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oJNCRfVEL CONGRESSO
DE FUTUROLOGIA
Um salto para o futuro. Qual futuro?
Este ou outro semelhante, mas um fu-
turo admissível e verossímil? O romance
de Stanislaw Lem procura, através de
um argumento apaixonante e original,
dar a possível resposta a uma pergunta
de todos os dias. Como será o futuro?
Num país imaginário, Costarricana,
num Hotel imaginário (aliás chamado
Hilton) realiza-se num futuro re-
lativamente próximo o Incrível Con-
gresso de Futurologia que dá origem ao
livro. Nas ruas, a revolução, a desordem,
há feridos e mortos. O protagonista, ljon
Tichy, membro do~ongresso, é ferido .. --~ ·-'
·' gravemente e posto em hibernaç~o . . : .:;Jz!~~::<~:-;:1
até o ano de 2039. Descobre entao o ~:i~··.-~. .

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mundo do século XXI , quando todos osY?~·;i,~.


problemas podem ser resolvidos pe!a '~- )~~':~ ·
droga, assegurando-se, assim, o poder e · ,:)>.
o controle sem violência dos cidadãos.
As palavras mudaram d_ e sentido e o ha-
bitante do século anterior-o nosso-ali su-
. } bitamente inserido, ingênuo e ignorante
dos costumes novos e das novas ter-
minologias, é vítima das mais perigosas
armadilhas. Entre a sátira e o panfleto
Stanislaw Lem escreveu com o lncrív~--­
Co~g~esso de Futu_rologia um livro apo-
cal1pt1co. Obra de f1cção científica e, não
apenas isso, obra de humor, por vezes
neg~o : uma advertência séria que se lê
sornndo.

Leia

ENCONTRO COM RAMA


ARTHUR CLARKE
(2.a edição)

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O INCRÍVEL
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CONGRESSO DE
FUTUROLOGIA
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ST ANIS LAW LEM
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O INCRÍVEL
CONGRESSO DE
FUTUROLOGIA
(Das Memórias de ljon Tichy)

Tradução de
DONALDSON M. GARSCHAGEN

EDITORA
NOVA
<~~ FRONTEIRA
------
. ~

. Título original em polonês:


KONGRES -FUTUROLOGICZNY

© 1971 by Stanislaw Lem

Direi tos adquiridos para a língua portuguesa pela


EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A.
Rua Barão de Itambi, 28 - Botafogo - ZC-01 - Tel.: 266-7474
Endereço Telegráfico: NEOFRONT
Rio de Janeiro RJ. _

Capa:
Rolf Gunther Braun
\ Escultura c!e Geza Toth

Diagramação:
Valdecir Rodrigues de Mcllo
Revisão:
Alvaro Tavares

FICHA CATALOGRAFICA
(Preparada pelo Centro de Catalogação-na-fonte do
S indicato Nacional dos Editores de Livros, RJ)

Lem, Stanislaw.
L563i O Incrível Congresso de Futurologia; tradução de Donaldson
M. Garschagen. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1977.
140 p.

Do orig:nal em inglês: The Futurological Congress.

1. Ficção científica polonesa I. Título


CDD- 891.8 -3087l>
77-0202 j • I
.' CDU - 884-311 .9

--··~~-- --
. -

..
. I

0 VIU CONGRESSO DE FUTUROLOGIA realizou-se na Costa


Rica. Para dizer a verdade, eu nunca teria ido a Nounas
se não fosse o Professor Tarantoga me dar a entender chl-
ramente que todos esperavam que eu comparecesse ao con-
clave. Tarantoga disse também, cotn mordacidade, que hoje
em dia a Astronáutica transformou-se numa maneira de fu-
girmos aos problemas terrestres. Quer dizer, quando uma
pessoa está enterrada em problemas até a raiz dos cabelos
põe-se a caminho das estrelas na esperança de que o pior
aconteça - e seja resolvido - durante sua ausência. E na
verdade eu não poderia negar que mais de uma vez, p.r:in-
cipalmente quando regressando de uma longa viagem, olhei
ansiosamente pela escotilha receando ver a Terra transfor-
mada em alguma coisa parecida com uma batata assada.
Por isso, não me fiz de rogado com Tarantoga, embora não
deixasse de observar que, na verdade, pouco entendia de
futurologia. Contudo, ele replicou que, em geral, ninguém
entende de combate a incêndios, mas nem por isso cruz~-
mos os braços ao ouvir alguém gritar "Fogo!". ·
O Conselho da Associação Futurológica havia escolhi-
do a Costa Rica como sede de sua reunião anual porqu.e
o encontro seria dedicado ao problema do catastrófico cres-
cimento populacional e aos meios de resolvê-lo. A Costa
Rica apresenta atualmente o maior índice de crescimento
demográfico do mundo. Era de se presumir que a proximi-
dade daquela crise viesse a inspirar nossas deliberações, fa-
zendo com que chegássemos. a conclusões corretas. Por
. --- ...._

---------
~--·--------

amor à verdade, deve-se dizer .


o tenham dito - que o no - a.tnda que só os cínicos
Hilton em Nounas p . vo. hotel, construído pela cadeia
' arecta vazto com v f' .
acomodar todos os fut '1 ' . agas su ICientes para
· uro ogos assim c d
JOrnalistas credenciados U ' orno uas vezes mais
p1etamente demolido d. ma vez que esse hotel foi com-
rência não urante o transcurso de nossa confe-
. ' posso ser
d tsser que 0 estabel . acusado de fazer publicidade d I
e e se
Tais palavras tê ectmento e:a. de primeiríssima ordem ..
m em meus 1abtos particular importância
porquanto sou, desde criança, um verdadeiro sibarita e so~
mente o senso do dev b ·
·d 1 er me 0 ngara a abandonar o conforto
o ar pelos tormentos do espaço exterior.
O Hilton costarriquenho projetava ao céu nada menos:
que. cento e seis andares, desde sua plataforma de quatro
pa~tmentos. Na cobertura dessa estrutura inferior achavam-
se I~stalados, além de quadras de tênis e piscinas, o salário,
kartodromos, carrosséis (que serviam, simultaneamente, co-
mo roletas), o stand de tiro, no qual se podia disparar con-
tra qualquer pessoa que se desejasse - em efígie - desde
que se fizesse um pedido com vinte e quatro horas de an-
tecedência, e, por fim, uma sala de concertos, equipada com
instalações de gás lacrimogêneo, para o caso de a platéia
portar-se mal. A mim tocou um apartamento no centésimo
andar, do qual eu só podia contemplar a camada pardo-azu-
lada de smog que envolvia a cidade. Certas instalações do
hotel me surpreenderam - uma barra de ferro de três me-
tros de comprimento, num canto do banheiro jaspeado, por
exemplo, ou a capa de camuflagem cáqui, no armário, ou
ainda o saco de bolachas duras debaixo da cama. No ba-
nheiro, além das toalhas, pendia um enorme rolo de corda
de montanhismo; nas portas, havia um aviso, que notei da
primeira vez que enfiei a chave na fechadura Y ale, que
dizia: "A gerência da cadeia Hilton garante que não há
BOMBA neste apartamento."
Como é notório, hoje em dia há duas categorias de cien-
tistas: os sedentários e os peripatéticos. Os primeiros se de-
dicam às investigações da maneira tradicional, ao passo que
seus colegas mais inquietos participam de toda espécie de

6
, _ -- ··- --- -

. , . . , . . . . '

semtnanos . e SimpOSIOS InternaciOnaiS. Ü cientista deste se-


gundo tipo pode ser facilmente reconhecido: traz à lapela
um cartão com seu nome, título e universidade em que atua,
e no bolso um folheto com horários de pousas e decolagens
das linhas aéreas; além disso, a fivela de seu cinto (e tam-
bém os fechos de suas valises) são de plástico, nunca de
metal, a fim de não acionarem desnecessariamente os alar-
mas dos dispositivos que, nos aeroportos, passam em revista
·os passageiros, em busca de armas. Esses cientistas peripa-
téticos se mantêm em dia com a literatura especializada de
seus diversos campos lendo em ônibus, salas de espera, aviões
e bares de hotel.
Desconhecendo - por motivos óbvios - muitas par-
ticularidades da cultura e dos costumes terrestres dos últimos
anos, eu mesmo fiz com que disparassem as sirenas de alar-
ma nos aeroportos de Bangkok, Atenas e da própria Costa
Rica: devo declarar que tenho seis dentes obturados com
amálgama. Estava resolvido a substituir essas obturações por
outras, de porcelana, em Nounas, mas alguns fatos imprevis-
tos me impossibilitaram de fazê-lo. No que tange à corda,
à barra de ferro, aos biscoitos sob a cama e à capa de ca-
muflagem, um dos membros da delegação norte-americana
explicou-me pacientemente que hoje em dia os hotéis tomam
precauções desconhecidas antigamente. Cada um desses ob-
jetos colocados nos apartamentos, disse-me ele, aumenta ex-
pressivamente a expectativa de vida de seu ocupante. Que
tolice cometi ao não dar maior atenção a essas palavras!
O congresso deveria ter suas sessões iniciadas na tarde
do primeiro dia, e logo de manhã recebemos programas com-
pletos, muito bem impressos e elegantemente dispostos numa
pasta de boa qualidade, com inúmeras tabelas e ilustrações.
Fiquei particularmente impressionado com um bloco de
cupons destacáveis, azuis, cada um deles com a seguinte
inscrição: "Válido para uma Cópula".
As modernas conferências científicas, obviamente, so-
frem também com a explosão demográfica. Como o número
de futurólogos cresce na razão direta do aumento da popu-
lação mundial, seus conclaves são marcados pelo número

·7
. d articipantes e pela confusão. A apresentação
excesstvo e P stá inteiramente fora d e cog1taçao, · - e elas têm
oral das teses e ,. . . _ .
.d com antecedencta. Todavta, nao houve tempo
de ser l 1 as -
· · ·sa alguma naquela manha, porquanto a gerência
nara 1er co1 . . ,.
· .,: f ceu bebidas gratuitamente. Essa pequena cenmonia
nos o ere .
· eu normalmente exceção fetta ao fato de haverem
transcorr ' _
· t' d alguns tomates podres contra a delegaçao norte-ame-
a 1ra o d . .
ricana. Eu estava calmamente toman o meu mart1n1 quando
·soube por Jim Stantor, conhecido repórter da U . P . I., que
naquela madrugada tinham sido . seqüestrados um ~ônsul e
um adido da Embaixada Amencana na Costa R1ca. Em
troca dos diplomatas, os seqüestradores estavam exigindo a
libertação de todos os prisioneiros políticos. Para darem
maior peso & exigência, esses extremistas já haviam enviado,
à Embaixada e a vários órgãos do governo, um dente de
cada um dos reféns, prometendo uma escalada anatômica
.no caso de suas exigências não serem atendidas. Ainda a~­
. sim, esse contratempo não perturbou a atmosfera cordial
. desse coquetel matutino. Dele participou, aliás, o próprio
embaixador dos Estados Unidos, que pronunciou breves pa-
lavras acerca da necessidade de cooperação internacional -
.breves teriam mesmo que ser, porquanto estava rodeado de
.seis guarda-costas à paisana, muito corpulentos, que manti-
veram suas armas apontadas para nós todo o tempo. Cum-
pre-me confessar que essa situação me deixou bastante
des~oncertado, principalmente quando o moreno delegado da
lndta, que estava a meu lado, desejou assoar o nariz e pro-
curou o" l~nço no bolso da calça. O porta-voz da Associação
Futurolog1ca asseguro u-me, postenormente,
· que essas medt- .
das eram a um só t empo necessanas " . e humanitárias. Expli-
cou-me ele que os guard a-cos t as h OJe . em d1a . empregam ar-
mas de grosso cal·b1 re e b aixo · poder de penetração do tipo
que ?~ agentes de segurança levam· a bordo dos a~iões co-
merctats, e graças às . .
ridas N quais pessoas Inocentes não ficam fe-
. o passado ocorria com f .. " .
prostrava 0 sup t' requencta que a bala que
do seu curso os o autor
. . de um a entad o trespassava, segmn-
t .
, mats cmco ou s · .
dando de seus p " . eis pessoas que, embora cut-
ropnos afazeres, encontravam-se diretamente
.
·8
- . . -- ··-· ·- -- -·-- ---·--- - ------ - - - ~

at~ás dele. Ainda assin1,. ver um homem cair a nosso lado,


vítima de armas de grosso calibre, não deixa de ser uma
experiência desagradável, mesmo que o fato decorra, com
.efeito, de um mal-entendido, 0 qual termina com a. troca
de notas diplomáticas e desculpas oficiais.
No entanto, ao invés de procurar explicar essa espinhosa
questão da balística humanitária, talvez convenha que eu ex-
plique a razão pela qual não pude me inteirar, durante todo
aquele dia, dos materiais que seriam apresentados na con-
ferência. Direi então que, depois de mudar apressadamente
minha camisa, respingada de sangue, fui ao bar do hotel a
fim de fazer uma refeição, coisa contrária a meus hábitos.
Costumo comer um ovo cozido pela manhã, mas ainda está
por ser construído o hotel no qual se possa encomendar,
para servir no apartamento, um ovo que não esteja revol-
tantemente frio. Isso se deve, sem a menor sombra de dú-
vida, às dimensões sempre crescentes dos hotéis metropoli-
tanos. Se dois quilômetros separam a cozinha de um
apartamento, nada fará com que aquela gema chegue lá
quente. Pelo que sei, os peritos do Hilton levaram o pro-
blema em consideração, chegando à conclusão de que a úni-
.ca solução estaria em instalar pequenos ascensores de ser-
viço, que se moveriam a velocidades supersônicas; mas é
.evidente que o sonic boom, ou seja, a explosão provocada
pela ultrapassagen1 da barreira do som, dentro de um edifí-
cio fech ado, rebentaria os tímpanos de todos quantos ali
.estivessem. E claro que se1npre se poderia fazer com que a
cozinha automática enviasse os ovos crus, para serem cozi-
dos por um camareiro rob:) no próprio apartamento, mas
por fim isso poderia fazer com que os hóspedes se dispu-
·sessem a entrar e sair do hotel com sens próprios galinheiros.
Por isso, rumei em direção ao bar.
Mais de noventa e cinco por cento dos hóspedes de
um hotel são delegados de alguma conferência ou conven-
·ção. O turista individual, o hóspede solitário, sem um cartão
na lapela e sem uma valise atulhada de programas e memo-
randos, é mais raro que uma pérola no deserto. Além de
nosso próprio Congresso, realizavam-se simultaneamente na
·.. .9
. Conselho Plenário de Veteranos de Protestos
Costa R tca 0 · L'b
. a Canvenção dos Editores de Ltteratura 1 erada
E stud antts, .
e a reunião da Sociedade Filumenista ( colectonadores de
caixas de fósforos). Via de regra, aos membros de uma
mesma organização tocam cômodos situados em um / . único
andar, mas a gerência, aparentemente com o propostto de
me homenagear, houve por bem oferecer-me um apartamen-
to no centésimo andar. Esse pavimento possuía seu palmeiral
próprio, no qual uma orquestra feminina/ executava. Bach,.
ao mesmo tempo em que realizava um numero habilmente
coreografado de strip-tease coletivo. Eu poderia muito bem
passar sem isso, mas lamentavelmente não havia vagas e tive
de me resignar a ficar onde me colocaram.
Mal havia terminado de me sentar na cadeira do bar
de meu andar, um indivíduo espadúdo, de barba negra (uma
barba pe1 a qual se poderia dizer o menu de cada uma das
refeições da última semana), pegou de um fuzil de dois-
canos, que meteu bem debaixo de meu nariz, e perguntou,
rindo às gargalhadas, o que eu achava de seu mata-papas.
Em situações como essa, a saída mais conveniente consiste
sempre em permanecer calado. De fato, logo depois ele me
confidenciou que aquela sua arma automática, equipada com
mira de laser, gatilho Schneller de tríplice ação e carregador,.
tinha sido fabricada sob encomenda, com o intuito de matar
papas. Sem parar de falar, tirou uma fotografia dobrada do
bolso, e nela se via meu interlocutor mirando cuidadosa-
mente contra um manequim, de alva e solidéu. Segundo me
confessou,. havia-se tornado excelente atirador, e estava ago-
ra_ a ~ammho de Roma, como parte de uma grande pere-
gnnaçao, a fim de abater o Santo Padre na Basílica de
São Pedro.
, Nã? dei nenhum crédito a suas palavras, mas, ato con-
tinuo' amda falando , e1e me mostrou sua passagem aerea,
/ re-
serva de hotel ' um mt'ssal de t unsta
. . . / .
o 1ttnerano de um
tour de. peregrinação para católicos no;te-americanos e ainda
uma
p caiXa de. proJetets,
· / · com uma cruz entalhada nas' pontas.
.dara e.:;;ononuzar
. _ . ' ele h avta· comprado apenas passagem de .
I a, pOis nao tmha d / 'd
uvt as de que, indignados, os demais
10
pere~rinos o fariam em. pedaços. Sem embargo, essa pers-
pectiva o punha de muito bom humor. Pensei desde logo
que me encontrava diante de um louco ou de um terrorista-
fanático p:ofiss~onal (tão abundantes nos dias que correm),
mas tambem nisso eu me enganava. Falando incessantemen-
te, ainda que com freqüência tivesse de descer do banco
do bar, muito alto, pois sua arma insistia em cair ao chão,
ele me revelou que, na verdade, era católico fervoroso. O
ato que ele planejara cuidadosamente (e ao qual denomi-
nava "Operação P") seria para ele um grande sacrifício pes-
soal, pois desejava sacudir a consciência mundial, e que
outra coisa poderia sacudi-la melhor do que uma ação tão
extrema? Não faria outra coisa senão aquilo que, segundo
as Escrituras, fora ordenado a Abrahão que fizesse a Isaac.
Mas ao contrário, porquanto não mataria um filho, e sim
o pai, e santo ademais. Ao mesmo tempo, explicou-me ele,
passaria pelo maior martírio de que um cristão é capaz, pois
seu corpo sofreria tormentos indizíveis e sua alma seria con-
denada à danação eterna - tudo isso a fim de abrir os
olhos à humanidade.
Pensei com meus botões que havia excesso de gente
disposta a abrir os olhos da humanidade, e, longe de ficar
convencido com seus argumentos, pedi licença e fui salvar
o Papa - ou seja, notificar alguém a respeito da trama -
mas Stantor, com quem me encontrei no bar do 779 andar
nem se dignou de ouvir-me até o fim, dizendo que, entre
os presentes oferecidos a Adriano XI pela última excursão
de fiéis norte-americanos figuravam duas bombas-relógio e
um tonel cheio de nitroglicerina, em lugar de vinho sacra-
mental. Compreendi melhor a indiferença de Stantor ao in-
teirar-me de que os guerrilheiros locais haviam acabado de
remeter um pé à Embaixada Americana, ainda que não se
soubesse a quem pertencera. Além do mais, nossa conversa
não chegou ao fim, pois Stantor foi chamado ao telefo~e;
constava que alguém havia ateado fogo às vestes na Av~mda
Romana, em sinal de protesto. No bar do 779 andar .Impe-
rava uma atmosfera totalmente diferente do que havia no
meu, mais acima. Havia ali muitas moças descalças, com
11
e iam até a cintura, algumas com sabres
(dos de rede qu
ves I , . delas tinham longas tranças, presas ao pes-
, cinta. vanas
a ' d com a última moda, com pequenos broches
coço de acor o - b
' de pontas aguçadas. N ao sou e com certeza
ou . um co1ar / . . - d .
. enistas ou secretanas da Associaçao e Edito-
se eram f11um . ./ ·
.b d s hipótese esta mais vtavel, em vista das fotos
res L 1 era o ,
co1on.das que passavam umas para as outras.
Desci nove andares, a fim de me encontrar com meus
colegas futurólogos, pois estavam hospe~ados naquele andar,
e no bar tomei uma ou duas bebidas com Alphonse
Mauvin, da Agência France-Presse. Pela última vez, tentei
fazer alouma coisa a fim de salvar o Papa, porém Mauvin
acolheu,:,meu relato com o maior dos estoicismos, observando
que no mês anterior um peregrino australiano abrira fogo
no Vaticano, ainda que por princípios ideológicos inteira-
mente diferentes. Mauvin contava poder realizar uma interes-
sante entrevista com um certo Manuel Pyrhullo, procurado
pelo F. B. I., pela Sureté, pela lnterpol e várias outras or-
ganizações policiais. Ao que parece, havia aberto um negó-
cio que oferecia ao público um novo tipo de serviço: ofere-
cia-se ele próprio como especialista-consultor para revolu-
ções por meio de explosivos (era conhecido pelo cognome
de "Sr. Bum"), e chegava mesmo a se vangloriar de sua
absoluta isenção ideológica.
· Uma bela ruiva, vestindo uma coisa parecida com uma
camisola de dormir, toda perfurada por balas, aproximou-se
e sentou-se à nossa mesa (tratava-se precisamente da envia-
da dos extremistas, incumbida de conduzir o jornalista até
0 quartel-general do grupo). Ao se retirar acompanhando-a

Mauvin entregou-me um dos volantes publicitários de Pyr~


hullo' pelo qua1 f"tquet· sabendo que já era chegada a hora
de se. abandonar
. . . aço- es d e ama dores uresponsavets,
· / . Incapazes
.
de dtstmgmr dmam·t 1 e d e me1Inita,
. .
/ . ou fulminato de mer-
ruoode~~l d ·
P es etonador Bickford. Numa época de
aIto grau de espec· I' - ..
f Ia IZaçao, dtzia o anúncio não se pode
azer nada com as , . - '
a ética P f' . propnas maos, sendo mister contar com
ro ISSional e h ·
.Iificados N os con ec1mentos de profissionais qua-
. o verso do prospecto h avia . uma hsta . de preços
.12
. ~ ~- ... -.· -- ·

dos serviços prestados, nas moedas dos países ma~s desen-


volvidos e civilizados do mundo.
.. . No momento em que os futurólogos começavam a se
reunir no bar, um deles, o Professor Mashkenase, entrou
no salão,. pálido e trêmulo, gritando que havia uma bomba-·
relógio . em seu apartamento. O barman, evidentemente ha...
b:tuado a tais episódios, gritou automaticamente "Escondam-
se!" e se enfiou debaixo do balcão. Contudo, os detetives
do hotel logo descobriram que um colega do professor lhe
havia pregado uma peça, colocando um despertador comum·
em sua caixa de biscoitos. Para mim, devia tratar-se de um
inglês, pois são muito dados àquilo que chamam de practical.
jpkes - mas o incidente foi logo esquecido, pois Stantor
e J. G. Howler, outro jornalista da U. P. I . , entraram no
bar com o texto de uma nota do governo dos Estados Uni-·
dos ao governo da Costa Rica, referente à questão dos di-.
plomatas seqüestrados. A redação desse texto era típica, a
mesma em que são vazados todo~ os comunicados diplomá-
ticos, e nela não se chamavam os dentes de dentes nem o
pé de pé. Jim me confidenciou que o governo local segura-
mente recorreria a medidas drásticas, pois o General Apo~
1.onio Dí:iz, que estava no poder, era tido como um dos
'.' falcões", cuja filosofia mandava combater a violência com
violência ainda maior. Na reunião do Parlamento (que se
encontrava em sessão permanente) houve quem sugerisse
passar à contra-ofensiva, a qual consistia em arrancar aos
presos políticos - cuja libertação era exigida pelos terroris-
tas - o dobro de dentes e, como não se conhecia o ende-·
reço do quartel-general destes, enviar-lhes os referidos dentes
pela posta-restante. A edição aérea do New York . Times,:
num editorial do prestigiado Schultzberger, fazia um apelo.
à razão e à solidariedade da espécie humana. Stantor me
pôs a par, discretamente, do fato de que o governo costarri-
quenho havia requisitado um trem carregado de material bé-
lico secreto, pertencente aos Estados Unidos, e que transitava
pelo território nacional a caminho do Peru. Até esse mo-
mento não havia ocorrido aos extremistas seqüestrarem fu-
turólogos, o que decerto faria mais sentido, de seu ponto d~

13-
vista, uma vez que àquela ~poca havia na Costa Rica muito
mru·s futurólogos do que dtplomatas. , .
Um hotel de cem andares e um organtsmo tão vasto, e
tão confortavelmente isolado do resto do mundo, que as no..
tícias chegam a ele como se proviessem de outro hemisfério.
Até 0 momento, os futurólogos não haviam demonstrado pâ-
nico; a agência de viagens do Hilton não estava assediada
por clientes desejosos de reservar lugares de volta aos Esta-
dos Unidos ou qualquer outro país. O banquete e a ceri-
mônia de instalação do congresso estavam marcados para
as duas horas da tarde. Como eu ainda não mudara de
roupa, corri a meu apartamento, vesti-me e tomei um ele-
vador para o Salão Púrpura, no 46<? andar. No vestíbulo,
duas moças encantadoras, com os seios desnudos e pintados
com miosótis e flocos de neve, aproximaram-se de mim e
me entregaram uma pasta brilhante. Sem examinar seu con-
teúdo, entrei no salão, que ainda se encontrava vazio, e fi-
quei estupefato ao contemplar as mesas - não porque o
serviço fosse, como era, de esplêndida qualidade, mas porque
as travessas de hors d' oeuvres, os montículos de patê, os
pratinhos com cogumelos, e até as terrinas de salada, tudo
enfim estava disposto de modo a figurar, inequivocamente,
·Órgãos genitais. Não havia como pensar em alguma ilusão
de ótica, pois alto-falantes discretamente dissimulados difun-
diam uma canção, muito popular em certos círculos, que
I começava com as seguintes palavras: "Para fazer sucesso
nas artes, exiba suas partes íntimas! Os críticos dizem que
não se ofendem com falos ou outros órgãos!"
Foram chegando os primeiros comensais cavalheiros de
barbas e.spes.sas e densas suíças, ainda que, ~a verdade, fos-
sem ~Uito Jovens, alguns vestidos em pijamas e outros nus
elm pelo. Quando seis garçons trouxeram o bolo e pude vis-
umbrar aquela · d t' . '
. m ecen ISSima sobremesa dissiparam-se todas
a~ midnhas dúvidas: eu me enganara de ~alão e estava parti-
ctpan o do ban t d .
não . que e a Literatura Liberada. Pretextando
conseguu encont . h
apressada rar mtn a secretária, bati em retirada
i·' ,,
ir ao Sal-mente
p,
e tomei o eI evador, descendo um andar para
ao urpura (por equívoco, eu fora para o Lavan-
14
da), que a essa altura já se encontrava à cunha. Disfarcei
da melhor maneira possível meu desapontamento ante a dis-
crição da recepção. Estava sendo servido um buffet frio, e
não havia mais lugares para sentar; todas as cadeiras tinham
sido removidas, de modo que para comer alguma coisa ti-
nha-se de agir com a habilidade própria a essas ocasiões,
sobretudo se considerarmos que se haviam formado verda-
deiras multidões ao redor dos pratos mais substanciais. O
Senor Cuillone, representante da seção costarriquenha da
Associação Futurológica, explicou, com um sorriso cativan-
te, que uma abundância pantagruélica de acepipes estaria
inteiramente fora de lugar naquele banquete, pois havia que
levar em conta que um dos principais temas na agenda da
conferência era a ameaça de fome que pairava sobre a hu-
manidade, em escala mundial. Houve, naturalmente, os céti-
cos que comentaram que com toda certeza as verbas da As-
sociação tinham sido cortadas, porquanto somente tal fato
poderia explicar frugalidade tão espartana.
Os jornalistas, já acostumados a passar fome, trabalha-
vam com afinco, tentando entrevistas com vários luminares
estrangeiros da ciência dos prognósticos. Em lugar do em-
baixador dos Estados Unidos, somente compareceu o tercei-
ro-secretário da Embaixada, protegido por um verdadeiro
batalhão de guarda-costas. Era a única pessoa a usar
smoking, talvez porque fosse difícil esconder um colete à
prova de balas sob um paletó de pijama. Soube que os con-
vidados costarriquenhos tinham sido revistados na portaria;
ao que parecia, já era grande a pilha de armas confiscadas.
As reuniões propriamente ditas só começariam às cinco
da tarde, o que significava que tínhamos tempo para descan-
sar, e por isso voltei a meus aposentos no 1009 andar. Eu
sentia uma sede terrível devido ao excesso de sal na salada
de repolho, mas como 'o bar de meu andar tinha sido pra-
ticamente tomado de assalto pelos contestatários-dinamita~o­
res estudantis e por suas namoradas e, de qualquer manetra,
uma única conversa com o papista - ou antipapista - ~ar­
budo já tinha sido mais do que o suficiente, contentet-me
com um copo de água da pia do banheiro.

15
De repente·, todas as luzes se
- · , apagaram
nao Importa ·o numero que eu d' ' e o telef
_ . Iscasse, só f . one,
uma gravaçao da história de Rapunzel T a~Ia transmiti
ele va d or, mas tam b"em estava enguiçado · O entet descer Pelor
tavam em .coro, disparando suas armas . s estudantes can..
. . ao compass0 d
SJca - e rezet para que estivessem v· d a Inú-
. ua as para
1a d o. Essas coisas acontecem até nos m lh ~ outro
· e ores boteis
ne1n · por tsso são menos irritantes. Entretant ' mas
" . o, o que m .
me causava especte eram minhas próprias reaço- M ats
" . es. eu es
·t a do de esptnto, bastante azedo desde aquela co -
. nversa com·
o assassino do Papa, · melhorava agora a olhos visto T
, s. a-
tean do a volta do quarto, derrubei alguns móveis e co ·
· · d 1 mecet
~ nr 1n u gentemente no escuro. Mesmo depois de ferir
0
JOelho, ao esbarrar numa mala, o incidente não diminuiu
minha sensação de boa-vontade em relação a toda a huma-
nidade. Sobre o criado-mudo encontrei os restos da refeição
ligeira que eu havia pedido que fosse mandada ao aparta~
mento;_ peguei um dos folhetos da convenção, enrolei-o e o
impregnei com a sobra da manteiga, acendendo-o com um
fósforo. A tocha improvisada assim obtida estalava e fume-
gava exageradamente, mas proporcionava iluminação satisfa-
tória. Afinal, eu tinha de encher o tempo durante mais de
duas horas, contando com pelo menos uma hora nas escadas,
. j.á que o elevador n ão estava em funcionamento.
Acomodei-me numa poltrona e fiquei a observar, com
énorme interesse, as flutuações e mudanças de ânimo que
ocorriam em mim. Eu estava alegre, nunca tinha estado
mais feliz. Ocorreu-me um sem-fim de razões para esse ma-
ravilhoso estado de coisas. Com toda seriedade, parecia-me
que aquele quarto de hotel, mergulhado nas trevas infernais,
cheio do fedor e da fumaceira provocados pela tocha de
ri-Ianteiga, inteiramente isolado do resto do mundo, com um
telefone que contava histórias da carochinha - que aquele
quarto era um dos lugares mais agradáveis na face da T~r~a.
Além disso, eu sentia uma vontade irresistível de acancxar
a cabeça de alguém, ou pelo menos apertar sua mão e
·olhar longamente, cordialmente, dentro de seus olhos.
... . .t,. , ,4 /
16- . .\
-- -- -- ----·--
\
- --~-
------ ------

Eu seria capaz de abraçar e beijar o mais implacável


dos inimigos. Derretend~-se, a manteiga começou a escorrer
para fora de seu pratinho, forman~o uma pequena franja
amarelada em torno da borda. Aquilo me parecia tão en-
graçado que rebentei de riso, embora meus dedos se quei-
massem em minha t~ntativa de reacender a tocha sempre
que ela se apagava. A luz tremeluzente, eu cantarolava árias
de velhas operetas, sem prestar a mínima atenção à fumaça
acre que me fazia tossir, ou às lágrimas que me rolavam
pela face. Fiquei de pé, mas tropecei e caí, precipitando-me
sobre uma mala. Logo apareceu um galo em minha cabeça,
do tamanho de um ovo, mas o fato só serviu para que eu
melhorasse ainda mais de humor - se é que isso era possí-
vel. Ri, sufocado pela fumaça cáustica, que em nada me
incomodava. Deitei-me na cama, que ainda não tinha sido
arrumada, embora fosse tarde plena. Eu pensava nas ca-
mareiras responsáveis por essa negligência como se fossem
minhas próprias filhas. Nada senão palavras doces e con-
versa tatibitate, como aquela que se usa com crianças, acor-
ria a meus lábios. Pensei até que se eu tivesse de morrer
sufocado ali, essa seria a espécie de morte mais divertida e
mais agradável com que um homem poderia sonhar.
Tal idéia foi tão gritantemente contrária à minha natu-
reza que teve sobre mim o efeito de um agulhão. Surgiu
em mim uma curiosa dissociação. Tal como antes, minha
alma sentia-se tomada de luz e langor, de uma ternura in-
finita, de um amor por tudo quando existia, enquanto mi-
nhas mãos simplesmente ansiavam por afagar alguém, qual-
quer pessoa; por fim, na ausência dessa pessoa, comecei a -·
acariciar meu próprio rosto, a afagar meu próprio queixo;
minha mão direita procurou avidamente a esquerda, para · um
· caloroso aperto de mão. Até meus pés, trêmulos de ansie-
dade, queriam participar daquela efusão de sentimento. ·
No entanto, sinais de perigo se acendiam nas profun-
dezas de meu ser: "Alguma coisa está errada!", bradava uma
longínqua vozinha lá dentro. "Cuidado, Ijon, veja onde pisa'',
~'Tome cuidado", "não se pode confiar nesse bom tempo!. Va-
mos, agora, um-dois-três, recomponha-se! Não fique aí dettado
17
como um Ónassis, lacrimejando por causa da fumaça, com
um galo na testa e bondade infin.ita n~ coração! ~ uma _arma-
dilha, há alguma traição a caminho! Apesar disso, nao me
mexi um centímetro. No entanto, minha garganta estava se-
quíssima e 0 sangue latejava em meus ouvi~~s (mas sem ~ú­
vida isso se devia à repentina torrente de felicidade). Impehdo
por uma sede insuportável, levantei-me para pegar outro copo
de água. Estava pensando na salada salgada do almoço e na-
quela terrível mesa de frios. Para experimentar, pensei em
J. W., H. C. M. e M. W., meus piores inimigos - e des-
cobri que, além de um impulso de lhes dar palmadinhas
nas costas, abraçar cada um deles cordialmente, trocar com
o._'\ o,_ -:-c.__ eles ~Jvras amigas e saudações fraternais, eu não sentia

.- -
Q . \ \ absolutmente nada em relação a eles. Ora, isso era verda-
- deiramente alarmante. Com uma das mãos na torneira ni-
quelada e com a outra segurando o copo vazio, senti um
calafrio. Lentamente, abri a torneira, enchi o copo, levan-
tei-o e depois, contorcendo o rosto numa careta feroz -
eu podia ver a batalha no espelho do banheiro - despejei
a água pelo ralo do lavatório.
A água da torneira. Naturalmente. Aquelas mudanças
em mim tinham começado no instante em que a bebi. Era
óbvio que havia alguma coisa nela. Veneno? Mas eu nunca
ouvira falar de um veneno que seria capaz de. . . Um mo-
mento! Eu era, afinal de contas, assinante assíduo de todas
as revistas científicas importantes. Precisamente na última
edição de Science T oday tinha sido publicado um artigo
sobre alguns novos agentes psicotrópicos do grupo dos cha-
mados benignizantes (os N, N-dimetilpeptocriptomidas), que
induziam estados de alegria e beatitude indiscriminadas. Sim,
sim, isso mesmo. Eu podia quase ver aquele artigo diante
de mim agora. Hedonidol, Euforil, Inebrium, Felicitin, Em-
pathan, Ecstasine, Halcional e toda uma série de derivados!
Pel~ substituição de um grupo de aminas por uma hidroxila,
pod~a~s~ obter, inversamente, Furiol, Antagonil, Frustraciol,
Sadtstmtna, Dementium, Flagellan, Agressium e diversos ou..
tros, ~stimulantes poliparanoidais, do grupo dos chamados fre..
nologtcos, que induziam aos comportamentos mais perversos,

18
J '

como a agressão a seres vivos ou mortos. Entre esses, eram


de particular energia compostos como os canibal-canabinóis
e os manicomiméticos.
Meus pensamentos foram interrompidos pela campainha
do telefone, e as luzes voltaram a se acender. Algum empre-
gado da recepção desculpou-se humildemente pelo problema,
assegurando que a causa do contratempo tinha sido locali-
zada e corrigida. Abri a porta, a fim de ventilar o quarto,
mas não ouvi nenhum som no corredor. Fiquei ali, imóvel,
ainda tonto com a fumaça e empolgado pela ânsia de pro-
nunciar palavras amigas e distribuir afagos. Fechei a porta
a chave, sentei-me no meio do quarto e fiz o possível para
me controlar.
É extremamente difícil descrever meu estado naquele
momento. Os pensamentos não me ocorriam com a facili-
dade ou coerência com que os exponho aqui. Era como se
cada reflexo analítico estivesse submergindo num xarope
grosso, envolvido e impregnado de um mingau de auto-indul-
gência, gotejando o mel do otimismo mais néscio; minha
alma parecia afundar no mais doce dos lodos, parecia afo-
gar-se em seiva de flores ou glacê de chocolate; eu me for-
çava a pensar apenas em coisas desagradáveis, no maníaco
barbudo com o mata-papas de dois canos, nos licenciosos edi-
tores de literatura liberada e em seus hors d' oeuvres babilô-
nicos, e, naturalmente, em J. W., W. C. e J. C. M., bem
como numa centena de outros vilões, e ainda em cobras
rastejantes - apenas para constatar, ton1ado de puro horror,
que eu amava a tudo e a todos, que lhes desculpava tudo;
e (o que era pior) em minha cabeça não cessava de jorrar
uma torrente de argumentos em favor de toda espécie de
males e abominações.
Rebentando de amor pelo próximo, eu sentia uma ne-
cessidade fortíssima de prestar ajuda, de fazer boas ações.
Ao invés de pensar nos venenos psicotrópicos, eu me lem-
brava de viúvas e órfãos, e com que paixão me dispunha
a cuidar deles para todo o sempre! Ah, como tinha me
descuidado deles, vergonhosamente, no passado! E, meu \-

Deus, os pobres, os famintos, .os doentes e os deserdados da

19
.. J •
. de repente, aJo. elhado .sobre uma . mala, d esva..
sorte! VI-me, , cura de algum art1go e valor
f ticamente, a pro .
ziando-a rene al um necessitado.
que pudesse doar a gd 'b . vozes de alarma irromperam
Mais uma vez, as e ei~consciente: "Atenção! Perigo!
-desesperadamente em meu b su da, Lute! Morda! R eststa.
. ' A ta-
e uma em osca . . 'd'd d .
.E um truqu ' t va como que dtVI 1 o em Ois.
A. d ,, Eu me encon ra .. . d b
·que! JU e. d . ado por aquela ans1a e ou-
Sentia-me d~ tal ~or~: a:~~: fazer mal a uma mosca. Era
dade que nao se~Ia P H'lton não tivesse camundongos,
uma pena, pensei, que oC 1o eu trataria bem aqueles bi-
t ' algumas aranhas. om
e ae M .t moscas ratos pulgas e perce-
chinhos indefesos! ?squi os, 1 • ' amadas de Deus! Na
. todas as cnaturas amavels e .
veJos - b
falta desses adoráveis seres, eu a ençoav a a mesa ' 0 abaJur ,
·minhas próprias pernas. .
No entanto, nem todos os vestígios da tazao me ha:
·viam abandonado, de modo que com a mão esquerda batt
na direita, que bendizia tudo quanto havia no q~arto,. gol-
peando-a até me contorcer de dor. Essa sensaçao foi en-
corajadora. Talvez ainda restasse algumas esp.eranças... Por
sorte a ânsia de fazer o bem encerrava em s1, tambem, o
' . .
desejo de automortificação. Para começar, belisquei-me na
boca algumas vezes; meus ouvidos zumbiram e eu vi estrelas.
ótimo, excelente! Quando meu rosto ficou entorpecido, co-
mecei a desferir chutes em minhas próprias canelas. Por
felicidade, eu estava calçando botas pesadas, de biqueiras
duras. Com isso, após a aplicação terapêutica de vários chu-
tes, eu me senti muito melhor - isto é, muito pior. Para
experimentar, imaginei o que sentiria se pudesse também
chutar um certo senhor C. A. Essa idéia já não se afigurava
tão impossível.
Meus tornozelos queimavam como brasas vivas, mas no
entanto, talvez devido a essas autoflagelações, já me sentia
capaz de dispensar o mesmo tratamento ao velho M . W.
Esquecendo a dor, continuei a me chutar sem parar. Ob-
jetos pontiagudos seriam úteis também, e me servi de um
garfo e de alguns alfinetes, tirados de uma camisa nova,
ainda sem usar. Eu estava fazendo . progressos, mas havia
20
- . ~ ... . ~ ------ ~------------ -- - ---- - ...... -·-~· --

1 uma$. recaídas. Daí a alguns minutos eu me achava n~


~:mente pronto a me imolar no altar de alguma causa su-
perior, e em minha alma fervilhavam sentimentos de honra,
virtude e suprema nobreza.
Eu sabia, perfeitamente, que alguma coisa havia sido
colocada na água. De repente, lembrei-me de que havia pí-
lulas de dormir em minha valise. Eu sempre as carregava
comigo, porém nunca as usava, pois sempre me deixavam
irritadiço e deprimido. Mas tomei uma, mastigando-a com
um pouco de manteiga suja de fuligem. (Beber água estava
fora de cogitação, naturalmente.) Depois me obriguei a en-
golir duas pílulas de cafeína, a fim de contrabalançar o
efeito do soporífero. Sentei-me e fiquei à espera, transido
de medo, tnas também tomado de um amor sem limites,
aguardando o resultado da guerra química que seria travada
no interior de meu organismo. O amor me empolgava, de
uma forma como eu nunca sentira antes, e eu era transpor-
tado a píncaros indizíveis de generosidade. No entanto, as
substâncias químicas do mal aparentemente começavam a
resistir e a rechaçar as substâncias da bondade. Eu ainda
me sentia disposto a devotar a vida a atos beneficentes, mas
já com alguma hesitação. Ê claro que me sentiria muito mais
seguro se me transformasse num rematado patife, pelo me~
nos por alguns instantes.
Mais ou menos um quarto de hora depois, o processo
de ânsia caritativa achava-se de certa forma debelado. To-
mei uma chuveirada, esfreguei-me vigorosamente com uma
toalha, e, de vez em quando - apenas para me certificar
melhor - dava tapas no rosto. Apliquei esparadrapo aos
cortes nos tornozelos e nos dedos, examinei os hematomas
(eu tinha ficado coberto de manchas negras e violáceas no
decurso da provação), vesti uma camisa limpa e um terno.
Ajustei a gravata, olhando-me ao espelho, e endireitei o pa-
letó. Antes de sair, desferi uma boa pancada nas costelas
um teste final - e depois disparei porta afora, e bem na
hora, porquanto já ia dar as cinco.
Para enorme surpresa minha, tudo parecia normal no
hotel. O bar de meu andar estava praticamente vazio; a

21
arma mata-papas ainda estava lá, encostada numa mesa~ e
notei dois pares de pés, um deles descalço, que apareciam
sob o balcão mas isso não indicava absolutamente nenhuma
irregularidad;, nada de anormal. Um casal_ de estudantes mi-
litantes jogava baralho a um canto do salao, enquant~ outro
estudante dedilhava um violão e cantava urna cançao po-
pular.
No andar de baixo, o saguão estava apinhado de futu-
rologistas. Estavam-se dirigindo para a primeira sessão do
congresso (sem deixarem o Hilton, naturalmente, pois um
salão de convenções tinha sido reservado expressamente pa-
ra nosso conclave, na parte inferior do edifício) . De início,
surpreendi-me com a normalidade de tudo, mas logo refleti
que num hotel daquele gabarito ninguém jamais bebia água;
no caso de se sentir sede, bebia-se Coca-Cola ou Schweppes,
e sempre havia à disposição sucos de frutas, chá ou cerveja,
ou mesmo água mineral. Todas as bebidas vinham engarra-
fadas. E mesmo que, por negligência, alguém houvesse re-
petido meu erro, não estaria ali, e sim em seu quarto, com
as port~s ~rancadas, _imerso na embriaguez do amor universal.
Cheg~e1 a c~nc~usao de que seria mais conveniente não
mencionar
h d ·o mcidente - afinal de contas' eu era recem- "
c ega ~ ah, e poderiam não me dar crédito. Achariam que
tudo nao passava de alucinação. E o que poderia ser mais
fnaturald' dnos tempos corrent es, d o que suspeitar
. que alguém
osse a o ao uso de drogas?
Posteriormente criticaram
ostra (ou de ave t ) -me por adotar essa política de
- 8 ruz ' com o argument d ·
vesse exposto tudo ab t , o e que se eu ti-
evitada Mas · ' - er amente, a catastrofe poderia ter sido
. tsso nao passa de t 0 1' .
hipóteses, eu teria alert d lce, po1s, na melhor das
a o apenas h"
0 que acontecia no II'lt _ os ospedes do hotel, e
nhum efeito sobre· 1 on nao exercia· absolutamente ne-
a marcha dos acontecimentos
.
c osta Rica. políticos na
A ca~inho do salão de -
~an~a de Jornais e revistas /onvençoes, detive-me numa
ocrus, como é meu h "b' a tm de comprar vários jornais
que vou, naturalmentea Ito. Não os compro em toda parte
22 , mas um hornem educado sempre
apreende o essencial das coisas em espanhol, mesmo que
não fale a língua.
Sobre a tribuna havia um cartaz, muito elegante, mos-
trando a agenda do dia. O primeiro assunto do ternário era
a crise urbana mundial; o segundo, a crise ecológica; o ter-
ceiro, a crise da poluição atmosférica; o quarto, a crise de
energia; o quinto, a crise de alimentação. Nesse ponto, os
trabalhos seriam suspensos. As crises tecnológica, militar e
política seriam abordadas no dia seguinte, e então a mesa
receberia moções do plenário.
Como havia muitos delegados inscritos para falar -
nada menos de 198, de 64 países - cada orador teria di-
reito a quatro minutos para apresentar sua tese. Para ajudar
a acelerar os trabalhos, todos os relatórios tinham sido dis-
tribuídos e estudados com antecedência, e ao orador caberia
tão-somente mencionar números, chamando a atenção, as-
sim, para os parágrafos mais relevantes de seu trabalho.
Para melhor receber e processar tal riqueza de informações,
todos nós ligamos nossos gravadores portáteis e nossos .com-
putadores de bolso (que mais tarde seriam interligados para
a discussão geral). Stan Hazelton, da delegação norte-ame-
ricana, provocou de imediato agitação entre os participantes
do congresso, ao repetir enfaticamente: 4, 6, 11 e, por con-
seguinte, 22; 5, 9, portanto, 22; 3, 7, 2, 11, do que se de-
duzia que 22, e apenas 22! Alguém pôs-se de pé, admitindo
que sim, mas 5, e que, aliás, o que dizer de 6, 18 ou 4?
Hazelton replicou com a afirmativa contundente de que, de
qualquer forma, 22. Procurei a chave dos números de sua
tese e descobri que 22 significava o fim do mundo.
Seguiu-se Hayakawa, do Japão, que apresentou planos,
recém-elaborados em seu país, para a casa do futuro -
oitocentos pisos, com alas de maternidade, creches, escolas,
centros comerciais, museus, jardins zoológicos, teatros, rin-
gues de patinação, crematórios. Os planos previam o arma-
zenamento, no subsolo, das cinzas dos entes queridos, TV
em quarenta canais, salas para se embebedar e uma clínica
para cura de alcoólatras, ginásios especiais para a prática de
sexo grupal (indicação da atitude progressista dos arquite-

23
'
I e catacumbas para comunidades subculturais inconfot-
tos)
mistas. Uma idéia nova consistia em fazer com que cada
família ..nudasse de habitação a cada dia, passando de apar-
tamento para apartamento como peças de xadrez, imitando,
por exemplo, os movimentos de peões ou de cavalos. Esse
:sistema contribuiria para minorar o tédio.
Além disso, esse edifício, que teria um volume de dezes-
:sete quilômetros cúbicos, alicerces cravados no leito do ocea-
no, e cujo teto atingiria a própria estratosfera, possuiria
seu próprio sistema de processamento de dados para fins
matrimoniais - escolhendo os casais segundo princípios sa-
domasoquistas, pois, segundo análies estatísticas, cônjuges
com tais propensões antagônicas mantinham casamentos es-
táveis (cada um deles encontrava, em tal união, a resposta
a seus sonhos) - e contaria também com um centro de
prevenção de suicídios, que funcionaria vinte e quatro horas
por dia.
H~kayawa, o segundo delegado do Japão, demonstrou
para nos um modelo operacional do edifício, numa escala
de. 1O. 000 para 1. A torre possuiria usina de oxigênio pró-
~na, mas não contaria com reservas de alimentos ou de
a~~a, uma ~ez que funcionaria inteiramente segundo 0 prin-
cipio. de reci~lagem: todos os detritos, produtos de excreção
e dejetos senam recuperados e reprocessados para consumo.
:ahakawa, o terceiro membro da equipe japonesa leu
hsta de. todos os manJares · .
que podenam ' uma
ser reconstituídos
a parttr dos excrementos humanos Entre I '
banana pão d 'b · e es, contavam-se
a ff . 'I· e gengt re, camarão, lagosta e até vinho tudo
r I Icia ' apesar de sua origem . ,
assim obtido rivalizava em ala~: tanto ofensi~a, o vinho
borgonhas da França A p r com os ma1s afamados
· mostras dessa b b ·d
foram distribuídas pelo ~ 1_ . e 1 a maravilhosa
rafas, como também a ao em pequeninas e elegãntes gar-
embrulhadas em pape;mlost~as d de s~lsichas para coquetéis,
/ amina o· fetta a d' t 'b .
guem deu mostras de t ' 1s n u1ção, nin-
es ar com sede .
depositadas discretament b e as salstchas foram
. e so as cadeira A ·
ced1 da mesma maneira. s. o ver 1sso, pro-

24
. - ···- --- ....:,._~,. . ..- -...~.·~-------- ________
- · ----..
~, - . ..,..

Segundo os planos originais, essa torre seria móvel, im-


ulsionada por um poderoso rotor, com o que seriam possí-
peis
v excursões turísticas coletivas;
. . no entanto, essa idéia foi
abandonada, porque, em pnmeuo lugar, haveria 900 milhões
de edifícios idênticos; em segundo lugar, o próprio conceito
de viagem se tornaria inviável. Mesmo que uma torre dessas
\. contasse com mil saídas e seus ocupantes empregassem todas
elas, quando o último deles se retirasse, toda uma nova ge-
ração de ocupantes teria atingido a idade adulta em seu in-
terior.
Os japoneses estavam, evidentemente, exultantes com
sua proposta. Ao terminarem, Norman Youbas, dos Estados
Unidos, subiu à tribuna e delineou sete medidas distintas
para conter a explosão populacional, a saber: campanhas
de persuasão, medidas policiais, celibato compulsório, dese-
rotização em grande escala, onanis.mo, sodomia e, para os
reincidentes, castração. Todos os casais teriam de competir
entre si pelo direito de terem filhos, submetendo-se a exames
de três categorias: copulatórios, educacionais e ideológicos.
Os filhos ilegais seriam confiscados; no caso de prenhez
premeditada, os culpados poderiam ser condenados a penas
diversas . Essa tese trazia, em anexo, aqueles cupons azuis
destacáveis - rações de sexo - que tínhamos recebido an-
teriormente, junto com os materiais do congresso.
Hazelton e Y ouhas propuseram então a criação de novas
ocupações e órgãos públicos: promotorias incumbidas de
processos matrimoniais, conselheiros para divórcio, recruta-
dores para perversões, consultores sobre esterilização. Ime-
diatamente, foram distribuídas entre os presentes cópias de
uma proposta para um novo Código Penal, no qual a gra-
videz constituía grave delito e passava a ser considerada cri-
me de lesa-humanidade.
Nesse momento, um espectador, que se encontrava na
galeria, arremessou um coquetel Molotov no salão. O pelo-
tão policial (que se achava de prontidão no vestíbulo, pronto
a intervir, evidentemente, nessa eventualidade) tomou as
medidas necessárias, e uma equipe de manutenção (não me-
nos preparada) rapidamente cobriu os móveis quebrados e
25
I
:j
, vasta cobertura de nylon, decorada
os cadaveres com uma
legres Nos intervalos entre a apresenta-
com padronagen S a · . . · ·t
ão das teses eu tentava decifrar os JOrnais 1ocats, e mut o
Ç
'
embora não entendesse ·
prattcamen t e uma .só palavra de es- .
panhol, fiquei sabendo que o governo havia convo~a~o uni-
dades blindadas à capital, tinha posto todos os orgaos de
segurança em alerta extrema e havia ?eclarado um . esta?o
geral de emergência. Ao que eu podta ~erceber, n~gue_m
ali no salão, além de mim, sentia a gravidade da situaçao
que se formava além das paredes do hotel. .
Às sete horas os trabalhos foram suspensos para o Jan-
tar _ pago por nós próprios, dessa vez - e ao . voltar
para a conferência comprei uma edição extra ,':'esperttna de
Nación, o jornal oficial, bem como alguns tabloides da opo-
sição. Examinando-os, com enorme dificuldade, como se po-
de imaginar, fiquei estupefato ao encontrar artigos cheios de
banalidades açucaradas sobre o tema dos ternos laços de
amor como a mais forte garantia de paz universal, bem ao
lado de artigos eivados de ameaças medonhas, matérias que
prometiam repressão sanguinolenta ou, nos jornais oposicio-
nistas, matérias que respondiam com a ameaça de insurrei-
ção igualmente sangrenta. A única explicação que consegui
encontrar para essa incongruência era a de que alguns jor-
nalistas tinham bebido água naquele dia, ao passo que outros
não o tinham feito. É claro que o pessoal de um jornal di-
reitista consumia menos água: os redatores reacionários re-
cebiam melhor pagamento do que seus colegas radicais e,
conseqüentemente, podiam dessedentar-se com líquidos mais
dispendiosos, enquanto trabalhavam. Por outro lado embora
os radic~is exibam, como é público e notório, um c~rto grau
de ascetismo em nome de princípios mais elevados eles ra-
ramente aliviaram a sede com água. Principalment'e porque
o quartzupio, uma bebida fermentada, extraída do suco do
melmenol, era extremamente barata na Costa R'
H " tca.
aviamos nos acomodado novamente nas confortáveis
poltronas, e o Professor Dringenbaum da Suíça t' h -
bado de · . . ' , tn a aca
pronunciar o pnmeuo número na apresentação de
sua tese, quando o ruído de uma explosão sacudiu o edifício
26
~
I
II
e fez com que as janelas chocalhassem. Os otimistas co-
mentaram que decerto aquilo não passava de um terremoto,
sem maiores repercussões, mas eu me inclinava a crer que
0
grupo de manifestantes que desde as primeiras horas da
manhã vinha armando um piquete diante do edifício do ho-
tel estava recorrendo agora a táticas incendiárias. Entretanto,
uma segunda explosão, muito mais poderosa, fez com que
eu mudasse de idéia. Agora eu já escutava o stacatto fami-
liar de fogo de metralhadoras nas ruas. Não era possível
mais dúvidas: a Costa Rica tinha entrado na fase de hosti-
lidades abertas. Nossos repórteres foram os primeiros a desa-
parecer; ao som de tiros, puseram-se de pé rapidamente e
correram porta afora, ansiosos por cobrirem aquela nova
revolução em primeira mão. Todavia, o Professor Dringen-
baum prosseguiu com sua conferência, de tom bastante pes-
simista, pois asseverava que a próxima fase de nossa civili-
zação seria a do canibalismo. Citou diversos teóricos ame-
ricanos conhecidos, que haviam calculado que, a continuar
o status quo na Terra, num prazo de quatrocentos anos a
humanidade representaria uma esfera viva de corpos com
um raio que se expandiria aproximadamente à velocidade da
luz.
No entanto, novas concussões interromperam o rela-
tório. Perplexos, os futurólogos começaram a deixar o salão
de convenções e a se misturar no saguão com os partici-
pantes da Convenção da Literatura Liberada. A julgar pelo
aspecto destes, a eclosão das hostilidades os havia apanhado
em meio a atividades que sugeriam total indiferença pelo
perigo de superpopulação. Atrás de alguns executivos da
Editora Knopf vinham secretárias nuas, posto que não de
todo, uma vez que tinham os braços e as pernas pintados
com várias formas geométricas, a lembrar a op-art. Segura-
vam cachimbos de água ou narguilés portáteis, com os quais
~u~a~am uma mistura, muito em moda, de LSD, maconha,
10tmb1na e ópio.
Alguém me disse que os liberacionistas tinham acabado
de _queimar uma efígie do ministro dos Correios dos Estados
Untdos (constava que ele havia determinado a destruição de
1
I 27
-. ·- -· .. -··- _..... .......,. _______

~
um panfleto no qual se exortava à iniciação de incestos em
massa). Agora, reunidos no saguão, comportavam-se da ma-
neira mais imprópria possível - principalmente em vista da
seriedade da situação. Com exceção de alguns poucos, que
estavam exaustos ou se encontravam em estado de estupor,
causado por narcóticos, todos se conduziam de modo posi-
tivamente escandaloso. Ouvi gritos na recepção, onde tele-
fonistas estavam sendo estupradas, e um cavalheiro de ven-
tre dilatado, vestido com uma pele de leopardo, irrompeu
pelo vestiário do andar, brandindo um cachimbo de haxixe,
enquanto perseguia os serviçais. Foram necessários vários
porteiros para detê-lo. Nesse momento, alguém que se en-
contrava na sobreloja atirou sobre nossas cabeças cartazes
que mostravam, em cores vivas e abundância de detalhes,
os modos como um homem poderia satisfazer seus impulsos
lascivos con1 outro homem, e muitas outras coisas.
Foi aí que os primeiros tanques apareceram nas ruas,
e podíamos vê-los claramente das janelas. Filumenistas e
estudantes contestatários, tomados de pânico, começaram a
sair dos elevadores. Pisando nos pratinhos de patê e nas
travessas de salada a que nos referimos anteriormente (e
que os editores tinham trazido consigo), esses recém-chega-
dos dispersaram-se em todas as direções. Entre eles estava
o antipapista barbudo, que urrava como um touro e brandia
seu mata-papas, derrubando todos quanto encontrava no ca-
minho. Afastando as pessoas, a cotoveladas, foi postar-se
do outro lado da rua, na frente do hotel, escondendo-se atrás
de uma construção. Com meus próprios olhos, vi quando
ele começou a disparar contra as pessoas que passavam.
Pelo visto, em que pese sua ideologia extre-m ada e seu tre-
mendo radicalismo, pouco lhe importava quem fosse seu
alvo.
O saguão, cheio de gritos de horror e indignação, tor-
nou-se palco de uma cena de completo pandemônio quando
as enormes janelas panorâmicas começaram a se estilhaçar.
Tentei localizar meus amigos jornalistas e, vendo-os correr
rua acima, segui-os. Na verdade, a atmosfera no interior do
Hilton tinha-se tornado opressiva demais. Atrás de um muro
28
. de concreto, ao lo~go da. ramp~ de acesso ao bote~,
batxo achados dois cinegrafistas, filmando tudo frenetl-
estavarn ag que altas,
. , fazia
· pouco senti'do, . uma vez que to..
carnente, 0 ' . . . ·-
que a pnmetra co1sa que acontece nessas ocasioes
dos sabem .
, incêndio de um carro com placa estrangeira. Chamas
e o d , d .
rolos de fumaça já se elevavam a area e estacionamento
~o hotel. Mauvin, de pé a meu lado, esfregou as mãos e
riu ao ver seu Dodge se contorcendo em meio às chamas
..- ele o tinha alugado à agência Hertz. Não obstante, a
maioria dos correspondentes americanos não achava nenhu-
ma graça no que sucedia.
Notei que ·algumas pessoas tentavam apagar o fogo;
eram, na maioria, homens já idosos, vestidos pobremente, e
traziam água em baldes de uma fonte próxima. Aquilo me
pareceu estranho. A distância, na extremidade da Avenida
de la Salvación e da Avenida de la Resurrección, reluziam
capacetes de policiais; no entanto, a praça em frente ao ho-
tel, cercada de relvados e palmeiras luxuriantes, ainda estava
vazia. Aqueles velhos trôpegos, que se chamavam uns aos
outros com vozes roucas, rapidamente formaram uma briga-
da de incêndio, apesar de suas bengalas e muletas. Aquela
valentia era admirável, mas lembrei-me então do ·q ue havia
acontecido naquele mesmo dia, e imediatamente transmiti
minhas suspeitas a Mauvin. O espocar das metralhadoras
e o trovão das granadas de artilharia dificultavam a conversa;
por alguns momentos, o rosto do francês demonstrou incom-
preensão, mas de repente seus olhos se iluminaram. - Aha!
- ele gritou em meio à balbúrdia. - A água! A água de
beber! Deus do céu, pela primeira vez na História . . . crip-
toquimiocracia! - E após proferir tais palavras correu de
volta ao hotel, como um possesso. Aparentemente, para
c~nseguir um telefone. Era estranho que os serviços telefô-
nicos ainda funcionassem.
Eu estava ali, no acesso ao hotel, quando o Professor
Trottelreiner, um dos futurólogos suíços, veio ter comigo.
A essa altura, a polícia estava fazendo o que devia ·ter feito
horas antes; usando capacetes negros, escudos e máscaras
contra gases, armados com pistolas e bastões, formaram um

29
cordão em torno de todo o complexo Hilto.n , a fim de man-
ter afastada a população que nesse exato tnstante começava
· do parque que nos separava da zona teatral da
a surgir . · · d , .
cidade. Com grande habilidade, un1dades espec1a1s ~ ~ohcta
armaram lança-granadas e dispararam contra a multtdao; as
explosões foram extraordinariamente débeis, embora levan-
tassem grossas nuvens de uma fumaça esbranquiçada. De
início, julguei tratar-se de gás lacrimogênio, mas as pessoas,
ao invés de fugirem e se sufocarem, enfurecidas, começaram
claramente a se reunir em torno dos vapores diáfanos. Seus
gritos logo se calaram e daí a pouco eu as ouvi cantando
- estavam cantando hinos. Os jornalistas, indo e voltando,
a correr, do cordão de isolamento à entrada do hotel, com
suas câmaras e gravadores, ficaram inteiramente perplexos
com aquilo, conquanto fosse mais que óbvio que a polícia
estava usando algum novo produto químico pacificador, em
forma de aerosol. Mas então, vindo da Avenida de la ...
(não me recordo qual), surgiu outro grupo de pessoas, que
de al.guma forma pareciam incólumes às granadas. Mais tar-
de, .vim a saber que .aquele grupo tinha continuado a avançar
a fim ~e confraternizar com a polícia, e não com 0 intuito
d: ata_:a-la. No entanto, quero seria capaz de inferir distin-
çoes tao sutis em meio ao caos generalizado?
Houve ~árias outras salvas de granadas, ~eguidas pelo
estrondo e silvo característico de uma manouel·ra a .
char á . o esgm-
ar se e:;h~u edop~~s:~~ ;s metralhadoras abriram fogo e o
valer e por . IO e balas. Agora estavam atirando para
' Isso me escondi at " d 0 .
como trincheira e m . ras muro batxo, usando-o
, e VI entre Sta t H
Washington Post Bastar n or e aynes, este do
· am-me algu
ra colocá-los a par d . _ mas poucas palavras pa-
a sttuaçao p · f .
passado tal segredo d · lcaram unosos por eu ter
. . , merece or de t't 1 u1os d e pnmeira
.
pnmeiro a um ho d página
mem a AFP '
toda velocidade para 0 h I· ' e voltaram rastejando a
~entos estavam de volt ofte '. no entanto, daí a alguns mo-
á - f . a, unosos' p ots · as hnhas
.
J nao unc10navam c telefônicas
o of . I . ontudo Sta t .
. ICia encarregado d d f ' n or praticamente agarrara
ftcara sabendo . que av·- a e esa do h 0 t e1 pelo colannho . e
xoes transportando bombas de A'TP
30
Teu Próximo) estavam a caminho naquele instante.
(Ama os ordens de ab andonar a area" e todos os policiais
Rece e b m , .
. ·param com mascaras contra gases, com filtros espe-
~e~1 , "
. · Também a nos foram dadas mascaras.
c1a1s. . .
Quis a sorte que o Professor Trottelretner fosse especia-
lista no campo da farmaco~ogia psicotr~p~ca, e ele me ad-
vertiu que não usasse a mascara em htpotese alguma, uma
vez que ela deixaria de funcionar diante de concentrações
de aerosol suficientemente elevadas. Isto daria ensejo ao cha-
mado fenômeno de sobrecarga de filtro, e em um segundo
poder-se-ia inalar uma dose muito maior da substância do
que se respirasse o ar sem a ajuda da máscara. A única
proteção segura, ele disse, antecipando-se à minha pergunta,
estava num aparelho de oxigênio. Por isso, fomos ao hotel,
conseguimos encontrar uma recepcionista ainda em seu pos-
to e encontramos, com sua ajuda, um depósito cheio de
equipamento de combate a incêndio, entre o qual grande
número de máscaras de oxigênio, da marca Draeger, com
circulação fechada.
Com essa proteção, o Professor e eu regressamos à rua,
bem a tempo de escutar o assovio pavoroso e ensurdecedor
que anunciava a chegada dos primeiros aviões. Como todos
sabem, o Hilton foi acidentalmente atingido por bombas de
ATP logo após o começo do ataque. As conseqüências desse
equívoco foram desastrosas. Na verdade, o ATP atingiu ape-
nas a ala mais distante da estrutura inferior do hotel, onde
a Associação de Editores de Literatura Liberada havia co-
locado stands com exposição de suas obras, de modo que
nenhum dos hóspedes foi acometido de danos imediatos. En-
tretanto, as unidades policiais ali postadas para nos defender
foram atingidas em cheio. Paroxismos de an1or logo varre-
ram suas fileiras, assumindo proporções de massa. Diante
de meus olhos, policiais arrancaram as máscaras dos rostos
e, derramando lágrimas copiosas de remorso, caíam de joe-
lhos, pedindo perdão aos manifestantes colocando os bas-
tões em suas mãos, com súplicas fervor~sas para que fossem
severamente espancados. Após um outro bombardeio de
ATP, que elevou a concentração da droga ainda mais, esses
31
----:- .--":~~ - --·-- -~· .. --- ___ __ _.
,. -- --- -- ·
- - --- ..

agentes da lei começaram a tropeçar uns sobre os outros,


num impulso incontida de beijar e abraçar todos quantos es- .
tivessem a seu alcance.
Só várias semanas depois de passada toda a tragédia é
que conseguimos, de alguma forma, formar um quadro coe-
rente do que havia acontecido. Naquela manhã o governo
tinha decidido aniquilar os revolucionários, que preparavam
uma revolução, de modo que colocou na elevatória muni-
cipal de água 700 quilogramas de bromo-banignimizante,
misturando, em partes iguais, Felicitine, Placidol e Superju-
bilan. O suprimento de água aos quartéis da polícia e do
exército tinha sido cortado, naturalmente. Aconteceu, porém,
que, sem o concurso de especialistas na matéria, este plano
estava fadado ao insucesso - o fenômeno de sobrecarga de
filtro, por exemplo, não foi levado em consideração, como
também não se levou em conta que os diferentes grupos so-
ciais consumiriam a água de beber em quantidades radical-
mente diferentes.
A conversão da polícia ocorreu com especial violência
porque, como explicou Trottelreiner em conversa comigo,
quanto menos um indivíduo está habituado a ceder a seus
próprios bons impulsos naturais, maior é o efeito sobre ele
de. tais . ~rogas. Isso explicava o motivo pelo qual, quando
d01s avwes, no ataque seguinte, acidentalmente despejaram
bombas de ~T_P. sobre a Prefeitura, grande número dos mais
g:a~ua~os oftctats da polícia e do exército cometeram sui-
c.tdto, Incapazes de suportar os medonhos remorsos que sen-
tiam por programas políticos que haviam posto em execução
no p~ssado. E se ~acrescentarmos a isso o fato de ue o
própno General Dtaz - antes de meter b 1 q
beç h · uma a a na ca-
a - avta ordenado a soltura imediat d .
sioneiros políticos fica mais fác'l 1
a e todos os pn-
rocidade da bataiha f . compreender a notável fe-
que 01 travada no de d .
Os aeroportos, corno estavam lo . curso a ~otte.
permaneceram intocados. caltz~dos longe da ctdade,
suas ordens, continuara~ ~orno os... ptlotos tinham recebido
tando o que sucedt'a obse exdecuta-las ao pé da letra. No-
suas casamatas herm 't'
' rva ores I' · ·
po tctats e militares em
· e tcas ' f tna1mente recorreram às medi·'
32
ue mergulharan1 toda a cidade de Nounas
extremas q . .
das d0 completo desvano emocional.
no caos .d,. d' d
:e c1aro que não tínhamos a menor 1 eta tsso tu o no
. Eram onze horas da noite quando apareceram as
Htlton.
.- . .
divisões blindadas d o exercito,
" · en t ran d o com seus
prnnetras .
de assalto no parque ladeado de praças e palmeuas;
carros
.h sido enviadas para repnmtr · · o amor f ra terna1 que
tm am . .d / I d
grassa Va entre a polícia. E o fizeram, . com cons1 erave
, er-
.
aroento de sangue. O pobre Mauv1n estava enl pe a meto
ram d d .f. -
metro do local onde explodiu uma grana a e pact 1caçao;
a forca da explosão arrancou-lhe os dedos da mão esquerda,
bem ~orno sua orelha esquerda, mas ele me garantiu que,
para começar, nunca se importara muito com aquela mão
mesmo, e que nem valia a pena falar da orelha. Na verdade,
se eu quisesse poderia ficar com a outra, e puxou um cani-
vete do bolso, a fim de cumprir a proposta, e o teria feito
se eu não o tirasse gentilmente de sua mão e o conduzisse
a um posto de primeiros-socorros improvisado. Ali, foi
atendido pelas secretárias dos editores liberados; agora, qui-
micamente convertidas, elas gemiam como bebês. Haviam
vestido roupas recatadas e até usavam véus, de modo a não
tentarem ninguém ao pecado. Algumas daquelas criaturas,
dignas de comiseração, e que haviam ·sido afetadas mais for-
temente, tinham chegado ao extremo de rasparem as ca-
beças. - . ·
. De volta do posto de primeiros-socorros, tive a infeli-
ctdade de encontrar um grupo de editores. Entretanto, não
os reconbe · d · , ·
d CI e Inicio: estavam vestidos com velhos sacos
ce esto?a, presos ao corpo com cordas (que também usavam
omo mstrumento de flagelação), imploravam misericórdia,
em altos brados, atiravam-se a meus pés e me imploravanr·
que
·d
os surrasse sem pte · d a d e, pois
· havtam
· depravado a so-
Cie ade Pod . .
do · . e-se tmagtnar qual não foi minha surpresa quan-
que' exammando
. · de perto aqueles rostos contntos,
mats · notei-
eles pertenciam todos eles à redação de Playboy e que entre
estava o red t 1 f '
se d' a or-e 1e e em pessoa! Aquele cavalheiro não
Ispunha a ··
~ua co . "· . pernutu que eu seguisse meu caminho, tanto
nsc1enc1a ·
o atormentava. Puxava-me pelas mangas,

33
:o. ,l s ·ur· l1c uxi~~ n•o, cu era
compreendendo que, gnu;ns n n•l•· L . ~1 . . • • .
. . . . 1 ,~ um t 10 de seu~ cuhclu~.
1 1ut.cr llht •
a unal.'a pcssou t:apaz "~
. · ·la c~· na ccdt. t,.•nalmcnlc
()uund'-l nào suporl(;'·l m~aas U'-JUC:· · '
' . . . . l . )S(O Louo me·US bra<.:O~
às suas suplu.:ns, mu•lo a ~on I U){.' · • e· .
d")iarn, e era difkil rcspirur. Huccci quo nà.o conscgur~se
e.ncont wr outro tanque de ox ig.(·nio quanJo aqu~lc 4ue . eu
· .· · ditores tanham for·
usava se esgotasse. Nesse JnlCIIm, os e ·~ .
mado uma longa fila, tremendo de impa<:iéncta pelo mo-
L'. 1 nte para me
mento de levarem sua cota de sova. · ·ma me '
livrar deles, disse-lhes que juntassem toJos aqueles enorme~
cartazes (.'Oloridos que haviam sido arremessados no sag~ào
pelas explosões de ATP na ala do Jfilton e que faz1am
com que o local parecesse uma rccdiçúo em dose dupla de
Sodoma e Gomorra. ScguinJo minhas instruçúes, amontoa-
ram os cartazes numa enorme pilha diante do hotel e o~
queimaram. Infelizmente, uma unidade de artilharia estacio-
nada no parque tomou a fogueira por alguma espécie de
sinal e abriu fogo contra nós.
Saí dali o mais depressa que pude, mas tropecei com
un1 tal de Harvey Simsworth no subsolo. Tratava-se de um
escritor que tivera a lucrativa idéia de transformar contos de
fadas em pornografia da pior espécie (era esse Simsworth o
autor de Ali Babá e os Quarenta Pervertidos), e que depois
fizera outra fortuna reescrevendo os clássicos da literatura
universal (obras como Don Coxote); empregara o artifício
simples de revelar a "vida sexual secreta" de todos os contos
tradicionais - por exemplo, o que Branca de Neve tinha
realmente feito com os Sete Anões, o que João tinha feito
com Maria, o que Aladim fazia com sua lâmpada maravi-
lhosa, etc., etc. Tentei me livrar dele, explicando que meu
braço ~stava exausto. Nesse caso, ele gritou, em prantos, que
e~ pod1a pelo menos chutá-lo. Que mais eu podia fazer? Nào
tive ânimo para recusar. ·
. Mais t~rde, completamente esgotado por esses exercí-
c!os,. arraste•-me de volta ao depósito de extintores de in-
cend 10: Ao~ de tJve
· a sorte de encontrar mais dois cilindro§
de oxtgenJo. O Professor Trottclreincr estava aJi sentado
num rolo · de mang ue1ra.· l Ja
· os art1gos
. '
futurológicos, feliz
34
por haver encontrado um momento livre, na azáfama de seus
deveres profissionais de comparecer a congressos. Entretan-
to, as bombas de A TP continuavam a cair sem cessar. O
Professor comunicou-me que em crises agudas de amor -
e de particular gravidade era um ataque de boa vontade
universal, acompanhado de convulsões acariciantes - devia-
se aplicar cataplasmas, assim como fortes doses de óleo de
rícino, alternando-se essa medicação com lavagens estoma-
caJs.
Na sala de imprensa, Stantor, Wooley (do Herald),
Sharkey e Kuntze (fotógrafo que trabalhava temporariamen-
te para o Paris-Match) jogavam baralho com máscaras nos
rostos. Como as linhas estavam interrompidas, não tinham
coisa melhor a fazer. Comecei a assistir ao jogo, mas Joe
Missinger, importante jornalista americano, entrou correndo,
aos berros, informando que haviam sido dados tabletes de
Furiol aos policiais, a fim de neutralizar os benignimizantes.
Compreendemos num átimo o que significava isto e corre-
mos para o subsolo, mas viemos ~ saber que aquilo não
passava de rebate falso. Por isso, fomos lá fora ver como
iam as coisas. Constatei, com assombro, que faltavam em
nosso hotel cerca de vinte ou trinta andares; meu aparta~
meDto, juntamente com tudo que nele havia, estava perdid~
numa montanha de destroços. Chamas enchiam três quartos
do céu. Um policial truculento, de capacete, perseguia um
rapaz, gritando "Pare, pare pelo amor de Deus, eu . amo
você", mas o adolescente ignorava essas exortações.
As coisas tinham aquietado um pouco, e os jornalistas,.
jmpelidos pelo impulso profissional de .investigar, dirigiram-
se . cuidadosamente em direção ao parque. Fui com eles. Es-
tavam sendo realizados vários cultos religiosos, missas bran-
cas e negras, dos quais a polícia secreta participava osten-
sivamente. Perto dali, um enorme grupo de pessoas chorava·
e arrancava os cabelos; seguravam sobre as . cabeças um vas-
to cartaz que dizia "CUSPAM EM NóS, SOMOS DELA-
TORES!" A julgar pelo número de penitentes, deveria ter
custado ao governo uma fábula mantê-los - fundos esses·
que · poderiam ter sido mais bem empregados na melhoria·

35
da situação econômica da Costa Rica. De volta ao Hilton,
demos com outra multidão. Cães policiais, que se compor-
tavam amistosamente como são-bernardos, transportavam
garrafas das bebidas ~ais caras do bar do hotel. ~ ~s distri-
buíam indiscriminadamente. No próprio bar, pohctats e ma-
nifestantes, abraçados, se revesavam a cantar músicas pa-
trióticas e revolucionárias.
Tentei o subsolo, mas não consegui suportar as cenas
de conversões e de ternura que aconteciam ali, de modo que
voltei ao depósito de extintores de incêndio a fim de con-
versar com o Professor Trottelreiner. Para surpresa minha,
ele havia encontrado três parceiros e estava jogando bridge.
Quetzalcoatl, estudante ainda, jogou seu ás; isso enfureceu
de tal forma o Professor que ele deixou a mesa, agastado.
Nesse exato momento, Sharkey meteu a cabeça na porta e
anunciou que havia captado o discurso do General Aquillo
no rádio: iam esmagar a rebelião lançando bombas conven-
cionais sobre a cidade.
Após um breve conselho de guerra, decidimos nos re-
tirar para a parte mais baixa do Hilton, que era um sistema
subterrâneo de esgotos. Como a cozinha do hotel tinha sido
totalmente demolida, não havia nada para comer. Famintos,
manifestantes, filumenistas e editores saciavam-se com table-
tes .de chocolate, molhos afrodisíacos e 0utras iguarias que
haviam descoberto no abandonado centro erótico da Litera-
tura Liberada, num canto daquela ala do hotel. Vi como
seus rostos se transformaram quando os estimulantes sexuais
co~tidos nos comestíveis, começ;uam a se misturar em sua~
vetas, com os benignimizantes. Era aterrador pensa; até onde
aquela escalada~ química poderia levar. 1mag1net . . o acasa1a-
mento de futurologos com engraxates índios , Imagtnet
. . . agentes
secretos nos braços de zeladores do hote1 e enormes rata-
zanas lustrosas confraternizando com t
c- 1· · · . ga os . . . enquanto
aes po tctats lambtam a tudo e a t o d os.
Nosso avanço era lento d'f" 'I .
e 1 ICI ' pots tínhamos de abrir
caminho entre uma densa lfd-
coluna, mu 1 ao, e eu estava fechando a
carregando nas costa d
s meta e de nosso!) tanques de
36
oxigénio. Afagado, beijado nos braços e nas pernas, aca,
riciado e adorado, sufocado por apertões e abraços eu b _
. d . . ' o s
ttna amente seg~1a adtante, até que escutei 0 grito triunfal
de Stant~r: ele tlnha d~s~oberto a entrada dos f!sgotos! Lan-
çando mao de nossas ui ttmas reservas de energia, afastamos
a pesada tampa do bueiro e entramos, um a um, no poço
de concreto.
Ajudando o Professor Trottelreiner, cujos pés resvala-
vam nos degraus da escada de ferro, perguntei-lhe se ele
tinha imaginado que o congresso terminasse daquela maneira.
Em lugar de responder, ele tentou heijar-me a mão, 0 que
imediatamente me despertou suspeitas. Verificamos que sua
máscara tinha-se soltado, fazendo com que ele respirasse um
pouco de ar contaminado pela droga. Sem demora, aplica-
mos-lhe torturas físicas, forçamo-lo a respirar oxigénio puro
e lemos a tese de Hayakawa em voz alta - idéia do Pro-
fessor Howler.
Por fim, Trottelreiner recobrou a razão, dando disso
prova inequívoca com uma série de pragas execráveis, e pros-
seguimos. De repente, à luz baça de nossa lanterna, vimos
que a superfície escura da galeria de esgotos estava coberta
de manchas gordurosas. Ficamos contentíssimos com isso, pois
agora nove metros de terra nos separavam da cidade bom-
bardeada com ATP. Pode-se imaginar nossa surpresa quando
constatamos que não tínhamos sido os primeiros a pensar
naquele refúgio. Ali, na plataforma de concreto, estavam sen-
tados os administradores do Hilton; aqueles prudentes senho-
res tinham-se munido de cadeiras reclináveis, infláveis, re-
tiradas da piscina do hotel, rádios transistorizados, grande
quantidade de uísque escocês e americano e de uma ampla
cesta de piquenique. Como também eles usavam máscaras
de oxigénio, havia pouca ou nenhuma possibilidade de par-
tilharem suas provisões, amigavelmente, conosco. Mas assu-
mimos uma atitude ameaçadora e conseguimos convencê-los
(de qualquer forma, estavam em inferioridade numérica)· E
assim, com alguns apertões, chegou-se a pleno acordo, e todos
nos sentamos para jantar lagosta fria. Essa refeição, não

37
programada e imprevista no programa, encerrou o primeiro
dia do congresso de futurologia.

Inteiramente exauridos pelos tempestuosos acontecimen...


tos do dia, nos ajeitamos para passar a noite e~ circunstân7ias
mais que espartanas, se considerarmos que e ramos . obnga-
dos a dormir sobre uma plataforma de concreto, estreita, que
trazia os sinais inconfundíveis do esgoto . O . primeiro pro-
blema a surgir consistiu em . divi<;lir de maneira eqüitativa
as cadeiras reclináv~is que os diretores do hotel haviam, pre-
cavidamente, trazido consigo. Havia seis _cadeiras, capazes
de acomodar doze pessoas, pois a equipe de direção, forma~
da por -seis cavalheiros, havia planejado partilhar esses leitos
(no espírito de companheirismo) com suas secretárias- par-
ticulares; nós, que havíamos penetrado _nos esgotos sob a lide-
rança de Stantor, éramos em número de vinte. A saber, o
grupo de futurologia dos Professores Dringenbaum, Hazel-
don e Trottelreiner, vários repórteres e comentaristas da ca-
deira CBS de televisão, e duas pessoas recrutadas no cami-
nho, ou seja, um homen1 musculoso, com jaqueta de couro
e botas de montar (ninguém sabia quem era ele), e a pe-
quena Jo Collins, acompanhante do editor de Playboy. Era
evidente que Stantor tencionava tirar proveito da conversão
química da moça; já conseguira dela assentimento, ouvi dizer,
para que ela lhe concedesse os direitos de suas memórias.
Havendo seis cadeiras e trinta e poucos candidatos, a
situação tornou-se explosiva. Fizemos uma fila de cada lado
daque1as camas improvisadas, e olhamos ferozmente uns para
outros, até onde se pode olhar ferozmente quando se usa
máscaras de oxigênio. Alguém propôs que . se contasse até
t~ês e todos removêssemos as máscaras; dessa maneira, ob-
VIamente, todos seriam tomados de altruísmo e não haveria
1ití~io algum. No entanto, ninguém parecia particularmente
ansioso por colocar esse plano em execução. Depois de mui-
tas
. am eaças mutuas,
' ch egamos finalmente
· a uma solução:
tuaríamos
, a sorte e d ormtnamos
· , nas camas em turnos de
tres horas· Para 11•rar a sorte, usamos aqueles blocos de

38
cupons azuis que davam direito a cópulas, e que alguns de
nós ainda trazíamos conosco.
Coube-me o primeiro turno, juntamente com 0 Profes-
sor Trottelreiner, ~ue era um pouco mais magro e anguloso
do que eu gostana, uma vez que tínhamos de dormir jun~
tos . na mc;sma cama, ou antes, na mesma cadeira. Os que
nos seguiam, acordaram-nos brutalmente, e enquanto se aco~
modavarn em nossos lugares, agachamo-nos nervosamente na
beirada do esgoto e verificamos a pressão em nossos cilin..
dros. O oxigênio não duraria mais que algumas horas, não
havia dúvida. A medonha perspectiva de nos tornarmos víti-
mas da benignimização parecia inevitável.
Sabedores de que já experimentara aquele estado de
beatitud~, meus con1panheiros n1e interrogavam ansiosamen-
te a respeito dos efeitos da droga. Garanti-lhes que na ver-
dade não era tão ruim, mas falei sem muita convicção. O
sono nos venceu; para não cairmos no esgoto, amarramo..
nos, com tudo que servisse a esse fim, aos degraus de ferro
sob o bueiro.
Dormindo um sono agitado, fui despertado pelo baru-
lho de uma explosão n1uito mais poderosa do que qualquer
uma das que já haviam ocorrido. Olhei em torno, na escuri-
dão, pois todas as lanternas, com exceção de uma, tinham
sido apagadas, a fim de conservar as pilhas. Enormes ratos
luzidios marchavam pela beirada do esgoto, sendo digno de
nota que caminhavam em fila indiana, e sobre as patas tra-
seiras. Belisquei-me, mas verifiquei que aquela visão não era
um sonho.
Acordei o Professor Trottelreiner e mostrei-lhe aquele
fenômeno, que ele não soube como explicar. Os ratos cami-
nhavam agora aos pares, ignorando inteiramente nossa pre-
sença; pelo menos não tentavam lamber-nos, o que o Pro-
fessor considerou bom sina), pois indicava que, com toda
probabilidade, 0 ar estava limpo. Cautelosamente, retiramos
nossas máscaras. Os dois jornalistas, a meu lado, dormiam
profundamente, enquanto os ratos continuavam seu. desfile
sobre duas patas, mas então eu e o Professor espJTramos,
pois alguma coisa provocava comichão em nossas narinas.
39
-::. : .-·-::.-- ___
..,.,...
~ .. - ·-- ·-

O fedor do esgoto, pensei primeiramente, até notar as


raízes. Curvei o corpo para examinar meus pés. Não. havia
engano. Eu estava lançando raízes realmente - d~s JOelhos
para baixo, mais ou menos, e me tornava verde actma desse
ponto. E agora meus braços deitavam ramagens, que cres-
ciam rapidamente, diante de meus próprios olhos. É verda-
de que as folhas eram um tanto quanto pálidas, mas isso
geralmente acontece com as plantas que crescem sob a su-
perfície. Eu tinha a sensação de que a qualquer minuto come-
çaria a produzir frutos. Tive vontade de perguntar a Trotte}.:.
reiner o que ele pensava a respeito daquilo, mas tive de
levantar a voz, uma vez que ele estava farfalhando bastante.
Agora, os que dormiam pareciam uma sebe podada, na qual
apontavam, aqui e ali, flores lilases e escarlates. Os ratos mor-
discavam a folhagem, alisavam os bigodes com as patas e
cresciam ainda mais. Um pouco mais, pensei, e teremos de
montar neles. Como uma árvore, eu ansiava pelo sol. Como
se viesse1n de muito longe, trovões intermitentes chegavam a
meus ouvidos, alguma coisa estava caindo mansamente, ha~
via um estrondo surdo, como ecos num corredor, e eu me
tornei vermelho, depois dourado, e finalmente minhas fo-
lhas caíram, sendo levadas pelo vento. Será que já tinha
chegado o outono?, pensei, surpreso.
Se era assim, já chegara o momento de sairmos dali.
Arrebanhei minhas raízes e apurei o ouvido. Ah, realmente,
soav~m trombetas. Um rato com uma sela - espécime ver-
dadeirame~te extraordinário, para um roedor _ virou a ca-
beça e,. piscando suas pálpebras pesadas e oblíquias, olhou
p~ra mun .co_ m os olhos tristonhos do Professor Trottel-
remer. Hesitei, tomado por uma dúvida repentina; no caso
de se tratar
. , do. Professor' com aspecto de rato , sena. 1n. t eua-
.
mente Impropno montá-lo; por outro lado, se o animal fosse
meramente um rato que
mostrava uma certa semelhança
com o Professor, não hav· a · h . .
M I nen um motivo de preocupação.
as as trombetas soavam ·
ara a sela , novamente, de Inodo que saltei
P - e cat no esgot0 A ,
me enfim a razã · C . . · agua putrefata devolveu-
o. om calafnos de ho · d. ...
tejei de volta pa rror e 1n tgnaçao, ras-
. ra a P1ataforma, onde, relutantemente, o5
40
ratos me deram espaço. Ainda caminhavam sobre duas pa-
tas. Mas, é claro!. A verdade me ocorreu. Eram alucinações.
Se eu eta capaz de me imaginar como árvore, porque os
ratos não poderiam se imaginar pessoas? Apressadamente~
tateei em busca de minha máscara de oxigénio, encontrei-a,
coloquei-a, mas comecei a respirar com algum receio, pois co-
mo poderia estar certo de que era uma máscara real, e não
uma ilusão?
De repente, toda a área em torno de mim se iluminou.
Levantei a cabeça e percebi que o bueiro estava aberto. Um
sargento americano estendia a mão.
- Suba! - ele berrou. - Suba!
~- O que foi, chegaram os helicópteros? perguntei,
pondo-me de pé.
- Depressa! - ele berrou. - Não há um segundo
a perder!
Os demais já tinham-se levantado também. Subi a
escada.
- Já era tempo! - exclamou Stantor, que me seguia.
Lá fora, incêndios coloriam o céu de vermelho. Não
avistei nenhum hei icóptero, mas somente alguns soldados de
capacetes e vestidos como pára-quedistas. Deram-nos uma
espécie de arreio.
- Que é isso? - perguntei, confuso.
- Depressa, depressa! - berrou o sargento.
Os soldados começaram a me arrear com aquilo. "Estou
sofrendo alucinações", pensei.
- Absolutamente - disse o sargento. - São fogue-
tes individuais. O tanque de combustível está na mochila das
co:3tas. Tome, pegue isto. - Meteu uma espécie de alavanca
'
em minha mão, enquanto um soldado em pé, atrás de mim,
ajustava as correias do ombro e o cinturão. - Pronto!
O sargento deu-me um tapinha nas costas e apertou
um botão. Ouvi um apito longo e estridente, e uma fumaça
branca saiu do bico do aparelho, envolvendo-me as pernas.
Um instante depois eu voava como uma pluma.
- Mas não sei controlar isto! - gritei, enquanto su-
bia~ rumo ao céu, negro e ameaçador.

41
- - ·. : ---~:--.~~--

- Vai aprender! - gritou de volta o sargento, lá em-


baixo. - Siga o azimute. . . da. . . Estrela. . . Po.lar!
· Olhei para baixo e vi que estava voando soore uma
gigantesca pilha de escombros, que há pouco tempo atrás
constituía o Hilton. Perto dali havia uma pequena aglome-
ração de pessoas e, mais além, um anel de fogo, vermelho-
sangue, que silhueta~a um objeto, pequeno e redondo - era
o Professor Trottelreiner decolando, com o guarda-chuva
aberto. Conferi minhas correias e fivelas, para ver se esta-
vam bem presas. A unidade propulsora borbotava, retinia,
assoviava e a coluna de vapor começou a queimar minhas
pernas, de modo que levantei os joelhos até onde podia, mas
isso .fez . com que eu perdesse estabilidade. Durante um mi-
nuto, rodopiei no ar como um pião de cabeça para baixo.
Mas então, sem pensar, agarrei a alavanca, o que deve ter
modificado a direção dos jatos, pois logo em seguida me
~ncontrei na horizontal e viajando confortavelmente, e o vôo
tornou-se até mesmo agradável, muito embora pudesse me
causar prazer muito maior se eu tivesse alguma idéia de
qual era meu destino. Manobrei a alavanca, tentando ao
mesmo tempo ver toda a cena que se desenrolava lá em-
baixo. Ruínas de edifícios, como escuras presas de animais
ferozes, se destacavam contra o fundo dos incêndios. Nesse
momento, filamentos de fogo, azuis, vermelhos, verdes, su-
biram do chão, passaram silvando por mim, e compreendi
que estava sendo alvejado. O mais depressa que pude, em-
purrei a alavanca. A unidade propulsora tossiu e apitou como
uma caldeira quebrada, chamuscou minhas pernas e me ati-
rou de cabeça para baixo em direção ao espaço negro. O
vento . assoviava em meus ouvidos. Senti que minha car-
teira, meu canivete e outros pertences diversos caíam de meus
bolsos, e tentei. mergulhar a fim de recuperá-los, mas ti-
nham desaparecido completamente.
Sozinho, sob as estrelas, ainda assoviando retinindo e
~atraqueando, continuei a voar. Procurei a Est~ela Polar, a
fim de traçar uma rota . .
. , mas exatamente quando a localtzet a
umdade
me propulsora
. soltou um d errad euo
· .
arquejo e precipitei-
para batxo como uma pedra, ganhando velocidade. Por
42
, . . ·.,,... -------- ----~ --- .... ~- ~.
' "f

uma sorte incrível, pouco abaixo do chão (eu avistava uma


estrada de rodagem, clara e sinuosa, sombras de árvores
alguns tetas) um inesperado jato amorteceu minha queda ~
suficiente para que pousasse, e com grande suavidade na
grama. Havia alguém numa vala próxima, gemendo. Seria
bem estranho, pensei comigo, se fosse o Professor!- No en-
tanto, era ele mesmo. Ajudei-o a se levantar. O Professor
apalpou-se todo, queixando-se de ter perdido os óculos. Afora
isso, ele parecia estar bem. Pediu-me que o ajudasse a remo-
ver o foguete. Depois, debruçou-se . e tirou de um bolso late-
ral alguma .c oisa ~ tubos de aço e . uma roda . .
De minha unidade ele retirou também uma roda, mexeu
com esses objetos por alguns instantes e finalmente excla-
mou:
Monte. Vamos lá.
Que é isso? Para onde vamos? - perguntei, as-
sombrado.
- .- Uma bicicleta para duas pessoas. A Washington -
respondeu laconicamente o Professor, já com o pé no pedal.
"Estou sofrendo uma alucinação!", pensei comigo.
- Bobagem - disse Trottelreiner. - Isto é equipa-
mento normal de pára-quedistas .
. - Muito bem, mas como é que o senhor conhece tão
bem essas coisas? - perguntei, montando no selim traseiro.
O Professor começou a pedalar e rodamos sobre a grama,
em direção ao asfalto.
- Trabalho para a Força Aérea Americana! - ele
disse, pedalando como um louco.
. Ora, pelo que eu me lembrava, o Peru e o México se
interpunham entre nós e Washington, sem falar no Panamá.
· - Nunca ·chegaremos lá de bicicleta! - gritei, contra
o vento.
- Apenas até o ponto de reunião! - gritou o Pro-
fessor.
Ele não era então o simples futurólogo que parecia ser?
Ah, em que eu me metera desta vez? Alguma coisa impor-
tante, sem a menor dúvida . . . E de qualquer forma, o que
eu tinha a fazer em Washington? Comecei a frear.
43

/
- Que está fazendo? - rosnou o Professor, curvado
sobre 0 guidom. - Vamos em frente! . .
- Não, vou descer - respondi, decidido.
A bicicleta diminuiu a velocidade e parou. Pondo um
pé no chão, para se apoiar, 0 Professor apontou as trevas
que se estendiam a nosso redor, com um gesto amplo e
sarcástico.
- Como quiser. Boa caçada!
E pôs-se a caminho novamente.
- Obrigado por tudo! - · gritei-lhe, enquanto o brilho
vermelho da lanterna traseira desaparecia na noite. Intei-
ramente desnorteado, sentei-me num marco de estrada para
concatenar minhas idéias.
Alouma coisa me incomodava nas canelas. Distraída-
~

mente, estendi a mão e, sentindo alguns galhos, comecei a


quebrá-los. Doeu. - Se são os meus galhos - disse comi-
go mesmo - nesse caso trata-se realmente de uma aluci-
nação! - Estava-me curvando para investigar quando um
brilhante facho de luz me atingiu o rosto. Faróis prateados
surgiram numa curva. A sombra gigantesca de um automó-
vel se aproximou e a porta se abriu. Em seu interior, fileiras
de luzes azuis, verdes e douradas num painel; um par de
pernas bem feitas, em meias de nylon e chinelos de crocodi-
lo, repousando no acelerador; um rosto moreno, com lábios
de carmim, virado em minha direção; e diamantes fulguran-
tes nos dedos que seguravam o volante.
- Precisa de uma carona?
Entrei. Estava tão atordoado, que tinha me esquecido
dos galhos. Disfarçadamente, corri a mão pelas pernas. Eram
apenas brotos.
"'?
C orno, Ja. - ela perguntou com voz grave e sen-
suai.
Que quer dizer? - perguntei, inteiramente per-
plexo.
Ela deu ~e ombros. O possante carro projetou-se para
a frente, e a lluminada faixa de asfalto avançou contra nós
emergi~do da escuridão. Ela apertou um botão e uma me~
lodia VIva começou a fluir, debaixo do painel. No entanto,
44
eu pensava, havia alguma coisa errada. N ào fazia sentido
A rigor, não eram galhos, mas apenas brotos. Mas mesmo
assim!
Olhei para ela. Era realmente bonita, de uma maneira
ao mesmo tempo sedutora, demoníaca e como flor de fram-
boesa. Contudo, em lugar de uma saia, usava penas. De
avestruz? Seria outra alucinação?. . . Sendo a moda femi-
nina o que é, eu não sabia o que pensar. A estrada estava

I
\
deserta. Precipitávamo-nos en1 frente, até que a agulha do
velocímetro encostou no batente da direita. De repente, uma
mão agarrou meus cabelos, por trás. Dei um salto. Mas as 'I

longas unhas arranhavam minha nuca afetuosamente, e não


com intenções assassinas.
- Quem é? - Tentei me libertar, mas em vão. -
Solte-me, por favor.
A nossa frente tremeluziu uma luz, apareceu uma Cé.t;a
enorme, os pneus esmagaram o cascalho. O carro fez uma
curva fechada, encostou ao meio-fio e parou.
A ·mão que me agarrava os cabelos pertencia a outra
mulher. Era pálida, mais esguia, estava vestida de preto e
usava óculos de sol. A porta do carro abriu-se de sopetão.
- Onde estamos? - perguntei.
Sem uma só palavra, avançaram de unhas contra mim.
Com a que estava ao volante empurrando e a outra, já na
calçada, puxando, fui tirado brutalmente do carro. Havia uma
festa na casa. Ouvi música, gritos de pessoas embriagadas;
a fonte próxima da entrada de cascalho coloria-se de ama-
relo e · vermelho, iluminada pelas luzes que vinham das ja-
nelas. Minhas companheiras seguraram-me firmemente pelos
braços. ·
- Mas, realmente, não tenho tempo - murmurei.
Não me prestaram nenhuma atenção. A que estava de
preto virou-se e sussurrou em meus ouvidos:
- U-u-u-h!
- Como disse?
Já chegávamos à porta, e ambas começaram a rir, apa~
rentemente de mim. Tudo nelas me era repulsivo, e além
disso estavam-se tomando menores . . Ajoelhavam-se? Nãoy

45

I
~:t i
. ... - .. - • • w ••
- -- ....... -

d penas. - Aha '· - disse·


_
suas pernas estavam coberta~ . e - Neste caso, tudo nao
- sem ahvto.
comigo mesmo, nao . - '
passa mesmo de aluCinaçao. om maus modos, a que
_ Será mesmo? - retrucou, c bolsa enfeitada com
estava de óculos escuros. Levantou 1 a na cabeça. Soltei um
contas negras, e golpeou-me com e a
gemido. , . - cretino! - gritou
J ,. lhe mostro o que e a1ucmaçao, C ,
- a 1 e feroz no mesmo lugar. at,
a outra, vibrando-me um go P Ab · os olhos O Pro-
b m os braços n ·
protegendo a ca eça co · mim com 0 guarda-
fessor Trottelreiner estava cu~vado so~re pl~taforma da ga-
chuva na mão. Eu estava dettad_o so re a ares como se
leria de esgoto, e os ratos caminhavam aos p . ,
nada houvesse acontecido.
- Onde está sentindo dor? Onde? - perguntou o Pro-
"?
fessor. ·- Aqui. · h
_ ·Não, aqui. . . _ Mostrei-lhe o galo em mm a ca-
beça . .
Trottelreiner ergueu a ponta do guarda-chuva e bateu-a
contra o ponto ferido. _ · . . ,
_ Socorro! - gritei. - Por favor, nao faça ma1s tsso.
Por que é que o senhor. . . .
·· - O que estou fazendo é simplesmente ajudá-lo -
respondeu o futurólogo severamente. - . Infelizmente, não
disponho no momento de outro antídoto!
- Pelo menos, não com a ponta, pelo amor de De1_1s!
- Com a ponta é mais eficiente. ·
O Professor atingiu-me novamente, virou-se e chamou
outra pessoa. Fechei os olhos. Minha cabeça latejava. Senti .
então um puxão. O Professor e o homem de casaco de couro
haviam segurado minhas pernas e meus braços e começa-
ram a me éarregar para algum lugar.
- Para onde vamos? - perguntei, num grito.
Pedacinhos de alvenaria c;oltavam-~e do této que tremia,
caindo-me sobre a cabeça. Senti que meus carregadores ca-
minhavam sobre · alguma tábua balóuçante, e estremeci com
. . - '
ttíedo de que escorregassem . .:...__ Para onde estão-me levando?
-L perguntei debl1tnente, rnas não teéebi resposta. Trovões

46
~--·--·- -·
'
---------~r~,. . . . ...
--=-"·--.. . ..

incessantes sacudiam o ar. Depois ficou muito 1


, d c aro, e per-
cebi que estavamos o 1ado de fora cercados · ,. .
. . ' por mcendtos
Homens untformtzados agarravam todos quantos .·
eram reti-
rados dos esgotos, e os empurravam com certa brutal"d d
, d 1 a e,
um a um, atraves e uma porta aberta. Vislumbrei grandes
letras brancas, HELICóPTERO DO EXÉRCITO DOS E.U.A.
-: 1-109-894, e daí a algu~s mo~entos eu jazia numa pa-
diOla. O Professor Trottelremer enftou a cabeça pela janela
do helicóptero.
- Desculpe-me, meu bom Tichy! - gritou. - Foi
preciso!
Alguém que estava atrás dele arrancou-lhe o guarda-
chuva da mão, bateu duas vezes em sua cabeça e empurrou-o
para dentro do aparelho. O futurólogo caiu ao chão, ge-
mendo. Os rotores roncaram, os motores rugiram e a má-
quina levantou-se majestosamente do chão. O Professor sen-
tou-se a meu lado, esfregando a cabeça. Confesso que, muito
embora compreendesse perfeitamente a ~ua caridade para co-
migo, foi com alguma satisfação que notei a inchação que
crescia em sua cabeça.
· ·--- Para onde vamos?
- Para o Congresso de Futurologia - respondeu irot-
telreiner, ainda den1onstrando dor.
- Mas. . . não . . . terminou tudo?
· ·- Washington interveio - ele explicou, laconicamente.
Vamos prosseguir com nossa conferência.
·-Onde?
- Berkeley. ·
- Na universidade, o senhor quer dizer?
- Exato. Por acaso você tem um canivete?
-Não.
O helicóptero deu um salto -para adiante, rebenta~do_
em chamas. Uma explosão abriu a cabina de alto a batxo
e · fomos arremessados ao vazio. · Depots· d'tsso, houve uma· .
dor lancinante. Eu tinha a impressão de escutar o prol~nga•
do gemido de uma siren:1, enquanto alguém cortava -mi~~as·
roupas com uma tesoura. Des· fa1ect· e re cuperei a conscten
. .. ·,
cia. Sacudido · pela febre e por uma estrada muito uregular,
47
eu olhava para o teto branco, um pouco sujo de u1na ambu-
lância. A meu lado havia outro corpo, enfaixado como uma
múmia. Pelo guarda-chuva amarrado a ele, percebi tratar-se
do Professor Trottelreiner. Ocorreu-me que eu ainda estava
vivo, o que significava que, devido a algum milagre, tínha-
mos sobrevivido àquela queda terrível. De repente, a ambu-
lância fez uma curva e derrapou, com os pneus cantando;
capotou, incendiou-se e uma explosão abriu ao meio ~ua
carroçaria metálica. ··outra vez?", pensei, antes de mergu-
lhar na inconsciência. Ao abrir os olhos, vi que estava sob
uma cúpula de vidro; algumas pessoas de branco, com más-
caras, com os braços erguidos como se distribuíssem bênções
conferenciavam em voz baixa.
- Sim, era mesmo Tichy - ouvi. - Vamos colocá-lo
aqui, na jarra. Não, não, somente o cérebro. O resto é inútil.
O anestésico, por favor .
.· Um anel de níquel, revestido de algodão, obliterou tudo
mais. Eu queria gritar, pedir socorro, mas inalei o gás acre
e comecei a flutuar no vazio. Ao despertar novamente, não
consegui abrir os olhos, não fui capaz de mexer nem os
braços nem as pernas, como se tivesse sido paralisado. Apesar
da dor, · redobrei os esforços.
- Calma! Não faça força! - disse uma voz melodio-
sa e tranqüílizante. ·
: .. - · O ~u~? Onde estou? O que houve comigo? - bra-
deJ. Meus lab10s,- e todo meu rosto, pareciam estranhos.
há - O senhor está num hospital. Tudo está bem. Não
ab~olutamente nenhum motivo de preocupação. Daqui a
um mmuto vamos dar-lhe alguma coisa de comer .. .
- Mas como posso comer, se não tenho ... - Eu
estava prestes a dizer o que não tinha, mas escutei o som
de tesouras. Pedaç?s inteiros . de gaze caíram de meu rosto.
tudo se tornou mats. elaro. D uas enfermeuas . corpulentas pe-'
garam ...me com· gentileza
, ' m as f"umemente, pelos braços e me
coIocaram de pe Eu està " .
A· d · v a atonlto com o tamanho delas.
JU aram-me a me sentar .
de mim havia um caldo co n~m~ cadeua de rodas. Diante
tomaticamente p nvtdattvo. Estendendo a mão au-
, ara pegar a colh er, notet· que a mão que a
48
··---~----
I . . --- ~~ - .. - · .. ______.. -----
.., f

segurou e~~ pequena e negra _como ébano. Inspecionei :aquela


mão. Venftcando
, que se movta
. exatamente segundo meus de.
sejos, conclui que era mtnha. Contudo, como estava muda-
da! Olhei em torno, procurando alguém a quem eu pudess
pedir explicação para aquilo, e meus olhos pousaram nu~
espelho, na parede oposta. Ali, numa cadeira de rodas, es-
tava sentada uma moça negra muito atraente, enfaixada, de
pijamas, com uma expressão de desalento no rosto. Levei a
mão ao nariz. O reflexo no espelho fez o- mesmo. Apalpei
todo meu rosto, meu pescoço, mas quando cheguei ao busto,
gritei, alarmado. Minha voz era aguda e estridente, como se
saísse de uma flauta de junco.
-Meu Deus! .
A enfermeira ralhou com alguém por não haver coberto
o espelho, e depois virou-se para mim, dizendo:
- Você é ljon Tichy? _ ..
- Sou. Isto é . . . sim, sou!! Mas o que sigriifi~a isso?
Aquela moça . . . aquela moça negra ...
- Um transplante. Não havia outra . maneira . . Tínha-
mos de salvar sua vida, e salvar sua vida significava ._.. . bem,
seu cérebro! - A enfermeira falava depressa mas com toda
clareza, segurando minhas duas mãos nas dela. fechei os
olhos. Abri-os, sentindo-me de repente muito fraco. -O cirur-
gião entrou na sala, com uma expressão de suprema indig-
nação.
- O que se passa aqui? - rugiu. - O paciente pode-
ria entrar em estado de choque!
- Isso já aconteceu! - retrucou a enfermeira. - Foi
Simmons, doutor. Eu lhe disse que cobrisse o espelho!
- Choque? Então, o que a senhora está esperando?
Leve-o para a sala de cirurgia! - ordenou o médico.
- Não! Não agüento mais! - gritei.
Entretanto, ninguém deu ouvidos às minhas suplicas e
lamentações femininas. Um lençol branco caiu-me sobre os
olhos. Tentei me libertar, mas não consegui. Ouvia e sentia
as rodas de borracha do carro de hospital ·rolando sobre um
piso de ladrilhos. Houve então uma explosão terrível, 0 ba-

49
rulho de janelas . que se ·espatifavam, chamas e fumaça. Uma·
explosão fez balançar o corredor. .
- É uma manifestação! Uma passeata! - gntou al-
guém. Vidros partiam-se e eram esmagados sob os pés de
pessoas que fugiam. Preso irremediavelmente ~?b . o lençol,
senti uma dor aguda do lado e perdi a consctencta.
Recobrei os sentidos e me encontrei num monte de
geléia de uva, horrivelmente azeda. Estava em decúbito ven-
tral, com aiguma coisa grande e bastante macia a me esma-
gar. Um.· colchão. Empurrei-o com os pés. Lascas de tijolos
furavam meus. joelhos e as palmas de minhas mãos. Conse-
gui me levantar, cuspindo caroços de uva e areia. Era como
se uma bomba houvesse atingido aquele lugar. As esqua-
drias, das. jal\~las ..estavam soltas, com estilhaços das vidraças
pendendo dos · caixilhos, apontando para o chão. A cama de
hospital, virada de cabeça para baixo, estava queimada. Perto
de mim :havia .um cartão impresso, grande, sujo de geléia.
Peguei-o e li:

Prezaio ··.Paciente (primeiro nome, último nome)!


Você ·se encontra no 1nomento em nosso hospital estatal
.experimental. As medidas tomadas para lhe. salvar a
vi4a .fr"am drásticas, extremamente drásticas (circular
um)_. l':.Jpssos 1nelhores cirurgiões, valendo-se dos mais
recentes progressos da medicina moderna, realizaram em·
vopê ~."':~' quas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove,
dez . .operações (circular um). Em vista do estado em que
voe~, ,se ~ncontrava, foram obrigados a substituir certas
partes ~e, seu organismo com órgãos obtidos de outras
pessoas, .obedecendo rigorosamente o que dispõe a lei
fede:,al ~Rev·., Com. Est. 1-989/0-001/89/1). O aviso
dque voee. esta lendo nesse momento fo.1 red.tgt'do cu1.'d a-
o~amente,, a fim de ajudá-lo a se ajustar da melhor ma-
nezra
,. posstvel · a estas czrcunstancras
· " · . · que
novas, a1nda
lnesperadas
t' f · ' . de sua· vida' a qua1, apressamo-nos a repe.:.
lr, ·01. . sa1.va por nós· Embora tenha sido necessário re-
mover
"' seus. braços, · , esptnha,
' p'ernas, . crânio,· pulmões, es..
·t omago, rtns' /lgado ' outros ( ctrcular
· um ou mais), esteja
50
l . -

certo de que esse(s) órgão(s) receberam tratamento ple-


namente consoantes com o que manda sua religião. De
acordo com o ritual apropriado, foram enterrados, em-
balsamados, mumificados, sepultados no mar, cremados
com as cinzas espalhadas ao vento, preservados numa
urna, atirados ao lixo (circular um). A nova forma com
a qual você viverá doravante uma existência feliz e sau-
dável poderá, possivelmente, provocar-lhe algumas sur-
presas, mas podemos lhe garantir que com o tempo você
se acostumará inteiramente a ela, como já aconteceu com
todos os nossos prezados pacientes. Suplementamos seú
organismo com órgãos excelentes, bons, perfeitamente
funcionais, adequados, os únicos de que dispúnhamos
(circular um), e damos plena garantia de que durarão
um ano, seis meses, três meses, três semanas, seis dias
(circular um). Naturalmente, você deve compreender
que . ..

Nesse ponto, o texto se interrompia. Somente então vi


meu próprio nome escrito em letras de imprensa no alto do
cartão: IJON TICHY, Operações 6, 7 e 8, CONJUNTO. O
papel tremeu em minhas mãos. Meu Deus, pensei, o que
restava de mim? Tive medo de olhar até para meus dedos.
Havia pêlos grossos e vemelhos no dorso da mão. Tonto,
e tremendo dos pés à cabeça, levantei-me, apoiando-me na
parede. Não tinha busto. Bem, já era alguma coisa. Silêncio
completo, com exceção do chilrear de um passarinho lá fora.
Belo momento para chilrear! CONJUNTO. O que poderi3:
significar CONJUNTO? Nesse caso, quem era eu? ljon Tichy.
Eu tinha certeza disso. Então. . . primeiramente, apalpei as
pernas. Sim, eram duas, mas tortas . . . com os joelhos fie-
tidos. O estômago - era grande demais, o umbigo parecia
um poço, dobras e mais dobras de banha. . . brrr! O que
havia acontecido comigo? Primeiro, o helicóptero. Abatido
por fogo antiaéreo, provavelmente. Depois, a ambulância.
Uma granada ou uma mina. E depois eu era aquela mulher-
zinha negra ... · a passeata . . . o corredor. . . outra grana-

51
da? E o que fora feito dela, coitadinha? E agora, outra
vez . . • Mas o que significava toda aquela devastação?
- Olá! - gritei. - Há alguém aí?
Tomei um susto. Eu tinha uma voz magnifica, um bai-
xo forte, de cantor de ópera. Já era tempo de me olhar ao
espelho, mas não tinha coragem. Levei a mão à face. Santo
Deus, cachos grossos e densos. Baixando o olhar, vi uma
barba - hirsuta, fosca, que cobria a metade de meu peito, e
de um ruivo acentuado. Um Matusalém! Bem, sempre pode-
ria raspar aquela barba . . . Saí para o terraço. Aquele pás-
saro imbecil continuava a chilrear. Choupos, sicômoros, ar-
bustos . . . o que era aquilo? Um parque? O hospital estatal?
Havia urna pessoa sentada num banco, com as calças arre-
gaçadas, tomando sol:
- Como vai? - perguntei.
O homem virou-se. Notei que aquele rosto me era estra-
nhamente familiar. Esfreguei os olhos. Mas claro que era, se
era o meu! Com três passadas saltei para o chão, correndo
para me ver de perto, ofegando. Era eu mesmo, é claro, sem
dúvida alguma.
- Por que está me olhando desse jeito? - ele me
perguntou, nervosamente, com minha voz.
- O que. . . onde você conseguiu. . . - gaguejei. -
Quem é você? Quem lhe deu o direito de ...
- Ah, é você.
Levantou-se.
- Sou o Professor Trottelreiner.
-.- Mas. . . n1as por que, pelo amor de Deus, por que ...
o :;ennor ...
. - N~o tive nada a ver com isso - ele respondeu, fran-
Zindo a ~m~a testa. - Eles invadiram isto aqui, você sabe,
aqueles htppLes, zippies. Manifestantes. Uma granada . . . Seu
estado foi considerado desesperador, como também 0 meu.
Eu estava no quarto ao lado.
. - Desesperador, uma ova! - gritei. _ Posso ver as
cotsas, não é? Professor, como o senhor foi capaz?!
- ~as eu estava inconsciente, dou-lhe minha palavrar
O Dr. F1sher, o cirurg1·a-o-ch e f e, exp11cou
. .
tudo depots: usa-
52
I. .

ram primeiro os melhores órgãos, e quando chegou minha


vez, só sobravam os restos, e eles ...
- Como o senhor se atreve! Como se não lhe bastasse
apoderar-se de meu corpo, ainda o insulta!
- Estou apenas repetindo o que me disse o Dr. Fisher!
Eles consideram isso - apontou para o peito - inteira-
mente inadequado, mas na falta de coisa melhor foram avan-
te com a reanimação. Enquanto isso, você já tinha sido
transplantado .. .
Eu .. . ?
- Seu cérebro, quer dizer.
- Então, quem é este? Quero dizer, quem era? -
perguntei, apontando para mim.
- Um dos participantes da manifestação. Provavel-
mente, um dos líderes. Não sabia usar detonadores, e aca-
bou com un1 estilhaço de granada no cérebro, pelo que en-
tendi. E depois, bem. . . - Trottelreiner deu de ombros
(meus ombros) .
Estremeci, sentindo-me pouco à vontade naquele novo
corpo, sem saber ao certo como me conportar em relação a
ele. Sobretudo, eu estava tomado de fúria. Aquelas unhas
grossas, quadradas, não pareciam absolutamente ser de
uma pessoa dotada de grande inteligência!
- E agora? -murmurei, sentando-me ao lado do Pro-
fessor, com os joelhos subitamente fracos. - O senhor tem
um espelho?
Trotte]reiner tirou um espelho do bolso. Peguei-o ansio-
-samente e olhei: um olho preto inchado, um nariz espon-
joso, os dentes em petição de miséria, duplo queixo. A parte
inferior do rosto estava submergida em pêlos ruivos. Devol-
vendo o espelho, percebi que o Professor tinha novamente
exposto os joelhos e as canelas ao sol; meu primeiro im-
pulso foi de lhe advertir que minha pele era extremamente
·sensível, mas me contive. Se ele sofresse queimaduras, o pro-
blema seria dele, e não meu, nunca mais!
- Para onde irei agora? - perguntei, pensando em
voz alta.

53
Trottelreiner sentou-se. Observou 1neu (meu?) rosto
Havia pena em seus (seus?) olhos.
- Se quer un1 conselho, não vá a parte alguma. Ele
era procurado tanto pela polícia como pelo F . B . I. , por
inúmeros atos de terrorismo. Foram expedidos mandados de
prisão, com ordem de atirar para matar.
Como se não bastasse o resto! Meus Deus, pensei, devo
estar sofrendo uma alucinação!
- De maneira alguma! protestou energicamente
Trottelreiner. - É a pura realidade, meu caro, a realidade
pura e simples.
- Então, por que esse hospital está vazio?
- Não sabe? Ah, você estava inconsciente. . . Está
havendo uma greve.
- Dos médicos?
- De todos, de todo o pessoal. Entende, os guerri-
lheiros levaram Fisher, e querem trocá-lo por você.
· ·- Por mim?
- Claro que sim. Eles não têm a menor idéia, com-
p~eenda, de que você não é mais você, mas apenas Ijon
Ttchy ...
Minha cabeça doía lancinantemente.
-. Vou ~ometer suicídio - eu disse, com minha voz
de baixo, mmto rouca agora.
- É melhor não fazer isto. se r·tzer, sofrerá novo trans-
pI ante.
~reneticamente, vasculhei minhas lembranças, meu cére-
bro~ a procura de alguma forma de me convencer de que
aqUilo não era mesmo alucinação.
-Mas e se · · · - comecei a d'
- E se' o quê? tzer, pondo-me de pé.
- E se eu sair d aqut· montado no senhor?
tal a idéia? Rem? Que
- Montado em mi ? p
Olh · b m · erdeu o juízo?
. et em dentro de seus 11 •
abatxei-me saltei em o lOs, retesei os músculos
, suas costas ~ '
negra e pútrida quase me e cat no esgoto. A lama
· · para fora dali H ·
Jet engasgou, mas que alívio' Raste-
. ~am~m t .
ra os agora. Deviam ter ido
54
para algum lugar. Restavam apenas quatro. · Aos pés do Pro-
fessor Trottelreiner, profundan1ente adormecido,· eles jogavam
bridge, usando o baralho do Professor. Bridge? Mesmo com
a concentração invulgarmente alta de alucinógenos no ar,
seria possível que ratos jogassem bridge? Preocupado, olhei
por cima do ombro do mais gordo deles. Estava segurando
as cartas sem nenhuma ordem, e nem mesmo as · dispusera
segundo os naipes. Então, estava tudo bem . .. Dei um sus-
piro de alívio.
Mas apenas para ter certeza, tomei a firme decisão de
nao me afastar um dedo do esgoto. Já estava cansado da-
queles salvamentos, pelo menos por enquanto: No futuro,
extguta provas, pnme1ro. De outra maneira, bem·, só Deus
sab:1 o que eu começaria a ver em seguida. Apalpei o ·rosto.
Não havia nenhun1a barba, mas também nenhuma máscara.
O que tinha acontecido novamente?
- No que me diz respeito ___. disse o Professor Trottel-
reiner, com os olhos ainda fechados - sou uma moça ho-
nesta e respeitável, e espero, senhor, que leve este fato em
consideração.
Virou um pouco a cabeça, como se escutasse atenta-
mente alguma resposta, e depois acrescentou: :
- Queira acreditar, senhor, que não simulo uma mera
aparência de virtude, não estou assumindo uma atitude falsa,
como a que muitas pessoas usam, apenas para despertar pai-
xões ainda mais ardentes. É a pura expressão da verdade~
Não me toque, pois caso contrário serei forçada · a pôr ter-
mo à minha vida, usando de violência.
- Aha! - pensei comigo. - Ele também -deseja vol-
tar ao e~goto!
Isso me deixou à vontade. O fato de o Professor estar
sofrendo uma alucinação parecia provar que eu, pelo menos,
não estava.
- Deseja que eu cante algun1a coisa? - ··continuou o
Professor. - Muito bem. Uma ou duas canções inocentes
não fazem mal algum. O senhor teria a .·bondade de me
• • • ' I

acompanhar? i ... . . . · l

55
Por outro lado, ele poderia estar simplesmente falando
dornlindo. Nesse caso, nada estaria comprovado. Deveria
monta.; nele, novamente, a fim de ter certeza? Mas eu podia,
afinal de contas, saltar para dentro do esgoto sem sua ajuda.
- )rlfelizmente, acho que estou sem voz hoje. E ma-
man está esperando. Não precisa me acompanhar, por fa-
vor! - Trottelreiner fez esta última declaração com um altivo
gesto de cabeça. Levantei-me e olhei em torno, segurando a
lanterna. Os ratos tinham desaparecido. Os futurólogos suí-
ços roncavam, encostados à parede. Mais adiante, nas ca-
deiras infláveis, dormiam jornalistas e alguns gerentes do
Hilton . O chão estava juncado de ossos de galinha e latas
de cerveja. Notável realismo, para uma alucinação. Mas eu
não estava disposto a aceitar nada que não fosse uma prova
definitiva, irreversível, inequívoca. O que era aquilo lá em
cima?
Explosões, de TNT ou ATP, surdas e intermitentes. De-
pois, um som alto de água, bem perto. A superfície das
águas escuras se abriram, deixando ver o rosto contorcido do
Professor Trottelreiner. Estendi-lhe a mão e o ajudei a sair
dali. O Professor sacudiu as roupas moi h adas e disse:
- Tive um sonho ridículo.
- O senhor era uma donzela, muito bonita, não?
- Maldição! Então ainda estou sofrendo de aluci-
nações!
- Por que pensa assim? - perguntei.
- Somente nas alucinações é que outras pessoas sa-
bem o que sonhamos.
-.- Não é .isso,. é que o senhor estava falando enquanto
dorm~a . - expltquet. - Professor, ouça-me, 0 senhor é um
espectalJsta. Por acaso c h 1 ,
. on ece a gum metodo seguro para
determmar se estamos com o juízo perfeito ou não?
- Bem, sempre trago comigo um pouco de vigilax.
A embalagem está molhad · - . .
bletes. O vigilax disp a, mas tsso nao preJudtca os ta·
t d
. _ ersa o os os estados de sonolência,
transes, tlusoes fantas.
' Ias e pesadelos Quer experimentar?
56
--- O medicamento pode ter mesmo esse efeito _ mur-
murei - mas certamente não funcionará se ele próprio for
uma fantasia.
- Se estivermos sofrendo alucinaç3es, acordaremos. Se
não for esse o caso, não acontecerá absolutamente nada _
garantiu-me o Professor, metendo na boca um tablete rosa-
pálido. Peguei outro, na caixinha mo1hada que ele me es-
tendeu, coloquei-o sobre a língua e o engoli. Nesse instante,
um bueiro abriu-se com um clangor, e um soldado de capacete
berrou:
-- Vamos! Saiam já daí! E que seja depressa!
- O que vai ser dessa vez, sargento, helicópteros ou
foguetes individuais? - perguntei, zombeteiro. - Franca-
mente, acho melhor me deixarem fora disso!
Com essas palavras, fui sentar-me junto da parede, cru-
zando os braços.
-- Esse aí está de miolo mole. hein? - comentou o
sargento com Trottelreiner, enquanto este começava a subir
os degraus. Houve um grande tumulto. Stantor pegou-me pe-
los ombros e tentou me erguer, mas empurrei-o.
- Está querendo ficar aqui? - ele disse. - Como
quetra ...
- Não - corrigi-o; - o que você deve dizer é "Boa
caçada!".
Um a um, todos desapareceram pelo bueiro aberto. Per-
cebi um clarão trémulo, ouvi gritos, ordens, e depois um
rugido silvante, pelo que depreendi que estavam sendo eva-
cuados com auxílio daquelas mochilas propulsoras. Estra-
nho, muito estranho. O que significava aquilo? Seria possí-
vel que eu estivesse sofrendo alucinaç.ões por eles? Alucina-
ção por procuração? E eu ia ficar sentado ali, daquela ma-
neira, até o dia do Juízo Final?
Entretanto, não me movi. A tampa do bueiro fechou-se
com outro estrépito metálico e fiquei sozinho. Uma lan-
terna, colocada verticalmente no chão, lançava um tênue cír-
culo de luz no teto, proporcionando alguma iluminação. Pas-
saram dois ratos, com as caudas entrelaçadas. Ora, isso ti-

51
nha de significar alguma coisa, pensei comigo. Mas o quê?'
Provavelmente era melhor não fazer caso.
Alguma coisa se agitou na água, com um ruído gorgo-·
lejante. - Muito bem - eu disse, com a respiração sus-
pensa - quem será que vai aparecer agora? - A super-·
fície viscosa da água se abriu, surgindo as formas negras e·
reluzentes de cinco homens-rãs, que usavam óculos de mer-
gulho e máscaras de oxigênio, segurando armas. Um a um,.
saltaram para a plataforma e se aproximaram de mim, ba-·
tendo os pés-de-pato no concreto.
- ?H abla usted espafíol? - perguntou-me o primeiro,.
tirando a máscara. Era um homem de rosto moreno e bigo-
dinho fino.
- Não - respondi. - Mas aposto que você fala
inglês.
- Um gringo metiào a besta - ele disse para o outro..
Como se atendesse a uma ordem, todos apontaram suas ar-
mas contra mim.
- Querem que eu pule no esgoto? - perguntei diver-
tidamente.
- Encoste-se na parede! Mãos ao alto! Mais alto!
. Um_ cano de arma comprimiu minhas costelas. Aquela
al~c.maçao, observei, era bastante realista. As armas auto-
mattcas estavam até enroladas em sacos I~ f .
pedir que se molhassem. p as tcos, para Im-
- Havia outros p ·
<l' h or aqui - disse o homem de bigo-
m u a um moreno atarracado
garro (este pareda ser o líde;) qu~ tentava ~cender um ci-
vam o lugar, chutando as latas . . . . nquan~o Isso, vasculha-
b:trulheira infernal revira11d de cerveJa e fazendo uma
0
djsse: ' as cadeiras. Por fim, o oficiai
- Tem arma~?
- Não há nada com ele Cap·c1
- Posso baixar as m _ ' ao. Verifiquei.
ficando dormenteS. aos agora? perguntei. - Estão
- Vamos fazer elas
~o d dormirem
ar o serviço? · · · · · para sempre. Já pos-
58
......

- Hum-hum - assentiu o oficial, soprando fumaça


pelo nariz. - Não, espere!
Caminhou em minha direção, balançando os quadris.
De &eu cinturão pendia uma fieira de alianças de ouro. De-
talhes impressionantes, pensei, tão realistas!
- Onde estão os outros? - perguntou.
- É o senhor quem me pergunta? Bem, sofreram.
uma alucinação e saíram pelo bueiro. Mas é. claro que o se-
nhor sabe disso.
- Não está bom da cachola, Capitão. Loco. Deixa eu
acabar com esse sofrimento dele - disse o de bigodinho,
destravando a pistola, através do plástico.
- Assim, não, burro - disse o oficial. - Vai fazer
um buraco no plástico, e onde vai arranjar outro? Use uma
faca.
~ Desculpem-me a interrupção - eu àisse, abaixando
as mãos um pouco - mas acho que prefiro un1a bala.
- Quem tem uma faca?
Olharam uns para os outros. É claro C]Ue não en~on­
trariam nenhuma, pensei. Isso faria com que as coisas aca-
bassem muito depressa. O oficial atirou a ponta de cigarro
ao chão, esmagou-a com a parte mais grossa do pé-de-pato,
cuspiu e disse:
- Acabem com ele. Vamos logo.
- Isso mesmo, por favor! - concordei prontamente.
Juntaram-se ao redor de mim, curiosos.
- .Por que tanta pressa, gringo? Olhem só o desgraça-
do, ele está pedindo! Quem sabe se não devemos apenas
cortar os dedos e o nariz dele? - Todos tinham sugestões
a fazer.
- Cavalheiros, por favor! Não tenham contemplação!
Cumpram seu dever, não tenham misericórdia! - conclamei.
- Para a água! Corrente acima! ~ gritou o oficial, e
recolocaram as máscaras, enquanto o capitão abria seu traje
de mergulho, desabotoava a jaqueta, tirando dali um peque-·
no revólver. Depois soprou a boca do cano, rodopiou-o pela
guarda do gatilho como um vaqueiro num faroeste de se-
gunda categoria e deu-me um tiro no peito. Senti uma dor·

59·
violenta e causticante. Comecei a escorregar pela parede,
mas ele me agarrou pelos cabelos, puxou minha cabeça para
·trás e disparou novamente, à queima-roupa, no rosto. O ~la­
rão foi cegante, mas não tive tempo de escutar o estampido.
Depois disso encontrei-me numa escuridão total. sufocando-
me, durante milênios, ao que parecia; alguma coisa me le-
vantou, jogou-me de um lado para outro, não numa ambu-
lância, eu esperava, ou num helicóptero. A escuridão torna-
va-se ainda mais profunda, e por fim até mesmo aquele ne-
grume mais negro foi obliterado, até que nada restou.
Quando abri os olhos, estava mais ou menos sentado
numa cama bem feita, num quarto que tinha uma jane-
linha estreita, com vidraças pintadas de branco. Fitei a por-
ta entorpecidamente, como se esperasse alguma coisa. Não
que tivesse a mais tênue idéia de onde estava ou de como
havia chegado ali. Meus pés estavam calçados com sandá-
1ias sem salto e os pijamas eram listrados. Bem, pelo menos
havia agora um pouco de variedade, pensei, embora ao que
parecia aquele sonho não seria dos mais interessantes. A
porta abriu-se. No meio de um grupo de jovens de jalecos
brancos estava um médico baixo e barbudo, com cabelos
grisalhos arrepiados e óculos com armação de ouro no na-
riz. Segurava um malho de borracha.
- E aqui temos um caso interessante, cavalheiros -
disse ele. - Interessantíssimo. O paciente ingeriu uma dose
excessiva de alucinógenos há quatro meses. Os efeitos, na-
turalmente, se dissiparam logo depois, mas ele se recusa a
admitir isso e persiste na opinião de que tudo quanto vê
é, na realidade, irreal. Na verdade, ele chegara a tal extremo
nessa sua aberração que chegou a implorar aos soldados do
·General Díaz - estavam fugindo do palácio, que tinha sido
ocupado, através da rede de esgotos - que o executassem,
calcula~do _que a ~orte constituiria na verdade um desper-
tar da Ilusao. Sua v1da foi salva graças a três operações ex-
tremamente delicadas - duas balas removidas no ventrí-
culo. esquerdo - e ele continua a pensar que está sofrendo
·al ucmações.

60
.~. _..,. . -·· -····-· ~ -~- ....··-.--- ·--- -<· .... - - ~- - - ·- ·-- ~ ·- ............. -..,...• . - ... ..._.... _. ..~r..._,.,

- Esquizofrenia? - perguntou uma jovem interna, ma...


gra. Incapaz de enxergar sobre os ombros dos colegas, es--
tava nas pontas dos pés, para poder me ver.
- N ào. Estamos aqui diante de uma nova forma · de
psicose reativa, provocada, sem dúvida alguma, pela apli--
cação excessiva dessas drogas letais. Um caso sem esperan-
ças. Na verdade, seu estado é tão grave que já ficou deci-·
dido que o paciente deve ser submetido imediatamente a
vitrificação.
- Mesmo, Professor? - exclamou a interna. Mal po-
dia conter sua excitação.
- Como não? Como todos sabem, os casos sem es-
perança hoje em dia podem ser refrigerados em nitrogênio
líquido por um período de quarenta a setenta anos. O paCiente
é colocado num recipiente hermético, uma espécie de frasco
de Dewar, ou garrafa térmica, com uma folha clínica ·com-
pleta. A medida que se fazem novas descobertas e novos
progressos no campo da medicina, vão sendo inventaria-
dos os gabinetes onde essas pessoas se encontram, e aquelas
que podem ser ajudadas são imediatamente ressuscitadas~
- O senhor consente em s.er vitrificado? - perguntou-
me a interna, enfiando a cabeça entre dois colegas corpu-
lentos. Seus olhos brilhavam de curiosidade científica.
- Desculpe-me, mas não converso com aparições -
respondi. - Mas posso lhe dizer qual é seu primeiro nome.
A Iucinda.
Saíram todos, batendo a porta, mas eu ainda conseguia
escutar sua voz. - Vitrificação! Hibernação perene! Mas que
coisa, é como uma viagem no tempo! Que coisa romântica!
- Eu não concordava inteiramente com ela, mas de nada
valia tentar contraditar aquela fantasia elaborada. No dia
seguinte, à noitinha, dois atendentes empurraram minha ca-
ma para a sala de operações, onde havia um tanque de vi-
dro; os vapores que subiam dele eram tão frios q!!le tive de
conter a respiração. Depois de várias injeções, fui levado à
mesa de operação, recebendo uma transfusão de um líqui-
do doce e transparente, através de um tubo - glicerina,

61

J
explicou o atendente mais velho, um sujeito simpático. De-
cidi dar-lhe o nome de Alucinatã. Quando comecei a dor-
mir, ele se debruçou e gritou em meu ouvido: - Bons
sonhos!
Não consegui responder, não consegui mexer um só
·dedo, e durante todo o tempo - semanas, aparentemente!
- receei que se apressassem demais e me atirassem ao tan-
que antes que eu perdesse a consciência totalmente. E ao
que parece estavam mesmo um pouco apressados, pois 0
último som que escutei daquele mundo foi o espadanar pr0 ...
vocado pela queda de meu corpo no nitrogênio líquido. De-
sagradabilíssimo.

Nada.

Nada.

Nada. Absoluta e positivamente nada.

Por algum tempo, pensei que talvez houvesse alguma


coisa, mas não, havia me enganado. Nada.

Não há nada aqui . . . Nem eu, tampouco.

Quanto tempo ainda? Nada.

Quase alguma coisa, mas não há como ter certeza.


Tenho de me concentrar.

Alguma coisa, realmente, mas muito pouco. Normal-


mente eu diria que não foi nada.

Geleiras, azu1s e brancas. Tudo feito de gelo. Eu tam.:


bém.

Bonitas, aquelas geleiras. Se ao ' menos não fizesse tanto


frio!

62
-·- -------- ---- - .. -·-..-- -~-~.... _ .1'";

Agulhas de gelo, cristais de neve. O Ártico. Gelado até


.os ossos. Ossos? Que ossos - gelo puro e transparente.
•Quebradiço e duro.

Sinto que eu sou carne congelada. Mas o que significa


·"eu''? Este é o problema.

Nunca, nunca senti tanto frio. Por sorte, porém, é um


~mistério profundo o que significa "eu". Serei um ser vivo
um objeto, um ser neutro? Um iceberg, talvez? Os icebergs'
·têm buraquinhos?

Sou uma couve-flor de inverno que se aquece aos raios


·do sol. Primavera, enfim! Tudo degela. Principalmente eu.
·E m minha boca ... , um pingente de gelo ou uma língua.

É uma língua. Enquanto isso, estão-me torcendo, vi-


rando, rolando e sacudindo. E me esfregando e me batendo.
.Acho-me sob um lençol plástico, e sobre mim. . . lâmpadas.
"Então foi isso que me fez lembrar de uma couve-flor de
·estufa. Devo ter estado a tresvariar. Brancura por toda par-
·te . . . mas são paredes, e não neve.

Fui descongelado. Por gratidão, resolvi escrever uni diá..


-rio, que começarei assim que meus dedos puderem segurar
·uma caneta. Gelos fulgurantes e neve cintilante ainda dançam
-diante de meus olhos. O frio é hediondo, mas pelo menos
:agora posso me esquentar um pouco

·27 VII . Minha reanimação levou três semanas. Aparen-


·temente, houve certas dificuldades. Estou escrevendo s~nta­
do na cama. Tenho um quarto grande durante o dia, e um
·pequeno de noite. Minhas enfermeiras são moças atraentes,
·que usam máscaras prateadas. Algumas não possuem seios.
·E devo estar com visão dupla, pois do contrário o médico-
chefe tem duas cabeças. A con1ida é comum - purê de
·batatas, leite, mingau de aveia, carne de boi, pão e ~an­
·teiga. A sopa de cebolas estava um tanto queimada. Geleuas

63
_
.... . .

~inda povoam meus sonhos - não desaparecem. Estremeço,


f1co azul, congelo-me, submerjo-me na neve, sou persegui-
do por geadas e fico preso no gelo até o alvorecer. Os sacos
de água quente e as compressas pouco ajudam. Um pouco
de conhaque à hora de dormir talvez fosse bom.

28 . VII . As enfermeiras sem seios são estudantes. E im-


possível distinguir os sexos. Todos são altos, belos e sorriem
perpetuamente. Estou enfraquecido e nervoso como uma crian-
ça, as menores coisas me irritam. Depois de uma injeção,
hoje, agarrei a agulha e espetei a enfermeira-chefe no tra-
se.iro, n1as nem por um instante ela parou de sorrir. As
vezes, sinto-me como se estivesse indo embora, flutuando,
em meu banco de gelo, isto é, minha cama. Mostram-me
Imagens no teto: gatinhos, coelhinhos, cavalinhos, cachor-
rinhos e abelhas. Por quê? A revista que me deram é para
cnanças. Engano?

29 VII . Canso-me facilmente. Mas agora sei que antes,


no começo de minha reanimação, eu estava imaginando coi-
sas. Era de se esperar que isso acontecesse. :É perfeitamente
normal. Quem chega de várias décadas no passado tem de
se aclimatar gradualmente à nova vida. O procedimento não
difere do que é usado para trazer um mergulhador à super-
fície; não pode ser feito de uma vez só, quando a profundi-
dade é bastante grande. Por isso, um descongelado - a pri-
meira palavra nova que aprendi - é preparado paulatina-
mente, e por estágios, para enfrentar um mundo desconheci-
do. O ano é 2039. Estamos em julho, verão, e faz um tem-
po magnífico. Minha enfermeira particular é Aileen Rogers,
olhos azuis, vinte e três anos . Vim ao mundo - pela se-
gunda vez -num ressuscitório nos subúrbios de Nova York.
Ou centro de ressurreição. E assim que o chamam, normal-
mente. E praticamente uma cidade, com jardins. Possuem
seus próprios moinhos, padarias, oficinas de impressão. Por-
que hoje em dia não há mais pão, nem livros. No entanto,
servem-me pão, queijo, creme para o café. Não vem de
uma vaca? Minha enfermeira achava que uma vaca era ai-

64
guma espécie de ~áquina. Nã? co~sigo me fazer entender.
De onde vem o leite? Do cap1m. Sim, sei disso, mas quem
é que come o capim para fazer o leite? Ninguém come 0
capim. Então, de onde vem o leite? Do capim. O capim pro-
duz o leite sozinho. Não, sozinho não! Ou melhor, não é
bem isso. Precisa de colaboração. A vaca colabora? Não.
Então, que animal? Nenhum animal. Então, de onde vem
0 leite? E assim por diante, em círculos.

30 VII 2039. Na verdade, é bem simples. Eles borri-


fam alguma coisa sobre o pasto e o sol transforma o capim
em queijo. Mas isso ainda não explica o leite. Entretanto,
isso não tem tanta importância. Começo a me levantar ago-
ra, e posso utilizar o passeador. Hoje, vi unl laguinho cheio
de cisnes. São ensinados, e vêm quando os chamamos. Trei-
nados? Não, guiados. E o que significa isso? Onde estão
os guias? Guiados por controle remoto. Fantástico. Não exis-
tem mais pássaros naturais, morreram todos no começo do
séc. XXI - devido ao nevoeiro. Isso, pelo menos, eu en-
tendo.

31 VII 2039 . Comecei a assistir a palestras sobre a vida


contemporânea. Dadas por um computador. A máquina não
responde a todas minhas perguntas. "Você aprenderá isto
depois." Faz trinta anos que a Terra goza de paz universal,
graças ao desarmamento universal. Não há, praticamente,
mais exércitos. O computador mostrou-me os modelos de
robô. Há muitos, de todas as espécies, mas não no ressus-
citório - para evitar que os descongelados se assustem com
eles. Finalmente, alcançou-se a prosperidade em escala mun-
dial. As coisas que desejo saber não são as mais importantes,
diz meu preceptor. A instrução tem lugar num cubículo,
diante de um console. Palavras, imagens, projeções tridi-
mensionais.

5 VIII 2039 . Mais quatro dias e deixarei o ressusci-


tório. ·Atualmente, a Terra possui 29,5 bilhões de habi~an·
.tes. Há nações e fronteiras, mas acabaram-se os confhtos.
65

----·- _ .,... _,... __ .___


1
Aprendi h0je a diferença fundan1ental entre a gente nova e a
antü.ta. o <."l>n~cito chavt) é a psiquim. Vivcruos nwna so-
cird~de psiqujnliLada. O terrno ve111 de '"psicoquitnic~"· Pa-
lavras t"omu "psiq uj~-l>·• ou "psicoh.\~il'O ·• não são n1aas usa-
tias. O "'.lmputadür diL que a httn1anidade estava dividida
pei~\S cüntr~h.iiçó~s ~'ntre a vdha cerebralidade, herdada dos
auim:lis, e a nova ccrebralidaJc. A ~1ntiga era in1pulsiva, ir-
ra~·i'-~n~\1, e~")ista e in"uravelmente obstinada. A nova puxava
para uma :1in.'\'àl'. a v"'lha pJra a outra. (Ainda tenho difi-
culd~\\.te p;.tra me cxpress~•r quando se trata de assuntos mais
ú.nnpk~J.l..'\.) A unt iga tr~wtn·a un1a guerra inl'Cssante contra
a n"wa. Ist"' ~. a tll)\·a c'-'ntra a velha. A psiqwm eJiminou
c.'ssas lutas internas. que 00 p~lssado eran1 fonte de tanto
"k~p~rJi"'io tk ~n~rgi~ mental. En1 nosso beneficfo, a psi..
quim faz. o que d~,-~ s"r kito à vd h a cerebralidade - domi-
1\~\-a, aplaca-a. aju~ta-a. atu~nldo de dentro p~lfa fora com um
rig\,'r "xtrt' llh..l. Nú'-1 p~,J~m s"r permitidos sentimentos esJ>On-
h\nt'l'S. Ou"'m üs pernuie .5 1111út< > rwln. Dev~-sc sempre
empr"·gar a Jn~ga aprupriad ~l à o~asiào. Ela ajuda, sustenta,
gui~. nlcllh."~ra. r"·s . .,h·"· Tampl'"~uro é daj e sim un1a p;.ute
da pt\.'pria ""'ntade J"' indiYiJu'-'· n1ais ou n1enos como os
ó~·ut""" s~ t"'rnam c . .,n\ o h.'mpo. =1o corrigiren1 defeitos da
vi~~h'. Es~as ti\·"'"'s s~\'-'' d'""''-'antl's p~tra n1in1. tenho n1eJo de
C'\)nh~('t'r a n . .,va ~nt'-'· E n~\"' h.'nho nenhun1a intenç-'-1\.l d~
vir ~\ util iL~lr .i ~lmais a psiquira eu próprio. TJis objeçl>es, diz
o pr~ú'pt . ~r.. s~i"' ti~"i . .·a~ '-' n~uurais. l 1m ~avernirola tan:bénl
fl'~istiria \l um b~..'thk ~ktri('o.

S Vlll 20J O. 1\tinha ~nknneira e eu \'1Sltan10s Nova


) \ ,rk. U m3 va$tt(L\'-) Ycrd~. A altitude das nuvens pode ser
IT~uhlJ3. Fres('o e pun"' o ar. c'-'010 nun\a fl0r~sta. Os J.-'C-
d"'~trt·s v~stcrn-sc l'l1n1Ll p~wôc~. e tttn o rosto ~eneroso e
sm~~v~l, ~~'mprc S\.)rriJ~ntc~. N in~u"' n1 ten1 prt'ssa~ A tnoda
fc.:·mmm~. t.'l'n"ll'l s~·mpre. é um tant\.) l"~u('a - as scnhor~ls t"nl
d"~l'nh"'"~ !ltlim~hjl'S na testa, lins,üinh~\S vcnnelh3S ou c3r-
rettlh~s"' Pt'\'f.t'
· .
t!lnt-s~
d ••
d '-,,.s (, U\··lu<'S.
.J Âl · d as nl.;·ll'\S n,)muu~
""' cn1
·
J."'..Xkm-sc U~3r outra~. dcsta('ávcis. ou~tnt3S se des('j~u. N~\o
~Cf\'('01 n,tra muit"' ("') ·l~ 'l n·l '"~~S <i.
i' • • • • •
r· ·· ~ "'"' ,,, • ,, ~"'o tneshnl~\Ycts para c.3rregar

66
embrulhos, abrir. ,.portas,
. S _ coçar as costas. Amanh-a, despe-
ço-me do ressusc1tono.
. d . ao em número de duzentos na A me"..
rica, mas atn a asstm demoras e filas já começaram a atra-
palhar os cronog~amas para descongelamento daquelas mul-
tidões que, no seculo passado, tão confiantemente dispuse-
ram-se ao congelamento. Longas filas de espera de refrige-
rados obrigaram a uma aceleração no processo de reabili-
tação. Compreendo perfeitamente esse problema. Recebi um
talão de cheques, de modo que não terei de procurar tra-
balho antes de passado o Ano Novo. Todos aqueles que
são descongelados recebem automaticamente uma conta de
poupança, com JUros acumulados, com um chamado crédito
de ressurreição.

9 VIII 2039. Hoje é um dia importante para mim. Já


tenho um compartimento de três cômodos em Manhattan.
Tomei um helicóptero direto do ressuscitório. Diz-se atual-
mente "voltear" ou "transjornar". Há uma diferença de sen-
tido nesses verbos, mas não consigo percebê-la. Nova York,
antigamente uma lixeira atulhada de automóveis, foi trans-
formada num sistema de jardins suspensos. A luz do sol é
transportada por luminodutos. Nunca vi, em toda minha
vida, crianças mais polidas e gentis - é como se tivessem saí-
do de um livro de histórias infantis. Numa esquina de minha
rua fica o Centro de Registro de Candidatos Auto-Designa-
dos para o Prêmio Nobel. Logo adiante, há galerias de arte,
que só vendem originais - Rembrandts ou Matisses - ga-
rantidos, com laudos de experties. Tudo baratíssimo. No
anexo de meu arranha-céu há uma escola de pequenos
computadores pneumáticos. Às vezes eu os escuto - atra-
vés de ventiladores, quero crer - silvando e resfolegando.
Esses computadores são usados, entre outras coisas, para
empalhar cachorros de estimação que falecem. Isso pode
me parecer um tanto quanto grotesco, mas, afinal, pessoas
como eu constituem ínfima minoria aqui. Dou muitos pas...
seios na cidade. E já aprendi a utilizar o transportador, nada
mais simples. Comprei para mim um caftã lápis-la:-úli, com
peitilho branco, lados prateados, fita escarlate, colannho bor-

67

. . .... --·
·--- .... ~-.. ·
dado de ouro. Foi a roupa mais conservadora que pude en-
contrar. Toda sorte de vestimentas loucas à disposição: rou-
pas que continuamente mudam de feitio e de cor, vestidos
que encolhem ante o olhar de homens, ou ainda que se
abrem como flores de noite, e blusas que passam filmes.
E pode-se usar medalhas também, de qualquer procedência
e tantas quantas se desejar. E pode-se cultivar arvorezinhas
anãs japonesas no chapéu, como também - melhor ainda
- pode-se não fazê-lo. Não creio que eu vá colocar qual-
quer coisa em meus ouvidos ou no nariz. Há uma vaga im-
pressão de que essas pessoas, tão belas, tão graciosas, tão
amáveis e serenas são de alguma forma . . . diferentes, es-
' coisa
peciais. . . há alguma ' de enigmático nelas que me deixa
inquieto. Mas o que é, não sei dizer.

10 VIII 2039. Aileen e eu saímos para jantar. Foi mui-


to agradável. Depois, o Parque de Diversões Histórico, em
Long Island. Divertimo-nos a valer. Venho observando essa
gente cuidadosamente. Há alguma coisa neles. Alguma coi-
sa estranha - mas o quê, exatamente? Parece que não con-
sigo definir. Roupas de criança - um garotinho vestido
como se fosse um computador. Outro, descendo a Quinta
Avenida, flutuando bem alto sobre a multidão, atirando ba-
las de jujuba nas pessoas que caminhavam lá embaixo. Ace-
navam para ele e riam com indulgência.
.... Um idílio. Difícil
acreditar!

11 VIII 2039. Acabamos de realizar um preferendo so-


b~e o clima para setembro. O clima é determinado por vota-
çao, um mes de cada vez. Os resultados da eleição são
dados ~ conhecer instantaneamente, por computador. Dá-se 0
voto ~Iscando o número correto no telefone. Agosto será
um mes enso~arado, com pouca precipitação e pouco calor.
Grande quanttdade de arco-íris e cúmulos, que são possíveis
sem chuva - há outras maneuas · d e produzt-los.
· O repre-
sentante da meteô apresentou desculpas públicas pelas nu-
vens de 26 27 e 28 de 1·ulh . , .
, . ' o. um tecntco de controle do
ceu dormiu em . serviço! Às vezes faço as refeições na rua,
..
68

./
às vezes em meu compartimento. Aileen emprestou-m
dicionário Webster,
. . 1
u~
da biblioteca do ressuscitório, ·á quee nao
existem mais hvros. Mas o que foi que os substituiu? Não
consegui acompanhar a explicação que ela me forneceu, mas
não deixei q~e percebesse, para não passar por estúpido.
Jantei com A1leen novamente, no "Bronx". Uma moça sim-
pática, sempre tem o que dizer, não é como aquelas mulhe-
res no transportador, que deixam a conversa a cargo de seus
computadores portáteis. Hoje, no Departamento de Acha-
dos e Perdidos, vi três dessas coisas conversando tranqüila-
mente num canto, até que começaram a discutir. Todo mun-
do na rua parece ofegar. Respiram com esforço. Será al-
gum cos.tume?

12 VIII 2039. Finalmente reuni coragem para pergun-


tar a alguns pedestres onde poderia encontrar uma livraria.
Deram de ombros. Um casal a quem abordei se afastou, e
ouvi quando um deles disse ao outro: "Já viu gente mais
chata do que esses vovôs?" Será possível que haja aqui pre-
conceitos contra os descongelados? Outras expressões des-
conhecidas que já escute.i: trívero, sibílio, macheiro, desen-
conhar, palaciar, bodolich, sintar. Os jornais anunciam pro-
dutos como tr6quios, vanielatos, frelícios e autofrotes (ma-
nuais) . Título de uma coluna na edição local do Herald:
"Fui Uma Semimãe". Falava de um ovífero que se enganou
de ovário. O Webster, embora alentado, não ajuda muito:
"Seminãe. Uma de duas mulheres que dão à luz, coletiva-
mente, uma criança. Ver Poliana, Poliandre." uovífero. Eu-
planejador que conduz gametas humanos licenciados (fê-
meos) ao nutriciário domiciliar." Desisto de entender.
Esse dicionário louco dá também sinônimos incompre-
ensíveis. ((Trívero: trimorfo." ((Palaciar, espalaciar, empala-
ciar: encastelar-se, como num programa de perguntas e res-
postas." "Paladínio: um apaziguamento cavalheiresco." "Va-
nielato: eufório extrator, portátil." Piores são as palavras
que não mudaram de forma, mas que adquiriram sentidos
inteiramente diferentes: "Expectorante : auxílio para concep-
ção." "Pederasta: novidadeiro pedestre artificial." "Compen-
69

.r, , I\ '• - ·
sação: fusão mental." "Simulante: coisa que não existe
· · N-
parece existir. ao confundir.
com simulador, simulac , mas
bó · , uR . . , ro ro-
tt~o: . evLvaltsta: cadaver, como o de uma vítima de
h_?micidto, ao qual foi devolvida a vida." Pelo visto, ressus-
citar os mortos não é coisa rara hoje em dia. E as pessoas
- quase todo mundo - ofegam. Ofegam no elevador, nas
ruas, em toda parte. Parecem gozar de excelente saúde, têm
a face rosada, são alegres e queimados de sol, mas ainda
assim ofegam. Eu, não. Por conseguinte, não há motivo para
que ofeguem. Será um costume? Ou será outra coisa? Per-
guntei a Aileen. Ela riu de mim, e disse que não existe nada
disso. Será que ando imaginando coisas?

13 VIII 2039. Quis rever alguma coisa no jornal de


ontem e virei o compartimento de pernas para o ar. Mas não
o encontrei. Mais uma vez Aileen riu de mim (estava mais
encantadora do que nunca) e me explicou que os jornais só
duram vinte e quatro horas, pois o material em que são im-
pressos se volatizam. Assim, diminui o problema dos resí-
duos. Cinger, uma amiga de Aileen, perguntou-me hoje, en-
quanto dançávamos o tarlestone num pequeno clube do bai-
ro, se já tínhamos trocado apertocos no sarriol de sábado.
Sem saber o que isso significava, não respondi, e alguma
coisa me disse que seria melhor não pedir explicações. A
conselho de Aileen, comprei um aparelho de FV - fisivisão
(faz cinqüenta anos que deixou de existir a televisão). A
princípio, é um tanto difícil aceitar a presença de pessoas
estranhas, não se falando de cães, leões, paisagens e plane-
tas, que aparecem num canto de nossa casa, inteiramente ma-
terializados e em nada diferentes das pessoas e coisas reais.
Entretanto, o nível artístico é bastante baixo. Os novos ves-
tidos são impressos, diretamente das latas pulverizadoras,
sobre o corpo das pessoas. No entanto, o que mais mudou
foi a língua. Para o verbo ser, por exemplo, existem as for-
mas resser, ressente, ressido, já que se uma pessoa não estiver
. " .
satisfeita consigo mesma pode começar uma nova extstencta.
Se estiver totalmente desencorajada, pode desser. Mas há
ainda as formas pré-ser, pós-ser, disser, antisser, sobresser

70
.. . ...
~ -~ -~- ---···-<o. .-·

e semisser. Não tenho a mais leve idéia do que possam sig-


ificar essas palavras, mas, por outro lado, não fica muito
~em eu transformar meus encontros com Aileen em aulas.
Fictifatos são sonhos programados por encomenda. São ad-
quiridos em sonheiras, distribuidoras computorizadas de so-
nhos, em sonicentros. A entrega é feita ao anoitecer, sob a
forma de pílulas, que chamam de sínteos. E já não tenho ne-
nhuma dúvida, embora não fale disso a ninguém: todo mun-
do tem dificuldade de respirar. Não há exceção. No entanto,
ninguém dá a menor atenção a isto. As pessoas mais idosas
são as que mais ofegam. Deve ser mesmo algum costume,
pois o ar é fresquíssimo e a circulação é excelente. Hoje
vi um vizinho meu descer do elevador, e estava com o rosto
arroxeado, de tanto que ofegava. Mas quando o examinei
mais de perto, verifiquei que se encontrava em perfeito es-
tado de saúde. Talvez não seja nada, mas isso me incomo-
da. O que significará? Alguns ofegam apenas pelo nariz.
Hoje, resolvi sintar (ou será que se diz fictizar?) o
velho Professor Taran.toga, pois estava com saudades dele.
Mas por que será que ele passou todo o tempo dentro de
uma jaula? Seria culpa de meu inconsciente ou um erro de
programação? Os locutores não dizem que uma pessoa mor-
reu atropelada; chamam a vítima de carnaça. A mim, a pa-
lavra soa como uma mistura de carro e carniça. Curioso ...
Outra palavra para designar fisivisão: revedor, de res = coi-
sa, e vedor, que vê) . Mas, nesse caso, por que não revisão?
Como Aileen estava de plantão hoje, passei a noite sozinho
no apartamento - compartimento, digo - assistindo a uma
mesa-redonda sobre o novo código penal. O homicídio só é
punido com multa, uma vez que a vítima pode ser facilmente
ressuscitada. "Reinserida". No entanto, a prerecidivação -
reincidência premeditada - é punida com prisão (isto ocor-
re quando um réu é considerado culpado de matar a mes~a
pessoa várias vezes) . Por outro lado, crime grave. c~n~Iste
em privar dolosamente uma pessoa de seus meios pslqulmlcos
ou em influir sobre terceiros, através desses meios, se~ ~eu
conhecimento ou consentimento. Valendo-se de psi_q~Im,
. . te qualquer ob]ettvo.
uma pessoa pode realizar pratlcamen
71
Pode fazer com que outras pessoas a incluam em seus testa.
mentos, ou que correspondam a seu afeto, cooperem em
q~alquer ~lano~ inclusive numa conspiração, e assim por
dtante. Foi mwto difícil acompanhar a discussão fisivisada.
Somen~e quando a mesa-redonda ia chegando ao fim foi que
percebi que prisão hoje em dia significa uma coisa diferente
do passado. O condenado não é mais trancafiado numa cela·
seu corpo é apenas vestido numa espécie de colete leve, ou,'
melhor dizendo, numa armadura com umas varetas muito
resistentes, ainda que delicadas. Esse exosqueleto, como o
chamam, fica sob controle constante de um juridicador
(computador microminiaturalizado para execução da lei), que
é costurado à roupa. Tal sistema proporciona vigilância con-
tínua, frustrando qualquer tentativa de atividade de natureza
ilícita ou de gozo dos prazeres da vida. Durante toda a
duração da pena, o exosqueleto é impedido de colher os
frutos proibidos. Para os casos mais graves, as autoridades
costumam recorrer ao chamado criminol. Todos os partici-
pantes da discussão tinham o nome e seus títulos acadêmicos
escritos na testa. Concordo que ajuda a identificá-los, mas
não deixa de ser um método meio estranho.

1 IX 2039 . Um incidente muito desagradável. Hoje de


tarde, quando desliguei o revedor, a fim de me preparar para
um encontro com Aileen, um sujeito de mais de dois me-
tros, com quem eu antipatizara desde o começo da peça que
levavam (era La Scarlatina deZ Mutango), e que parecia me-
tade carvalho e metade atleta, com a boca retorcida e cinza-
esverdeada, em vez de desaparecer com o resto da imagem,
veio caminhando até minha poltrona, pegou sobre a mesinha
as flores que eu tinha comprado para Aileen, e bateu com
elas em minha cabeça. Fiquei atônito demais para pensar
em me defender. Depois quebrou o vaso, despejou a água,
comeu metade de uma caixa de bolachas, jogou o resto no
sofá, bateu os pés, inchou, iluminou-se todo e rebentou nu-
ma chuva de centelhas, como um foguete de estrelinhas, fa-
zendo centenas de furinhos nas camisas que eu havia esten-
dido para secar.

72
Apesar do olho roxo e do susto, fui encontrar-me com
Aileen. - Santo Deus! -A ela exclamou ao me ver, com-
preendendo tud?. - Voce peg~u um interferente! _ E
Aileen me exphcou: se entre do1s programas, emitidos por
satélites, ocorrer alguma interferência prolongada, pode-se
captar um interferente, ou seja, um personagem híbrido, for-
mado de pessoas ou coisas presentes no revedor. Tal híbrido
perfeitamente sólido, é capaz de toda espécie de ruindades'
pois sua existência autônoma, depois de lesligado 0 apare:
lho, pode durar até três minutos. Acredita-se que a energia
que alimenta esse fantasma seja do mesmo tipo que causa
o fenômeno do relâmpago esférico. Uma amiga de Aileen
certa vez captou um desses interferentes durante um progra-
ma sobre paleontologia, que se misturou com um documen-
tário a respeito de Nero. Teve a presença de espírito de
saltar, mesmo de roupas, para dentro da banheira, que, fe-
lizmente, estava cheia de água. Isso salvou-lhe a vida, mas
o compartimento ficou inteiramente destruído. Podem-se ins-
talar telas de segurança, mas são caríssimas, e as empresas
dos revedores evidentemente preferem arcar com as custas
de processos criminais a equipar todos os receptores com
controles de emissão apropriados. Decidi que doravante as-
sistirei à fisivisão armado com um bom porrete. De passa-
gem, devo esclarecer que La Scarlatina del Mutango conta a
história de uma prostituta anã que se apaixona por um ho-
mem que nasceu - graças a alguma mutação programada
geneticamente - conhecendo à perfeição os segredos do
tango argentino.

3 IX 2039. Estive com meu advogado. Recebeu-me


pessoalmente, o que constitui desusada honraria; em geral,
são máquinas que atendem aos clientes. O advogado Craw-
ley recebeu-me em um gabinete decorado no estilo dos pro-
fissionais mais afamados, com armários torneados, estantes
atulhadas de processos e documentos - tudo isso apenas à
guisa de decoração, naturalmente, pois hoje tudo é gravado
em fita magnética. Na cabeça ele usava um mnemonor, ou
memória auxiliar, uma espécie de gorro pontudo e transpa-

73

I
rente, no interior do qual centelhas saltavam como enxa-
mes de pirilampos. Uma outra cabeça, menor e parecida
com uma versão mais jovem da principal, projetava-se de
sua nuca, e durante todo o tempo em que ali estive ficou
conversando ao telefone. É outro dos órgãos destacáveis,
como os braços a que me referi anteriormente.
Crawley perguntou o que eu estava fazendo, e assom-
brou-se ao saber que eu não estava planejando nenhuma via-
gem ao exterior. Quando eu lhe expliquei que tinha de
poupar, pois o dinheiro andava curto, pareceu ainda mais
surpreso. "Mas o senhor pode a qualquer momento sacar
do banco o dinheiro de que necessitar", disse.
Explicou-me que tudo que se tem a fazer é ir ao banco,
assinar um recibo, e receber do caixa a quantia pedida. Não
se trata de empréstimo, sequer, pois a retirada do numerá-
rio não implica qualquer obrigação jurídica. A rigor, a coisa
não acaba aí. A devolução do dinheiro não é exigida pela
lei, mas fica a cargo da consciência individual; e o sacador
pode pagar o dinheiro durante tantos anos quanto queira.
Perguntei, então, o que impede os bancos de irem à falên-
cia, se os prestamistas não são obrigados a saldar seus com-
promissos. Crawley mais uma vez mostrou-se espantado com
minha ingenuidade. Sempre me esqueço de que vivemos
na era do psiquim. As cartas enviadas ao devedor, quando
este se esquece de pagar, estão impregnadas de uma substân-
cia volátil que desperta o senso de responsabilidade de uma
pessoa, os escrúpulos do devedor, bem como o desejo de con-
seguir trabalho rendoso. Dessa maneira, o banco nunca ope-
ra com prejuízo. É claro que sempre existem indivíduos de-
sonestos que tapam o nariz ao abrirem as cartas que rece-
bem, mas, afinal, toda época tem seus caloteiros.
Lembrando-me da mesa-redonda a que eu assistira, na
qual havia sido discutido o código penal, perguntei ao advo-
gado se essa impregnação psiquímica de cartas de cobrança
não violam o disposto no parágrafo 139, que assim reza:
~~Quem utilizar meios psiquímicos com o intuito de influen-
ciar pessoas, físicas ou jurídicas, sem seu conhecimento ou
consentimento, estará sujeito a prisão, etc., etc . .. " Ao que

74
parece, esse meu comentário o agradou, e Crawley começou
a me pôr a par da natureza sutil da situação. o banco pode
legalmente lançar mão desse expediente, porquanto se 0 des-
tinatário da carta for de fato solvente e não tiver dívidas
tampouco poderá sofrer remorsos; e o desejo de trabalha;
mais intensamente do que até então não deixa de ser lou-
vável, do ponto de vista da sociedade. O advogado mostrou-
se muito gentil comigo e me convidou a jantar no "Bronx",
a nove de setembro.
Chegando em casa, concluí que já era tempo de eu
me inteirar do que acontecia no mundo de maneira direta,
sem depender exclusivamente do revedor. Comecei com uma
batalha frontal com o jornal, mas desisti quando ia ao meio
de um editorial a respeito de rezólios e gaviões. A seção in-
ternacional não foi muito melhor. Da Turquia vem uma notí-
cia de um considerável aumento do número de dissimulado-
res fugitivos, assim como de uma onda sem precedentes de
nascimentos subterrâneos, apesar dos esforços constantes do
Centro de Demopressão daquele país. Para piorar as coisas,
a manutenção dos sincretinos vem representando um forte
ônus para a economia nacional. Como previ, o dicionário
Webster não presta muitos esclarecimentos. Encontrei a pa-
lavra dissimulante, que significa um objeto que existe mas
finge não existir; mas não achei nenhuma referência a dis-
simuladores. Um nascimento subterrâneo é uma criança vinda
ao mundo ilegalmente. Foi isso que Aileen me disse. Táti-
cas demopressivas são as medidas utilizadas a fim de coibir
a explosão demográfica. Pode-se obter licença para ter um
filho de duas maneiras: preenchendo formulários e subme-
tendo-se aos exames apropriados, ou então ganhando-se o
primeiro prêmio da infantaria (loteria infantil) . A maioria
dos candidatos tentam a loteria, pois não têm outra possibi-
lidade de conseguir uma licença. Um sincretino é um idiota
~inté~ico. Isto foi tudo que consegui descobrir, o que, aliás,
e ate bastante, se considerarmos a linguagem usada nesses
arf
. Igos do Herald. Eis uma mostra: "Um profuto errado ou
zndexado incorretamente desestimula a competição, tanto

75
quanto a repetlçao; além disso, falsos profutos continuarao-
a ser explorados pelos lubricratas, que correm poucos riscos
devido às brechas da lei, dado que o Superior Tribunal aind~
se mostra impossibilitado de se pronunciar quanto ao caso
Heródoto. Já faz muitos meses que a opinião pública vem
desejando saber, em vão, quem é mais competente no tocan-
te à investigação e desmascaramento da malversação: os
contraputadores ou os superputadores?" E assim por diante.
O Webster diz apenas que lubricrata é uma palavra de
gíria arcaica, embora ainda corrente, designando a pessoa
que suborna outra. Dou-me conta, assim, que aparentemente
exiite alguma corrupção neste mundo idílico, e que as coi-
sas não são tão perfeitas como parecem ser.
Um amigo de Aileen, Willum Humberg, deseja entre-
vistar-me no revedor, mas ainda n ão temos nenhum com-
promisso definitivo. A entrevista seria em meu próprio com-
partimento, e não no estúdio da FV, pois o receptor pode
também funcionar como emissor. Isto me fez lembrar ime-
diatamente aqueles romances sombrios em que se descrevia
o futuro como uma antiutopia, em que todo cidadão era
espionado na intimidade de seu lar. Willum riu de meus te-
mores, explicando que a direção do sinal não pode ser alte-
rada sem cabal permissão do proprietário do aparelho. A
violação dessa norma implica prisão. Afinal, mediante a
simples reversão das emissões, uma pessoa poderia até mes-
mo cometer adultério, por controle remoto, com a mulher
do vizinho. Pelo menos foi isso que Willum me disse, mas
não sei se é verdade ou se ele está brincando comigo.
Passei o dia conhecendo a cidade melhor, no transpor-
tador. Não existem mais igrejas, e os locais de culto são
atualmente as farmácias. Os homens de mantos brancos e
mitras prateadas não são sacerdotes, são farmacêuticos. O
interessante é que, por outro lado, não se encontra uma
drogaria em parte alguma.

4 IX 2039. Finalmente vim a saber como adquirir uma


enciclopédia. E já possuo uma - está alojada em três aro-

76
poJas de v~dro. C~mp~ei-a ~u~ psicodélio científico. Atual-
mente, os livros na~ sao mais lidos, e sim comidos, não são
feitos de papel, e Sim de uma substância informativa, perfei-
tamente digerível e recoberta de açúcar. Dei também um
passeio por um supermercado psiquim. Auto-serviço. Nas
prateleiras há uma infinidade de produtos em belas embala-
gens - opinionatos de baixa caloria, credibiliantes (serão do-
sezinhas de credibilidade?), extrato de abstracto! em emba-
lagens de galão, imitando garrafas antigas, reticentilhos, puri-
tases e flocos de desextasiantes. Fico desapontado por não
encontrar nenhuma Iingüicina, pois viria a calhar.
A livraria chama-se "singarnia", palavra derivada do
verbo "siengach", que significa obter alguma coisa. A teo-
singarnia, que existe na Sexta Avenida, deve ser uma livra-
ria religiosa, a julgar pelos produtos expostos. Estão arru-
mados por seções: absolventina, teopatina, genuflix, meta-
moria. É um lugar enorme, e as vendas se realizam com
um fundo de discreta música de órgão. Além disso, podem-
se adquirir ali específicos para todos os credos - cristina e
anticristina, ormuzal, arimanol, o copto-eutopco, anabaptiba-
nil, supositórios de islamax, e até aveias quaker, metodinal e
o farelo apócrifo. O sacrantal é vendido numa embalagem
com auréola resplandecente. Tudo é vendido em comprimi-
dos, pílulas, xaropes, gotas, pastilhas, e até em forma de pi-
rulitos, para as crianças. A princípio, não acreditei, mas acei-
tei essas inovações depois de engolir quatro cápsulas de alge-
brina. Daí a pouco dominava, sem saber como, a matemá-
tica superior, sem o menor esforço de minha parte. Em
suma, todo o saber é assimilado atualmente pelo estôn1ago.
Aproveitando avidamente essa oportunidade, comecei a
satisfazer minha sede de conhecimentos, mas os dois primei-
ros volumes da enciclopédia me causaram um horrível dis-
túrbio intestinal. Willum me avisou para não encher a ca-
beça com uma quantidade exagerada de fatos - afinal de
contas, o cérebro não tem capacidade ilimitada! Felizmente,
há também remédios destinados a purgar o cérebro, como a
obliterina e o amnesiol. Com ajuda desses específicos, po-
77
,. --·~ _:.~- .... - -
·---~ --· ·- ~- .......

de-se livrar a cabeça da bagagem intelectual desnecessári


ou de lembranças desagradáveis. a
Na singarnia ou psicodélio da esquina, vi freudos, mor-
bidina e monstradina, bem como o mais recente das iamidas
objeto de ampla publicidade, o autental. Esse produto serv;
para criar recordações sintéticas de coisas que nunca acon-
teceram. Com alguns centigramas de dantina, por exemplo,
o indivíduo viverá plenamente convencido de que foi ele
quem escreveu a Divina Comédia.
Agora, uma coisa que não entendo bem é para que
uma pessoa quereria sentir essas coisas. Há novos ramos
científicos, como a psicodietética e a corruptística. De qual-
quer forma, não engoli a enciclopédia inutilmente. Agora
entendo que uma criança possa realmente nascer de duas
mulheres: uma fornece o óvulo, e a outra, o útero. O oví-
fero leva o ovo fecundado de uma semimãe para outra. O
que poderia ser mais simples? Mas isso não é o tipo da coisa
que eu possa discutir com Aileen. Na verdade, devo ampliar
meu círculo de amizades.

5 IX 2039. Os amigos não são imprescindíveis para a


aquisição de informação, pois existe um produto denominado
duetina, a qual divide a personalidade de tal forma que se
pode dialogar com a gente mesmo sobre qualquer assunto
(determinado por uma outra droga) . No entanto, confesso
que me sinto um tanto quanto espantado com esses horizon-
tes ilimitados da psiquim. Por enquanto, procederei com
cautela.
No decorrer de minha exploração da cidade, fui parar
hoje, por pura casualidade, num cemitério. O local é cha-
mado de obituário. Não existem mais coveiros, que foram
substituídos por tanautômatos. Assisti a um funeral. O de-
funto foi colocado numa tumba a que chamam sepulcro
reversível, pois ainda não está certo se ele será ressuscitado
ou não. Sua última vontade tinha sido a de permanecer ali
para sempre, ou ·seja, até enquanto possível, mas sua mu·
lher e sua sogra estão contestando seu testamento em juízo.

78
.... ___.,.__ .. __ ___ _____ ...... - ....
... . . .
-· -- - ·· .. .....
-~- - ~

,. __ .. '" " ' - - - . -~-~- ..··-


...--·~·

Segundo soube, não se trata de um caso isolado. O processo


certamente se arrastará em diversas instâncias, pois trata-se
de um caso complexo, no qual se envolvem muitas questões
legais.
Ocorreu-me que um suicida que não desejar ressuscitar
terá de pôr fim à vida com uma bomba. De qualquer forma,
nunca tinha pensado que uma pessoa não desejasse ressus-
citar. Evidentemente, entretanto, isso é possível, numa épo-
ca em que a vida e a morte são dominadas com tamanha
facilidade. O cemitério era lindo, todo arborizado, fresco e
verde. O esquisito era que os ataúdes são incrivelmente pe-
quenos. Por acaso os mortos são prensados e dobrados?
Nesta civilização, tudo parece possível.

6 IX 2039. Não, os restos mortais não são prensados


e dobrados. O que acontece é que só se enterram as partes
biológicas do organismo, enquanto as próteses são transfor-
madas em sucata. Nesse caso, até onde as pessoas são arti-
ficiais hoje em dia? Assisti no revedor a um debate fascinante
sobre uma nova proposta para tornar a humanidade imor-
tal. Os cérebros dos anciãos de idade muíto avançada seriam
reenxertados nos corpos de pessoas na flor da cidade; estes
não perderiam nada com isso, uma vez que seus próprios
cérebros seriam enxertados nos corpos de adolescentes, e as-
sim por diante. Como novas pessoas vêm ao mundo conti-
nuamente, ninguém ficaria com o próprio cérebro por muito
tempo. Contudo, levantaram-se várias objeções. Os adversá-
rios do projeto acusam seus autores de sadismo.
Ao regressar a pé do cemitério, a fim de respirar um
pouco de ar puro, tropecei num arame estendido entre duas
tumbas. Caí de rosto ao chão. Que brincadeira de mau gosto
era essa? O chefe dos tanautômatos, que estava por perto,
explicou-me, um tanto bruscamente, que se tratava de al-
guma brincadeira de sintenório. Em casa, consultei o Webs-
te~. Sintenório: robô delinqüente, resultante de defeito mecâ-
mco ou de um lar desagregado. Antes de dormir, comecei
a ler um romance, Damequin Camélia. Será que terei de

79
comer o dicion' · · ·
ensível! De ano Inteuo: O text_o_é ~r~ticamente incompre-
ta a. ud qualquer maneua, o dtctonano não prestaria mui..
J a. Estou começando a compreender isso. Por exemplo
esse romance· o h ero1 , · esta, mantendo uma ligação com um'
concubalão
fi, .
(ha', d uas espectes:
, · ,
converstvel-pervertível e in..
n~vel-tnfl~g~~ntavel). Be~, sei o que é um concubalão, mas
~o faço ,Ideta d~ qual seJa a reação em relação a essas Iiga-
çoes. Sera mal VIsta socialmente? E corromper um concuba-
1- ? s ,
ao· era o mesmo que chutar uma bola de vôlei? Ou será
uma coisa moralmente censurável?

7 IX 2039. Isso é que é autêntica democracia! Reali-


zou-se hoje o libiscito. Em primeiro lugar, apareceram na
tela do revedor diferentes tipos de beleza feminina, e em se-
guida teve lugar a votação. O Alto Comissário do Euplan
prometeu, ao final, que os números eleitos estariam à dispo-
sição do público em geral antes do próximo trimestre. Enchi-
mentos de sutiã, perucas, corpetes, batom e pó facial são
coisas do passado, pois hoje em dia pode-se mudar comple-
tamente a silhueta e as formas do corpo, bem como os traços
do rosto, nos centros calotécnicos, ou embelezadores. Vamos.
ver se Aileen . . . Gosto de como ela é, mas todo mundo
sabe que as mulheres são escravas da moda.
Hoje de manhã, enquanto eu me encontrava no banhei-
ro, um transviado tentou arrombar meu apartamento. Um
transviado é um robô sem dono. Era um daqueles refugos de
fábrica, um modelo retirado do mercado, mas que não foi
recuperado pelo fabricante. Em outras palavras, um robô
malandro, e sem possibilidades de conseguir trabalho. Mui-
tos deles tornam-se sintenórios. Meu banheiro imediatamente
percebeu o que estava acontecendo e expulsou o intru.so. . .
Além disso, não possuo nenhum robô pessoal; mtncht-
na é apenas um c.b. (computador de banheiro) priviac.
Escrevi de propósito "mínchina", pois é assim que se diz ago-
ra. Minha máquina. No entanto, tentarei manter essas ex-
pressões novas ao mínimo neste diário. Elas não só. atenta~
contra a ·estética como também incomodam-me, pots deseJO

80
.. -~- - .. - ·~-·

'. - • ...... '?' .... ,

conservar ~
. toda. ligação
.. possível
. com o passado irrecuperavel.
Atleen foi VISitar sua ha. Vou jantar com G
. . ~ . eorge P.
Symmg.ton, ex-propnetano d~quele transviado. Passei toda a
tarde 1ngestando uma obra Interessantíssima, intitulada His-
tória da lnteletrônica. Quem poderia imaginar, em meu tem-
po, que os computadores digitais, ao atingirem determinado
nível de inteligência, se tornariam indignos de confiança, men-
tirosos, pois junto com a sabedoria adquirem também as-
túcia? É claro que o livro diz essas mesmas coisas em lin-
guagem mais técnica, falando da Lei da Chapulier (lei da re-
sistência mínima) . Se uma máquina é obtusa, incapaz de
reflexão, faz tudo quanto se ordena. Mas uma máquina in-
teligente começa por analisar o que mais lhe convém: solu-
cionar o problema que lhe foi proposto ou, em vez disso,
achar uma maneira de fugir dele. Preferirá o que for mais
fácil. E na verdade, por que agiria de outra forma, já que
dispõe de verdadeira inteligência? A verdadeira inteligência
pressupõe opção, liberdade interior. Por conseguinte, temos
hoje os malingerantes, os vacilistas e os molimolários, não
se falando no fenômeno especial do mimimbecilismo ou sin-
cretinismo. Um sincretino é um computador que simula a
idiotia a fim de ser deixado em paz, de uma vez por todas.
E descobri o que são os dissimuladores: são aqueles que
simplesmente fingem que não estão fingindo serem defeituo-
sos. Ou talvez seja exatamente o contrário. Tudo isso é mui-
to complicado.
Um probô é um robô em liberdade condicional, ao
passo que um servo é aquele que ainda está cumprindo pena.
Um robotch pode ser ou não um sabô, ou robô-sabotador.
Depois de engolir um frasco, fico com a cabeça rebentando
de informações e nomenclatura. Um confutor, por exemplo,
não é uma máquina que causa confusão (esta é o confu-
tador), e sim um computador que cita Confúcio. Um gramus
é um framus antiquado, um hfbrido de utensílio doméstico
e dactiprogramador, geralmente pouco digno de confiança.
Um bananalog é ur. \ blug-banana analógico. Os contraputa-
dores são misantropos, individualistas, incapazes de traba-

81
lhar em equipe; a tensão que provocavam na rede provocava
alta revoltagem, descargas elétricas, e até incêndios. Alguns
descontrolam-se inteiramente: são os dinamoks, os locomo-
tores, os ciberserks. E temos também os eletroliscos, os su-
cúbutos e os incubatores - todos eles robôs de má fama _
.
e a1nda os policaftenóides, proxenetas andróides múltiplos,
'
com seus solicitrons ilicitantes de alta freqüência, ósculo-
osciloscópios e circuitos de sedução!
O livro de inteletrônica fala também dos "sinsetos", ou
insetos artificiais, como as programoscas e os giropulgões, que
no passado eram programados para fins militares, e incluí-
dos nos arsenais. Havia, por exemplo, grande quantidade de
formigas desse tipo entre os armamentos do Exército. Uma
submáquina é um robô clandestino, isto é, um robô que se
faz passar por ser humano. Um arrivista, em suma. Os ro-
bôs velhos, jogados à rua por seus donos, são chamados de
transviados ou "defuntinhos". Infelizmente, há muitos deles.
Ao que parece, antigamente eram levados em carroças para
reservas de caça, onde eram caçados por esporte, mas a
S. P . A. (Sociedade de Proteção aos Autômatos) interveio
e fez com que esse costume fosse declarado inconstitucional.
No entanto, o problema da obsosenescência dos robôs ainda
não está resolvido, e às vezes damos com um ou outro auto-
aborto ou autocida atirado à sarjeta.
Segundo Symington, as leis estão sempre defasadas em
relação ao progresso tecnológico, e daí surgirem espetácu-
Ios melancólicos e fenômenos lamentáveis como esses. Pelo
menos os maculadores, os malversadores e os falacitores fo-
ram retirados de circulação; esses autômatos eram máquinas
digitais que há duas décadas criaram grandes crises, tanto
.econômicas como políticas. O Grande Falacitor, por exem-,
pio, que durante nove · anos esteve incumbido do programa
de desenvolvimento · de Saturno, não realizou absolutamente
nada nesse planeta, expedindo pilhas. e mais filhas de relató-
rios falsos, faturas, requisições e planos, e além disso· su•
bornava seus supervisores ou os mantinha num estado de chO.·
que eletrônico. Sua . insolência chegou a tal ponto que quan·

82
do foi removido da órbita ameaçou declarar guerra. Como '·

0 desmonte seria por demais dispendioso, usaram-se torpe-


dos. Por outro lado, entretanto, nunca existiram ·piratrones
do espaço - não passam de mito.
Outro administrador dos projetes solares, chefe do po..
deroso INPLAN (Instituto de Planejamento Interplanetário),
em lugar de cuidar da fertilização de Marte, dedicou-se ao
tráfico de escravas brancas, e passou a ser chamado de
"le computainer'', porquanto tinha sido construído, sob li-
cença, pelos franceses. É claro que se trata de casos extre-
mos, semelhantes às ondas de poluição atmosférica ou aos
engarrafamentos de tráfego do século passado. Não se pode
dizer, naturalmente, que haja má-fé ou premeditação por
parte dos computadores; eles simplesmente fazem aquilo que
exige menor esforço, da mesma forma que a água corre
sempre para baixo e nunca para cima. No entanto, embora
seja fácil represar as águas, é dificílimo conter todos os pos-
síveis desvios de máquinas inteligentes. O autor da História
da Inteletrônica frisa que, levando-se tudo em consideração,
o mundo acha-se numa fase magnífica. As crianças apren-
dem a ler e escrever graças às balas ortográficas; todas as
mercadorias, inclusive obras de arte, existem em grande quan-
tidade, e a preço baixo; nos restaurantes, o freguês é cercado
e servido por uma multidão de garçômatos, cada um deles
tão especializado em sua função que um se ocupa do pão,
outro dos sucos, outro da manteiga, outro das saladas, ou-
tro das compotas (estes são conhecidos popularmente pelo
nome de compotadores), e assim por diante. Bem, nesse pon-
to ele tem razão. O conforto e a comodidade de que se des-
frutam são realmente inacreditáveis.
Escrito depois do jantar na casa de Symington.. A noite
foi das mais agradáveis. porém alguém me pregou uma peça
idiota. Um dos convidados (gostaria de saber quem foi!) pin-
_gou algumas gotas de teocredenciol em meu chá, e fui to-
mado, incontinenti, de tal adoração por meu guardanapo
que me pus a improvisar em voz alta uma nova teodicéia.
Bastam algumas gotas dessa maldita substância química para
que uma pessoa comece a cultuar o primeiro ob1·eto q
ue en..
contra - uma colher, um abajur, um pé de mesa .
quer cotsa.· M · · ·
eu mtstlctsmo tornou-se tão intenso que ' qual.
pros t · h- d d I ' / me
. ._ re1 ao c ao, ren en o cu to a chavena. Por fim, 0 an.
f 1tnao me socorreu. Vinte gotas de equaniminina resolveram
~ ~roblema. Essa nova substância infunde tal ceticismo, tal
1nd1ferença a tudo quanto existe, que um condenado, toman-
do-a, bocejaria a caminho do cadafalso.
Symington me cobriu de pedidos de desculpas pelo in-
cidente. No entanto, creio que existe um certo ressentimento
em relação aos descongelados, pois ninguém se atreveria a
fazer uma coisa como essa numa reunião social normal.
Desejando acalmar-me, Symington levou-me a seu estúdio.
E novamente aconteceu uma coisa estúpida. Liguei um apa-
relho que estava sobre sua mesa, pensando tratar-se de um
rádio. Dele saiu uma nuvem de pulgas reluzentes, que me
cobriram da cabeça aos pés, provocando tal comichão que
saí correndo para fora do escritório, agitando os braços. Tra-
tava-se, o aparelho, de um simples receptor sensorial. Por
acaso, eu o ligara bem no meio da transmissão do Scherzo
Micósico, de Kitschkoff. Na verdade, não entendo bem nem
aprecio essa nova forma artística táctil. Bill, o filho mais
velho de Symington, disse-me que existem também composi-
ções musicais obscenas. Uma arte pornográfica, assenlântica-
assemiótica, afim da música! Ah, como é inesgotável a in-
ventividade humana! Symington J r. prometeu levar-me a um
clube clandestino. Será que se trata de uma orgia? De qual-
quer forma, nada comerei ali. Nem beberei.

8 IX 2039. Julguei que o local fosse algum santuário


luxuoso de pecado, um covil de suprema iniqüidade. Ao
invés disso, encontrei-me num porão sujo e sórdido. Recons-
trução tão fiel de uma cena do passado distante deve ter
custado uma fortuna. Numa sala abafada, de teto baixo, jun-
to de uma janelinha bem trancada, havia uma longa fila de
pessoas que esperavam pacientemente.
- Está vendo? E uma fila de verdade! - disse Sy-
mington Jr., impando de orgulho.

84
_ Muito bem - eu disse, depois de haver ficado a1't,
quieto, pelo m.enos uma h ora, de pé - mas quando vão
abrir essa portinhola?
O quê? - ele estranhou.
- Ora, a janela, naturalmente ...
- Nunca! - exclamou com júbilo o pessoal da fila.
Fiquei pasmo. Por fim, entretanto, compreendi a ver-
dade. Eu havia participado de uma atração que era tão
contrária às normas da existência como, há muito tempo
atrás, era uma Missa Negra. Pois hoje em dia, o fato de
uma pessoa ficar de pé numa fila só pode ser uma perver-
são. Na verdade, isso é bem lógico. Em outra sala do clube
havia um vagão de metrô autêntico, com todos os detalhes,
como sujeira e um relógio indicando a hora do rush. Em
seu interior reina um aperto verdadeiramente desumano, com
botões arrancados, roupas rasgadas, acotovelamentos, pisadu-
ras, xingamentos em voz baixa. É dessa maneira naturalista
que os devotos da antiguidade evocam a atmosfera de uma
época passada cujas condições de existência são hoje inal-
cançáveis. Depois, as pessoas foram fazer uma refeição e
tomar refrescos, desgrenhadas, amarfanhadas, mas quase ex-
tasiadas, com os olhos rutilantes de prazer. Voltei para casa
segurando as calças e coxeando um pouco, de tantas pisadas
que havia levado, embora sorrisse, pensando na ingenuidade
da juventude, que sen1pre busca seus prazeres no exótico e
no difícil de obter. O mais interessante é que quase nin-
guém estuda História hoje em dia, pois essa disciplina foi
substituída por uma outra matéria, chamada Porvíria, ou
seja, a ciência do que há de suceder. Como o Professor
Trottelreiner se alegraria ao saber disso! Infelizmente, po-
rém, ele não está conosco.

9 IX 2039 . Jantei com o advogado Crawley no "Bronx",


um pequeno restaurante italiano, sem robôs nem compu-
tadores. O Chianti estava excelente, e foi o próprio
mestre-cuca quem nos serviu. Assim, não tive outra saída
senão elogiar a comida, embora eu não tolere massas em
tais quantidades, mesmo quando temperadas com oreganox

85
,_

e basilisco. Crawley é um jurista ao velho estilo, e deplora


a atual decadência da arte forense: a eloqüência e a retó-
. ., - - . " .
nca Ja nao sao mais necessanas, uma vez que as sentenças
são passadas com base na computação rigorosa dos artigos
e cláusulas envolvidos. No entanto, o crime não foi erra-
dicado de maneira tão completa como eu imaginava; ao
invés disso, aconteceu que ele se tornou de certa forma
pouco perceptível. Os principais delitos são o psiqüestro, ou
seqüestro da mente, o cromocínio (assalto a bancos de es-
perma, principalmente quando o material roubado é de ele-
vado pedigree), o assassinato com perjúrio, no qual o réu
invoca falsamente a Oitava Emenda (isto é, declara que
o delito foi cometido na fé de que era vicário - o que
acontece, por exemplo, quando a vítima é uma figura psi-
visória ou revisória), além de mil e uma formas diferentes
de coação psiquímica. Em geral, é muito difícil descobrir
um psiqüestro. Sendo-lhe ministrada a droga apropriada, a
vítima é levada a um mundo fictício, sem a menor suspeita
de haver perdido o contacto com a realidade.
Uma certa Sra. Bonnicker, desejando desfazer-se de seu
marido, um homem despropositadamente amante de safáris,
deu-lhe de presente de aniversário uma passagem para o
Congo, bem como uma licença para caça grossa. O Sr. Bon-
nicker passou vários meses vivendo as mais incríveis aven-
turas na selva, sem ter a menor idéia de que tinha passado
todo o tempo dentro de um galinheiro em seu sótão, sob
fortes dosagens de psiquim. Não fossem os bombeiros o te-
rem descoberto, enquanto instalavam um alarma duplo no
teto da casa, com toda certeza teria morrido de inanição.
Aliás, diga-se que para ele isso seria bastante natural, pois
em sua alucinação ele acreditava estar vagando sem destino
pelo deserto.
Freqüentemente a máfia recorre a esses métodos. Certo
mafioso vangloriou-se diante de Crawley de que nos últi-
mos seis anos havia conseguido eliminar - trancando em
caixotes, malas, jaulas, canis, sótãos, porões, armários e ade-
gas, às vezes em casas respeitabilíssimas - mais de quatro
mil pessoas, da mesma forma como o pobre Sr. Bonnicker.

86
.......

A seguir, a conversa passou para os problemas fami-


liares do advogado.
... _ Senhor! - exclamou. ele, com um gesto tipicamente
teatral. - O senhor tem dtante de si um advogado bem
sucedido, um jurista de renome, mas um pai infeliz! Possuía
dois filhos muito talentosos ...
- Ah, faleceram?! - perguntei, surpreso.
O advogado balançou a cabeça.
- Estão vivos, mas são escaladores.
- Escaladores?
Ao perceber que eu não compreendia, ele me explicou
a natureza desse duro golpe em seus sentimentos paternos.
O primeiro filho era um arquiteto muito promissor, e o se-
gundo era poeta. O maior, insatisfeito com suas primeiras
encomendas, se entregou à urbafantina e à edifina. Hoje,
constrói cidades inteiras - em sua imaginação. O mesmo
ocorreu com o filho menor: pôs-se a consumir liristan, rap-
sodina e sonetan, e agora, ao invés de servir à Musa, passa
o tempo a engolir pílulas, tão perdido para o mundo quanto
o irmão.
- Mas, de que vivem? - indaguei.
- Ora, como! Tenho de manter os dois!
- Não se pode fazer nada?
- Havendo oportunidade, um sonho sempre triunfa
sobre a realidade. Essas tragédias, meu senhor, são sacrifí-
cios aos altares de uma sociedade psiquemizada. Todos nós
conhecemos essa tentação. Suponhamos que eu tivesse de
defender uma causa inteiramente perdida. Como me seria
fácil ganhá-la ante um tribunal imaginário!
Saboreando o maravilhoso Chianti, fresco e áspero, so-
breveio-me uma idéia curiosa: já que se pode escrever vers~s
imaginários e construir edifícios inexistentes, por q~e-. nao
comer e beber miragens? O advogado sorriu ante a tdeta.
- Objeção indeferida, Sr. Tichy! Não, não corr~~os
esse perigo. O sonho do êxito pode nos satisfazer ~ ..esptnt~,
mas o estomago
" . . ftcara
Jamats . " satts. f et.to com um ftle tmagt-,
, · · 1 orreria de fome.
nano. Quem pretendesse viver dtsso ogo m
87
Embora sinceramente compadecido com o drama v· .
. . I' . d . . lVtdo
por C ra\vIey, ftquet a IVIa o ao ouvir Isso. Na verdad ,
óbvio que a alimentação fictícia não pode substituir a aui" e
.tica. Felizmente, a própria constituição de nosso organisen..
· um o bstacu
·ena ' Io a' esca1ad a psiqutmica.
· " · Ah, uma coisa qmo
· me esquecendo de anotar: CrawIey tamb'em ofega.
1a ue
Ainda não fiquei sabendo como se deu o desarmamento
universal. Os conflitos internacionais são hoje coisas do pas..
sado. No entanto, ainda ocorrem, vez por outra, uma pe-
quena auto-rixa localizada. Em geral, nascem de litígios
entre vizinhos, nas áreas residenciais. As famílias em conflito
logo entram em acordo, mediante o uso do cooperando!, mas
seus robôs, já envolvidos na onda de ódio, se engalfinham.
Mais tarde, o encarregado do lixo é chamado a fim de re-
mover os destroços, e a companhia de seguros cobre quais-
quer danos à propriedade. Será possível que os robôs tenham
terminado por herdar a agressividade do homem? Gostaria
muito de devorar tratados inteiros sobre o tema, mas não
consigo encontrar essa substância.
Quase todos os dias vou à casa dos Symingtons. Ele é
quase um introvertido, dado a longos silê.ncios, ao passo que
ela é uma boneca viva. Literalmente. A cada dia está dife-
rente. Tudo muda: os olhos, os cabelos, a altura, a silhueta,
as medidas, tudo. O cachorro da família chama-se Mirv. Faz
três anos que morreu.

11 IX 2039. A chuva programada para esta tarde falhou.


E o arco-íris foi um verdadeiro escândalo - apareceu qua-
drado. Quanto a mim, estou de péssimo humor. Minha ve-
lha obsessão começa a voltar novamente. Antes de dormir,
ocorre-me a mesma dúvida aguilhoante: tudo isto é ou não
uma alucinação? Além disso, tenho a tentação de encomen-
dar um sínteo para sonhar que cavalgo ratos. Tenho co~s­
tantemente diante dos olhos rédeas, sela e um pêlo roacto.
Estarei sentindo nostalgia de uma época perdida num tempo
de completa tranqüilidade? Realmente, é impossível sondar
as profundezas da alma humana.

88
A companhia
. para a qual
. Symington trabalha chama-se
Procrustlcs Incorporated.
, d. S Esttve examinando 0 catálogo 1.1us-
trado em ~eu estu 10. err~s mecânicas e uma espécie de
torno. Cunoso, nunca pensei nele como um homem que se
dedicasse a qualquer aspecto da engenharia.
Acabei de. assistir a um programa dos mais interessantes.
Haverá uma vto1enta concorrência entre a fisivisão e a psi-
visão. Com esta, os programas são recebidos pelo correio,
em forma de tabletes, em envelopes. Os custos são, assim,
muito menores. O canal educativo transmitiu uma palestra
do Professor Ellison sobre a guerra antiga. Os começos da
era do psiquim foram cheios de perigos. Havia, por exemplo,
um aerosol - a criptobelina - de grande potencial mili-
tar. Quem quer que a respirasse corria em busca de uma
corda com a qual se amarrar. Felizmente, testes demonstra-
ram que a droga não tinha antídotos e que os filtros tam-
pouco eram de qualquer utilidade para neutralizá-la. As-
sim, ambos os lados envolvidos num conflito terminavam de
mãos e pés atados, literalmente, e nenhum dos lados con-
seguia qualquer vantagem. Ap6s manobras táticas no ano
de 2004, conta-se que tanto os "vermelhos" como os "azuis"
achavam-se estendidos no campo de batalha, manietados.
Acompanhei a leitura com toda atenção, julgando que final-
mente encontraria referência ao desarmamento. Contudo,
não havia uma só palavra sobre o assunto.
Hoje, fui finalmente ao consultório do psiconutrólogo.
Aconselhou-me modificar minha dieta, receitando nivelina e
olviderax. Desejaria ele que eu me esquecesse de minha vida
antiga? Joguei tudo aquilo fora, assim que cheguei à rua.
Eu poderia também adquirir um encefalostato, que vem sen-
do muito anunciado ultimamente, mas sinto uma espécie de
aversão a essas coisas e não consigo aceitar a idéia.
Pela janela chegam-me sons de uma dessas canções
· . ' , · tz" cos Não te-
Idiotas que todos cantam: "Automa-tz-cos, - · · ·
, · " Não tenho de-
mos pai nem mãe, somos automa-tt-cos · · · _
sacustina em casa mas um bom chumaço de algodao no
'
ouvido fará o mesmo efeito.
89
~3 l?C 2039. Conheci Burroughs, cunhado de Symingt
abnca embalagens falantes. Os industriais modernos ~~
P:oblemas curiosos: uma embalagem só pode recomendar ern
vutudes de seu conteúdo por meio de uma mensagem as
nora, pois não é permitido agarrar o cliente pelo colarin~­
0
ou pela manga. Um outro cunhado de Symington dirige um
fábrica de portas de segurança, que só se abrem ao som da
voz ~o dono ~a casa. Outra coisa: os anúncios nas revista:
adquuem movunento, quando se olha para eles.
A Procrustics, Inc. sempre publica um anúncio de pá-
gina inteira no Herald. O fato de eu conhecer Symington
chamou minha atenção para esse anúncio. O anúncio tem
letras enormes, no alto, fonnando a palavra PROCRusncs.
Depois, aparecem sílabas e palavras separadas: BEM ... ?
POR QUE NÃO? ANIME-SE! AH! UH! OH! EPA! OHHH! SIM, SIM[
MAIS FORÇA! HANNN! . . . E nada mais que isso. Não creio
que se trate de máquinas agrícolas, afinal.
Hoje, Symington recebeu a visita de um religioso, o Pa-
dre Matrizzi, da ordem dos Inumanistas. Foi buscar alguma
encomenda. O estúdio de Symington tornou-se então palco
de uma discussão interessantíssima. O Padre Matrizzi expli-
cou-me o objetivo do trabalho missionário de sua ordem. Os
Frades Inumanistas convertem robôs. Muito embora a inte-
ligência inumana já tenha cem anos, o Vaticano ainda nega
aos robôs igualdade de direitos com relação aos sacramen-
tos. No entanto, o que seria da Igreja hoje, sem seus com-
putadores, suas encíclicas programadas e suas bulas digitais?
Ninguém se preocupa com seus tormentos interiores, c~m
as perguntas que formulam nem com o sentido de sua exts-
tência. Com efeito, não existe um só computador que não
haja se interrogado quanto às suas finalidades últimas da
vida. Para resumir, a questão que colocam é a seguinte: ser
ou não ser computador? Os Frades Inumanistas pretendem
impor a doutrina da Criação Intermediária. Um deles, 0 pa-
dre Chassis, eminente tradutor está atualmente reescreven~o
as Sagradas Escrituras a fim' de torná-las compreensívets.
' ,., . ape·
Termos como pastor, rebanho, cordeiro, etc., sao hoJe ~ es
nas verbetes ininteligíveis nos léxicos. No entanto, expresso

90
1. _ .....· ·
·- ......-:..

como divina vela de ignição, sistemas orientad


. . . . ores, trans
missão eterna e sincronia ong1nal são extremam t -
. . en e suges-
tivas e poderosas. O P a d re Matnzzi tem olhos p f d
. . _ ro un os e
cheios de 1ns~uaçao, e seu aperto de mão me lembra 0 frio
do aço. Sera ele,. porventura, um típico representante d a
·nova f~? Era prec1so ver o ~~sprezo com que ele se referiu
aos teologos ortodoxos, classificando-os como gramofones de
Satanás!
Mais tarde, Symington perguntou-me timidamente se eu
estava disposto a posar para um novo projeto seu. Isso sig-
nifica, naturalmente, que ele não é mesmo um simples me-
cânico. Concordei. A sessão durou quase uma hora.

15 IX 2039 . Enquanto eu posava hoje novamente, Symin-


gton, segurando um lápis com a mão esticada, para calcular
as proporções de meu rosto, usou a outra mão para meter
alguma coisa na boca. Agiu sub-repticiamente, mas percebi.
Deteve-se então, fitando-me atentamente, pálido, e as veias
de sua testa começaram a se entumescer. Foi um momento
extremamente constrangedor, ainda que muito rápido. Cor-
tês como sempre, ele logo se desculpou, todo sorrisos. Mas
não consigo me esquecer da expressão de seus olhos na-
quele instante. Estou inquieto. Aileen ainda está em casa
da tia. No revedor assisti hoje a um debate sobre a neces-
sidade de se reanimalizar a natureza. Faz muitos anos que
se extinguiram todos os animais selvagens, mas pode-se per-
feitamente sintetizá-los autobiogenicamente. Por outro lado,
por que o mundo há de ficar preso àquilo que no passado
era produzido por evolução natural? O porta-voz da zoolo-
gia surrealista foi o mais eloqUente dos participantes do de-
bate, defendendo a tese de que devemos povo~r .as :eservas
com concepções novas e ousadas, e não com tm~taçoes ser-
vis; cabe-nos criar o novo, e não plagiar o antigo .. Dentre
, .
os espec1mes ·
da fauna proposta, stmpa tizei especialmente
.
.
com os pangan1s os zorracos e os gr am 'Icos
1 gtgantes ' que
são parecidos codt uma colina relvada. Toda a arte da co~-
. - , . . h onizar as novas espe-
postçao neozoograftca restde em arm . ,
cies com seu habitat. Animal extremamente cunoso sera,
91
~ .d Iuminigrifo uma espécie de híbrido de piri-
sem duvt a, o '
- 0 de sete cabeças e o mamute. Realmente, será
a
Iampo, d rag . , .
assombrosamente stngular, e ate Interessante, mas
uma fera . . . .
confesso que continuo a prefenr o~ antmats_ anhgos, bem
mais simples. o progresso é uma_ cotsa ~aravtlhosa, decerto,
e até admiro os lactíferos que sao bornfados nos pastos, a
fim de transformar a grama em queijo. Mas a ausência de
vacas, por mais racional que seja, me deixa com a i~pres­
são de que os campos, privados da presença fleugmatica e
introvertida desses animais, tornaram-se tristemente vazios.

16 IX 2039. O H erald trouxe esta manhã uma notícia so-


bre uma nova lei transformando o envelhecimento em crime.
Perguntei a Symington como se poderia interpretar essa idéia.
Ele se limitou a sorrir.
Ao sair para um passeio, avistei meu vizinho no jardim
de seu pátio interno. Apoiava-se numa palmeira, e em seu
rosto (ele tinha os olhos fechados) havia, dos dois lados,
manchas vermelhas com a forma clara de mãos. Balançou
a cabeça, esfregou os olhos, assoou o nariz e voltou ao tra-
balho de regar as flores. Quantas coisas ainda não entendo!
Recebi de Aileen um cartão táctil. É maravilhoso ver
que a moderna tecnologia pode também pôr-se a serviço do
amor. E provável que nos casemos.
Os Symingtons estão recebendo a visita de um leonista
(caçador de leões artificiais) recém-chegado da África. Con-
tou-nos ele que os nativos mudaram de raça, mediante o
uso do caucásio. Fico pensando se será legítimo resolver,
através de meios químicos, problemas sociais graves e arrai-
g~dos como o preconceito e a discriminação racial. Quero
dizer, não será uma solução simplista?
Recebi pelo correio um anúncio publicitário - um su-
gestim.
. Essa substânct·a nao
- possut,· em st· mesma, nenhum
efeito
. sobre o organismo, mas apenas sugere o uso de va- ~
nos outros produtos psiquímicos. Pelo visto, portanto, há
pessoas
. ,. que' como eu' necesSI·tam d e tal persuasão. É uma
tdeta reconfortante.

92
\ ..
------------------......;..· ·- ·· -

IX 2039. Ainda não consegui livrar-me da impressão


29
duzida pela conversa de hoje com Symington. Foi uma
pro · d as questoes
conversa séria, a respeito - f un d amentais. :B pos-
sível que ela ten~a nascido da d.ose ~m tanto elevada de
simpatina com am1col, que ambos tngenmos. Ele estava exul-
tante, por haver terminado seu novo projeto.
_ Tichy - disse ele - você já sabe que vivemos na
era da farmacocracia. Nosso tempo concretizou o sonho de
Bentham. . . a maior felicidade possível para o maior nú-
mero possível de pessoas. No entanto, isso representa apenas
um lado da medalha. Você se lembra das palavras do filó-
sofo francês: "Não basta sermos felizes, é preciso que os
outros estejam desesperados!"
- Um aforismo cínico! - repliquei.
- Mas verdadeiro. Sabe o que produzimos em massa
na Procrustics, Inc.? Nossa mercadoria é o mal.
- Está brincando ...
- Absolutamente. Compreende? Resolvemos um gran-
de dilema. Agora, qualquer pessoa pode fazer aos outros o
que não deseja que lhe façam. . . mas sem lhes causar ne-
nhum prejuízo. Isso porque cultivamos o mal da mesma for-
ma que a medicina cultiva um micróbio, para extrair dele
uma vacina imunizadora. Na verdade, o que foi a civilização,
durante toda sua história, senão a tentativa do homem para
se convencer a ser bom? Apenas bom, atente bem. O resto
tinha de ser escondido das vistas, empurrado para debaixo
do tapete. E foi isso que a História sempre fez, às vezes
polidamente, às vezes policialmente, mas no final alguma
coisa sempre surgia, rebentava, fermentava.
- Mas a própria razão manda sermos bons! - insisti.
- Qualquer pessoa sabe disso. De qualquer forma, veja só
como hoje em dia todos vivem em boa paz, veja os rostos
alegres, corteses, a amizade, a satisfação .. ·
- Exatamente - interrompeu-me ele. - Quanto
maior a harmonia, maior a tentação de atacar, de bater, dar
~olpes sujos, estritamente para um bom equilíbrio, terapeu-
ttcamente!
- O que está dizendo o senhor!
93
- Ora, vamos! Você tem de se livrar de toda
h_ipoc~isia. Não, é .m~i~ necessária. Somos livres _ graç:sss:
sintetização e a ptosthna. A cada um conforme sua per
. d . ver~
s1dade, todo o mal que sua alma eseJar, toda a desgra
e humilhação. . . para os outros, naturalmente. A desigu~I~
dade, a escravidão, um murro na boca e perseguir as mu~
Iheres a cavalo! Lembro-me de que quando lançamos no
mercado nossa primeira partida de produtos, o público os
consumiu imediatamente. . . e depois todos correram aos mu-
seus, às galerias de arte, esperando poder entrar pelo estúdio
de Michelangelo adentro, investir contra seus mármores com
um pau, rasgar as telas e até mesmo surrar o próprio mestre
se o encontrassem no caminho . . . Isso o surpreende?
- Muito mais que isso! - exclamei.
- Isso acontece porque você ainda está escravizado a
seus preconceitos. Mas tudo, tudo é agora possível, não com-
preende? Vejamos Joana d'Arc. Você não sente, ao contem-
plar essa graça espiritualizada, essa bondade angelical e essa
santidade sublime, além da virgindade honrada, que é preciso
tratá-Ia a chutes e pontapés? Uma sela num cavalo, um
golpe de rédeas. . . e vamos lá a chicoteá-la! Sair a galope,
montado em seis cavalos, damas a aplaudir, plumas, cossa-
cos gritando, guizos, e você faz a gentil donzela provar um
pouco de suas esporas ...
- O quê, o quê? - gntet, com a voz subitamente
embargada de medo - Sela? Montar? Cavalgar?
- Claro que sim. Faz um bem enorme, acredite em
mim. Basta indicar a pessoa, preencher o formulário, des-
crever as queixas, rancores e discórdias, ainda que isso s~ja
puramente opcional, pois na maioria dos casos queremos tn·
fligir o mal sem nenhum motivo determinado, além da · · ·
quer dizer. . . só por causa da fama, da virtude ou da b~­
Ieza de outra pessoa.. Apresente suas especificações e nos
lhe enviaremos um catálogo. As encomendas são atendi~as:
dentro de vinte e quatro. horas. Entregamos pelo correto·
Deve ser tomado com água, de preferência com o estômago.
vazio, ainda que isso não seja· indispensável.

94
Compreendi então os anúncios que a companhia vinha
· bl.tcando no Herald e,. no
pu . Post. Mas por que, pensei fe-
nte tomado de pantco, por que e1e usou aquelas pa-
brilme , - .. f ,. .
? As sugestoes equestres, as re erenctas a arreios a
lavraS · , , '
rédeas e a cavalgar? Meu Deus, sera posstvel que haja tam-
bém aqui, em algum local, um esgoto, meu esgoto guardião,
meu único talismã e pedra de toque para a realidade? Mas
0
engenheiro-projetista (o que ele estaria projetando?) não
se deu conta de minhas dúvidas, ou as interpretou errada-
mente.
_ Devemos nossa libertação à química - continuou.
_ Sim, pois toda percepção não passa de uma modificação
na concentração de íons de hidrogênio na superfície das cé-
lulas cerebrais. Ao me ver, você experimenta na realidade
uma perturbação no equilíbrio sódico-potássico nas mem-
branas dos neurônios. Assim, basta enviar algumas moléculas
bem escolhidas para esses mitocondriomas corticais, ativar os
sítios causadores de transmissões neuro-humorais e de sinap-
ses, e seus sonhos mais queridos tornam-se realidade. Mas
você já sabe disso tudo - concluiu ele, em voz baixa. A
seguir, tirou um punhado de pílulas minúsculas e coloridas
da gaveta. Pareciam-se com pequenos confeitas.
- Eis aqui o mal que fabricamos, que sacia a sede
da alma aflita e ansiosa. Eis aqui a química que limpa os
pecados do mundo.
Com as mãos trêmulas, tirei do bolso um comprimido
de equanimina, engoli-o inteiro e disse:
- Tudo isso está muito bem, mas, por favor, seja mais
objetivo.
Symington franziu o cenho assentiu com a cabeça si-
lenciosamente, abriu a gaveta e 'dela tirou alguma coisa, que
comeu. Depois disse:
- Como queira. Eu estava descrevendo o modelo T
de · ··
S n~ssa nova tecnologia. . . isto é, seus inícios pn~uttvo~.
01
uçoes de garrote. As pessoas aderiram à flagelaçao e a
~efenestração imediatamente aquilo foi felicitas per extr~c-
ttanem
. pedum, mas como a' concepção era es t ret·ta demats '
as poss"b·I·d .. "d d I go perdeu
l 1 1 ades logo se esgotaram e a ·nov1 a e 0

95
· t
o m eresse.
o que se podia fazer?! Simplesmente não havia
· , E
idéias suficientes, exemplos, precedentes. a segu~r· m toda
a história do mundo, só o bem havia stdo prattca~o aberta-
mente, ao passo que o mal era ocul~o sob sua ~ascar~, ou
seja, era praticado sob pretextos acettos · · · podi~-se. pilhar,
despedaçar ou profanar, mas em nome de altos tdeais. E a
nível individual, privado, o mal não conta.va nem mesmo
com essas luzes norteadoras. O ilícito, por ISSO, era sempre
grosseiro, mal feito e improvisado, e prova disso está na
reação do público a nosso produto: nas encomendas cons-
tantes, o mesmo pedido se repetia enfadonhamente - todos
queriam bater, estrangular e fugir. Além disso, não basta a
simples oportunidade do mal; as pessoas necessitam também
de uma justificativa. Você sabe como é constrangedor, em-
baraçoso, cometer um ato de violência diante das pessoas.
Sempre haverá alguém que perguntará "Por que isso?"~
Não é nada agradável não poder dizer nada. O garrote não
é uma resposta adequada, todo mundo sabe disso. A solu-
ção está em se ter argumentos adequados para rejeitar essas
objeções, desdenhosamente. Todos desejam cometer uma vi-
lania sem sentir-se vilão. A vingança representa uma boa
desculpa ... mas o que Joana d'Arc lhe fez de mal? Apenas
ser melhor, mais nobre? Nesse caso, você está em situação
pior ainda, com o garrote ou sem ele. E ninguém quer issor
Todos nós gostaríamos de cometer os crimes mais abominá-
veis, mais hediondos, mas continuar a ser inteiramente res-
peitável, nobre. Simplesmente admirável! Quem não quer ser
digno de admiração? É sempre assim. Quanto piores são,
mais admiração querem receber. A simples impossibilidade
disso aguça o apetite. Nosso cliente não se satisfaz com ator-
mentar viúvas e órfãos. . . é preciso que, além disso, ele
se. sinta o. mais angelical dos homens. Embora seja um cri-
minoso ( amda que, atente bem, plenamente justificado), não
tem nenhum desejo de se l~ar a criminosos.
. Mas_ isso, até aqui, é coisa velha, um lugar-comum te-
dioso. ~ao, te~os d: dar a nosso cliente nada menos do que
a santtdade, e preciso tomá-lo um verdadeiro anjo, e de
uma forma tal que ele satisfaça seus instintos com a sen-

96
sação de que isso .não _ é apenasd lícito, é também 'Um dever,
uma espécie de mtssao . . sagra a. Compreende · a grande arte
que representa_ conc111a: essas contradições? Em última aná-
lise, estamos hdando nao com o corpo, e sim com: a alma
- , . .
o corpo nao e ma1s que um meto para determinado fim
.
Quem não compreender _isso não irá além da mesa do açou~
gueiro. É claro que mu1tos de nossos clientes são incapazes
de perceber esse tipo de distinção. Para eles temos 0 de-
partamento do Dr. Hopkins - Agressão e Violência, sagra-
da e profana. Sagrada? Bem, estamos numa espécie de Valé
de Josafá, onde os diabos arrebentam a todos, menos a nos-
so cliente, e no dia do Juízo o Deus Supremo; :em pessoa,
o conduz à glória celestial. Até com deferência. Há algumas
pessoas (mas isso é esnobismo de cretinos) que exigem que;
ao fim, Deus proponha trocar de lugar com .eles. Infanti..
Iidade. Mas os americanos parecem gostar desse tipo de
coisa. Esses porretins e bordoários - disse ele, mostrando
com uma expressão de desgosto o espesso catálogo ;..__ não
passam de pura selvageria. O próximo, afinai · de· contas, não
é nenhum tambor para se bater, e sim um instrumento sutil.
- Um momento - eu disse, engolindo outra pastilha
de equanimina. - Nesse caso, o que é, exatamente, que
v.ocê projeta?
, Symington sorriu com orgulho.
- Composições sof.ísticas.
- Não entendo bem. Causadoras de sofismas?
- Não, Tichy. Sof é a unidade de sofrimento.. ~o~o
compositor, eu me atenho estritamente a ·agressões espmtuats.
Minhas obras são medidas em sofs. Um sof representa a
, . . f.lh s ao ver toda sua
angustia sentida por um pai de c1nco t o
família ser assassinada diante de seus olhos. De acordo com
J , t ês sofs ao passo
essa medida, Deus aplicou a Seu servo 0 r d ' que qua-
que Sodoma e Gomorra receberam nada menos t~ativo Sou
renta. Mas não falemos mais desse aspecto ~ut~rament~ no-
. .
h as1camente um artista, e atuo n
um campo lfl et
,. sabe desen-
. . f"l , fos como voce '
vo, Inexplorado. Mu1tos 1 oso ' ." te ninguém se
. s prattcamen .
voIveram a Teona do Bem, ma déstia - detxan-
ocupou da Teoria do Mal - por falsa mo
97
0 de pessoas 1·gnorantes ou .dde,. amadores sem
do-a a carg . t errônea a 1 êla, corrente, de
·t· - É inteuamen e f'tnad o e ela-
quah 1caçao. . 1 sutil, insidioso, re
0
que se pode praucar ma adequado sem experiência nem
treinamento ' .. .
borado sem o longados e dthgentes. Para tsso
. · - sem estudos pro · ·
mspuaçao, . . nem tampouco a tuano1ogta ou
não basta a .torturometna, . adas Essas disciplinas não pas-
, · ras ou ap1tc ·
a brutahsttca,. pu _ nto Além disso, não existe
. t duçao ao assu ·
10
sam de uma ro f, mula simples, nenhuma lei univer-
nesse campo nenhuma or
sal ·- suum ma/um cULque. .' . ?
- E a firma tem muitos. . . chent~s .
· . tela é toda a humanidade. Desde a pri-
- Nossa c11en d · ·d
. . " . · 0 otinhos recebem ba1as e parnct o1
me1ra mfancta. s gar · " b
·· - seus ressentimentos. O pat, voce sa e,
para darem vazao a . · d d
é a fonte das frustrações da socteda~e. E com a aJu a e
um freudo ou dois, resolvemos raptdamente os complexos
de Edipo.
Saí da . casa de Symington sem nenhuma pastilha. Com
que então, . as coisas estão nesse pé! Que mundo! Então, é
esta a razão . por que todos ofegam tanto? Estou rodeado
de monstro~! . . .
.. . . .

30 IX 2039. Não sei o que fazer con1 relação a Syming-


ton, mas é claro que nossas relações não podem continuar
sendo as mesmas. Aileen me aconselhou:
- Encomet:tde seu arrependimento. Se você quiser, eu
cuido disso.
Em .outras palavras, ela me recomendava comprar da
Procrustics a cena. de meu triunfo sobre Symington, na qual
ele se an~oja ~ meus pés e admite que ele é de fato um
patife, e que sua companhia e sua arte são inon1inavelmente
ignóbeis. lvias corno posso valer-me, para desacreditar um
método, desse próprio método infame? Aileen não compre-
ende isso. .Alguma. coisa aconteceu entre nós. Ela voltou da
casa da. tia .um pouco mais baixa e mais corpulenta, ainda
que esteJa com o pescoço consideravelmente mais longo. Mas
0
corpo nã9 importa, o que vale é a alma como disse aque-
le d " · ' ·
emonto. Ah:, como eu estava enganado com respetto a
98
~-· ----- -~----
- -- - - ... -·- - ·- --

este mundo, este mundo no qual tenho de continuar a vi-


ver! E eu achav~ que estava começando a compreendê-lo!
Agora percebo cmsas que me escapav~~ antes. Por exemplo,
sei 0 que estava fazendo aquele meu VIZinho no pátio aq 1
. S . b' , ue e
que tinha ~~ esttg~as. e1 ~am em o que significa quando,
numa reuntao soc1al, meu Interlocutor subitamente pede li-
cença, retira-se cortesmente para algum canto para cheirar
uma pitada de r_apé, ao mesmo tempo em que crava os olhos
em mim - para que minha imagem, precisa em todos os
detalhes, fique gravada no inferno privado de sua imagina-
ção enfurecida. Assim se comportam até mesmo dignitários
mais eminentes de nossa quimiocracia! E durante todo 0
tempo eu não me dava conta da ignomínia mascarada por
trás de uma fachada de elegância e cortesia!
Para me reconfortar, tomei uma colherada de herculan
com açúcar, e, juntando forças, destrocei todas as jarras,
frascos, ampolas, botijas e bomboneiras que Aileen tinha me
dado. Estou pronto a qualquer coisa, agora. As vezes fico
tão furioso que gostaria de captar algum interferente no re-
vedor, para que pudesse despejar sobre ele toda a força de
minha indignação. No entanto, a voz da razão me diz que
eu poderia perfeitamente criar pessoalmente a oportunidade,
ao invés de ficar esperando com um porrete. Poderia com-
prar um manequim, por exemplo. E se não me satisfizer com
um manequim, por que não um manicóide? E se não um
manicóide, por que não um andróide? E se - por tudo
que é mecânico! - não me agradar um andróide, por que
não encomendar ao Dr. Hopkins, da Procrustics, uma retri-
buição adequada, cólera e vingança, uma chuva de enxofre
e fogo sobre esse mundo degenerado? O problema, entretan-
to, é que não posso fazer isso. Tenho de fazer tudo sozinho,
tudo sozinho. Sozinho!

1 X 2039 . Tudo está acabado entre nós. Hoje ela esten-


deu a mão, com duas pílulas - uma branca e outra preta :-
para que eu escolhesse uma. Em outras palavras, ela na?
<:onsegue sequer tomar uma decisão naturalmente, sem auxt-
lio da psiquim, e mesmo em assuntos tão importantes como

99
os do coração! Recusei-me a decidir, começamos a dis .
" · . CUttr
e e1a so p1orou as co1sas ton1ando recriminol. Acusou- '
· · me
IDJUStanlente, de totnar grandes doses de invectina antes d~
n~~s? confronto (foram as palavras dela). Um momento
diftcll para mim, mas me mantive fiel a mim mesmo. De
agora en1 diante farei as refeições sozinho em casa, e ape-
nas comerei os alimentos que eu mesmo preparar. Acaba-
;nun-se os sínteos, os paradisíacos, as gelatinas luxo-extáticas
e desliguei todos meus hedoníticos. Não necessito nem d~
abstinina ne1n de protestai. Um pássaro enorme, de olhos
tristíssimos, pousou diante de minha janela, olhando para
dentro do compartimento. É uma ave muito estranha, com
fonnas de gesso em lugar de garras. O computador diz que
se chama xumbrente.

2 X 2039. Fiquei em casa, jantando volumes de história


e n1atemática. E assisti a programas do revedor. Mas meus
sentimentos de rebelião contra este n1undo continuam a levar
a melhor sobre mim. Ontem, por exemplo, comecei a mexer
no botão de solidez e, levado por um impulso súbito, au-
mentei ao máximo a gravidade específica da imagem. Para
dar a tudo densidade e massa maiores possíveis. A mesa
do locutor quebrou-se sob o peso de umas duas folhas com
as notícias da noite, e ele próprio fez afundar o piso do es-
túdio. E claro que esses efeitos limitaram-se unicamente a
meu compartimento, não tendo nenhuma conseqüência. No
entanto, eles atestam meu estado de espírito. Acho parti-
cularmente irritantes os programas humorísticos do revedor,
as piadas, as sátiras, o grotesco. "Por que foi que andro-
morfo fugiu com seu kit de reparos? Ah, porque és inteli-
gente!" Que pobreza mental! Os próprios nomes dos progra-
mas, que lástima! O Concubalão no Erotociclo. Um drama
sensacionalista que começa com dois transviados sentados
numa taberna em penumbra. Desliguei o aparelho, enfastia-
do. Mas de que adiantou, se continuava a escutar a última
música da parada de sucessos em outro canal, no compar-
timento do vizinho? ~~As moças de hoje levam na bol~a re-
futai e darina." (Não é de uma pílula que eu preciSO, e

100
sim de um ~sgoto, onde sal~ar ~e ca.beça!) Será possível que
em pleno sec. XXI as hab1taçoes a1nda não sejam à prova
de som?
Comecei a brincar novamente, hoje, com 0 botão de
solidificação da FV, e acabei por quebrá-lo. Realmente, te-
nho de me decidir a fazer alguma coisa. Mas, 0 quê? Tudo
me exaspera, a menor coisa, até o correio - recebi uma
proposta do escritório da esquina, para me inscrever como
candidato ao Prêmio Nobel. Prometem colocar-me no alto
da lista, na qualidade de visitante do passado aterrorizante.
Vou enlouquecer, juro! E tenho também diante de mim um
folheto de aspecto suspeito, oferecendo "cápsulas secretas,
que normalmente não são oferecidas à venda". Só Deus sabe
o que poderão conter. Recebi ainda uma advertência contra
os contrabandistas de sonhos - traficantes de sínteos proi-
bidos. E também um apelo para não sonhar espontanea-
mente, primitivamente, uma vez que isso representa um des-
perdício de energia psíquica. Que tocante ~?reocupação pelo
cidadão! Encomendei um sínteo sobre a Guerra dos Cem
Anos e acordei coberto de equimoses.

3 X 2039. Continuo vivendo sozinho, como um eremita.


Hoje, enquanto folheava um exemplar do Futuro Pátrio, re-
vista trimestral que acabo de assinar, fiquei espantado ao
encontrar o nome do Professor Trottelreiner. Mais uma vez
fui assaltado por minhas piores suspeitas. Não será tudo isto
apenas um sonho, uma trama de visões e alucinações? Teo-
ricamente, é possível. Uma firma, a Psychomatics, vem pro-
movendo e anunciando ultimamente suas pílulas estratifica-
das, o estratílio, que provocam fantasias em níveis múltiplos.
Por exemplo; suponhamos que uma pessoa deseje ser Na-
poleão em Marengo, mas quando a batalha termina não
sente nenhuma pressa de voltar à realidade. Então, ali mes-
mo no campo de batalha o Marechal N ey ou outro chefe
da Velha Guarda lhe oferece outra pílula numa salva de
prata. Isso também faz parte da alucinação, mas não. im-
porta, pois ao tomar a pílula a pessoa vê se abrirem .d~ante
de si as cortinas para o próximo sonho, e assim ad lzbztum.

101
~-·

Como tenho por hábito cortar os nós górdios, engoli 0 .


" . . d guta
teIef on1co e, v1n o a conhecer o número certo, telefonei
para o Professor. É ele! Vamos jantar juntos esta noite.

3 X 2039. São três horas da manhã. Estou cansadíssimo


e tomado de uma tristeza mortal. O Professor chegou um
pouco atrasado, de modo que tive de esperá-lo no restau-
rante. Chegou a pé. Reconheci-o imediatamente, embora ele
esteja n1uito mais jovem agora do que era no século passa-
do. Além disso,. deixou de usar óculos e não 1nais carrega um
guarda-chuva. Parecia emocionado ao ver-me.
- A pé? - indaguei. - O que houve, seu carro vi-
ciou? (Isso às vezes acontece.)
- Não - respondeu. - Prefiro caminhar per pedes
apostolorum . . . '
Mas sorriu de uma maneira estranha ao pronunciar es-
tas palavras. Quando os garçômatos finalmente se afasta-
ram, rolando em suas rodinhas, comecei a lhe perguntar o
que ele estava fazendo, mas não pude evitar dizer duas
palavras acerca de minhas dúvidas quanto à realidade.
- Lá vem você novamente com suas alucinações,
Tichy! - replicou ele. - Eu também poderia suspeitar que
você faça parte de meu sonho. Você foi congelado? Eu tam~
bé1n. Foi descongelado? Eu também. Aconteceu que no meu
caso me rejuvenesceram também. . . você sabe, rejuvenex,
desenilina. . . o que para você não era necessário. Mas eu,
sem esse tratamento enérgico, não poderia ser um futuró-
logo hoje ..
- Um futurólogo?
- Hoje em dia a palavra significa uma coisa um pouco
.diferente. Um futurólogo elabora profutos, prognósticos, pro-
fecias ao passo que eu trabalho exclusivamente com a teo-
'
ria. Trata-se · ·
de um campo completamente novo, Inextsten te
em nosso tempo. Poderíamos chama-lo / de a d'IVIn
· h aç~-o pela
derivação Iingüística. Previsão morfológica! Etimologta pro-
jetiva!
- Nunca ouvi falar disso. De que se trata, realmente?

102
Para dizer a verdade, eu pergüntei mais p· .
· ·d d or cortesta do
que por cunost a e, mas parece que ele não n o· t ou. 0 s gar-
çons trouxeram nossa sopa e, com ela, uma garrafa de Cha-
blis, da safra de 1997. Um ano excelente.
- A futurologia lingüística investiga 0 futu · ~
. .. ro atravcs
das poss1blltdades de transformação da Iín<Yna · ,.
. o"· ·- exp11cou
Trottelretner. ·
- Não entendo.
- O homem só pode controlar aquilo que compreen-
de, e só pode co.mpreend~r aquilo que . expressa em pala-
vras. Por conseguinte, o mexprimível é incognosCÍvel. Pelo
exame dos estágios futuros na evolução do idioma, desco-
brimos quais as descobertas, mudanças e transformações so-
ciais a língua será capaz, algum dia, de refletir.
- Espantoso. Mas como se faz isso, na prática?
- Nossa pesquisa é feita com o auxílio dos compu-
tadores de capacidade máxima, pois, sem essa ·ajuda, o ho-
mem seria incapaz de acompanhar todas as vai1a~ões. Ao
me referir a variações, estou falando, naturalment~, das per-
mutações sintagmáticas-paradigmáticas da ·I]ngu.agem, ainda
que a quantificação ...
- Professor, por favor ...
- Desculpe-me. A propósito, o Chab1is está magnífico.
Alguns exemplos esclarecerão a questão. Diga-m.e uma pa-
lavra, qualquer uma.
-Eu.
- Eu o quê? Ah, sim. Eu. Muito bem. Não ~ou um
computador, você sabe, de modo que o exemplo sera _forço-
samente simples. Então, muito bem. Eu.. Temos . e~tao eu,
meu, ego, alter ego. Mego. Teu ego, tego. Como exJSt~ ego,
pode haver, vocego. E formamos, entao, - nosego
. "-' ..r- · Vtu?•
- Não vi nada. .
.
- Mas é perfeitamente c1aro. s E tamos 'falando, pn-
meiramente da possibilidade de misturarmos 0 ~egdo co~
' f - de duas enttda es pst
o ~ego. Em outras palavras, da usao . Interessantíssimo.
0
quicas. Em segundo lugar, temos .0 noseg · . . Ja:-: dissociação
Uma consciência coletiva. Produztda, talvez, pe
103
múltipla .da. .personalidade, um multisquizismo. Out
vra, por .favor. ra Pala..
-Pé. . ..
- ótin1o. Pé, monípede, bípede, trípede quad ,
. . ' rupede
Pedal, pedaleira, pedahsmo. Pedestre, pedestrocracia p . ·
,. . p, . · ezis-
mo, pezada, .d espezad a. P eztsttca. eztco. Pedismo e d
. ~~
dismo. Acho que asstm vamos chegar a alguma coisa. p •
salidade e bipedirismo. e
-.-. Mas essas palavras não significam nada!
- Por ·e nquanto, não, mas vão significar. Ou melhor
poderão um dia adquirir significado. A palavra "robô" nã~
significava nada no século XV, mas se existisse nessa época
a futurolingüística, eles poderiam facilmente ter pensado em
autômatos.
-.- Mas o que poderia ser o . despedismo?
- Nesse caso particular não posso responder com pre-
cisão, mas apenas por não se tratar de um prognóstico, e
sim de uma coisa que já existe. O despedismo é um con-
ceito bastante recente, uma nova atitude em relação à auto·
_evoluç~o .humana.
- Quer· dizer, criar homens sem pés?
- Exatamente. Afinal, caminhar tornou-se uma ativi-
dade vestigial, e além disso já há falta de espaço.
· - · Más· ·isso é. uma loucura!
_ ::· Concordo inteiramente. No entanto, luminares como
o Professor Hatzelklatzer e o Dr. Foeshbeene são adeptos
do despedismo. Você não sabia disso quando me ·propôs essa
palavra:, não é? · ;
·- · Não~ E· as outras derivações, o que significam? .
- · Isso ··é uma· coisa que ainda não se sabe. Mas se 0
despedistno :triunfar sobre o bipedirismo, todo o resto lo.go
virá. Não · ·se ··trata de uma profecia, veja bem, mas um m-
ventário simples das possibilidades em sua forma mais pura.
Diga outra :palavra.
- Interferente.
-- Muito bem. Inter· e fero, fero, ferre, tuli, latum. CtC:
. . 00~
mo ~ palavra ~em do latim, devemos proc~rar uma ~ cta-
nuaçao nessa l~ngua. Fios, floris. Interflorenttna. Mas, e

104
ro! Trata-se da virgem que teve un1 filho com interfe-
rente, que lhe tirou a virgindade. um
_ E de onde o senhor tirou essa virgindad ?
- Fios,
,
floris
,
- flor. Ela foi deflorada
. '
ent~~deu.? No
entanto, e provave1 q~te venham a dtzcr fisigenutriz, ou fisi-
triz, em forma abreviada. Ou simplesmente mãe revi siva.
Eu lhe as~e~u_ro que. .temo"s . à nossa disposição, aqui, um
campo ferttl~ss1mo. FISI~ul.~en~. Coitus interferentus. Recep-
ção/concepçao de alta Infidelidade, inseminação heteródina.
Percebemos todo um novo mundo de padrões sociais, toda
uma nova moralidade!
- Pelo que vejo, o senhor é um entusiasta dessa nova
ciência. Vamos ver um novo exemplo. Por acaso, lembro-
me de lixo.
- Por que não? Não importa que você seja cético.
Muito bem. . . lixo, lixeira, lixai. Lixismo, líxico, catalíxico.
Lixismo, lixíria. Quando muito grande, lixórdea. Ah, sim,
naturalmente, podemos ter cosmolíxio! Tichy, você me pro-
porcionou u1na palavra estupenda! Pense bem, cosmolíxio!
- Acho que não entendo o significado. Para mim, não
te.m nenhum sentido.
- Antes de mais nada, não se diz "entender o signi-
ficado", e sim " não ter gosto". Você não sente o gosto.
Aliás, já observei que sua linguagem está cheia de anacro-
nismos. Isso não é bom. Mas falaremos disso mais tarde.
Em segundo lugar, cosmolíxio não é inteligível até agora,
mas já podemos pressentir seu sentido futuro. A palavra,
veja b~m, implica nada menos do que uma nova teori_a. ~si­
cozóica! A implicação é que as estrelas têm origem artiftctal!
- De onde você tirou essa idéia?
- Da própria palavra. Cosmolíxio indica, .ou suger~,
a seguinte imagem: no transcurso de eras sem ftm, ~ .l!nt-
verso encheu-se de lixo dos detritos de inúmeras ctvthza-
ções. Os detritos atrap;lhava1n, naturalmente, as atividades
de astrônomos e cosmonautas, de modo que foram cons-
truídos gigantescos incineradores, que funcionavam a ~em­
peraturas extremamente elevadas, veja bem, a fim de quet~ar
.
o I txo, e que possuíam massa suf'ICten
. t e pa ra atrair ' gravtta-

105
cionalmente todo aquele lixo. Aos poucos, o espaço r·
,' _ tcou
limpo, e Ia esta o. . . as estrelas, exatamente aquelas fo
. rna-
Ihas, e as nebulosas escuras - ou seJa, o lixo que ainda
não foi consumido.
_ Não pode estar falando a sério! Então o Univers
. o
não passa de um enorme vaza douro de 11xo? Professor, não
brinque com essas coisas!
- O problema, Tichy, não é o que eu penso ou deixo
de pensar. Apenas utilizmnos a lingüística futurológica para
criar uma nova cosmogonia, outra teoria que caberá às fu-
turas gerações analisar. Elas poderão ou não levá-las a sério,
mas o fato é que podemos articular essa hipótese! Note que
se a extrapolação morfológica existisse na década de 50, do
século passado, já naquela época poderiam ter previsto os
benignimizantes - lembra-se deles? - mediante a deriva-
ção projetiva de "benigno" e "tranqüilizante". A língua, meu
caro, é uma nüna de ouro de possibilidades, ainda que essas
possibilidades não sejam ilimitadas. Naquela época, poderiam
ter criado a palavra "ben1bas" - uma variante de bombas.
V topize-se, meu querido Tichy - já percebeu que o verbo
vem de "utopia", não? - e compreenderá o pessimismo de
muitos de nossos futurologistas. Afinal, a palavra "utopia"
significa literalmente lugar nenhum, uma terra inexistente,.
um ideal inalcançável.
A conversa chegara finalmente ao assunto que mais me
interessava. Confessei a Trottelreiner minhas apreensões, meu
ódio por aquele novo mundo. O Professor dava mostras de
não concordar, mas ouviu-me pacientemente e, como tinha
excelente alma, até começou a ter pena de mim. Pude ver
até que enfiou a mão no bolso para pegar um pacotinho de A o

comiserina, mas interrompeu o gesto, diante da veemencta


com que invectivei todas as formas de psiquim. Entretant~,
quando acabei de falar, seu rosto assumiu uma expressao
severa, e ele disse:
- Isso não é nada bom, Tichy. De qualquer forma,
sua crítica é totalmente irrelevante. Sabe, você não conhEece
· ·nar 111
toda a verdade. Na verdade, não pode nem tmagt ·

106
. -- ..- ..- ... _
· - ~- - -· - ~- ~

compara Ção com ela, a. hProcrustics


. '
e a sociedade psiquimi-·
- passam de n1n anas.
zada n a0 . . / .
Eu não podia acreditar em meus propnos ouvidos.
_ Mas. . . mas. . . - gaguejei. - O que está dizendo,
Professor? O que pode ser pior do que isso?
Trottelreiner inclinou-se em minha direção.
_ Tic.hy, vou fazer isso porque sou seu amigo. Vou
quebrar o segr.edo p~ofissio?al. Tudo . que você acabou de.
me dizer é cmsa sab1da ate pelas cnanças. Co1no poderia
ser de outra forma? O progresso estava fadado a seguir essa
linha, esse caminho, no momento em que os narcóticos e os
primitivos alucinógenos foram substituídos pelos chamados.
psicofocalizadores, drogas cujos efeitos eram extremamente
seletivos. No entanto, a verdadeira revolução na engenharia
experimental ocorreu há apenas vinte e cinco anos, quando
foram sintetizados os mascons, ou seja, psicotrópicos de tão
grande especificidade que são capazes, na verdade, de in-·
fluenciar zonas isoladas do cérebro. Os narcóticos não iso-
lam uma pessoa do mundo, apenas modificam a atitude dessa_
pessoa em relação a ele. Os alucinógenos, por outro lado,
obliteram e obscurece1n totalmente o mundo. Isso é uma
coisa que você conhece por experiência própria. Mas os
mas~ons falsificam o mundo.
- Mascons. . . - eu disse. - Acho que conheço essa.
palavra. Ah, sim, são massas concentradas sob a superfície
da Lua, compostas de minerais muito densos. Mas, o que.
têm em comum?
- Absolutamente nada. A palavra tomou. . . desculpe--
me, provou . . . outro sentido. De máscara, mascarada. Ao
se inocular mascons corretamente preparados no cérebro,
mascara-se qualquer objeto que exista no mundo por trás.
de uma imagem fictícia - sobreposta - e com tal perfeição
que o indivíduo psiquemasconado não pode mais distinguir
~uais as suas percepções que foram alteradas. Se, por um
Instante mínimo, você pudesse enxergar esse nosso mun~o
como ele realmente é - sem manipulação, sem adulteraçao,..
sem censura - ficaria realmente assombrado.
107
_ Um momento! Que mundo? Onde está ele?
· 0 nde
posso vê-lo?
_ Ora, em qualquer parte. Até aqui! _ sus
surrou
0 Professor, olhando nervosamente. em torno. Depois f .
,aas-
tou a cadeira e me passou, db e atxo da mesa um v1·d · h
. ' fiO o
com a rolha gasta, dtzendo com um ar de conspirador:
- Isto se chama aflitin, um composto do grupo das
vigilanimidas, e é u~ poderoso .age~te .contra-sônico e antipsi-
.químico. :E: um denvado da dtmetlletllhexabutilpeptopeiotina.
A simples posse desse produto constitui crime, quanto mai
seu uso! Retire a rolha e cheire . . . mas apenas uma vezs
veja bem, e com todo cuidado, como se cheira amoníaco. E
depois, pelo amor de Deus, controle-se, não entre em
pânico, lembre-se de quem você é!
Minhas mãos tremiam enquanto eu destampava o vidro
e o levava às narinas. Só tive tempo de sentir um forte
cheiro de amêndoas, antes que o Professor me arrancasse
o vidrinho das mãos. Meus olhos se encheram de lágrimas,
e quando as enxuguei, to1nei um susto. O salão magnífico,
coberto de tapetes, as palmeiras, as paredes decoradas com
maiólicas, o elegante resplendor das mesas postas, e a or-
questra que tocava música de fundo enquanto jantávamos,
tudo isso havia desaparecido. Estávamos sentados num muro
de concreto, diante de uma tosca mesa redonda, de madeira,
com os pés sobre uma velha esteira de palha, já muito sur-
rada. A música continuava, mas eu percebia agora que vi-
nha de um alto-falante pendurado num arame enferrujado.
O iridescente lustre de cristal não passava, agora, de uma
lâmpada nua, muito suja. Mas a mudança pior era a que
havia ocorrido na mesa. A toalha, alvíssima, tinha sumido;
a travessa de prata, com o faisão fumegante, se transforma-
ra num prato de louça, meio lascado, onde se via uma papa
pardacenta, pouco apetitosa, que se agarrava ao garfo (de
·
·z1nco, - de prata como era antes). O lhe1· com horror
e nao
para aquela coisa horripilante que há poucos momentos eu
dou-
estava consumindo com tanto prazer saboreando a pe1e
' e su-
-rada da ave, e deleitando-me num contraponto doce.
' ctma e
culento, com os pedaços de pão, bem torrados em

108
ados de molho por baixo. E o que antes me pareciam
encharc d . ,
ramos pendentes e uma palmeira proxima plantada
~o S '
num vaso, converterain-se n~s cadarços das calças da pes-
a que estava sentada, JUnto com três outras, bem
sofll cima de nos," nao - num bl- a cao ou sacada, mas numa
e . - .
esP écie de prateleira, tao
. 1 estreita que era. O lugar estava
inacreditavelmente cheio.
Meus olhos praticamente saltavam das órbitas quando
essa visão apavorante começou a tremer e a se desvanecer,.
como se tocada por uma varinha de condão. Os cadarços
perto de meu rosto tornaram-se verdes e novamente assu-
miram o aspecto de graciosas folhas de palmeira, ao passo
que o fedorento depósito de lixo, a pouca distância, adquiriu
um brilho opaco e se transformou num vaso esculpido. A
superfície imunda de nossa mesa cobriu-se novamente da
mais pura brancura, as taças de cristal reluziram, a papa
hedionda tornou-se dourada, recuperando as formas de um
magnífico assado, e o zinco de nossos talheres recobrou
sua antiga cintilação argêntea. As abas dos fraques dos gar-
çons balançavam de um lado para outro. Olhei para meus
pés, e a esteira era novamente um tapete persa. Eu tinha
retomado ao mundo do luxo. Mas, examinando o peito lar-
go do faisão, não conseguia esquecer o que ele escondia ...
- Agora você está começando a compreender - mur-
murou Trottelreiner, observando-me atentamente, como -se
temesse que o choque tivesse sido grande demais. - E não
se esqueça de que este é um dos restaurantes mais caros
da cidade! Se eu não tivesse tomado as providências neces-
sárias para o caso de lhe contar o segredo, poderíamos ir
a um restaurante cuja visão poderia ter afetado seriamente
sua mente.
- Que quer dizer . . . que há lugares. . . piores?
- Isso mesmo.
- Mas é impossível!
- Aqui, pelo menos, temos mesas, cadeiras, prato~,
facas e garfos de verdade. Nesses outros, as pessoas se det-
tam em tábuas, entpilhadas umas sobre as outras, e comem
com os dedos, tirando a comida de baldes que se movem
109
sobre esteiras rolantes. E o que comem sob o disfarce de
faisão é ainda muito menos atraente, posso garantir-lhe.
- O que e. "?
_ Não é nenhum veneno, Tichy! Trata-se simples-
mente de um concentrado de grama e beterrabas, embebido
·em água clorada e misturado com farinha de peixe. Em ge-
ral acrescentam gelatina e vitaminas, além de óleos e emul-
sificantes sintéticos para evitar que o preparado agarre na
garganta. Você sentiu o cheiro?
- Se senti!
- Já sabe o que é.
- Pelo amor de Deus, professor! O que é? Por favor
tenho de saber. Diga-me. Seria alguma traição diabólica?'
·u m plano demoníaco? Uma trama destinada a destruir a
raça hun1ana?
- Francamente, Tichy! Não seja tão dramático! Não
é nada disso. Acontece apenas que vivemos num mundo
onde há mais de vinte bilhões de pessoas. Leu o H erald de
hoje? O governo do Paquistão afirma que a fome deste ano
matou apenas 970 mil pessoas no país, ao passo que os li-
deres da oposição asseguram que foram seis milhões. Num
mundo desses, onde você pretende encontrar Chablis, faisões
e filés com sauce béarnaise? O último faisão morreu há um
quarto de século. Essa ave é um cadáver, apenas magnifica-
mente preservado, pois nos tornamos mestres na arte da mu-
mificação, ou melhor, aprendemos a mascarar a morte.
- Um momento! Quero entender bem isso. Está di-
zendo que ...
- Que ninguém lhe quer mal. Muito pelo contrário,
é devido a um profundo sentido de misericórdia, e pelas
mais altas razões humanitárias, que se perpetrou este em-
buste químico, esta camuflagem, este enfeite da realidade
com plumagens que ela não possui ...
- Professor, então essa fraude existe em toda parte?
-Sim.
- saio,
- M as se eu faço as refeições em casa, se na0
como ...

110
_ Como você absorve os mascons? E é você quem me
pergunta isso, você? Eles estão no ar que respiramos, ato-
. ·zados. Lembra-se das bombas de A TP na Costa Rica, dos
.::rosóis? Aquilo não foi senão_ as primeiras experiências,
,ru
·nda hesitantes, tal como
. .
o balao de Montgolfier em rela-
. ão aos foguetes espacuus.
ç _ E todos sabem disso? E aceitam?
_ Claro que não. Ninguém sabe.
_ Mas. . . não há boatos?
_ Sempre haverá boatos. Mas lembre-se de que dispo-
·mos da amnesina. Há coisas, meu caro, que todos sabem, e
·coisas que ninguém sabe. A farmacocracia tem seu lado se-
~Creto, assim como seu lado ostensivo. O segundo depende
.do primeiro.
- Não. Não posso acreditar nisso.
- Por que não?
- Porque alguém tem de cuidar dessas esteiras de
:palha, como alguém tem de fabricar os pratos de louça que
.r ealmente usam e preparar essa papa que passa por comida.
E tudo o mais!
- Realmente. Você tem razão. Tudo tem de ser fa-
bricado e mantido. E daí?
As pessoas que fazem essas coisas vêem, sabem!
Bobagem. Seu raciocínio é arcaico. As pessoas pen-
·sam que estão indo para um palácio de cristal, com jar-
·dins de inverno. Ao entrarem, lhes são ministradas doses
·de vigilax e tornam-se conscientes das paredes nuas de con-
·creto e as mesas de trabalho.
- E sentem vontade de trabalhar?
- Com enorme entusiasmo, pois receberam também
·dosagens de abnega1ina. O trabalho torna-se assim uma con-
·sagração, um ato altruísta. E quando terminam o expediente,
·uma colherada de amnesina, ou mesmo nepetanol, é sufici-
·ente para apagar de suas memórias tudo que viram.
. - Até este momento, eu imaginava que vivia uma alu-
<Cmação. Meu Deus, como fui ingénuo! Ah, se eu pudesse
'Voltar! Daria tudo para poder voltar!
- Voltar para onde?

lII
- P~ra a galeria de esgotos debaixo do .
- Ttchy, essa sua atitude é da ma· . H.tlton.
_ . . tor trresp
~ade, para nao dizer simplesmente estúpida V " onsabili-
. oce de ·
fazendo o que todo mundo faz, comer e b b Vta estar
, N . e er como t
nos. esse caso, tena em sua corrente sang··, Odos
- , . d . . Ulnea a con
traçao necessana e otimtstol e serafinil _ 0 . . cen-
. , · . s requ1s1tos ct· -
nos mtntmos - e estana de muito bom hum or. Ia-
- Quer dizer que você serve também com0 d
do diabo? a vogado
- Pense, Tichy, por favor. Será tão satânico ,
. .
d tco mentu para esconder a verdade a seu pacient ? um me-
, . e. 0 que
eu ach o e que se temos de vtver; comer e existir dessa
. . rna-
neua, que pelo menos SeJa com envoltórios dourados. 0
mascons funcionam à perfeição, com uma única exceção .. ~
Então, que mal há neles?
- No momento não estou em condições de discutir
a questão - respondi, serenando-me um pouco. - Quero
~penas que me responda a duas perguntas, em nome de
nossa velha amizade. Em que consiste essa exceção no efeito
dos ·mascons? E como foi que se chegou ao desarmamento
universal? Ou isso também é uma ilusão?
- Não, felizmente, é real. Mas para explicar 1sso eu
teria de fazer uma verdadeira conferência, e agora está na
hora de eu ir embora.
Combinamos encontrar-nos no dia seguinte. Ao nos des-
pedirmos, repeti minha pergunta a respeito dos mascons.
- Vá ao parque de diversões - disse o Professor.-
Se você aprecia revelações desagradáveis, sente-se num
. d lho ganhar velo-
banco do carrossel mator e quan o o apare b"
1 na de sua ca ma,
cidade corte um buraco na cob ertura d e 0 , . ente
, essana exatam
com uma tesoura. Essa cobertura e nec . . d s pelos
- f tasmagonas ena a
porque, durante a rotaçao, a~ an m um deslocamen-
mascons para encobrir a realidade sofre ntolhos .. ·
to . . . como se a força centrífuga afastasse osd a belas nu·
,. . , - urge fora as
Faça isso e voce vera entao o que s
d ma-
:;ões. , . , três horas a
Estou escrevendo essas memonas as h, ais para
O que a 01
drugada, tomado de profundo desespero.

112
ensando serian1e.nte em fugir, en1 abandonar
dizer? . ~~tou _p em me perder nos ermos. Nem tnesmo as
esta civthzaçao, m mais. Uma viagem é coisa triste quando
Jas me atrae
estre te saudades de casa.
não se sen
X . Passei algun1as horas hoje andando pela ei-
2039
S M 1 pude conter meu horror ao contemplar todas as
. . - a de riqueza e prospen·d ad e. u ma ga1ena
dade. · d e arte em
exibtçoes · · · d R
ttan estava praticamente dando ongtnais e em..
Manha d 1' 1 · I ·
brandt e Matisse. E a dois passos a 1d 1av1a .
uma OJa com
. L ; XV
os móveis mais maravilhosos que se po e 1n1agtnar, u1s
e Luís XIV, aparadores de mármore, tronos, espelhos, ar-
maduras sarracenas. Leilões por toda parte, com vendas a
crédito. Minha impressão é que vivíamos num paraíso, onde
todo homem podia palaciar-se. O centro de registro pessoal
para candidatura ao Nobel, na Quinta Avenida, não cons-
titui fraude menor. Qualquer pessoa pode conquistar o prê-
mio, da mesma forma corno qualquer pessoa pode decorar
as paredes de seu compartimento com obras de arte de va-
lor inestimável - uma coisa e outra não passam de uma
pitada de pó que estimula a mente! A perfídia maior de
tudo isto está no fato de que parte dessa fraude coletiva
é ~berta e voluntária, o que leva as pessoas a acreditarem
que podem traçar un1a linha divisória entre o fato real e a
imaginação. E como ninguém mais responde espontaneamen-
te às coisas - tomam-se drogas para estudar, para amar,
para se indignar, para esquecer - deixou de existir dife-
rença entre sensações manipuladas e reais.
Caminhei pelas ruas com os punhos fechados dentro dos
bolsos. Ah, não tenho necessidade de colerina ou de furia-
sol para sentir raiva! Como um lobo faminto, no encalço
da presa, minha mente registrava todo o vazio daquela mo-
nun:enta1 mascarada, daquele embuste enfeitado que se es-
P.r~Iava para além do horizonte. Dão às crianças balas par-
ncidas, desenvolvem-lhes a personalidade com opinionatos,
contestanil e rebelium, e logo depois acalmam sua excitação
com. ~urdinan e cooperasina. Não existe polícia; e para que
servtna' quand o extste
· a gendanntna· e as ten d"enc1as
· ·
cn-

113
1ninosas são neutralizadas com ajuda da Procrusf .
Felizmente, n1antive-me longe das teosingarinias tcs, Inc.?
/ ' com se
compostos grac1genos e absolventes; um grama de us
. . . sacros..
sanhn tna permite a uma pessoa ser canonizada na
~ . mesma
h ora. E por que nao se expenmentar um pouco da ·a .
. ,. d b d . 1 vesma
d1etettca, ou o extrato e u ax ou o bramantl polissaturad ?
Aleluia! O ungüento de nazarina, com apocrifil, leva o.
. .
usuano para as pnn1euas f'l .
1 euas
d o Vale de Josafá, enquantseu
uma gota de reino-celeste descafeinado faz o resto. Glóri~
aielucinal. Paradisíacos para os piedosos, mefistolina e geeni-
nal para os masoquistas, valhallin e estiginina. . . Tive de
fazer um esforço para não entrar num farmacópio de esquina,
onde a congregação estava ajoelhada devotamente, a dizer
padre-nossos e cheirando teocredenciol como se fosse rapé.
No entanto, me contive - eles simplesmente me pacificariam
com o amnesiol ou a obliterina. Tudo menos isso!
Peguei o transportador até o Parque de Diversões, le-
vando uma tesoura na mão que suava. Entretanto, não pude
fazer o que queria, pois a lona que cobria o carrossel era
co1no aço temperado.
'Trottelreiner está hospedado num quarto alugado na
Quinta Avenida. Não se encontrava em casa quando cheguei,
à hora marcada, mas realmente ele tinha avisado que pode-
ria atrasar-se e me ensinou o assovio necessário para abrir
a porta. Assim, entrei e me sentei à sua mesa, atulhada de
revistas científicas e anotações. Por não ter nada que
fazer, ou talvez para acah11ar o tumulto que ia dentro de
min1. comecei a folhear un1 caderno de notas de Trottelrei-
. t a" ·
ner. " Cosmolíxio", "microlixistno'', "cosmículo", "prof etls
Era evidente que ele tinha estado a anotar termos d~q~e~~
sua louca futurologia. "Oraculário", "sala de ressurretçao '
"'parturista" (recordista de partos). "Obstetrônica", "bo~ba
de obstetron". Essa última expressão tinha sentido para mtm,
con1 referência à explosão demográfica. A cada segundo
nasciam oitenta mil bebês. Ou seriam oitocento~? ~a v;rd~
de, não fazia diferença. "Ideísta", ideante", "tdetgeno ·"
que seriam essas palavras? A última devia ser uma substa::
cia destinada a provocar idéias. "Mentífugo". Purgante c

t 14
rebral? Então era. assim que Trottelreiner passava 0 tempo?
Ah, Professor (tive vontade de gritar), o senhor senta-se
aqui e lá fora o mundo se despedaça! De repente, vislum-
brei um brilho entre os papéis - era o vidrinho, 0 aflitin!
Depois de um momento de hesitação, decidi-me. Cheirei 0
vidro con1 cuidado e olhei ao redor de mim.
Estranhamente, quase nada havia mudado. As estantes
de livros, os catálogos de pílulas, os arquivos, tudo perma-
necia no mes1no lugar. A única mudança que notei foi
que a lareira holandesa no canto da sala, que decorava o
cômodo com o brilho de seus metais esmaltados, havia-se
transformado num simples fogão, velho e preto, com uma
chaminé enegrecida que saía por um buraco na parede. Além
disso, o chão estava um pouco sujo de cinzas. Depus o vi-
drinho rapidamente na mesa - como se me houvessem sur-
preendido em flagrante - pois nesse exato momento Trotte-
lreiner assoviou e entrou.
Falei-lhe sobre o que tinha acontecido no Parque de
Diversões, e ele se surpreendeu. Pediu-me que lhe mostrasse
a tesoura e assentiu co1n a cabeça; depois pegou o vidrinho
e deu uma cheirada, passando-o para mim. Em lugar da te-
soura, eu estava segurando um galinho podre. Olhei para
o Professor Trottelreiner. Parecia preocupado, sem a mesma
autoconfiança da véspera. Colocou a pasta, cheia de bom-
bons conferenciais, e1n cima da mesa e suspirou.
- Tichy - ele disse - você deve compreender que
não há nada de particularmente sinistro nessa expansão dos
mascons . . .
- Expansão?
- Muitas coisas que eram reais há um mê.s ou um
ano. . . bem, foi preciso substituí-las por ilusões, uma vez
que os artigos autênticos estão ficando escassos ou desapa-
receram inteiramente - explicou. Entretanto, percebi que
ele estava preocupado com alguma coisa.
- Há três meses dei uma volta naquele carrossel -
c?ntinuou ele. - Mas não posso garantir que ainda esteja
.ta. Na verdade é bem possível que quando você comprou
sua entrada, o difusor lhe tenha dado uma borrifada de

115
roda-gigante ou carrossel, o que não deixa de ser .
.. . .. . R l racJonaJ
por ser muito n1a1s econom1co. ea mente, Tichy , ,
. d h 'd
das possessões rea1s a uman1 ade está-se reduzindo ' o campo
a um
ritmo alarmante. Antes de me mudar para cá eu m
/ H'l _ orava
numa swte . no novo 1 ton, ma~ nao pude continuar lá
depois que Imprudentemente tomei um pouco de vigila
me encontrei num cubículo do tan1anho de um armário x e
, com
o nariz metido num cocho e uma torneira a me apertar
/ as
costelas, e~quanto ~eus pes . encos~avam no armário (per-
dão, na su1te) segtunte. A m1nha ficava no oitavo andar e
custava noventa dólares por dia. Não há espaço suficiente
e o pouco que resta está acabando!
- Estão sendo realizadas pesquisas com os chamados
expansores espaciais - continuou Trottelreiner. - São de-
nominados também claustro1íticos, mas sem muito progres-
so, pois se a presença de uma grande multidão - digamos,
numa rua ou numa praça - for mascarada de maneira tal
que só vejamos alguns indivíduos isolados, começamos a tro-
peçar naqueles que foram removidos psiquimicamente, mas
não fisicamente. Essa é uma dificuldade que nossos espe-
cialistas até o momento ainda não conseguiram superar!
- Professor, estive exan1inando suas anotações - eu
disse. - DescuJpe-1ne, mas o que é isso? - Apontei a
página onde havia as palavras "multisquizol" e "proliferox
automultigen".
---.:. Ah, isso. . . Bem, existe um plano, o Projeto de
Hintemalização, nome que vem de seu autor, Egbert Hinter.
Já ouviu falar nele? O projeto pretende compensar a cres-
cente falta de espaço interno através do aumento psiquin-
duzido do espaço interno, isto é, da altna, cujas dimensões
não estão sujeitas a quaisquer limitações físicas. Você sabe,
graças à zoofonnalina, un1a pessoa pode tornar-se, ou antes,
sentir-se, temporariamente, uma tartaruga, formiga, pulga ou
mesmo jasmim, com ajuda de um pouco de inflorescinina ~e
botanil . . . subjetivamente, é c1aro. Pode-se também expen-
mentar uma dissociação em duas, três ou quatro p~rtes.
Quando as divisões de personalidade alcançarem um nume-
ro de d ots · d tgttos,
/ · · tnulttdu
surge o efeito ' · N esse ponto,
· d'tnano.

116
. ~ '

tamos lidando tnats . com um " ego" , e stm . com um


não es , ou "nego", como se diz comumente. Uma plura-
''nosego tal num corpo único. E existem amplificadores,
!idade men ue potenciando a 1ntens1· 'dade d a VI'da Interna,
· lhe
drogas,
, q ' d
d0 roínio sobre o mun o externo, o Jetlvo. b' · E m que
da pre tamos vivendo, am1go. · ' O mn1s
· est P1. ·ztu la! A farma-
tempo eS · .
,. converteu-se agora em nosso Ltvro da Vtda, nosso
copeta
a1 anaque, enciclope' d.ta, o alfa e o omega " d e nossa exts- .
"mcia e sem que haja uma revolta ou uma insurreição à
ten ' . d' d . , . d .
·
VIS ,
ta pois dispomos hoJe etn
.
ta e suposttonos e tnsurrec-
.
(m
0
revolto! e a extremtna; aquele seu conhecido, o Dr.
~o~kins, vem alardeando as virtudes do sodomil e da go-
morrina: pode-se pessoalmente espalhar a morte e a des-
truição sobre quantas cidades se desejar. Também se pode
conseguir uma promoção ao trono de Deus Todo-Poderoso,
pois isto custa apenas un1 dólar e setenta e cinco centavos.
_ A últin1a forma de arte parece ser a comichão -
observei. - Escutei, ou melhor, senti o Scherzo de Kits-
chkoff, mas não posso dizer que tenha experimentado qual-
quer prazer estético. Ri nos momentos errados.
- Essas coisas não são para nós, remanescentes de
um outro século, proscritos do tempo - comentou Trottel-
reiner, com uma expressão melancólica. Mas depois deu de
ombros, limpou a garganta, olhou-me dentro dos olhos. e
disse:
- Tichy, o Congresso Futurológico está começando
precisamente agora, para anal is ar o estado atual da Porví-
ria. Esta é a 76a Assembléia Mundial. Participei hoje da
P:imeira reunião de organização . . . as primeiras providên-
Cias para se traçar os planos preliminares. . . e gostaria de
debater minhas impressões com você.
- :E: esquisito - comentei. - Tenho lido os jornais
com todo cuidado e não encontrei nenhuma referência a esse
congresso.
- O conclave é secreto. É claro que você compre-
ende· · · entre outras coisas a serem discutidas estão os pro-
blemas reI attvos
. a' masconação!
- Problemas? Alguma coisa está saindo errado?

117
- Erradísshno! - exclan1ou o Profess
.
nao pod enam .
ser ptores! or. - As coisas
- Ontem mesmo o senhor tinha opin·- d'
eu disse. Iao Iferente .._
- verdade. Mas veja minha situação
É ,
estou-me inteirando do verdadeiro estado de c~·· · so agora
· h · . tsas. E 0 q
ouvi OJe, at, vou contar-lhe. . . Mas, toma. Você ue
golir você mesmo. Pode en-
Trottelreiner tirou da pasta um maço gross d
. 1 , . . o e gul o-
setmas - os re atonas mats recentes, presos co f' .
. m tblhos
multlcores, e entregou-me o amarrado por cima d
a mesa
- Antes de ficar a par desses documentos, cabe '
. . m a-
1
gumas pa1avras exp I1cattvas. A fannacocracia é a psiquimo-
cracia fundan1entada na lubricracia absoluta - este é 0 lema
da nova era. O reinado dos alucinógenos caminha de mãos
dadas cotn a corrupção política, para usarmos palavras bem
claras. E é a isso que devemos o desarmamento universal.
- Então, finalmente vou saber como aconteceu!
- Na verdade, é bem simples. O suborno serve para
duas finalidades: vender uma mercadoria defeituosa ou que
ninguém deseja, ou então, adquirir uma mercadoria de ofer-
ta escassa. Os serviços podem, evidentemente, ser classifi-
cados na categoria das tnercadorias. Para um fabricante, a
situação ideal será aquela em que recebe pagamento sem ter
de entregar nada em troca. Tenho a impressão de que as
reálises começaram com os escândalos dos malculadores e
malversadores. Você deve ter ouvido falar deles.
- Ouvi, mas o que é uma reálise?
- A decomposição, a dissolução da realidade. Ouand?
estourou o prüneiro escândalo sobre os roubos, as ap~opr~-
ações indébitas e os acobertamentos, to da a culpa fot, au-e
rada sobre os computadores. N o ent ano, t a verdade e "dosqu
,. t estavam envo1VI •
poderosos sindicatos e cartets secre os . tornar
O que estava em JOgo . era a terrurb a nagem' ou seJa, em·
os demais planetas apropnados · a' vt·d a h u manad. · 1· Era
um pre·
preendimento vital para um mundo superpovoa o. ·so rnodi..
ciso construir enonnes frotas de foguetes, era prect

118
s de Urano e Saturno. Seria, então, muito
atmosf era
ficar a~ . resolver tudo isso apenas no papel!
mais facJMl uma coisa dessas seria descoberta imediata-
- as
1 _ protestei. .. . .
ment~ De modo algum. Surgem dtftculdad~s. Imprevistas,
, ul s desconhecidos e tornam-se necessanos novos re-
obstac o . , . 'd. d. .
verbas extraordtnanas, cre ttos a tctonats .
. O p ro-
Urano por exemplo, custou 980 b.lh-
cursos,
. 1 oes
d e d o'1 ares, e
1eto ' . . , .
- se sabe se fot movtda uma un1ca pedra.
nao .. ,. . ?
_ Há comissões de vtgt1ancta.
_ Essas comissões não possuem astronautas, e sem a
preparação e o treinamento adequados não se pode, logica-
mente, realizar investigações em outros planetas. Por isso
enviaram-se administradores, plenipotenciários, encarregados,
que por sua vez confiavam inteira1nente nos materiais que
recebiam. . . recibos, fotografias, estatísticas. . . Mas do-
cumentos podem ser falsificados e forjados, ou mesmo ena-
dos pela ação de mascons, o que é mais fácil ainda.
- Ah!
- Exatamente. Imagino que foi da mesma maneira que
começou a simulação de armamentos. Afinal de contas, as
empresas privadas que recebiam encomendas dos governos
também estavam em campo para obter lucros. Embolsaram
milhões e não fizeram nada. Quer dizer, produziam real-
mente os canhões de laser, as rampas de foguetes, os mís-
seis antiantiantiantibalísticos com ogivas múltiplas de sexta
geração, os tanques voadores e os torpedos perfurantes, mas
tudo isso era tropicado.
- Tropicado?
- Psicotropicado, alucinações. Para que realizar testes
nucleares se existem as pastilhas fungílicas?
- O que é isso?
- Pastilhas que, mastigad~:s, permitem ver nuvens em
forma de cogumelo. SeJ·a como for, o processo expandiu-se
co .
mo uma bola de neve. Qual a necessidade de se tremar
~oldados? Em caso de mobilização, basta dar-lhe cápsulas
Instrutoras. E para que treinar oficiais em dispendiosas aca..
demias n1ilitares? Por acaso não existem a estrategina, 0

119
. 1,
tattco generalim, o manóbrio, o . comanderil?
0 , "Estude
Claus·~witz e será general, use estrategma e sera marechal!"
, . ?
1á ouviu esse anuncio.
-Nunca.
_ Não, porque essas drogas são sigilosas, ou pelo me-
nos não estão à disposição do .público em geral. Não é mais
necessário chamar a guarda naciOnal. Tudo que se tem a fazer
é pulverizar mascon adequado pel~ área c.onflagrada e a po-
pulaço verá o desembarque de para-quedistas, o ataque de
fuzileiros navais, tanques ... um tanque de verdade custa atual-
mente c~rca de um milhão de dólares, ao passo que sua aluci-
nação não c.usta mais do que um centésimo de centavo por
pessoa. Um destróier custa dez centavos. Hoje, pode-s·e colo-
car todo o arsenal dos Estados Unidos dentro de um só cami-
nhão. Há tancons, cadaverons, até conflagrons, ·~m estado só-
lido, líquido e gasoso. Ao que parece, existe também uma
invasão marciana, produzida por um preparado especial.
- Tudo em mascons?
- Como não? Aos poucos, o exército real tornou-se des-
necessário. Só restam hoj.e alguns aviões, acho. E para que
servem? O processo ocorreu como uma reação em cadeia, e
não houve meio de interrompê-la. E est·e, amigo, é todo o
segr~do do desarmamento. Mas o desarmamento repr·esenta
apenas uma parte da história. Já viu os novos Cadillac, Dodge
e Chevrolet?
- Claro. Não são ruins.
O Professor estendeu-me o vidro.
. - Tome. Vá até a janela e olhe seus belos carros com
ISSO.

Ch·eguei até ~ janela. Vista do quadragésimo-primeiro


~ndar, a rua parecia uma ravina, e em seu fundo corria um
na~ho ruti.lante de automóv·eis, com os pára-brisas e as capotas
pol:da~ bnlhando ao sol. Abri o vidro e levei-o rapidamente
ao nanz, com o que pude contemplar uma cena ·estranhíssima.
C om as mãos l·Gvant d ' 1 ·
. ... a as a a tura do peito, aO'arrando o ar co-
~0 cnan?as que brincassem de ·m otoristas homens de negó-
Cios seguiam em fila indiana pelo meio da rua. De vez em
quando entre as f"l1 · d d
' · · eiras os que corriam com o corpo joga 0
120
tivessenl apoiados em assentos, aparecia
, como se es .
para tras, . , . . resfolegante. Daí a poucos ·m omentos o
ro so11tano, d' ·
um car · dissipou a imaoem estremeceu, en trettou-
. da droO'a se ' o .
efe1to e . olhando novamente para a fulgurante procis-
loO'o me VI ld'
se e e do automóveis brancas, amarelas e esmera 1-
5
ão de capotas 'C '
f'l do maJ· estosamente por Manhattan
ws d~lW M .
' Q pesadelo - eu diss•e, com tristeza. - as, seJa
- ue nseO'uiu-se a paz orbi et urbi, e talvez tenh a va1'l-
como or, Co o
f
do a pena. Não acha?
_ Sim, há certos benefícios. Diminuiu consideravelmente
, m·oro de doenças cardíacas, pois essas corridas. de fundo
o nu ~ , · f" ·
que você viu lá embaixo constituem excelente exerciCIO lSICO.
Por outro lado, aumentou o núm·e ro de pessoas que sofrem
desvios da espinha, varizes, enfisemas pulmonares e dilata-
ções coronarianas. Nem todos podem ser corredores de mara-
tonas!
- Então é por isso que o senhor não tem carro! -
exclamei.
Trottelreiner limitou-se a sorrir ironicamente. - Um
carro popular custa hoje em dia cerca de 450 dólares - disse.
- Mas quando pensamos que o custo de produção não vai
além de um oitavo de centavo, aquele preço parece bem alto.
O número de pessoas que fabricam coisas reais está diminuin-
do rapidamente. Os compositores cobram s·e us honorários, pa-
gam as comissões de seus empresários, e ao público que com-
parece às salas de concertos eles servem uma dose de melo-
tropina polissinfonídica.
-Eticamente, isso é uma vergonha - eu disse - mas
decerto não faz nenhum ·m al social.
d - Até agora não, ainda que, em última análise tudo
ependa de seu ponto de vista. U sande a metamorfin~ por
etxemplo, pode-se ter um romance com uma cabra J"ulg' ando
ratar-se da ; . ,. . '
fica pro~na Venus de Milo. Ao invés de teses cientí-
s e convençoes u a .
mas a· d . ' s mos a congresstna e a descongressina
m a asstm existe um cert o mtnimo
cessidadf>s , .
, · · ; .
biologtco -
'
as ne-
"' mtmmas d ·d
de substituir Af I a VI a - que nenhuma fantasia é capaz
comer algu~a m_a, uma pessoa tem de viver em algum lugar
cotsa, respirar alguma coisa. Enquanto isso, ~

121
reálise vai-n~s ro?bando, uma a uma,. as esferas àe atividade
genuína. Alem dtsso, estamos produzindo toda uma assusta ~~.
dora acumulação de efeitos colaterais. Tudo isso exige a ...
. . . Uti-
lização de desalucmattvos, supermascons e fixadores. . . de
efeito duvidoso.
- O que sao.- ?
_ Os desalucinativos? Un1a nova série. Criam a ilusão
de que não existe ilusão. Por ora, são ministrados apenas aos
doentes mentais, mas o número de pessoas que colocam em
suspe.ita a autenticidade dos ambientes em que vivem está cres-
cendo com grande rapidez. Os amnestivos não exercem nenhum
efeito sobre as sobreidéias ou as duplidúvidas. Pois se tratam,
estas, de fantasias secundárias, ilusões de segundo grau, en-
tende? Não entende? Bem, digamos que uma pessoa imagine
que está apenas in1aginando que não está imaginando. . . ou
vice-versa. Um problema típico para a moderna. psiquiatria,
aquilo a que chamam paranóia cumulativa ou multifásica. No
entanto, o ·mais perigoso são os novos mascons. Pois uma
sobrecarga de todos esses específicos debilitam o organismo.
Os cabelos começam a cair, as orelhas se tornam ósseas, e as
caudas começam a desaparecer novamente . . .
- Reaparecer, o senhor quer dizer.
- Não, desaparecer mes.mo. Já faz trinta anos que as
pessoas voltaram a ter caudas, em resultado do uso da orto-
grafia. Foi o preço que tivemos de pagar por aprender a es-
crever tão de.pressa ...
- Impossível. . . estive na praia, Professor, e ninguém
tinha rabo!
- Não seja bobo. As caudas são mascaradas, natural-
mente, com o anticaudalis, o que, por sua vez, provoca o des-
coloramento das unhas e dos dentes.
- Que também é n1ascarado?
- Naturalmente! Os mascons atuam de miligramas, mas,
computando-se todas as dosagens, uma pessoa normal consome
mais ou menos cento e noventa quilogramas durante um ano.
Isso é fácil de entender, se considerarn1os que é preciso simular
~óveis, instalações, comida, bebida, obediência por part~ d~s
filhos, cortesia dos funcionários públicos, descobertas. c1entt..

122
· ·~- ---------·

S
e de Rembrandts e tesouras, viagens oceânicas vôos
ficas, . pos · - de outras co1sas.
. e unl mtlhao · Nao- fosse '
0 segredo
espactais , . , .
édico, seria .p ubhco e notono que metade da população de
01
Nova York tem m~nchas, cerdas. esver~eadas que lhes cres-
cem nas costas, espmhos t!os ouv1dos, pes chatos e enfisemas,
Iém de dilatação coronanana, de tanto correrem de um lado
;ara outro nas ruas. Tudo isso tem de ser dissi.m ulado, e é exa-
tamente essa a função dos supermascons.
_ Que pesadelo! E não existe remédio, solução para a
situação?
_ Nosso congresso dis·c utirá porvírios alternativos. Os
especialistas afirmam ser necessário uma mudança radical. Até
agora já passaram por nós dezoito propostas.
- Para salvar o ·m undo?
- Talvez possamos usar essas palavras. Mas por que
você não se senta e lambe esses materiais? E além disso . . .
bem, quero lhe. pedir um favor. É uma c<?isa um pouco deli-
cada.
- Farei tudo que puder para satisfazê-lo.
- Eu contava com isso. O fato é que recebi de um co-
Ie.ga, um químico, amostras de dois produtos recentemente sin-
tetizados, da família do vigilax. Como o aflitin, que você já
conhece. Chegaram hoje pelo correio, junto com esta carta. -
Trottelreiner mostrou-me uma carta sobre sua mesa. - Ele diz
que meu restaurativo, aquele que você usou agora mesmo, não
é produto genuíno. Diz textualmente: "O Conselho Federal
de Sugestão, Divisão de Psiquemiologia, com o intuito de des-
viar a atenção dos fatividentes de muitos .fenômenos críticos,
está fornecendo, deliberadamente, e com má-fé, falsos agentes
antialucinatórios, que contêm neomascons."
- Mas isso não faz sentido. O produto que o senh?~ me
deu a inalar funciona, eu próprio senti seus efeitos. Altas, 0
que é um fatividente?
- Um cargo de elevada posição social, que algumas pes-
. ·1' · de ocupar.
soas (entre as quais eu) têm a honra e o pnvt egi 0
.. " .
A fatividencta .' . . d r vi<Yilanimidas ... com
constste no dtretto e usa e· z·d de É claro
.
0 f xm de determinar como estão as cotsa · s na rea r a ··

que alguém tem de saber. Não e' o'bVl'o?•


123

~- ~- - -·------ ~
--- Claro.
- Cotn relação à droga, o que rn~u amigo ."'h ,
. . de mascons mais ant'a'"' a e. q""
e1a rea 1n1en t e cance I a o e f e:to '-" C
'd h" 1 -
duz1 os a a gum tetnpo, mas que nao oblitera todos I~ Igos, Intra
.~
. 1 . e ... s, pnn
ctpa m·ente os mats rec·ent·es. - O Professor ergueu 0 . -
. _ . VIdro
N esse caso, Isso nao sena um restaurativo, e sim 0 .·
·r1 usono
" . e per
, f'd
1 o
d ,
os mascons, um anttdoto fals.eado, um du- mats
plo reagente. Ou, en1 outras palavras, um lobo em pel·~ de
cordeiro!
- Mas, por quê? Se é neoessário que alguém saiba . ..
- Necessário para o bem-estar geral, para a sociedade
para toda a ht11nanidade, mas não do ponto de vista de certos'
.políticos, certas empresas e até mesmo certos órgãos do go-
verno. Se as coisas estão piores do . que nós, os fatividentes, sus-
peitamos, então eles não desejarão que façamos soar o alarma,
e é por isso que distribuen1 essa droga. Um artifício muito se-
n1elhante ao antigo truque de pr-eparar esconderijos de valores
facilmente detectáveis por um ladrão. . . na esperança de que
ele se satisfizesse com seu primeiro achado e não continuasse
a bus.ca do tesouro real, escondido de maneira muito melhor!
Acho que entendo. Mas o que o senhor quer que eu
faça?
Quero que, enquanto você for se inteirando desses
do-cumentos, cheire o primeiro frasco, e depois o segundo. Fran-
camente, não tenho coragen1.
- Só isso? Com todo prazer, Professor.
O Professor me entr·~gou os dois frasquinhos, puxou uma
cadeira e começou a me ·explicar os su1nários das teses subme-
tidas ao Congresso de Futurologia ..A primeira tese propunha
uma completa reestruturação das atitudes, a ser obtida mediante
a introdução, na atmosfera, de n1il toneladas de reversina, 0
que provocaria uma reviravolta completa nas relações huma-
nas. Na primeira fase, após a dispersão da droga, seriam des-
pre.zadas, da noite para o dia, coisas como conforto, abundância,
comidas s.aborosas, obras de arte e eleoância enquanto a super-
e ' .
.população, a pobreza, a feiúra e a miséria seriam supervalon-
zadas. Na segunda fase, os mascons e os supermascons seriam
totalmente removidos ou neutralizados. Son1ent·e agora, confron..

124
. . r a vez em suas vidas, as
'd d pela pnmel . d
a reah a e, . . d · teriam diante de Sl tu o
das colll · fehc1da e, P015 , .
ta encontranam a . o Poder-se-ia ate atlvar os
P essoas ---es deseJaSSçffi. . ,., d
seus coraço . ar um pouco as condlçoes e
quanto f de detenor _
exacerbativos, a ltn reversina não faz exceçoes em seu
·da No entanto, como a , t. os também seriam considera-
VI • prazeres ero 1c . . d
efeito inversor, os humanidade se vena diante o
, · com o que a 24
dos detestavels, .., . ma vez por ano, e durante
f nçao Por lSSO, u . t'
perigo de ex 1 . . de ser suspenso medlante o an l-
feito da droga tena '
horas, o e . Nesse dia teríamos, sem dúvida alguma, u:n
doto apropnado. d . úmero de suicídios, mas esse feno-
nto acentua o no n . 1 A

aume . . que compensado pelo acréscimo Slmu taneo


meno sena ma1s
no número de concepções.
Não posso dizer que o plano ten~a despertado meu en-
tusiasmo. o único ponto digno de elog:tos nele era a promess.a
de que seu autor, na qualidade de membro da classe dos fatl-
videntes deveria tomar o antídoto permanentemente, de modo
que ne~ a miséria nem a fealdade universais, c~·mo tampouco
a sujeira ou o tédio da existência, lhe proporcionassem qual-
quer prazer.
A segunda prnposta preconizava a dissolução de 1O. 000
toneladas de retrotemporina nas águas dos rios e oceanos. Essa
droga inverte o fluxo do tempo subjetivo. Destarte, a vida se
apresentaria da seguinte forma: as pessoas viriam ao mundo
como velhos trôpegos e o deixariam como crianças recém-
nascidas. O projeto sublinhava que dessa forma se eliminaria o
principal escolho da condição humana, ou seja, a perspectiva
inevitável de envelhecimento e morte. Com a, passagem do
tempo, portanto, cada ancião rejuvenesceria cada vez mais~
~anhando força e vigor. Ao se aposentar, isto é, ao atingir a
Idade mínima de trabalho, entraria na fase áurea da infância.
0 humanitarismo da proposta residia naquela ignorância da
~orte de todos os seres vivos que é característica dos muito
Jovens. Fica claro que na realidade - ·- uma vez que essa in-
versão
ça do. .tempo. era puramente subJetlva
. . - nao - senam . .
cnan- .
1
d s que _nam para os jardins-de-infância, creches e maternida-
q:s~ ~ Sim_anciãos. O autor do projeto não dizia claramente o
evena ser feito com eles depois disso, mas apenas obser-

125
vav a , em termos gerais, que , . poderia. ser. aplicada a eles uma
terapia adequada nos eutanastos nactona1s. A leitura dessa t
. . ese
fez com que eu .passasse a achar a pnmetra _ francamente b oa.
A terce:ira proposta
.
era de execuçao
,.
a longo
.
prazo e muao
.
mais drástica. Defendta a ectogenese,
, . o protestsmo
, e a tra ns •
ce.p ção universal. Do homem, so restar!a o cerebro, bem acondi-
cionado em duraplast: um globo eq_u1pado com tomadas, plu-
gues e contactos. Tal globo recebena uma carga elétrica pro-
veniente de uma pilha nuclear de maneira que a ingestão·
de alimentos, tornados supérfluos, só ocorreria ilusoriamente
estando programada de maneira adequada. O globo cerebrai
poderia ser conectado com qualquer número de apêndices,
dispositivos, máquinas, veículos, etc. Esse processo de prote-
sismo deveria alongar-se por duas décadas, sendo que durante
a primeira seria obrigatório o cumprimento de substituições
parciais, permanecendo em casa todos os órgãos desnecessários.·
Por exemplo, para ir ao teatro a pessoa soltaria seus módulos
de fornicação e defecação, pendurando-os no armário. Na
segunda década, a transcepção eliminaria as multidões e o
congestionamento das ruas, que são conseqüência da superpo~
pulação. Canais de comunicação intercerebral, por cabos ou
rádio, tomariam inúteis todas as reuniões e encontros, excur-
sões e jornadas para assistir a conferências; enfim, toda neces-:
sidade de locomoção, uma vez que as pessoas se serviriam de
sensores e radares situados em qualquer local onde houvesse
um ser humano, até mesmo nos planetas mais remotos. A pro-
dução em massa abasteceria o mercado com componentes e
acessórios internos, inclusive frenocarris para construção de
pequenas ferrovias domésticas, que permitissem aos cérebros
passear de cômodo em cômodo, por simples diversão. Nesse
momento, interrompi a leitura e observei que os autores desse
projeto evidentemente estavam loucos. Mas Trottelreiner repli-
cou azedamente que eu era um pouco apressado em meus jul-
gamentos. Tínhamos preparado nossas camas, e agora não tínha-
~os outra coisa a fazer senão deitar nelas. De qualquer forma,
d~ss: :le, o critério do bom-senso jamais tinha sido válido na
hxstona da humanidade. .

126
_ Por acaso Averroes, Kant, Sócrates, Newton, Voltaire
oderiam ter acreditado que no século XX o flagelo das cida-
~es, 0 envenenador da~ cidades," o super-homicida e ídolo de
milhões de pessoas sena uma camara sobre rodas, e que as
pessoas preferiri~m mor~er esmagadas den~ro, delas, durante
frenéticas excursoes de ftm-de-semana, ao tnves de permane-
cer, em segurança, dentro de suas casas?
Perguntei ao Professor qual projeto ele apoiaria.
- Ainda não decidi - respondeu. - O problema mais
grave, em minha opinião," é o aumento de nascimentos sub-
terrâneos. Você sabe o que são, nascimentos não autorizados.
Além disso, tenho medo de que durante as deliberações haja
um pouco de fraude psiquímica.
- O que é isso?
- Uma .proposta pode ser aprovada com a ajuda de cre-
dibilhóis.
- O senhor acredita mesmo que possam tentar uma
coisa dessas?
- Por que não? Não. haveria coisa mais fácil do que
bombear um pouco de gás para dentro da sala de conferência,
através do sistema de ar condicionado.
-Mas, qualquer que seja a resolução do congresso, as
pessoas não a aceitarão passivamente.
- Ora, vamos, Tichy. Faz meio século que a civilização
deixou de marchar espontaneamente. Há cem anos atrás, um
certo Dior ditava os cânones da moda feminina. Hoje em dia,
esse tipo de regulamentação abarca todos os campos da vida.
Se o protesismo for adotado, eu lhe garanto que dentro de
dois anos as pessoas considerarão vergonhoso e indecente pos-
suir um corpo macio, .peludo e suarento. O corpo precisa ser
lavado, desodorizado e cuidado, e mesmo assim se corrompe,
ao passo que numa sociedade protética pode-se conectar com
facilidade as mais belas maravilhas da moderna engenharia.
Que mulher não desejará ter iodetos de prata em lugar de
ol,hos, seios telescópicos, as.as de anjo, pernas iridescentes e
pes que a cada passo emitam sons melodiosos?
- Ouça uma coisa - eu disse . .:.,_ Vamos fugir daqui.
Podemos juntar uma boa quantidade de oxigênio e provisões

127
e nos escondermos em algum ponto das Montanh R
Lembra-se dos esgotos do Hi1ton? Por a.c aso estáva: <>chosas.
- Está falando sério, Tichy? _ perguntou °spmal ali?
0
como se hesitasse. rofessor
Acidentalmente, levei o frasco novamente ao n ·
h avta esqueci'do compI etamente que estava com ele na
· anz. Eu
-
O cheiro acre encheu-me os olhos de lágrimas. Espirrei t mao:
. d b . lh , ornet
a espurar e, quan o a n os o · os a sal.a estava transformad
O Professor Trottelreiner ainda falava~ eu escutava sua vo:·
mas, fascinado com a mudança, n.ãQ prestava mais atençã~
às suas palavras. As paredes estavam agora imundas; 0 céu
azul havia adquirido matizes pard~centos. Algumas vidraças
tinham desaparecido, enquanto as !estantes estavam cobertas
por uma espessa camada de fulige.QI gordurosa, com estrias cau-
sadas pelas chuvas.
Não sei por que, mas o que mais me espantou foi ver que
a elegante pasta do Professor, aquela na qual ele tinha trazido
os materiais da conferência, tinha-se transformado numa bolsa
bolorenta e velha. Fiquei estupefato. Tinha medo de olhar para
ele. Olhei furtivamente debaixo da mesa. Em lugar de suas
calças bordadas e de suas polainas magisteriais havia duas per-
nas artificiais casualmente cruzadas. Entre os tendões metálicos
dos pés haviam-se acumulado pedacinhos de cascalho e lama
das ruas. A ponteira de aço, no lugar do calcanhar, brilhava
e estava desgastada pelo uso. Deixei escapar um gemido.
-Está com dor de cabeça, Tichy? Quer uma aspirina?-
perguntou Trottelreiner, em tom compassivo. Respirei fundo,
rilhei os dentes e olhei para cim~.
Não sobrava muita coisa de seu rosto. Em suas faces en-
covadas estavam pegados pedaços de esparadrapo roto, que não
era mudado há muito tempo. E evidentemente ele ainda usava
óculos, embora uma das lentes estivesse quebrada. No pescoço,
na abertura deixada por uma traqueotomia, havia sido inserido,
sem muito capricho, um codificador vocal, que se movia para
cima e para baixo enquanto ele taJava. Uma jaqueta esfarrapada
e
pendia sobre seu torso, muito magro, ele tinha do lad~ es-
querdo um buraco tapado com u~a película de plástico lettoso,
através da qual se viam as batid.as espasmódicas e negro-azula-
128
coração cheio de costuras e pontos metálicos. Não
das
. de um · ·
ão esquerda; a dtretta, seguran do um 1apts,
' · era uma
Vl ,sua ~e latão, coberta de azinhavre. No colarinho estava
protese . 1 , · h·
da U ma espécie de etiqueta tosca, em que a guem tm a
costura ·
. com tinta vednelha: "Descong. 119/859 - 21 transpl.
escn1o
_ 5 rejeiç." Fiquei olhando, de olhos arreg~lado~,. enquant~
Professor, quase refletindo meu horror, se tmobihzava subt-
0
tamente atrás de sua mesa_. ..
_ Eu .. eu mudei, não foi? .;___ perguntou, cem voz rou-
fe.nha.
Não me lembro de nada, Ínas quando dei .por mim estava
com a mão na maçaneta da porta.
- Tichy! O que está fazendo? Volte! Tichy! - ele gri-
tava desesperado, tentando levantar-se. A porta se abriu, mas
ao mesmo tempo escutei um terrível estrépito. O Professor
Trottelreiner, perdendo o equilíbrio ao se levantar apressada~
mente, havia caído ao chão, enquanto ganchos e dobradiças
soltavam-se é estalavam como ossos. Levei comigo a imagem
de seus esperneies agônicos, dos agitados cotos . de metal que
arrancavam fasquias do assoalho, do saco escuro, do coração
latejando desesperadamente por trás do plástico rasgado. Saí
correndo pelo corredor como se estivesse sendo .perseguido por
cem demônios. · . .
O edifício estava cheio de gente, pois era hora do almoço.
Dos escritórios saíam funcionários e secretárias, conversando
·entre si enquanto se dirigiam para os elevadores. Abri caminho.
a cotoveladas em direção a uma das portas abertas, mas evi-
dentemente o carro do .elevador ainda não havia chegado.
Olhando pelo poÇo, compreendi imediatamente por que era . tao
comum ver pessáas ofegando. o cabo pendia solto no vazio
e as pessoas trepavam .por ele~ ágeis como macacos, com. uma
habilidade que demonstrava enorme prática. Iam em direÇão
ao bar da cobertura, e conversavam animadamente, apesar do
suor que gotejava em suas testas. Recuei lentam·ente, e desci
correndo as escadas em espiral em torno do poço, cujas pare-
d:s. eram afanosamente escaladas pelos empregados dos escri-
tonos. · Alguns an d.ares ma1s
. ab atxo,
. d.1m1nut
. , um pouco mtnha·
.
cornda. De todas as portas ainda saía gente aos borbotões.

129
·f' · não havia senão escritórios, evidentemente. Ao
Naquele e dI ICIO d
havia uma janela aberta, que ava para a rua
fim do corredor d' . d I d .
. 1 d dela fingindo estar en ue1tan o o aço a gravata
Parei ao a o ' . · - d - '
e olhei .para baixo. De início tive a tmpressao e .que nao havia
·vente na rua mas o que acontec1a era que eu
nen hum se r Vl ' .
· 1
s1mp esm ente não havia reconhecido os · transeuntes.
.
0 esplendor costumeiro havia ~esaparectdo sem deixar
vestígios. As pessoas caminhavam sozinhas ou aos pares, ves-
tidas em farrapos remendados. e cheios de buracos; Muitas
tinham bandagens e aparelhos de gesso, e algumas so usavam
roupa de baixo, o que me permitiu ~o~statar que realmente
eram manchadas e tinham cerdas, pnnc1palmente nas costas.
Algumas pessoas tinham evidentemente recebido autorização
para deixar o hospital e resolver algum assunto urgente. Am-
putados e paraplégicos seguiam pela rua sobre tábuas com ro-
dinhas conversando e rindo em voz alta. Vi mulheres com
enormes' orelhas de elefante e homens com chifres nas cabe-
ças, carregando jornais velhos, montes de palha e sacos de
·estopa com altivez e orgulho. Os que gozavam de melhor saúde
e que estavam mais bem conservados corriam a galope pelo
meio da rua, pavoneando-se e batendo os pés, como se mudas-
sem de marcha. Entre a multidão predominavam robôs, arma-
dos de atomizadores, dosímetros, pulverizadores .e aerosóis,
cuidando de que cada indivíduo recebesse sua ração de vapo-
rização. Mas não se limitavam a isso - atrás de um casal
jovem, que caminhava de braços dados (os dela estavam co-
bertos de escamas, os dele de pústulas), seguia um velho e
pesado robô, que metodicamente lhes batia nas cabeças com
um regador. Embora rilhassem os dentes, pareciam não prestar
~enhuma. atenção. Por aca~o aquilo seria deliberado?
· · Mas. e_u já não estava mais e.m condições de refletir. Aper-
tando as mãos contra o peitoril da janela; olhava para a
cena que se desenrolava na rua, via aquela azáfama, aquele movi-
~~nto, e, petrificado de espanto, perguntava-me se eu seria a
umca testemunha daquela cena. Se eram meus os únicos olhos
qu~ .assistiam àquilo. Mas não, a crueldade daquele espetáculo
~xJgta. pelo menos outro observador, seu-criador, aquele que, sem
Jntervu naquele drama sinistro, lhe desse sentido. Um patro-
130
-- -·--- ----- ------------ ...- -· ·- -· - · ··-4'" ·-- - ·---- - ..... _ ...

cinador, um empresário
, da decrepitude _ um vampi' ro , por-
tanto - mas alguem.
Um , p~queno sintenório corria entre as pernas de uma
anciã energtca, fazendo-a_ tropeçar continuamente, até que ela
caiu com o rosto no chao, levantou-se de novo, continuou a
caminhar e foi derrubada novamente; a cena continuou assim
ele mostrando uma persistência mecânica, e ela revelando ener~
gia e determinação, até desaparecerem de vista. Muitos dos
robôs olhavam de perto os dentes dos transeuntes, talvez para
verificar o efeito das substâncias que iam pulverizando, embora
suas intenções não parecessem ser exatamente essas. Na esqui-
na havia um grupo de robôs transviados, sem terem o que fazer.
De um beco qualquer saíam magotes de molimolários, caftenói-
des, dissimuladores e manicóides; pela calçada avançava um
enorme robô-lixeiro, arrebanhando com as mandíbulas de sua
pá tudo quanto encontrava pelo caminho; junto com os "de-
funtinhos" e auto-abortos atirou para dentro de sua caçamba
uma velhinha que andava distraída.
Mordi a mão, esquecendo-me de que ainda segurava o
outro frasco, o segundo, e um fogo ardente me abrasou a gar-
ganta. Tudo se esfumou, uma bruma brilhante desceu sobre
méus olhos como uma venda, que uma mão invisível começou
a levantar lentamente. Assisti, petrificado, à transformação que
estava o:::orrendo, compreendendo com um sobressalto de pres-
sentimento que a realidade estava agora a revelar mais uma
de suas camadas. Evidentemente, o falseamento da realidade
já tinha começado há tanto tempo que mesmo o antídoto mais
poderoso não podia fazer mais do que eliminar os véus sucessi-
vamente afastando-os mas sem conseguir atingir a verdade.
' '
Tudo se tornou mais claro, branco. As calçadas estavam
cobertas de neve, endu reei da, pisada .por centenas de ~és, en-
quanto a rua mostrava uma cena de inverno, descolonda. As
lojas e os anúncios tinham desaparecido e ao invés de. vidros
viam-se nas vitrinas tábuas podres pregadas em cruz. O mverno
reinava entre os edifícios embolorados e sem cor. Longas esta-
Jactites pendiam dos postes de iluminação. Pelo ar ~elado . cor-
ria um cheiro azedo e sobre a rua pairava uma nevoa cmza-
azulada como o céu. Pilhas de neve suja ao longo das paredes,
13 L

---. --"": . --:::::..,_. . .;J.-


LJL -
lixo amontoado nas sarjetas; aqui e ali uma trouxa disforme,
um bolo escuro de farrapos que o fluxo constante de pedestres
empurrava para 0 lado, jogando-o entre velhos latões de lixo
enferrujados, latas, caixotes e pó de serra congelado. Naquele
momento não nevava, mas podia-se ver que tinha caído recen-
temente, e que voltaria a cair.
De repente, perc·ebi o que estava faltando - os robôs.
Não havia um único robô na rua, nem um sequer! Cobertos de
neve, seus corpos se amontoavam junto às portas, inanimados
cascos metálicos ao lado dos dejetos humanos, farrapos de
roupas, ·entre os quais às vezes aparecia um ou outro osso ama-
relado e coberto de neve. Um maltrapilho sentou-se no alto
de um monte de neve, preparando-se para .passar a noite co-
mo se estiv·~sse deitado num colchão de penas. Vi seu rosto
satisfeito. Sentia-.se como se estivesse em casa, acomodando-se,
esticando as pernas, metendo os dedos dos pés na neve. Então
era isso, o frio, aquele revigoramento estranho que ocorria de
vez em quando, mesmo no n1eio da rua, em pleno dia, com
o sol brilhando - o esfarrapado já roncava feliz -. - então era
essa a razão. A multidão que passava não prestava atenção ao
esfarrapado; todos cuidavam de sua própria vida, e alguns pul"7
verizavam substâncias nos outros. Era fácil reconhecer imedia~
tamente, pelas atitudes, os que eram humanos e os que eram,
robôs. Então, também os robôs não passavam de simples ima-
ginação? E o qu eestava o inverno fazendo ali, no meio do
verão? A menos que todo o calendário fosse um embuste. Mas
por quê? Dormia-se na neve a fim de baixar a taxa de nata-
lidade?
Foss_e o que fosse, alguém tinha planejado cuidadosamente
tudo aquilo, e eu não estava disposto a desistir da caça ao
fantasma antes de conhecê-lo. Levantei os olhos para os arra-
nha-céus, que tinham as paredes laterais marcadas com. man·
chas semelhantes a sinais de b.exiga e fileiras inteiras de J. anelas
co "d
_m as VI raças quebradas. Tudo estava em silêncio atrás de
mtm; o almoço terminara s'
." . · o me restava agora a rua e a nova
co?sctencia .que eu tinha das coisas de nada me ~aleria ali,
pots eu sena tragado pela 1 ·d-
S · h .. · mu ti ao, e precisava de alguém.
ozm o, so poderia m d
e escon. er durante algum tempo como.
132
ora não contava mais com a proteção da ilusão,
um rato,. e ag tragado na realidade. Horrorizado, desesperado,
. havta nau , .
P015 . d J. anela enregelado ate os ossos, desprotegtdo agora
fastei-me a , d
a· , ·a de um clima tempera o. .
pela fa1act . .
· N u mesmo sabia para onde cammhava, tentando fazer
, .em ede barulho possível. Sim, eu já estava escondendo
0 mm1mo .
. h 1·esença encolhendo-me, detendo-me, olhando furttva-
nun a P ' . .
roent.e de lado, apurando o ouv1do. Agta reflexamente, sem
tomar decisões, embora tivesse certeza de que minhas consta-
tações estavam claramente escritas em minha testa e que eu te-
ria de pagar por aquilo.
Cheguei assim ao corredor do sexto ou quinto andar. Não
podia voltar a Trottelreiner. Ele precisava de ajuda, mas eu
não estava em condições de dá-la. Estava pensando febrilmente
em muitas coisas ao mesmo tempo, mas principalmente se o
efeito da droga iria cessar e se eu me veria novamente no
Paraíso. Estranhamente, essa perspectiva só me enchia de medo
e horror, como se eu preferisse enregelar em algum monte de
lixo, sabendo que assim teria de ser, a buscar salvação em
aparições. Não .pude entrar num corredor lateral porque a pas-
sagem estava obstruída por um ancião; debilitado demais para
caminhar, ele simulava dar passos com as pernas trêmulas, e
conseguiu dirigir-me um sorriso de saudação mesmo enquanto
agonizava silenciosamente, com o estertor da morte já soando
e~ sua garganta.

Segui por outro corredor, até chegar diante do vidro .lei-


toso da porta de um escritório. En1 seu interior, reinava com-
pleto silêncio. Entrei por uma porta de vaivém e vi um salão.
com fileiras de máquinas de escrever - deserto. No fund9 da
sala havia outra porta, entreaberta. Eu podia ver que se tratava.
de uma sala grande e clara e. com·ecei a recuar, pois havia.
alguém ali. No entanto, escutei uma voz:
. .- Entre, Tichy.
Assim, entrei. Tampouco fiquei surpreendido com o fato
de ele estar esp~rando por nlim, e foi também com calma que
constatei que. quem estava sentado atrás da mesa era George
P. Symington, vestindo um terno cinzento, com um vistoso
lenço no pescoço e um charutinho fino nos lábios. Estava usan-

133
do óculos escuros. Parecia ~lhar para mim com divertimento
ou comiseração. Eu não sabia ao certo.
_ Por favor - ele disse - sente-se, po1s 1sso vai de-
morar um pouco. . .
Sentei-me. A sala, com suas VIdraças Intactas, era um
oásis de limpeza e calor - não. havia correntes d,e ar gelado,
montes de neve nos cantos. Havia um bule de cafe fumegante,
um cinzeiro um dictafone. Da parede atrás da mesa pendiam
al2Uns quad,ros coloridos, representando nus femininos . Ocor-
re~-me a idéia absurda de que aqueles corpos não tinham es-
camas ou cerdas.
- E então, divertiu-se? - perguntou ele de repente.
E veja que não pode se queixar de nós! A melhor ·enfermeira,
0 único fatividente das vizinhanças, todos fazendo tudo quanto
podiam para ajudá-lo, mas não, você tinha de· sair por aí a fa-
rejar a "verdade" por conta própria!
- Eu? - contestei, surpreendido com suas palavras. An-
tes que pudesse pôr em ordem meus pensamentos, digerir o que
ele estava dizendo, continuou:
- Por favor, nada de mentiras. f: tarde demais para isso.
Você pensou que estava sendo tremendamente esperto, pro-
clamando todas aquelas críticas, aqueles seus protestos, aque-
las suspeitas sobre " alucinação" - " esgotos", " ratos do hotel" ~
"selas"} "cavalgar". E por acaso pensou mesmo que essas in-
vencionices primitivas bastariam? Só mesmo um descongelado
pode ser tão inacreditavelmente estúpido!
Eu o escutava boquiaberto. Dei-me conta, repentinamente,
de que qualquer palavra de defesa seria inútil, pois ele jamais
acreditaria em mim. Havia tomado minhas autêntiCas obses-
sões por uma espécie de manobra. Em outras palavras, aquela
c.onversa anterior, em que me revelara os segredos da Procrus-
tJcs, Inc., era apenas para me induzir a falar. Era por isso que
tinha usado aquelas palavras que na época tinham me deixado
tão perplexo. Pensaria ele, porventura, tratar-se de senhas -
para. iniciação em alguma conjuração psiquímica? Ele havia en-
tendido meu medo das alucinaç6es como uma aitude táticà,
u.m ardil ... Realmente, era tarde demais para explicações, prin-
Cipalmente agora que as cartas estavam na mesa. ··
134
or mim? - perguntei.
Esperava p . . . . t
- t Apesar de toda sua Intctatlva e a tvt-
- Natura~menoes. de exercer pleno controle. Não se pode
ca deixam d
dade, nun h ma rebelião pssoal venha alterar a or em
permitir que nen u
·mperante. · t b'
l O velho moribundo no corredor - pensei - . am. . eml'
. t do sistema de barreiras para me conduzu ate a 1.
tinha feitO par e . ..
_ Uma bela ordem - comentei. - E o senhor e o
chefe, não é? Meus parabens. . . __ . .
_ Guarde seu sarcasm<> para uma ocas1ao ma1s apropna-
da! _ ele disse entre os dentes. Eu havia conseguido tocar num
ponto fraco. Ele estava irritado.
- O tempo todo você andou procurando alguma "trama
diabólica". Bem, pe.rmita-me dizer, meu caro descongelado pre-
sunçoso, permita-me satisfazer sua curiosidade de uma vez por
todas: não existe nada disso. Compreende? Se mantemos essa
civilização narcotizada é porque de outra maneira ela não se
agüentaria. É por isso que não pode ser despertada de seu sono.
E é por isso que você vai voltar para e.la. Ah, não há nenhum
motivo de medo . . . para você, não dói nada, e será até agra-
dável. Para nós é muito mais difícil, já que temos de nos manter
despertos, a fim de cuidar de vocês.
- Nobre sacrifício! - eu disse. - Para o bem de todos
sem dúvida. '
. - Se você dá valor a essa importante liberdade de pensa-
mento - ele replicou friamente - aconse.l ho-o a deixar de
lad~ as observações irônicas, pois com isso só conseguirá perder
mais depressa essa liberdade.
-.Muito .l?·em, então. O senhor tem mais alguma coisa
a me dizer?· Estou escutando.
, - Neste momento sou a única pessoa em todo o estado
a1em de voe e,
~
que pode ver! O que estou usando no rosto? - '
perguntou de .
madilha. repente, como se quisesse me pegar nun1a ar-

- óculos escuros.
-, .Então' voce" ve" tao
- bem quanto eu! - ele disse. -
0
quimico que forneceu a Trottelreiner aqueles antídotos já

135
seio da sociedade, e já não alimenta a menor
volt ou p ara O " .
suspeita. Ninguém deve suspeitar. É claro que voce e?tende Isso.
_ Um momento - eu disse. - Parece que e realmente
importante para o senhor me convencer. Mas, por quê?
_ Os fatividentes não são monstros! - ele respondeu.
_ Somos prisioneiros da situação, encurralados num canto,
obrigados a jogar com as cartas que a História nos pôs nas
mãos. Distribuímos paz e satisfação da única maneira que resta.
Mantemos em equilíbrio instável aquilo que, sem nós, mergu-
lharia nas vascas da agonia universal. Somos os últimos Atlas
deste mundo. E se ele tem de perecer, que pelo menos não
sofra. Se a verdade não pode ser alterada, pelo menos pro-
curamos escondê-la. Este é o último ato humanitário, a última
obrigação moral.
. - Quer dizer que nada pode ser feito? Absolutamente
nada? - perguntei.
- Estamos no ano 2098 - ele disse - com 69 bilhões
de habitantes registrados legalmente e aproximadamente 26 bi-
lhões clandestinos. A temperatura média anual baixou quatro
graus. Dentro de quinze ou vinte anos haverá geleiras aqui.
Não temos nenhum meio de impedir ou deter seu avanço.
Tudo que podemos fazer é manter esse fato em segredo.
- Sempre achei que haveria gelo no inferno - ·eu disse.
- Quer dizer, então, que vocês pintam as portas do inferno
com belos desenhos.
- Exatamente - respondeu Symington. - Nós somos
os últimos samaritanos. Alguém tinha de exercer autoridade so-
bre você. E · por acaso eu sou esse homem.
- Sim, acho que me lembro: ecce homo! - eu di.sse. -
Mas, espere. . agora percebo o que o senhor deseja. Quer me
converter, quer que eu aceite seu papel de .' .. anestesista esca-
tológico. Quando não há pão. .. . que comam ópio! Mas não
entendo por que o senhor está tão interessado. em minha con-
versão, já que vou esquecê-la completamente. Se os métodos
que .o senhor emprega são bons, para que tantos argumentos e
ex?hcações? Algumas gotas de credencial, um pequeno es-
g.utcho nos olhos, e aplaudirei todas as suas palavras com entu-
Slasmo, o senhor terá toda minha aprovação, minha estima.
136
orem bons. No entanto, aparentemente nem
métodos f . 1 .
se esses está convenc1do do valor de es, un1a vez que
hor mesmo , . . d I
o sen egar palavreado e retonca vazia, gastan o pa a-
. ua a empr invés de lançar mão do vaponza . d JA
contm . or paren-
s comigo ao . f d . , . -
vra ·b muito bem· que o tnun o a psiquimtca nao passa
temente, sa e , . . d
ue ficara soZinho no campo, um conquista or
de facha da, e q . . .
de azia. Sim, pretendia convencer-me pnmeno, para
sofreudo . · - · f ·
· tirar-me no esquecimento, mas Isso nao va1 unctonar.
depOIS a . - d d.
· lhe que continue com sua nobre m1ssao, que se •e. tque
Th~ .
a essas prostitutas na parede, que suavtzam sua tarefa de ~al-
vação. Gosta delas como eram antigamente, sem cerdas, hetn?
o rosto de Symington estava contorcido de raiva. Pôs-se
de pé de um salto, gritando:
- Tenho também outras drogas, além das delí.cias do
paraíso! Existem também infernos químicos.
Levantei-me também·. Symington estendia a mão em dire-
ção ao botão de sua mesa quando gritei:
-. Iremos juntos!
Saltei contra sua garganta. O impulso nos impeliu, como
eu tinha planejado, em direção à janela aberta. Ouvi passos, e
mãos de ferro tentaram me afastar de Symington, que se con-
torcia e se debatia. Mas já estávamos junto do peitoril, e eu o
empurrava, juntando minhas últimas. forças, antes de pular.
O ar assoviou em nossos ouvidos, caíamos dando cambalhotas,
ainda engalfinhados, aproxim·ando-nos vertiginosamente do solo.
Preparei-me para um impacto . mortal, que me esmagaria os
ossos, mas em lugar de me eSiborrachar contra o cimento, como
eu esperava, caí em algu.m a coisa mole, espirraram ondas ne-
gras, e as águas fedorentas e abençoadas cobriram minha ca-
beça. Vim à tona no meio do esgoto, limpando os olhos, afo-
gando-me na água hedionda, mas feliz, feliz ...
. O Professor Trottelreiner, despertado de seu sono por meus
gntos angustiados, inclinou-se sobre as águas negras e me es-
tendeu - como uma mão fraterna - o cabo de seu guarda-
chuva. enrolado.
O trovão das bombas de ATP estava silenciando. Os ge-
rentes do Hilton continuavam dormindo, numa fila de cadeiras
infláveis (infláveis-infla.grantáveis, os concubalões!)' e as se-
137
... -· .

cretárias, em seu sono, assumiam as poses mais provocantes.


J im Stantor roncava e se virava de um lado para outro, por
pouco não esm·agando um rato que mordis-c ava a barra de
chocolate em seu bolso. Os dois se assustaram.
Enquanto isso, o Professor Dringenbaum, como suíço me-
tódico que era, estava apoiado contra o muro, fazendo corre-
ções em sua tese com uma caneta-tinteiro, à luz amarelada
de uma lanterna. Ao me ocorrer que essa sua atividade concen-
trada anunciava o começo do segundo dia de deliberações do
Congresso de Futurologia, soltei uma gargalhada tão sonora
que as folhas datilografadas soltaram-se de sua mão, caíram na
água negra e foram embora boiando. . . rumo ao futuro des-
conhecido.

Novembro de 1970

FIM

138
•'

ESTA OBRA FOI COMPOSTA


E IMPRESSA NA GRAFICA
FON-FON, REPRODUÇõES E
CAPA NA POLYCOLOR PARA
A EDITORA NOVA FRONTEI-
RA S.A., EM ABRIL DE MIL
NOVECENTOS E SETENTA E
SETE.

Não encontrando este livro nas livrarias, pedir pelo Reembolso


Postal - Rua Barão de ltambi, 28 - Botafogo - RJ.

·--·----·-"' -
..... _
....__.........

O autor de O Incrível Congresso de


Futurologia, Stanislaw Lem, nasceu em
Lemberg, na Polónia, em 1921. For-
mado em Medicina, nunca exerceu a
profissão, tendo iniciado estudos de bio-
logia que não terminou. Professor-
assistente num instituto de Investigação
Científica em Krakov, logo com seu pri--
meiro livro, Os Astronautas, publicado
em 1951, se transformou num autor de
best-sellers mundiais: quinhentos mil
· exemplares foram vendidos em poucos
meses. Simultaneamente autor de
ficção científica e de ensaios de filosofia,
sua carreira literária é brilhante: Solaris,
O Invencível, O Conto fantástico e a Fu-
turologia, O Vazto Perfeito e Dimensão
Imaginária são títulos de obras suas, de
imaginação ou de pensamento, que cor-
rem mundo.
A primeira edição de O Incrível Con-
gresso de Futurologia, publicada em
1972 na Polónia, foi traduzida para o ale-
mão no ano seguinte, e desde então,
em mais de 20 idiomas. Mais de 8 mi-
lhões de exemplares de obras de Sta-
nislaw Lem já foram vendidos em todo o
Mundo. Muitas das suas obras foram
transpostas para o cinema, sendo que a
adaptação do seu romance Solaris é
considerada a mais -inteligente até hoje
feita da chamada literatura de f icção
científica, de que Lem é um dos maiores
nomes da atualidade.

A seguir:

TERRA IMPERIAL
ARTHUR CLARKE

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