenéticas excursoes de ftm-de-semana, ao tnves de permane-
cer, em segurança, dentro de suas casas?
Perguntei ao Professor qual projeto ele apoiaria.
- Ainda não decidi - respondeu. - O problema mais
grave, em minha opinião," é o aumento de nascimentos sub-
terrâneos. Você sabe o que são, nascimentos não autorizados.
Além disso, tenho medo de que durante as deliberações haja
um pouco de fraude psiquímica.
- O que é isso?
- Uma .proposta pode ser aprovada com a ajuda de cre-
dibilhóis.
- O senhor acredita mesmo que possam tentar uma
coisa dessas?
- Por que não? Não. haveria coisa mais fácil do que
bombear um pouco de gás para dentro da sala de conferência,
através do sistema de ar condicionado.
-Mas, qualquer que seja a resolução do congresso, as
pessoas não a aceitarão passivamente.
- Ora, vamos, Tichy. Faz meio século que a civilização
deixou de marchar espontaneamente. Há cem anos atrás, um
certo Dior ditava os cânones da moda feminina. Hoje em dia,
esse tipo de regulamentação abarca todos os campos da vida.
Se o protesismo for adotado, eu lhe garanto que dentro de
dois anos as pessoas considerarão vergonhoso e indecente pos-
suir um corpo macio, .peludo e suarento. O corpo precisa ser
lavado, desodorizado e cuidado, e mesmo assim se corrompe,
ao passo que numa sociedade protética pode-se conectar com
facilidade as mais belas maravilhas da moderna engenharia.
Que mulher não desejará ter iodetos de prata em lugar de
ol,hos, seios telescópicos, as.as de anjo, pernas iridescentes e
pes que a cada passo emitam sons melodiosos?
- Ouça uma coisa - eu disse . .:.,_ Vamos fugir daqui.
Podemos juntar uma boa quantidade de oxigênio e provisões
127
e nos escondermos em algum ponto das Montanh R
Lembra-se dos esgotos do Hi1ton? Por a.c aso estáva: <>chosas.
- Está falando sério, Tichy? _ perguntou °spmal ali?
0
como se hesitasse. rofessor
Acidentalmente, levei o frasco novamente ao n ·
h avta esqueci'do compI etamente que estava com ele na
· anz. Eu
-
O cheiro acre encheu-me os olhos de lágrimas. Espirrei t mao:
. d b . lh , ornet
a espurar e, quan o a n os o · os a sal.a estava transformad
O Professor Trottelreiner ainda falava~ eu escutava sua vo:·
mas, fascinado com a mudança, n.ãQ prestava mais atençã~
às suas palavras. As paredes estavam agora imundas; 0 céu
azul havia adquirido matizes pard~centos. Algumas vidraças
tinham desaparecido, enquanto as !estantes estavam cobertas
por uma espessa camada de fulige.QI gordurosa, com estrias cau-
sadas pelas chuvas.
Não sei por que, mas o que mais me espantou foi ver que
a elegante pasta do Professor, aquela na qual ele tinha trazido
os materiais da conferência, tinha-se transformado numa bolsa
bolorenta e velha. Fiquei estupefato. Tinha medo de olhar para
ele. Olhei furtivamente debaixo da mesa. Em lugar de suas
calças bordadas e de suas polainas magisteriais havia duas per-
nas artificiais casualmente cruzadas. Entre os tendões metálicos
dos pés haviam-se acumulado pedacinhos de cascalho e lama
das ruas. A ponteira de aço, no lugar do calcanhar, brilhava
e estava desgastada pelo uso. Deixei escapar um gemido.
-Está com dor de cabeça, Tichy? Quer uma aspirina?-
perguntou Trottelreiner, em tom compassivo. Respirei fundo,
rilhei os dentes e olhei para cim~.
Não sobrava muita coisa de seu rosto. Em suas faces en-
covadas estavam pegados pedaços de esparadrapo roto, que não
era mudado há muito tempo. E evidentemente ele ainda usava
óculos, embora uma das lentes estivesse quebrada. No pescoço,
na abertura deixada por uma traqueotomia, havia sido inserido,
sem muito capricho, um codificador vocal, que se movia para
cima e para baixo enquanto ele taJava. Uma jaqueta esfarrapada
e
pendia sobre seu torso, muito magro, ele tinha do lad~ es-
querdo um buraco tapado com u~a película de plástico lettoso,
através da qual se viam as batid.as espasmódicas e negro-azula-
128
coração cheio de costuras e pontos metálicos. Não
das
. de um · ·
ão esquerda; a dtretta, seguran do um 1apts,
' · era uma
Vl ,sua ~e latão, coberta de azinhavre. No colarinho estava
protese . 1 , · h·
da U ma espécie de etiqueta tosca, em que a guem tm a
costura ·
. com tinta vednelha: "Descong. 119/859 - 21 transpl.
escn1o
_ 5 rejeiç." Fiquei olhando, de olhos arreg~lado~,. enquant~
Professor, quase refletindo meu horror, se tmobihzava subt-
0
tamente atrás de sua mesa_. ..
_ Eu .. eu mudei, não foi? .;___ perguntou, cem voz rou-
fe.nha.
Não me lembro de nada, Ínas quando dei .por mim estava
com a mão na maçaneta da porta.
- Tichy! O que está fazendo? Volte! Tichy! - ele gri-
tava desesperado, tentando levantar-se. A porta se abriu, mas
ao mesmo tempo escutei um terrível estrépito. O Professor
Trottelreiner, perdendo o equilíbrio ao se levantar apressada~
mente, havia caído ao chão, enquanto ganchos e dobradiças
soltavam-se é estalavam como ossos. Levei comigo a imagem
de seus esperneies agônicos, dos agitados cotos . de metal que
arrancavam fasquias do assoalho, do saco escuro, do coração
latejando desesperadamente por trás do plástico rasgado. Saí
correndo pelo corredor como se estivesse sendo .perseguido por
cem demônios. · . .
O edifício estava cheio de gente, pois era hora do almoço.
Dos escritórios saíam funcionários e secretárias, conversando
·entre si enquanto se dirigiam para os elevadores. Abri caminho.
a cotoveladas em direção a uma das portas abertas, mas evi-
dentemente o carro do .elevador ainda não havia chegado.
Olhando pelo poÇo, compreendi imediatamente por que era . tao
comum ver pessáas ofegando. o cabo pendia solto no vazio
e as pessoas trepavam .por ele~ ágeis como macacos, com. uma
habilidade que demonstrava enorme prática. Iam em direÇão
ao bar da cobertura, e conversavam animadamente, apesar do
suor que gotejava em suas testas. Recuei lentam·ente, e desci
correndo as escadas em espiral em torno do poço, cujas pare-
d:s. eram afanosamente escaladas pelos empregados dos escri-
tonos. · Alguns an d.ares ma1s
. ab atxo,
. d.1m1nut
. , um pouco mtnha·
.
cornda. De todas as portas ainda saía gente aos borbotões.
129
·f' · não havia senão escritórios, evidentemente. Ao
Naquele e dI ICIO d
havia uma janela aberta, que ava para a rua
fim do corredor d' . d I d .
. 1 d dela fingindo estar en ue1tan o o aço a gravata
Parei ao a o ' . · - d - '
e olhei .para baixo. De início tive a tmpressao e .que nao havia
·vente na rua mas o que acontec1a era que eu
nen hum se r Vl ' .
· 1
s1mp esm ente não havia reconhecido os · transeuntes.
.
0 esplendor costumeiro havia ~esaparectdo sem deixar
vestígios. As pessoas caminhavam sozinhas ou aos pares, ves-
tidas em farrapos remendados. e cheios de buracos; Muitas
tinham bandagens e aparelhos de gesso, e algumas so usavam
roupa de baixo, o que me permitiu ~o~statar que realmente
eram manchadas e tinham cerdas, pnnc1palmente nas costas.
Algumas pessoas tinham evidentemente recebido autorização
para deixar o hospital e resolver algum assunto urgente. Am-
putados e paraplégicos seguiam pela rua sobre tábuas com ro-
dinhas conversando e rindo em voz alta. Vi mulheres com
enormes' orelhas de elefante e homens com chifres nas cabe-
ças, carregando jornais velhos, montes de palha e sacos de
·estopa com altivez e orgulho. Os que gozavam de melhor saúde
e que estavam mais bem conservados corriam a galope pelo
meio da rua, pavoneando-se e batendo os pés, como se mudas-
sem de marcha. Entre a multidão predominavam robôs, arma-
dos de atomizadores, dosímetros, pulverizadores .e aerosóis,
cuidando de que cada indivíduo recebesse sua ração de vapo-
rização. Mas não se limitavam a isso - atrás de um casal
jovem, que caminhava de braços dados (os dela estavam co-
bertos de escamas, os dele de pústulas), seguia um velho e
pesado robô, que metodicamente lhes batia nas cabeças com
um regador. Embora rilhassem os dentes, pareciam não prestar
~enhuma. atenção. Por aca~o aquilo seria deliberado?
· · Mas. e_u já não estava mais e.m condições de refletir. Aper-
tando as mãos contra o peitoril da janela; olhava para a
cena que se desenrolava na rua, via aquela azáfama, aquele movi-
~~nto, e, petrificado de espanto, perguntava-me se eu seria a
umca testemunha daquela cena. Se eram meus os únicos olhos
qu~ .assistiam àquilo. Mas não, a crueldade daquele espetáculo
~xJgta. pelo menos outro observador, seu-criador, aquele que, sem
Jntervu naquele drama sinistro, lhe desse sentido. Um patro-
130
-- -·--- ----- ------------ ...- -· ·- -· - · ··-4'" ·-- - ·---- - ..... _ ...
cinador, um empresário
, da decrepitude _ um vampi' ro , por-
tanto - mas alguem.
Um , p~queno sintenório corria entre as pernas de uma
anciã energtca, fazendo-a_ tropeçar continuamente, até que ela
caiu com o rosto no chao, levantou-se de novo, continuou a
caminhar e foi derrubada novamente; a cena continuou assim
ele mostrando uma persistência mecânica, e ela revelando ener~
gia e determinação, até desaparecerem de vista. Muitos dos
robôs olhavam de perto os dentes dos transeuntes, talvez para
verificar o efeito das substâncias que iam pulverizando, embora
suas intenções não parecessem ser exatamente essas. Na esqui-
na havia um grupo de robôs transviados, sem terem o que fazer.
De um beco qualquer saíam magotes de molimolários, caftenói-
des, dissimuladores e manicóides; pela calçada avançava um
enorme robô-lixeiro, arrebanhando com as mandíbulas de sua
pá tudo quanto encontrava pelo caminho; junto com os "de-
funtinhos" e auto-abortos atirou para dentro de sua caçamba
uma velhinha que andava distraída.
Mordi a mão, esquecendo-me de que ainda segurava o
outro frasco, o segundo, e um fogo ardente me abrasou a gar-
ganta. Tudo se esfumou, uma bruma brilhante desceu sobre
méus olhos como uma venda, que uma mão invisível começou
a levantar lentamente. Assisti, petrificado, à transformação que
estava o:::orrendo, compreendendo com um sobressalto de pres-
sentimento que a realidade estava agora a revelar mais uma
de suas camadas. Evidentemente, o falseamento da realidade
já tinha começado há tanto tempo que mesmo o antídoto mais
poderoso não podia fazer mais do que eliminar os véus sucessi-
vamente afastando-os mas sem conseguir atingir a verdade.
' '
Tudo se tornou mais claro, branco. As calçadas estavam
cobertas de neve, endu reei da, pisada .por centenas de ~és, en-
quanto a rua mostrava uma cena de inverno, descolonda. As
lojas e os anúncios tinham desaparecido e ao invés de. vidros
viam-se nas vitrinas tábuas podres pregadas em cruz. O mverno
reinava entre os edifícios embolorados e sem cor. Longas esta-
Jactites pendiam dos postes de iluminação. Pelo ar ~elado . cor-
ria um cheiro azedo e sobre a rua pairava uma nevoa cmza-
azulada como o céu. Pilhas de neve suja ao longo das paredes,
13 L
133
do óculos escuros. Parecia ~lhar para mim com divertimento
ou comiseração. Eu não sabia ao certo.
_ Por favor - ele disse - sente-se, po1s 1sso vai de-
morar um pouco. . .
Sentei-me. A sala, com suas VIdraças Intactas, era um
oásis de limpeza e calor - não. havia correntes d,e ar gelado,
montes de neve nos cantos. Havia um bule de cafe fumegante,
um cinzeiro um dictafone. Da parede atrás da mesa pendiam
al2Uns quad,ros coloridos, representando nus femininos . Ocor-
re~-me a idéia absurda de que aqueles corpos não tinham es-
camas ou cerdas.
- E então, divertiu-se? - perguntou ele de repente.
E veja que não pode se queixar de nós! A melhor ·enfermeira,
0 único fatividente das vizinhanças, todos fazendo tudo quanto
podiam para ajudá-lo, mas não, você tinha de· sair por aí a fa-
rejar a "verdade" por conta própria!
- Eu? - contestei, surpreendido com suas palavras. An-
tes que pudesse pôr em ordem meus pensamentos, digerir o que
ele estava dizendo, continuou:
- Por favor, nada de mentiras. f: tarde demais para isso.
Você pensou que estava sendo tremendamente esperto, pro-
clamando todas aquelas críticas, aqueles seus protestos, aque-
las suspeitas sobre " alucinação" - " esgotos", " ratos do hotel" ~
"selas"} "cavalgar". E por acaso pensou mesmo que essas in-
vencionices primitivas bastariam? Só mesmo um descongelado
pode ser tão inacreditavelmente estúpido!
Eu o escutava boquiaberto. Dei-me conta, repentinamente,
de que qualquer palavra de defesa seria inútil, pois ele jamais
acreditaria em mim. Havia tomado minhas autêntiCas obses-
sões por uma espécie de manobra. Em outras palavras, aquela
c.onversa anterior, em que me revelara os segredos da Procrus-
tJcs, Inc., era apenas para me induzir a falar. Era por isso que
tinha usado aquelas palavras que na época tinham me deixado
tão perplexo. Pensaria ele, porventura, tratar-se de senhas -
para. iniciação em alguma conjuração psiquímica? Ele havia en-
tendido meu medo das alucinaç6es como uma aitude táticà,
u.m ardil ... Realmente, era tarde demais para explicações, prin-
Cipalmente agora que as cartas estavam na mesa. ··
134
or mim? - perguntei.
Esperava p . . . . t
- t Apesar de toda sua Intctatlva e a tvt-
- Natura~menoes. de exercer pleno controle. Não se pode
ca deixam d
dade, nun h ma rebelião pssoal venha alterar a or em
permitir que nen u
·mperante. · t b'
l O velho moribundo no corredor - pensei - . am. . eml'
. t do sistema de barreiras para me conduzu ate a 1.
tinha feitO par e . ..
_ Uma bela ordem - comentei. - E o senhor e o
chefe, não é? Meus parabens. . . __ . .
_ Guarde seu sarcasm<> para uma ocas1ao ma1s apropna-
da! _ ele disse entre os dentes. Eu havia conseguido tocar num
ponto fraco. Ele estava irritado.
- O tempo todo você andou procurando alguma "trama
diabólica". Bem, pe.rmita-me dizer, meu caro descongelado pre-
sunçoso, permita-me satisfazer sua curiosidade de uma vez por
todas: não existe nada disso. Compreende? Se mantemos essa
civilização narcotizada é porque de outra maneira ela não se
agüentaria. É por isso que não pode ser despertada de seu sono.
E é por isso que você vai voltar para e.la. Ah, não há nenhum
motivo de medo . . . para você, não dói nada, e será até agra-
dável. Para nós é muito mais difícil, já que temos de nos manter
despertos, a fim de cuidar de vocês.
- Nobre sacrifício! - eu disse. - Para o bem de todos
sem dúvida. '
. - Se você dá valor a essa importante liberdade de pensa-
mento - ele replicou friamente - aconse.l ho-o a deixar de
lad~ as observações irônicas, pois com isso só conseguirá perder
mais depressa essa liberdade.
-.Muito .l?·em, então. O senhor tem mais alguma coisa
a me dizer?· Estou escutando.
, - Neste momento sou a única pessoa em todo o estado
a1em de voe e,
~
que pode ver! O que estou usando no rosto? - '
perguntou de .
madilha. repente, como se quisesse me pegar nun1a ar-
- óculos escuros.
-, .Então' voce" ve" tao
- bem quanto eu! - ele disse. -
0
quimico que forneceu a Trottelreiner aqueles antídotos já
135
seio da sociedade, e já não alimenta a menor
volt ou p ara O " .
suspeita. Ninguém deve suspeitar. É claro que voce e?tende Isso.
_ Um momento - eu disse. - Parece que e realmente
importante para o senhor me convencer. Mas, por quê?
_ Os fatividentes não são monstros! - ele respondeu.
_ Somos prisioneiros da situação, encurralados num canto,
obrigados a jogar com as cartas que a História nos pôs nas
mãos. Distribuímos paz e satisfação da única maneira que resta.
Mantemos em equilíbrio instável aquilo que, sem nós, mergu-
lharia nas vascas da agonia universal. Somos os últimos Atlas
deste mundo. E se ele tem de perecer, que pelo menos não
sofra. Se a verdade não pode ser alterada, pelo menos pro-
curamos escondê-la. Este é o último ato humanitário, a última
obrigação moral.
. - Quer dizer que nada pode ser feito? Absolutamente
nada? - perguntei.
- Estamos no ano 2098 - ele disse - com 69 bilhões
de habitantes registrados legalmente e aproximadamente 26 bi-
lhões clandestinos. A temperatura média anual baixou quatro
graus. Dentro de quinze ou vinte anos haverá geleiras aqui.
Não temos nenhum meio de impedir ou deter seu avanço.
Tudo que podemos fazer é manter esse fato em segredo.
- Sempre achei que haveria gelo no inferno - ·eu disse.
- Quer dizer, então, que vocês pintam as portas do inferno
com belos desenhos.
- Exatamente - respondeu Symington. - Nós somos
os últimos samaritanos. Alguém tinha de exercer autoridade so-
bre você. E · por acaso eu sou esse homem.
- Sim, acho que me lembro: ecce homo! - eu di.sse. -
Mas, espere. . agora percebo o que o senhor deseja. Quer me
converter, quer que eu aceite seu papel de .' .. anestesista esca-
tológico. Quando não há pão. .. . que comam ópio! Mas não
entendo por que o senhor está tão interessado. em minha con-
versão, já que vou esquecê-la completamente. Se os métodos
que .o senhor emprega são bons, para que tantos argumentos e
ex?hcações? Algumas gotas de credencial, um pequeno es-
g.utcho nos olhos, e aplaudirei todas as suas palavras com entu-
Slasmo, o senhor terá toda minha aprovação, minha estima.
136
orem bons. No entanto, aparentemente nem
métodos f . 1 .
se esses está convenc1do do valor de es, un1a vez que
hor mesmo , . . d I
o sen egar palavreado e retonca vazia, gastan o pa a-
. ua a empr invés de lançar mão do vaponza . d JA
contm . or paren-
s comigo ao . f d . , . -
vra ·b muito bem· que o tnun o a psiquimtca nao passa
temente, sa e , . . d
ue ficara soZinho no campo, um conquista or
de facha da, e q . . .
de azia. Sim, pretendia convencer-me pnmeno, para
sofreudo . · - · f ·
· tirar-me no esquecimento, mas Isso nao va1 unctonar.
depOIS a . - d d.
· lhe que continue com sua nobre m1ssao, que se •e. tque
Th~ .
a essas prostitutas na parede, que suavtzam sua tarefa de ~al-
vação. Gosta delas como eram antigamente, sem cerdas, hetn?
o rosto de Symington estava contorcido de raiva. Pôs-se
de pé de um salto, gritando:
- Tenho também outras drogas, além das delí.cias do
paraíso! Existem também infernos químicos.
Levantei-me também·. Symington estendia a mão em dire-
ção ao botão de sua mesa quando gritei:
-. Iremos juntos!
Saltei contra sua garganta. O impulso nos impeliu, como
eu tinha planejado, em direção à janela aberta. Ouvi passos, e
mãos de ferro tentaram me afastar de Symington, que se con-
torcia e se debatia. Mas já estávamos junto do peitoril, e eu o
empurrava, juntando minhas últimas. forças, antes de pular.
O ar assoviou em nossos ouvidos, caíamos dando cambalhotas,
ainda engalfinhados, aproxim·ando-nos vertiginosamente do solo.
Preparei-me para um impacto . mortal, que me esmagaria os
ossos, mas em lugar de me eSiborrachar contra o cimento, como
eu esperava, caí em algu.m a coisa mole, espirraram ondas ne-
gras, e as águas fedorentas e abençoadas cobriram minha ca-
beça. Vim à tona no meio do esgoto, limpando os olhos, afo-
gando-me na água hedionda, mas feliz, feliz ...
. O Professor Trottelreiner, despertado de seu sono por meus
gntos angustiados, inclinou-se sobre as águas negras e me es-
tendeu - como uma mão fraterna - o cabo de seu guarda-
chuva. enrolado.
O trovão das bombas de ATP estava silenciando. Os ge-
rentes do Hilton continuavam dormindo, numa fila de cadeiras
infláveis (infláveis-infla.grantáveis, os concubalões!)' e as se-
137
... -· .
Novembro de 1970
FIM
138
•'
·--·----·-"' -
..... _
....__.........
A seguir:
TERRA IMPERIAL
ARTHUR CLARKE