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CARTA CAPITAL

O NOVO ESTADO DA VIGILÂNCIA GLOBAL


Como a “internet das coisas” e o “big data” amedrontam as
sociedades

por Ignacio Ramonet — publicado 09/02/2016 05h16

Em nossa vida cotidiana deixamos, constantemente, rastros que


entregam nossa identidade, mostram nossos relacionamentos,
reconstroem nossos deslocamentos, identificam nossas ideias,
revelam nossos gostos, nossas escolhas e nossas paixões – incluindo
as mais secretas.

Por todo o globo, múltiplas redes de controle maciço não param de


nos vigiar. Em todas as partes, alguém nos observa através de
fechaduras digitais.

O desenvolvimento da "internet das coisas" e a proliferação de


objetos conectados (1) multiplicam a quantidade de todo o tipo de
dedos-duros que nos rodeiam.

Nos Estados Unidos, por exemplo, a empresa eletrônica Vizio, sediada


em Irvine (California), fabricante de televisões inteligentes
conectadas a internet, revelou recentemente que seus aparelhos
espionavam seus usuários através de dispositivos tecnológicos
incorporados aos produtos.

Essas TVs gravam tudo o que seus espectadores consomem em


matéria de programas audiovisuais: os programas em canais a cabo,
o que é assistido em DVD, os pacotes de acesso a internet ou até
mesmo os games…Dessa maneira, a Vizio pode saber tudo sobre o
que seus clientes preferem em matéria de lazer audiovisual.

1
E, consequentemente, pode vender essas informações a empresas
publicitárias que, por meio da análise dos dados recolhidos,
conhecerão com precisão os gostos de seus usuários e estarão em
melhor posição para tê-los sob suas miras (2).

Por si só, essa não é uma estratégia diferente daquela que, por
exemplo, o Facebook e o Google utilizam frequentemente para
conhecer seus internautas e oferecer uma publicidade ajustada aos
seus supostos gostos.

Recordemos que, em 1984 de George Orwell, os televisores –


obrigatórios em cada residência – “viam”, em suas telas, o que as
pessoas faziam. (“Agora podemos vê-los!”). E a questão obrigatória
hoje, diante da existência de aparelhos como os da Vizio, é saber se
estamos dispostos a aceitar que nossa televisão nos espione.

Em 1984, de George Orwell, os televisores – obrigatórios em


cada residência – 'viam', em suas telas, o que as pessoas
faziam

A julgar pela denúncia apresentada, em agosto de 2015, pelo


deputado californiano Mike Gatto contra a sul-coreana Samsung,
parece que não. A empresa foi acusada de também equipar seus
novos televisores com um microfone oculto, capaz de gravar as
conversas dos telespectadores, sem que estes soubessem, e de
transmiti-las a terceiros. (3)

Mike Gatto, que preside a Comissão de Proteção ao Consumidor e da


Privacidade na Câmara Estadual, apresentou um proposta de lei
proibindo que televisões espionassem as pessoas.

De maneira contrária, Jim Dempsey, diretor do centro de Direito e


Tecnologias, na Universidade da California, acredita que os
televisores-espiões irão proliferar: “A tecnologia permitirá analisar os
comportamentos das pessoas. E isso não será interessante apenas

2
para os publicitários. Também permitirá avaliações psicológicas ou
culturais, que, por exemplo, interessarão também às companhias de
seguro”.

Sobretudo, se se considera que as empresas de recursos humanos e


de trabalhos temporários já utilizam sistemas de análise de voz para
estabelecer um diagnóstico psicológico imediato das pessoas que lhes
telefonam em busca de emprego.

Espalhados por todas as partes, os detectores de nossas ações e


atitudes abundam o nosso entorno. Sensores registram a velocidade
de nossos movimentos ou de nossos itinerários; tecnologias de
reconhecimento facial memorizam o formato de nossos rostos e
criam, sem que saibamos, bases de dados biométricos de cada um de
nós.

Isso sem falar dos novos de chips de identificação por radiofrequência


(RFID, sigla em inglês) (4), que, automaticamente, descobrem nosso
perfil de consumo, assim como fazem os “cartões de fidelidade” que a
maioria dos grandes supermercados e grandes marcas oferecem de
maneira generosa.

Já não estamos sozinhos frente ao nosso computador. Quem, a essa


altura, duvida que estão examinando e filtrando nossas mensagens
eletrônicas, nossas pesquisas de internet, nossas conversações nas
redes sociais?

Cada clique, cada telefonema, cada compra no cartão de crédito e


cada navegação na internet, fornecem excelentes informações sobre
cada um de nós, que são entregues e analisadas por um império
operando nas sombras a serviço de corporações comerciais,
empresas publicitárias, entidades financeiras, partidos políticos ou
autoridades governamentais.

3
O necessário equilíbrio entre liberdade e segurança corre, portanto, o
perigo de se romper. No filme 1984, baseado na obra de Orwell e
dirigido por Michael Radford, o presidente supremo, chamado Big
Brother, definia assim sua doutrina: “A guerra não tem por objetivo
ser vencida, seu objetivo é continuar”, e: “A guerra é feita pelos
mandatários contra seus próprios cidadãos, e tem, por objetivo,
manter intacta a estrutura dessa mesma sociedade” (5).

Dois princípios que, estranhamente, são a ordem do dia em nossas


sociedades contemporâneas. Com o pretexto de proteger toda a
sociedade, as autoridades enxergam em cada cidadão um potencial
infrator.

A guerra permanente (e necessária) contra o terrorismo lhes


proporciona o álibi moral perfeito e favorece a construção de um
impressionante arsenal de leis para estabelecer o controle social
total.

Além disso, deve-se levar em conta que crises econômicas inflam o


descontentamento social; que, aqui ou ali, podem tomar a forma de
revoltas entre cidadãos, levantes de camponeses ou rebeliões nas
cidades.

Mais sofisticadas que os cassetetes e os jatos de água das forças de


segurança, as novas armas de vigilância permitem identificar melhor
seus líderes e tirá-los de cena antecipadamente.

As autoridades nos dizem: “Haverá menos privacidade e menos


respeito pela vida particular, mas haverá mais segurança”. Mas em
nome desse imperativo instala-se, de maneira furtiva, um regime de
segurança que podemos classificar como “sociedade de controle”.

Em seu livro Vigiar e Punir, o filósofo Michel Foucault explica como o


“Panótico” (“o olho que tudo vê”) (6) é um dispositivo arquitetônico

4
que cria uma “sensação de onisciência invisível” e permite que os
guardas vigiem sem serem vistos dentro da prisão. Atualmente, o
princípio do “panótico” é aplicado a toda sociedade.

'Uma sociedade consciente de estar permanentemente vigiada


torna-se, por consequência, mais dócil e amedrontada', diz
Glenn Greenwald

Na prisão, os detidos expostos permanentemente à mirada oculta dos


“vigilantes”, vivem com o temor de serem flagrados cometendo
alguma falta. Isso os leva a se autodisciplinarem…

Podemos deduzir que o princípio organizador de uma sociedade


disciplinária é o seguinte: estabelecendo-se uma vigilância
ininterrupta, as pessoas acabam por modificar seus comportamentos.

Como afirma Glenn Greenwald, “as experiências históricas


demonstram que a simples existência de um sistema de vigilância em
grande escala, seja qual for a maneira pela qual é utilizada, é o
suficiente para reprimir dissidentes. Uma sociedade consciente de
estar permanentemente vigiada torna-se, por consequência, mais
dócil e amedrontada”. (7)

Hoje em dia, o sistema panótico foi reforçado com uma particular


novidade em relação às sociedades de controle anteriores, que
confinavam as pessoas consideradas antissociais, marginais, rebeldes
ou inimigas em lugares de privação fechada: prisões, reformatórios,
manicômios, asilos, campos de concentração, etc.

Nossas sociedades de controle modernas oferecem uma aparente


liberdade a todos os suspeitos (ou seja, a todos cidadãos),enquanto
os mantêm sob permanente vigilância eletrônica. A contenção digital
sucedeu a contenção física.

5
Às vezes, essa vigilância constante também acontece com a ajuda
dedos-duros tecnológicos que adquirimos “livremente”:
computadores, telefones celulares, tablets, bilhetes eletrônicos para
transportes públicos, cartões de crédito inteligentes, cartões de
fidelidade, aparelhos GPS, etc.

Por exemplo, o portal Yahoo!, que cerca de 800 milhões de pessoas


consultam regular e constantemente, captura uma média de 2.500
rotinas de cada um de seus usuários por mês.

Já o Google, cujo número de usuários é maior que 1 bilhão, dispõe de


um impressionante número de sensores para espionar o
comportamento de cada usuário (8): o buscador Google Search, por
exemplo, permite saber onde o internauta se encontra, o que ele
busca e em que momento.

O navegador Google Chrome, um mega-dedo-duro, envia


diretamente para a Alphabet (a empresa matriz do Google) tudo o
que o usuário faz quando navega na internet.

O Google Analytics elabora estatísticas muito precisas sobre a


navegação dos usuários na rede.

O Google Plus recolhe informações complementárias e as mescla. O


Gmail analisa a correspondência trocada – o que revela muito sobre o
remetente e seus contatos. O serviço DNS (Sistema de Nome de
Domínio) do Google analisa os sites visitados.

O YouTube, o serviço de vídeos mais visitados do mundo, que


também pertence a Google – e portanto, à Alphabet – registra tudo o
que fazemos em seu interior.

O Google Maps identifica o lugar em que nos encontramos, para onde


vamos, quando e por qual itinerário… AdWords sabe o que queremos
vender ou promover.
6
E desde o momento em que ligamos um smartphone que opera com
Android, o Google sabe imediatamente onde estamos e o que
estamos fazendo.

Ninguém nos obriga a utilizar o Google, mas quando o fazemos, eles


sabem tudo sobre nós. E, segundo Julian
Assange, imediatamente informa as autoridades dos Estados Unidos.

Em outras ocasiões, os que espionam e rastreiam nossos movimentos


são sistemas dissimulados ou camuflados, semelhantes aos radares
nas avenidas, os drones ou as câmeras de vigilância (também
chamadas de “videoproteção”).

Esse tipo de câmera tem se proliferado tanto que, por exemplo, no


Reino Unido – onde existem mais de 4 milhões dela, uma para 15
habitantes – um pedestre pode ser filmado em Londres até 300 vezes
ao dia.
E as câmeras de última geração, com a Gigapan, de altíssima
definição (mais de um bilhão de pixels) permitem obter, com apenas
uma fotografia e através de um poderoso zoom que entra na própria
fotografia – a ficha biométrica do rosto de cada uma das milhares de
pessoas presentes em um estádio, um comício ou uma manifestação
política. (9)

Apesar de existirem sérios estudos, que já demonstraram a fraca


eficiência da videovigilância (10) em matéria de segurança, esta
técnica segue sendo ratificada pelos grandes meios de comunicação.

Uma parte da opinião pública acaba por aceitar a restrição de suas


próprias liberdades: 63% dos franceses declaram estar dispostos a
uma “limitação das liberdades individuais na internet, por conta
da luta contra o terrorismo”. (11).

7
O que demonstra haver, ainda, muita margem de submissão a ser
explorada pelos que nos vigiam.

* Tradução de Vinícius Gomes Melo


(1) A expressão “objetos conectados” refere-se àqueles cuja missão
principal não é apenas a de ser periféricos informáticos ou interfaces
de acesso à web, mas agregar, graças a uma conexão com a internet,
valor adicional em termos de funcionalidade, informação, interação
com o entorno ou de uso (Fonte: Dictionnaire du Web)

(2) El País, 2015

(3) A partir de então, a Samsung anunciou que mudaria sua política,


e assegurou que o sistema de gravação instalado em seus televisores
só seria ativado quando o usuário apertasse o botão de gravação

(4) Que já são parte de muitos dos produtos habituais de consumo,


assim como os documentos de identidade.

(5) Michael Radford, 1984

(6) Inventado em 1791 pelo filósofo utilitarista inglês Jeremy


Bentham.

(7) Glenn Greenwald, Sem lugar para se esconder, Editora Sextante,


2014.

(8) Ver “Google et le comportement de l’utilisateur”, [“Google e o


comportamento do utilizador”], AxeNet.

(9) Ver, por exemplo, a fotografia da cerimônia da primeira posse do


presidente Obama, em Washington, 20/1/2009.

(10) “Assessing the impact of CCTV” [“Avaliando o impacto da


CCTV”], o mais completo dos informes dedicados ao tema, publicado
em fevereiro de 2005 pelo ministério do Interior britânico (Home
Office), marca um ponto contra a videovigilância. Segundo este

8
estudo, a debilidade do dispositivo deve-se a três elementos: a
execução técnica, a ambição extrema dos objetivos pretendidos e o
fator humano. Ver Noé Le Blanc, “Sous l’oeil myope des caméras”, Le
Monde Diplomatique, Paris, setembro de 2008.

(11) Le Canard enchaîné, Paris, 15/4/2015

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