Entrevista Fenomenologica PDF

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A ENTREVISTA FENOMENOLOGICA Leandro Penna Ranieri ~ Universidade de Séo Paulo Cristiano Roque Antunes Barreira — Universidade de Sio Paulo ‘Apoio: FAPESP Resumo © propésito deste trabalho € tematizar a entrevista fenomenoligica como procedimento metodolégico em pesquisa qualitativa, elucidando suas caracteristicas principais © sua implicago com outros momentos da pesquisa fenomenolégica. Tematizar este instrumento permite observar as implicagdes entre as etapas de pesquisa, também revelando, a partir de seus elementos essenciais, os prinefpios deste tipo de investigagao. Palavras-Chave: Entrevista feomenolégica, pesquisa qualitativa, _procedimentos metodoldgicos. Abstract he purpose of this study is to develop the theme of phenomenological interview as a methodological procedure in qualitative research, explaining its main features and its implication with other moments of phenomenological research. Thematize this. instrument allows to observe the implications among the stages of research, also revealing, from its essential elements, the principles of this genre of research. Keywords: Phenomenological interview, qualitative research, methodological procedures. INTRODUCAO ‘As ripidas mudangas sociais a partir do século XX exigiram, historicamente, 0 posicionamento de novas perspectivas investigativas, em diferentes areas ¢ para diferentes objetos ~ ou, pelo menos, outras faces dos mesmos. As ciéncias tradicionais, como as ciéncias aturais, passaram a no dar conta de explicar ¢, sobretudo, compreender os fendmenos que se io na realidade, Novas perspectivas epistemoldgicas comecam a surgir, a partir de ‘metodologias préprias de investigagdo. Nesse sentido, pata o estudo empirico, a pluralizagéo das esferas de vida exige uma nova sensibilidade do ato de pesquisar, demandando também um apego rigoroso a essas esferas que sio estudadas. Portanto, os préprios fendmenos - © sua complexidade — impdem um enfrentamento investigativo diferente (FLICK, 2004) esse contexto, as ciéncias humanas e sociais ganham maior amplitude de atuagdo, O desencantamento do mundo € da ciéneia, a qual busca, através de métodos quantitativos padronizados, objetividades causais, deixam de lado a preocupagao com 0 homem ea situagao. AS ciéncias humanas e sociais visam preencher esta lacuna, a qual também representa um dos limites da pesquisa quantitativa Nesse sentido, ganha espaco a subjetividade e as experiéncias humans como objetos de investigagdo, como componentes das préticas cotidianas. Assim, 0 objeto € tomado em sua complexidade © em seu contexto e possibilita uma abertura ‘metodolégica: o objeto determina 0 método (FLICK, 2004). As cigncias tradicionais alegam ter uma objetividade maior ao fazer pesquisa, controlando variaveis, testando hipdteses e mensurando aspectos de determinado fendmeno. De outro lado, as ciénecias de natureza qualitativa também apresentam preocupas a0 rigor do pesquisar: delimitagdo precisa do objeto ¢ construgdo metodolégica adequada & natureza do mesmo, No caso de investigagdes que tomem a subjetividade como objeto de pesquisa, a necessidade de se ter um caminho apropriado para alcangar as experigncias das, pessoas por si s6 jé configura um problema proprio de investigagao. Que tipo de procedimento possibilita o acesso as experiéncias das pessoas? “Pesquisar a subjetividade enquanto tal nao & Anais IV SIPEQ — ISBN - 978-85-98623-04-7 1 simplesmente produzir conhecimentos sobre ela, mas aproximar-se experiencialmente dela para 86 depois produzir um discurso expressive (AMATUZZI, 2006, p. 96). Um dos caminhos propostos para o acesso as experiéncias vividas é a solicitagdo através de questiondrios € entrevistas, pois, segundo Amatuzzi (2006), & através da relagdo dialégica entre sujeito © pesquisador que é possivel aproximar-se da experiéncia vivida A pesquisa fenomenoldgica possui peculiaridades que deixam em evidéncia o problema da entrevista em pesquisa qualitativa, Um primeiro aspecto so 0s princfpios que norteiam a pesquisa. Por nao partir de teorias prévias para se aproximar dos fenémenos, a fenomenologia exige um posicionamento radical e rigoroso. Um segundo aspecto € que as préprias redugdes solicitam uma critica © uma definigdo precisa do caminho investigative (empirico) para se chegar aos fendmenos e suas esséncias. Sendo assim, o objetivo desta investigagao é tematizar a entrevista fenomenoligica como procedimento metodolégico de coleta em pesquisa qualitativa, elucidando suas caracteristicas principais e sua implicagao com outros momentos deste género de pesquisa cientifica FENOMENOLOGIA. Edmund Husserl (1859-1938), considerado o pai da fenomenologia clissica, constituiu uma cigneia voltada para o estudo daquilo que se manifesta 4 consciéncia intencional (consciéncia de). Fenomenologia como ciéncia ¢ método teédrico-filoséfico rigoroso visa a Teflexdo sobre os fenémenos, aquilo que se manifesta, isto é, as experiéncias vivenciais. Numa explanagao sumaria, no tocante aos seus abjetos © objetivos, o trilhar metodolégico da fenomenologia predispde 0 pesquisador a entrar em contato com 0 contedido da vivéneia pré- reflexiva, deixando de lado paulatinamente tanto o posicionamento prévio de uma ciéncia e suas teses, como aquilo que define ¢ valora 0 objeto de estudo, como pré-conceitos ou préjuizos. ‘Como uma atitude ou conversiio fenamenoldgica, ha 0 esforgo de partir sem pré-teorias ao olhar para o objeto, observando aquilo que 6, deixando as coisas mesmas se manifestarem, Para que se possa chegar a vivéncia, esta manifestada em primeira pessoa pela narrativa, “é necesséria uma nova maneira de se orientar, inteiramente diferente da orientagdo natural’ na experiéncia e no pensar” (HUSSERL, 2006, p. 27) e retorna-se ds coisas mesmas (HUSSERL, 2001) — ‘momento este denominado de reducdo fenomenoldgica ou eidética -, na tentativa de atingir a constituigo do objeto investigado, a fim de compreendé-lo ¢ descrevé-lo (ALES BELLO, 2004). A partir desse caminho, pode ser possivel identificar os significados das experiéncias vividas na vida de sujeitos tipicos — sujeitos reconhecides por terem vivenciado determinadas experiéncias -, na tentativa de compreender como estas experiéncias se configuram existencialmente e como so constitufdas intencionalmente. Fr (OMENOLOGIA E METODOLOGIA. Amatuzzi (1996) e Amatuzzi et al. (2006) apontam esquematicamente alguns passos norteadores da pesquisa e do método em pesquisa fenomenoldgica, incluindo e localizando a etapa de coleta de dados. Manzini (2004) também apresenta, de maneira mais diluida, o local e © papel da entrevista em pesquisa qualitativa. Esta segdo destaca aspectos da elaboragao légica da pesquisa cientifica, vistos sob a dtica fenomenologica e orientados & pesquisa qualitativa ¢ em fenomenologia. Primeiramente, & preciso destacar o papel da definigdo do objeto ¢ do objetivo dentro do processo investigative, Pode-se ter previamente uma curiosidade de se conhecer como se configura alguma experiéncia; esta curiosidade & expressa por meio de um problema; ou tem-se "A orientagdo ou atitude natural pode ser considerada como um nivel de consideragdo sobre objetos/fenémenos de investigasio. Caracteriza-se na superficie do fenémeno, tipicamente ambito de pesquisa das cincias naturais, orientadas pela légica causal e espago-temporal, cercando o fendmeno a partir dessas objetividades. A conversio fenomenolégica se configura pela mudanga de atitude: da atitude/orientagdo natural (aspectos factuais do fendmeno) a atitude fenomenolégica (aspectos essenciais do fenémeno). Anais IV SIPEQ — ISBN - 978-85-98623-04-7 2 a experiéncia e elabora-se a questo da pesquisa a partir dela. Em ambos os movimentos, a experigncia — ou algum aspecto dela — € 0 objeto da investigacio. O objetivo, fenomenologicamente, € colocar o objeto em movimento ou tomé-lo de determinada forma, Sendo assim, o objetivo & expresso como um verbo aplicado ao objeto, A titulo ilustrativo, em. pesquisa fenomenoldgica, respeitando as variagdes de vertentes deste caminho epistemologico, identificar © compreender sio verbos que, aplicados aos objetos, se adéquam ao tipo de caminho ¢ principio proposto pela fenomenologia, Sao momentos que expressam as etapas do método fenomenoligico e sua implicagao: identificar pode corresponder a reducdo _fenomenolégica, visando identificar a esséncia do fendmeno, e compreender pode estar mais em correspondéncia com a redugio transcendental, sendo, grosso modo, a etapa de compreens dos momentos de constituigo da experiéncia na consciéncia do sujeito. Por fim, a delimitagao de um objetivo de pesquisa de certo modo contém todas as etapas da mesma. Além do objeto e © tipo de olhar sobre ele, o objetivo contém o recorte contextual da area de conhecimento em que ele se insere e, como problema de pesquisa, como esté vinculado a esta area — ou reas, seguindo uma tendéncia atual de interdisciplinaridade na ciéncia, Este momento é elaborado na introducao do trabalho, contendo a revisdo bibliografica. Depois, os proprios verbos definidos no objetivo jé indicam 0 modo de abordar e considerar o objeto; estes modos jé indicam 0 método da pesquisa, incluindo os procedimentos e instrumentos para tal. Ao definir 0 recorte do objeto e objetivo, tem-se também 0 perfil de sujeitos que comporio a amostra. Além disso, pode-se ter uma delimitagZo minima do nimero de entrevistados, configurando-se ¢ justificando-se a partir de dois aspectos relacionados com este tipo de investigagdo. Primeiro, e sobretudo, observa-se, no tocante & coleta, transcrigdo e andlise em pesquisa qualitativa e, principalmente, no caso da pesquisa fenomenolégica, a caracteristica invidvel e prescindivel da tentativa de se aplicar alguma técnica de amostragem a qual defina estrita € estatisticamente 0 nimero de sujeitos para a participagao das entrevistas. O tipo de entrevista proposto, bem como os ajustes epistemolégicos, buscam atingit aspectos relacionados com a vida dos sujeitos, ou seja, tem como meta sua dimensdo existencial - favorecendo-se 0 acesso analitico a vivéncia da propria pessoa ¢ a compreensio da interioridade constituinte deste objeto enquanto convertido fenomenologicamente, isto 6, enquanto fenémeno, aquilo que se di 4 conscigncia. Desse modo, todo o propésito como 0 critério de validade das pesquisas quantitativas. so incompativeis com os pressupostos filoséficos que pautam este tipo de investigagdo (GIORGI, 2008). ENTREVISTAS FENOMENOLOGICAS. A claboragdo do instrumento de coleta busca condizer com o tipo de investigagdo, isto & a natureza do objeto ¢ do objetivo solicita determinado instrumento, No caso da pesquisa envolvendo as experiéncias vividas de pessoas, remete-se a um meio que permita a narragdo das ‘mesmas: tal instrumento pode ser denominado de entrevista fenomenolégica. O instrumento de coleta nao € definido como método da investigago; método & o caminho para se chegar em determinado lugar — cumprimento do objetivo e resposta do problema da pesquisa -, valendo-se de procedimentos ¢ instrumentos adequados ¢ especificos. As entrevistas podem ser bascadas em roteiros ou questionsrios, compostos de perguntas ou t6picos. Sinteticamente, esses roteiros podem ser organizados a partir do nivel de estruturagdo: de ndo-estruturados a estruturados, havendo ainda o hibrido semi-estruturado (MANZINI, 2004). A estruturagao se configura pelo mimero de questdes ¢ a relagdo entre elas, incluindo uma ordem légica elucidativa - de solicitagdes gerais a especificas durante a entrevista - e/ou de complexidade ~ de questdes mais simples para mais complexas. Esta tipificagio esquemitica se dirige mais ao proceso de elucidagao e aprofundamento proprio deste recurso metodoldgico da pesquisa qualitativa, no se confindindo com outros objetivos restritivos, como a comprovagio de fatos ¢ coleta de dados informativos. Estes cuidados especificos e relativos a elaboragdo de questiondrios e roteiros, bem como a compatibilidade entre os objetivos da pesquisa ¢ os roteiros de entrevista, so bem esquematizados por Manzini (2004) e Kidder (1987). Segundo Dale (1996, p. 310), a entrevista do tipo fenomenolgica tem inicio a partir de uma questo que guiard o processo de coleta; ou seja, € uma questo norteadora e disparadora Anais IV SIPEQ — ISBN - 978-85-98623-04-7 3 da entrevista, estritamente implicada com o objetivo da pesquisa, Outra possibilidade, como exemplifica Stelter (2000), € a utilizagdio de uma situagao escothida no momento da entrevista; 0 entrevistador solicita que @ pessoa traga situagdes compativeis com o propésito da entrevista © ambos combinam em partir de determinada experiéncia escolhida, como temética situada a ser explorada na continuidade da entrevista. O pesquisador/entrevistador, segundo Dale (1996, p. 313), encoraja o entrevistado a refletir sobre sua experiéncia e detalhé-la 0 miximo possivel Para tal, no decorrer do relato, destaca-se a atengGo a0 contetido relatado por parte do pesquisadorientrevistador, direcionando a entrevista ao contetido buscado e para elucidar possiveis pontos obscuros durante a narrativa, Quer-se o relato detalhado por parte do entrevistado de forma esponténea, possibilitando 0 acesso primeiro as experiéncias e percep do sujeito. Sendo assim, hd ndo somente a liberdade da manifestagdo deste tipo de conteiido subjetivo na entrevista, mas a prépria intengdo de que assim seja para que se garanta 0 acesso fenomenolégico pretendido, ‘As perguntas que surgem durante a entrevista demonstram o interesse e a curiosidade pelo o contetido nartado, niio sendo possivel estipuld-las prévia e restritamente. O despertar das perguntas nasce de um desconforto, de um vazio compreensivo que corresponde a um sentido ndo preenchido intuitivamente, no captado explicitamente naquilo que o faz, 0 sustenta, mas captado apenas como sentido aludido, referido, sinalizado, indicado ou insinuado. A questio retoma algo desse sentido vazio solicitando justamente que a experiéncia que implicitamente 0 faz seja dita a fim de que se o preencha. Assim como as perguntas pré-definidas © que constituem o roteiro, estas questdes buscam suscitar no sujeito a retomada das experiéncias ou 0 aprofundamento/elucidagdo no momento da entrevista, ¢ sua conseqiiente descrigdo. Assim, a titulo ilustrativo, as perguntas que podem ser adequadas © podem favorecer tal intento se iniciam pela construgio 0 que é ¢ como é — construgdes com pronomes assumidas na forma interrogativa -, sempre remetendo a vivéncia da pessoa (p. ex., “como vocé vivenciow'vivencia...?”; “como foi'é para voce...?”; Yo que & essa experiéncia para vocé?”), Além das perguntas estipuladas previamente, as quais constituem o roteiro de entrevista, esas perguntas dirigidas ndo pré-determinadas partem daquilo que aparece durante o relato; a fungdo destas perguntas nesse processo aberto de coleta — proprio da pesquisa qualitativa — & de ir evidenciando o fendmeno e este se evidencia justamente porque a pergunta 0 solicita, Entio, a petgunta se articula ao fenémeno, Nao pretende partir de interpretagdes ou lampejos cognitivos de um dos interlocutores da entrevista, mas ela confirma o vinculo intersubjetivo presente. O aprofundamento durante a entrevista, nessa articulagdo fendmeno-pergunta, se di por meio de um processo de retomada, confirmagdo e especificagdo do contetido relatado. O relato do sujeito pode se configurar, muitas vezes, em tomno do fendmeno, sem aprofuundi-lo ou adentré-to efetivamente na narrativa; 0 pesquisador/entrevistador, em sua postura atenta, busca dirigir © solicitar ao sujeito, por meio da pergunta, que aprofunde sua narrativa. Como propostas sugestivas da natureza deste tipo de questdo, ver Stelter (2000) e Dale (1996). A gravagdo © a posterior transcrigdo na integra da entrevista tém como objetivo fimdamental a leitura dos relatos no momento da anilise, permitindo ao pesquisador, num primeiro momento, a leitura atenta sobre o conteiido e, posteriormente, ja durante a anslise, tentar aprender e descrever como se manifesta o objeto investigado. Além disso, este registro gréfico das entrevistas pode ser anexado pesquisa, no caso de dissertagaes, teses ¢ livros. Estes momentos da pesquisa também sio destacados dentro do contexto de pesquisa em fenomenologia por Amatuzzi (1996) € Amatuzzi et al. (2006). 0 esforgo necessirio para a coleta do relato do sujeito condiz. com a caracterizagio do método desde a postura inicial do pesquisador/entrevistador para que esteja sempre atento no ‘momento da entrevista, principalmente, ao relato do sujeito, testemunhando a experiéneia vivida do outro. O posicionamento do pesquisador/entrevistador é fundamental neste tipo de entrevista, segundo Stelter (2000, p. 69); a atengdo para “chamar” a experiéncia se relaciona com a caracteristica do aprofundamento em tal dimensdo, segundo autor, “quieta”, técita O acesso a0 estrato originario de uma experiéncia vivida, isto 6, ao estrato corporal da experineia, no deve pretender tematizi-lo objetivamente, o que daria um caréter reflexive a uma dimensio da experiéncia que no tem essa qualidade, embora nem por isso ndo se mostre, nao se manifeste, mas € préteflexiva (p. 67), ¢, por tal peculiaridade, ndo emerge de maneira imediata ¢ Anais IV SIPEQ — ISBN - 978-85-98623-04-7 4 racionalizada, exigindo etapas preparatérias metodologicamente bem orientadas segundo a fundamentagao da fenomenologia Hi, no tocante a relagio pesquisador/entrevistador-entrevistado durante a entrevista, um posicionamento empiticofentropético frente ao outro que € autorizado a relatar sobre @ sua experiéncia vivida, Husserl e Edith Stein (1891—1942), sua aluna ¢ as tente, mostram que “hé um imediato colocar-se em relagdo aos outros mediante a empatia” (PEZZELA, 2003, p. 113). Segundo a mesma autora, 20 falar dos escritos de Stein, “é necesséria a abertura ao outro” como “um primeiro grau para a compreensio, possibilidade de entendimento, e s6 onde hi a abertura € disponibilidade, existe a possibilidade de fundar uma comunidade que possa verdadeiramente dizer-se humana” (p. 115), ‘Ales Bello (2004) aborda a empatia/entropatia na relagdo entre os seres humanos, pois assim, reconhecendo no outro um outro eu (alter ego) — “o outro se manifesta como outro semelhante a mim: semelhante, ndo idéntico” (ALES BELLO, 2004, p. 118) e como “modo no qual os sujeitos humanos se reconhecem reciprocamente tais, sujeitos e nao objetos” (ALES BELLO, 2003, p. 44) -, manifesta-se a intersubjetividade e, conseqientemente, 0 recomhecimento da vivéneia estranha. Simplesmente, “no se trata propriamente de uma identificagdo, mas da possibilidade de uma proximidade” (ALES BELLO, 2004, p. 119) no presente caso, a se destacar na relagdo entre 0 sujeito e 0 pesquisador, O ato da empatia, pottanto, fenomenologicamente, é: ‘Um instrumento natural, imediato, tipicamente humano através do qual se consegue colher e compreender os outros seres humanos, as suas vivencias, 6s seus estados de alma, os sentimentos. Nao é uma pritica que se aprende ou aplica quando ha necessidade, mas & co-natural a0 ser humano, & 0 que consente o compartithamento de prazer e dor com outros de maneira imediata (PEZZELA, 2003, p. 110). Em relagdo ao papel da intersubjetividade e & empatia, pode-se abordar a claboragio de Ales Bello (2003, p. 46) sobre uma aquisigo gradual da consciéncia prépria através de uma continua troca com 0 outro. Como bem trata Ales Bello (2004): “nés nos comunicamos no nivel das estruturas, mas ndo quanto aos conteiidos” (p. 119-120) porque “nés temos as mesmas estruturas, porém cada um vivencia contetidos diferentes, especificidades proprias, peculiaridades préprias” (p. 119). Husser!, entdo, colocava que a importancia da vivéncia estava nna sua estrutura fundamental (esséncia), que ¢ universal, no no contetdo, este tiltimo € diverso de um ser humano para outro. De fato, quando me coloco em eontato com aquele que considero outro de mim, mas semelhante a mim, alter ego, colho, intuo, apreendo, enfim cempatizo aquilo que esta vivendo, a sua vivéncia; nesta apreensio eu me dou conta de que ele/ela esta vivendo, por exemplo, uma emogao, um sentimento, ‘ou simplesmente uma percepgao, mas esté vivendo tudo isso em primeira pessoa como fato totalmente originério para cle ou para cla, mas néo origindrio para mim; para mim é origindrio somente 0 fitto que empatizo a sua situagdo, mas certamente nfo vivo 0 conteido de sua vivencia que & incomunicavel (ALES BELLO, 2007, p. 79). Uma comunicagao entre a relagdo empética e 0 momento da entrevista esté naquilo que & suscitado junto ao entrevistador pela experiéncia relatada do entrevistado, chamando sua atengio para o esclarecimento intersubjetivo que se faz mum ir vir dialégico. Seguindo um caminho diverso das conversagdes comuns e cotidianas, orientadas em grande parte por um didlogo do tipo explicativo e informativo, hé a importincia da curiosidade pela experiéncia vivida correlativa ao objeto, isto é, a énfase para que a fala do sujeito acerque ¢ adentre as suas experiéncias vividas. Ao mesmo tempo, além da postura atenta do entrevistador, o interesse pelo seu objeto enquanto fendmeno deve estar focado, isto é, ele reconduzird a entrevista para a experiéncia vivencial, caso haja o desvio para a experiéncia imprépria, contetdos objetivados ‘ou para temas alheios ao interesse da pesquisa. Neste caso, a entrevista acerca da experiéncia vivencial, busca, sobretudo, a fala auténtica do sujeito, aquele siléncio que se rompe e expressa no relato algo que parece uma Anais IV SIPEQ — ISBN - 978-85-98623-04-7 5 . Assim nova coisa “des-coberta”, provavelmente nunca dita nem refletida, que & a vivéne como abordado por Amatuzzi (2001b), van der Leeuw (1964) remete ao ato de “des-cobertura’ da vivencia, em que o fendmeno “se revela progressivamente” (p. 529); 0 fendmeno ndo é um produto do sujeito, “mas o fendmeno esté junto de um objeto que se refere ao sujeito, e de um sujeito relativo ao objeto” (p. 529). Vale destacar que a empatia & uma questio implicita para essa entrevista _fenomenolégica. O fendmeno recordado no momento da entrevista nfo é a vivéncia vivida novamente, mas trazida tona, com sua intensidade relativa e prépria. Contudo, s6 ha tal possibilidade devido & presenga de um vinculo empético entre o sujeito entrevistado & 0 entrevistador, este tiltimo também atuante como pessoa atenta, indagadora e curiosa, sobretudo para poder compartilhar e testemunhar a experiéncia narrada do outro. O momento da entrevista € permeado pela relago empatica entre os dois que se desdobra na possibilidade da intersubjetividade, isto é, de um compartilhar algo essencial do movimento subjetivo. A empatia € entendida aqui como uma vivéncia, nao como um estado psiquico relacionado & simpatia, Essa concepsdo tem como fundamento as andlises fenomenologicas feitas por Edith Stein, que tratou © tema da empatia como objeto de sua tese de doutorado, publicada no formato de livro em 1917 (STEIN, 1998). A empatia, diferentemente de outras definigdes presentes na psicologia, & uma vivéncia que possibilita © reconhecimento do outro como outro eu, é 0 dar-se conta imediato (irrefletido e, portanto, no representative) de que o outro é um ser humano, com possibilidades vivencias iguais as minhas, mesmo que estas vivéncias sejam em seus contetdos divergentes. Dessa feita, no momento da entrevista hé a possibilidade da abertura ao outro, & sa experiéneia presente na narrativa, e de um momento de testemunho da vivéncia do outro Portanto, é determinante uma preparagdo para 0 momento da entrevista e a claboragio de wm roteiro de perguntas que permita 0 acesso experiéncia do outro, ‘Amatuzzi (1992 e 2001a) aborda o tema da fala do sujeito, juntamente com a teorizagdo de Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), com duas distingSes: a fala priméria — origindria ou auténtica ~ ¢ a fala secundéria, Esta tiltima seria uma fala repleta de pré-definigdes, opinides ja conhecidas, como as chamadas “frases feitas”, 0 que caracteriza este tipo de fala como sem nenhuma novidade para o sujeito falante, um pensamento sobre pensamentos jf realizados. A fala secundaria se localiza na orientagdo pessoal ou existencial, isto é, jé ndo se enquadra num tipo de orientacao natural, constituida de fatos © pré-definigdes do tipo causa e efeito, mas é composta por contetidos subjetivos, elementos que vo constituir a esfera da dimensio cexistencial, a qual ¢ objeto de identificacdo no momento inicial de sintese dos relatos (primei etapa analitica deste tipo de pesquisa). J4 a fala auténtica & aquela que ultrapassa certo siléncio ¢ manifesta-se, durante o diseurso, como algo novo tanto para 0 sujeito como para o pesquisador, ‘ocupando uma orientagdo fenomenolégica, O relato nessa orientagdo permite que, apés tomado © conjunto de entrevistas submetidas ao crucamento intencional, haja a emergéncia do elemento constante e universal entre todas as experiéncias. Aponta-se, entdo, para a presenga da empatia desdobrada como apreensdo intersubjetiva imediata como o movimento vivencial que possibilita também a apreensio ¢ a diferenciagdo intuitivas de ambos os tipos de fala, justamente no momento da entrevista. Esse teconhecimento pode-se dar, eventual e inicialmente, a partir de elementos textuais presentes no discurso, como a utilizagdo dos pronomes pessoais em primeira ou terceira pessoa do singular e suas conjugagdes proprias, 0 que pode apontar para a fala auténtica ou a fala secundaria, respectivamente. Outros elementos a serem percebidos podem ser o tipo de narrativa sobre a experiéneia, podendo ser mais um relato acerca da experiéncia, em que 0 sujeito a trata como objeto de reflexio, nio ativando de fato uma recordagao em primeira pessoa na tentativa de “re-viver” a experiéncia’. Nao obstante, esses elementos mais discursivos, mesmo podendo contribuir inicialmente para as andlises, no representam a atuagdo do movimento vivencial da empatia se desdobrando intersubjetivamente na compreensdo da experiéncia alheia justamente naquilo que nela existe de compartilhavel, de estruturalmente comum, sendo este movimento mais implicito ¢ indicando um tipo de apreensio * Para orientagdes relacionadas ds estratégias em relagdo aos procedimentos de entrevista em pesquisa fenomenolégica, ver Stelter (2000). Anais IV SIPEQ — ISBN - 978-85-98623-04-7 6 € testemunho intuitivo por parte do pesquisador, 0 que significa to somente a captagio do sentido manifesto. Todo o processo de andlise pode ser desenvolvido de maneira proveitosa, seguindo os pressupostos metodolégicos da fenomenologia, a partir de uma boa fundamentagdo e orientagdo da coleta dos relatos. Para isso, é necessério possuir um instrumento de coleta apropriado para que todo o fluir da narrativa esteja a todo 0 momento despertando contetidos vivenciais, estes inseridos no contexto especifico da experiéncia dos sujeitos. A elaboragio de um roteiro de entrevista aberto direcionado as experiéncias vividas, juntamente, e, sobretudo, com o papel do pesquisador/entrevistador para direcionar a entrevista para a propria experiencia do sujeito, sio procedimentos de coleta que possibilitam 0 acesso as mesmas. Portanto, 0 esforgo necessario para a coleta do relato do sujeito condiz com a caracterizagdo do método desde a elaboragdo do instrumento de coleta De certo modo, a anilise fenomenolégica vem numa seqiéncia adequada apés a entrevista. A andlise € 0 momento para se realizar a redugdo fenomenolégica; na entrevista, ocorrem redugdes de outra ordem: so direcionamentos que emergem a partir da prépria resposta do sujeito, © momento da entrevista limita avangos aprofundamentos de cunho mais analitico, ou seja, os aspectos essenciais da anélise da entrevista inspiram, mas ndo se confndem com os direcionamentos experiéncia no momento da entrevista. CONSIDERAGOES FINAIS Tematizar a entrevista fenomenolégica como um procedimento metodolégico em pesquisa qualitativa, orientada pela fenomenologia, possibilita ter como foco o processo como de pesquisa como um todo. Emerge-se dai a presenga implicada de todas as etapas da investigagdo, atentando para o rigor de se definielas c articuléelas adequadamente, Flucidar os aspectos essenciais implicitos neste instrumento de pesquisa, como é 0 caso do vinculo empatico, possibilita perceber que, além do rigor estrutural do fazer pesquisa, ha 0 destaque € atengao para aquilo que é humano, enfatizando uma dimensio ética fundamental, propésito das ciéncias humanas quando figis & atenciosidade pelo outro. Porém, o diferencial da perspectiva fenomenolégica é justamente poder tematizar — localizando, identificando, iferenciando, confirmando — tanto 0 objeto foco da pesquisa, como os passos da mesma, sem escapar do ambito da mesma investigacdo. A elucidagdo de um dos passos da pesquisa, como foi a tentativa deste caso, permite observar toda a vinculagdo da investigagao cientifica. Este movimento revela a preocupacdo constante com o rigor em pesquisa, a intengdo de voltar ds BIBLIOGRAFIA: ALES BELLO, A. 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