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T e n d ê n c i a s

Feminismos e violência
de gênero no Brasil:
apontamentos para o debate
Regina Facchini
Carolina Branco de Castro Ferreira

A
violência contra as Nesse período, a temática da violência já ção de redes nacionais; articulação em
mulheres aumentou se revestia de centralidade na pauta po- âmbito internacional e sintonia com
nos últimos anos? As lítica do movimento, em sintonia com a organismos internacionais, visando à
denúncias aumenta- bandeira “o pessoal é político”. Contu- incorporação pelo Estado brasileiro de
ram? Existem mais fe- do, como ressalta Machado (1), a pauta resoluções de conferências e tratados
ministas hoje do que antigamente? Estas de maior visibilidade política envolvia a internacionais. É nos anos 2000 que são
e outras questões têm sido respondidas defesa da vida das mulheres, sintetizada criados órgãos governamentais destina-
frequentemente por pesquisadores dos no slogan “quem ama não mata”. A críti- dos a gerir políticas para mulheres: pri-
estudos de gênero e feministas ao lon- ca à violência cotidiana e crônica contra meiramente em 2002, no segundo go-
go dos últimos anos, tendo como base a as mulheres, que já eram pauta dos gru- verno de Fernando Henrique Cardoso,
exposição midiática de acontecimentos, pos de SOS Mulher, e as reivindicações com a Secretaria de Estado dos Direitos
como a organização das Marchas das Va- referentes à liberdade sexual não encon- da Mulher, vinculada ao Ministério da
dias, a chamada Primavera Feminista, as travam terreno fértil no debate público. Justiça, e, no primeiro governo de Luiz
denúncias de estupros em universidades O pós-redemocratização é marcado Inácio Lula da Silva, com a Secretaria
e os recentes casos de estupros coletivos pela abertura de espaços de interlocu- Especial de Políticas para Mulheres
no Rio de Janeiro e no Piauí. ção socioestatais, como os Conselhos (SPM), que manteve status de ministé-
Um ponto de partida para pensar essas dos Direitos das Mulheres (CNDM), rio entre 2003 e 2015.
e outras questões é a articulação de dois criados a partir de 1983. Desses es- Os anos 2000 apresentam um ponto de
elementos. Um primeiro diz respeito às paços, nasce a proposta da criação de inflexão importante, não apenas pela
mudanças que têm difundido e diversi- delegacias especializadas e também o criação de órgãos de gestão, mas pela
ficado a produção do sujeito político do chamado “lobby do batom” na Cons- ampliação das formas de participação,
feminismo no país. Um segundo, que tituinte, que demandava o combate à com a convocação de conferências de
vai ao encontro desse, é a mudança nas violência, a redefinição da classificação políticas para as mulheres, que foram
convenções que implicam a percepção, penal do estupro e a criação de delega- base para a elaboração de planos na-
reconhecimento e enfrentamento à vio- cias da mulher em todos os munícipios. cionais de políticas para as mulheres. É
lência de gênero. A Constituição elaborada a partir des- a partir da ação transversal da SPM em
O movimento feminista brasileiro ga- sa movimentação incluiu o direito à relação a outros ministérios e de sua ar-
nha impulso com a declaração, pelas “igualdade de gênero”. ticulação com o CNDM que se articula
Nações Unidas, de 1975 como o Ano Os anos 1990 são marcados por: adoção a Lei Maria da Penha (2006) e que são
Internacional da Mulher e com jornais de formatos institucionalizados pelos implantados sistemas de notificação de
como o Brasil Mulher e o Nós Mulheres. grupos; participação socioestatal; cria- violência contra a mulher. Em 2009, a

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tipificação penal de estupro foi alterada, como nódulos relevantes em meio a um conjunto de propostas legislativas
permitindo abranger outras práticas tidas essa teia político-comunicacional. que retrocedem direitos, como no caso
como sexuais para além da penetração va- A articulação entre blogs, redes sociais, do PL 5069/2013, que altera e restringe
ginal. Tais mudanças representam passos coletivos e ocupação do espaço público a abrangência do atendimento a mulhe-
significativos na alteração dos regimes de constitui-se como locus pedagógico e de res vítimas de violência sexual em hos-
visibilidade dos feminismos e da violên- reconhecimento, ampliando as semân- pitais, pela exigência da apresentação de
cia de gênero, bem como na mudança ticas e gramáticas políticas referentes à boletim de ocorrência e exame de corpo
de sensibilidades quanto ao que pode ser violência de gênero e às formas de visi- de delito para a prevenção ou interrup-
classificado como violência. bilizá-la. A Marcha das Vadias e as de- ção da gravidez decorrente de estupro.
A alteração dos regimes de visibilidade núncias de estupros em universidades Na contramão das evidências que
dos feminismos é também possibilitada, a partir de 2014 implicam e difundem apontam a violência sexual como algo
a partir desse período, pela crítica à cen- novas formas de classificar o que é tido frequente e fortemente enraizado nas
tralidade da atuação institucional, que como violência, em sintonia com a al- desigualdades de gênero persistentes
dá lugar à emergência de grupos e coleti- teração da tipificação de estupro. Cam- na sociedade brasileira, o necessário
vos que apostam em discursos e “modos panhas criadas a partir de depoimentos combate a partir de políticas educa-
de fazer” mais horizontais, resultando em primeira pessoa, como #meupri- cionais tem encontrado entraves na
em uma multiplicação de campos fe- meiroassedio e #meuamigosecreto, retirada sistemática de qualquer men-
ministas e pluralização das práticas (2). politizam acontecimentos cotidianos e ção a “gênero” em planos municipais,
Além disso, ganha força uma política dão corpo a noções como “cultura do estaduais e nacional de políticas para a
de mobilização de diferenças, e surgem estupro”, que investem na ideia da não educação. Além disso, a defesa pública
reivindicações de lugares políticos es- excepcionalidade e do enraizamento de proposições e medidas conservado-
pecíficos: as negras, as camponesas, as cultural das condições que possibilitam ras no executivo e no legislativo tem
lésbicas, as indígenas e as jovens. Con- a larga disseminação da violência sexual encorajado discursos e práticas que
tudo, é a partir da popularização do uso no país. Toda essa mobilização se articu- reforçam a violência de gênero e a cul-
da internet e da possibilidade de pro- la a dados de pesquisas, como os do 9º pabilização das vítimas.
dução de conteúdo por usuárias, que os Anuário Brasileiro de Segurança Públi-
repertórios feministas alcançam maior ca, que indicam que a cada 11 minutos Regina Facchini é doutora em ciências sociais,
pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero
disseminação, aprofundando contatos uma pessoa é estuprada no Brasil, ou do
(Pagu) e professora dos programas de Pós-
em organizações políticas e grupos já Instituto de Pesquisa Econômica Apli-
Graduação em Ciências Sociais e em Antropo-
existentes, mas também criando outras cada (Ipea), que indicam que somente logia Social da Universidade Estadual de Cam-
conexões político-digitais. 10% dos casos são denunciados e, em pinas (Unicamp) Email: re.facchini@gmail.com
A partir de 2011, por meio de articu- aproximadamente 70% dos casos, os Carolina Branco de Castro Ferreira é dou-
lações transnacionais facilitadas pela agressores são conhecidos ou mesmo tora em ciências sociais, pós-doutoranda do
Núcleo de Estudos de Gênero (Pagu) da Uni-
internet, emergem ocupações do espaço pessoas próximas à vítima.
camp. Email: carolinabcf.uni@gmail.com
público coordenadas por redes políti- Em contraste com a maior visibilidade e
co-comunicacionais feministas (princi- difusão dos feminismos e das mudanças
palmente a partir de blogs, Facebook e nas convenções acerca do que pode ser Referências

Twitter). Eventos como as Marchas das classificado como violência, a virada da 1. Machado, L. Z. Feminismo em movimento.
Vadias se consolidam na agenda de com- última década é marcada por forte rea- São Paulo: Editora Francis, 2010.
bate à violência de gênero e dão lugar ção conservadora. Em uma legislatura 2. Alvarez, S. E. “Para além da sociedade civil:
à constituição de coletivos locais com apontada como uma das mais conserva- reflexões sobre o campo feminista”. Cader-
reuniões presenciais, estabelecendo-se doras das últimas décadas, é produzido nos Pagu, Campinas, n. 43, p. 13-56, 2014.

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