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REPENSANDO A HISTORIA LITERARIA* Ria Lemaire There is no human existence except asa woman or as @ man, RD. Laing A HISTORIA LITERARIA TRADICIONAL. * historia literaria, da maneira como vem sendo escrita e ensi- ada até hoje na sociedade ocidental moderna, constitui um fe- Smeno estranho e anacr6nico, Um fendmeno que pode ser com- ‘ado com aquele da genealogia nas sociedades patriarcais do sado: o primeiro, a sucessdo cronoldgica de guerteiros herdi- } 0 OUtro, a sucessdo de escritores brilhantes. Em ambos os casos, as mulheres, mesmo que tenham tutado com herofsmo ou escrito brilhantemente, foram eliminadas ou apresentadas como casos excepcionais, mostrando que, em assuntos de homem, nao a espaco para mulheres “normais”. Tanto a genealogia quanto a hist6ria literdria revelam a tendéncia masculina de justificar seu Poder atual por meio do recuo as origens e do mapeamento de uma evolucao, factual ou hipotética, até o presente. Desta for- ma, 0 poder politico e cultural masculino passa a ser entendido como apenas um momento de uma tradic&o venerdvel e secular, Ou seja, & pela idéia de ancestralidade que so legitimadas situa. Ges atuais. Neste sentido, nos discursos das ciéncias humanas, as representacGes masculinas sobre a mulher, como o sexo “na- tural, essencial e universalmente”” mais fraco, podem ser consi- Geradas como uma das formas mais radicais deste tipo de legiti- niagio de poder: nao se trata apenas de representagdes ancestrais, uma yez que elas nunca foram diferentes. ° Rethinking titerary history” fo traditions, ea. Maaike Meljer © 180-93, Ria Lemaire € medieval 's autora de Passions et posit niblicado em Historiography af women’s cultural Schaap, Foris Publications Holland/USA, 1987, if, professora de literatura na Universidade de Por REPENSANDO A HISTORIA LITERARIA 9 Poclemos observar ainda outra preocupacdo comum aos dois tipos de historiografia. Ambas apresentam suas genealogias co- mo uma tradigdo (nica ¢ ininterrupta e desqualificam, isolam ou excluem, como marginais ou inimigos, individuos que, por uma azo ou por outra (idéias, raga, sexo, nacionalidade) ndo se ade- quam ao sistema construido. A genealogia e a historia literdria criam a ilusdo de uma s6 histéria, de uma tnica tradigao. Este mito é reforcado continuamente em cada descrigao genealégica e cada versao da historia literdria, Os ‘*herdis’” destes dois tipos de historiografia também tém muito em comum: © sua sucessiio é definida em termos patrilineares; so pais e filhos no quadro de relacdes de um sistema social baseado na propriedade privada. Nos dois casos, os filhos so apresentados como herdeiros de um patriménio politico ou cultural. ® so vistos como seres humanos superiores, de maior valor eimportancia, que, distantes e acima da banalidade da vida co- tidiana, criam seus sistemas politicos ou obras de arte sublimes. Existe um carater comum interessante por tras destas con- viegdes, Elas implicam negaco, ou, no minimo, depreciacio das cireunstancias econdmicas, sociais ¢ politicas, dos jogos de po- der e dos conflitos de interesse e respectivas ideologias, que pos- sibilitaram a esses herdis — nas sociedades em que viveram — a oportunidade de expresso, propagacao e realizacio de suas idgias, De um lado, os conceitos basicos da histéria literdria, co- mo 0 génio, o autor, o herdi, 0 personagem ¢ o tema, ¢ por ou- tro, tradicao, unidade, originalidade ¢ criatividade (todos geral- mente definidos em sua relacdo com o canone das obras escri- tas) esto intimamente relacionados com a negacao basica do im- pacto das estruturas sociais tanto em obras individuais como na tradic&o literdria, Essa negacdo dissimula as complexas relagdes entre uma sociedade e sua literatura, impedindo assim a percep- go do papel das ideologias nas obras literdrias e na sociedade, bem como a inter-relagdo de suas fungdes. Estes conceitos basi- cos so também os pressupostos (geralmente) ocultos da critica tradicional, que, na maior parte das vezes, reforca as perspecti- vas ideoldgicas das obras literdrias em vez de promover instru- mentos que possam detecté-las e criticé-las. Examinada do ponto de vida das mulheres, a critica ea teo- ria literérias explicitam — como faz.a genealogia em outro nivel w TENDENCIAS E IMPASSES — uma das principais obsessdes masculinas nas sociedades pa- triareais: a incerteza acerca da paternidade biolégica. Enquanto, na genealogia, esta inseguranca é compensada pela des. Jinhagem em termos patrilineares, na histéria literdria este senti- mento desconfortavel é reprimido pela énfase excessiva na pater- nidade cultural, mecanismo que implica a exclusao ou negacdo de qualquer elemento que possa perturbar 0 monopélio mascu- lino neste sentido. Esta perspectiva nos permite distinguir duas preocupacdes bsicas na critica literdria contemporanea, Em On deconstruc- tion Jonathan Culler as apresenta da seguinte maneir: 1. “‘Controlar 0 contato com os textos para prevenir a pro- liferacéo de sentidos ilegitimos’” (Culler 1983: 61). A interpreta- do, uma das atividades-chave da critica literaria, € uma pratica diretamente ligada a esta ordem de preocupacao. 2. “Desenvolver princfpios que determinem quais silo os sen- tidos verdadeiramente concebiclos pelo autor” (Culler 1983: 61), Neste caso esto as eternnas discussGes sobre os autores e suas vi- das, sobre as origens, géneros ¢ periodos literarios que vém sen- do fartamente utilizados, em favor da paternidade cultural, no reforco dlos sistemas de classificacao dos discursos das ciéncias humanas e de conceitos preestabelecidos, em lugar de servirem como base material para a criacdo destes sistemas de classifica so. A politica da edigao de textos, concentrando-se no estabele- cimento do texto tinico, verdadeiro e auténtico, é uma parte es- sencial dessa tendéncia de definicdo da paternidade cultural. Por este motivo ainda, muitos textos mediocres foram inclufdos no cAnone ¢ usados na consolidacaio do mito da continuidade e uni- dade de uma tradicao masculina que dataria dos tempos de Ho- mero, Por esta mesma 1azo, as literaturas ndo-ocidentais, assim como a contribuiego feminina, foram, até muito recentemente, excluidas do cnone e das discusses acad@micas. A historia lite- réria tem sido — com pequenas excegdes — fundamentalmente etnocéntrica e viricéntrica, Da mesma forma, foram subestimadas as numerosas tradi- es orais das linguas vernaculares, outra parte importante da his- toria cultural do mundo europeu. A reabilitagto destas tradigdes 86 vem ocorrer durante o periodo romantico, depois de séculos de discriminagao pelas elites, empenhadas em destrui-las ou em adequé-las as suas prdprias visdes ce mundo (Burke 1983, Le- REPENSANDO A HISTORIA LITERARIA 6 maire 1986). Depois do romantismo, as tradigdes orais voltara ser marginalizadas, tornando-se, agora, alvo de uma reagao aind: mais intolerante, de descaso ou negagao, como pode-se observar na redefinigao tedrica do discurso das humanidades, no final do século XIX, situagdo que mantém-se quase inalterada desde entac. Uma caracteristica desta redefinicao foi a separacdo entre co estudo da literatura escrita, que na Europa ocidental concentrou- se nas universidades, e o estudo das tradigdes populares ¢ orais relegado aos folcloristas, geralmente nao admitidos como pro- fessores nas universidades. Assim, as abordagens e as disciplinas tradicionais das humanidades ainda refletem a luta entre as tra~ digdes populares européias nativas, com suas vis6es de mundo esabedoria proprias, ¢ a tradigao escrita, de origem estrangeira, imposta pela elite (Ong 1971, Lemaire 1986). As técnicas da es- crita desempenharam um papel-chave nesta luta (Ong 1967-1982, x Mais tarde, este papel é assumido pela imprensa e pelos meics de comunicagao de massa. Estas tecnologias, usadas pelas elites na propagacao de suas visBes de mundo e culturas, pelo proprio fato de serem escrit eram apresentadas como civilizadas, superiores, e mais desenvo\- vidas, Os vieses ideologicos desta imposigdio tornaram-se os pres- supostos atuais dos discursos das ciéncias humanas, que, por es- ta tazo, podem ser caracterizadas como “'scriptocéntricas’” (Le- maire T. 1984). Enquanto a historia da literatura continuar seni- do apresentada como uma histéria iinica e continua, como un ‘cdnone de obras escritas cuja origem esta numa cultura, ances tral e distante, transmitida por meio de uma elite intelectual, a existéncia das tradigdes orais e das culturas populares nativas vai permanecer excluida da historiografia cultural. No mesmo senti- do, a perspectiva scriptocéntrica vai continuar dispensando os pes- auisadores da tarefa de estudar o impacto inegavel das culturas orais (onde as elites masculinas muito se inspiraram para criar sua tradiedo escrita) no proprio canone literario. ORALIDADE E ESCRITA Algumas descobertas funcamentais da histo} literdria minista emergiram do debate sobre oralidade ¢ escrita desenvol- 6 ‘TENDENCIAS E IMPASSES vido por pesquisadores como E. Havelock (1963), que estudou a transigdo cia oralidade para a escrita na cultura grega, J. Goody (1968 ¢ 1977), que trabalhou as relacdes entre oralidade e escrita nas sociedades africanas, ¢ P. Zumthor (1983 e 1984), que estu- dou a mesma questo na cultura medieval curopéia. Nos traba- Ios de W. Ong (1967-1982), foi desenvolvida a s{ntese das pes- quisas realizadas sobre esta questo em varios campos, culturas © periodos, ¢ elaborada uma teoria geral da oralidade e da escrita. A colocagio central destes trabalhos é a critica do scripto- centrismo na cultura ocidental, ou seja, a existéncia de um con- ccito da escrita unitério e monolitico ¢ seu uso nas discussdes aca- demicas. A prépria escrita tem uma longa historia. A épica de Homero ow a literatura medieval, por exemplo, nao foram ‘es- critas”’ no sentido moderno da palavra, A partir desta perspecti- va, estes pesquisadores invertem o jogo: o ponto de partida para as discussdes sobre a escrita ¢ sua histéria deve ser a oralidade. A cultura escrita sempre parte das culturas orais preexistentes, como ocorreu no caso da Europa, onde se desenvolveu uma no- a tecnologia, ou, mais tarde, no caso do desenvolvimento da im- prensa e dos meios de comunicagdo de massa. A historia literdria curopéia deveria ser estudada como uma transigdo lenta, mas progressiva, da oralidade para as formas pri mitivas de escrita, para as formas mais elaboradas de escrita, e, finalmente, para a imprensa e meios de comunicag&o de massa, Em cada um destes momentos, as formas e fungdes destas tec- nologias foram diferentes, assim como suas relacSes com as tra: digdes orais mais proximas. Com base nestas observagées tedri cas, podemos afirmar que, nas comunidades européias tradicio- nais da Idade Média, a escrita foi introduzida numa associagéo {ntima com um tipo de cultura vinda de fora e em Imgua estran- geira: o latim. Esta cultura nao se enraizava na realidade cotidiana, mas muna tradigdo escrita, morta ¢ predominantemente masculina ¢ foi imposta por uma elite —— em coalizdo com o cristianismo — conto cultura superior e mais civilizada. Nas sociedades européias, isto determinou uma defasagem entre a tradicAo e o saber oral local — que pertencia a todos os membros da comunidade, mu- Iheres ¢ homens — ¢ uma clite masculina que se utilizou do la- im e da tecnologia da escrita para impor suas visdes de mundo ‘jar centros elitistas de cultura escrita, Nas sociedades medie- REPENSANDO A HISTORIA LITERARIA 6 vais, as mulheres foram, progressivamente, sendo exclufdas des- tes centros de cultura escrita, No discurso das ciéncias humanas, a introducdo da escrita e a invencdo da imprensa sempre foram representadas como um progresso para fodos os seres humanos, apesar de suas conseqiiéncias terem sido mareadamente diferen. tes para mulheres ¢ homens. Na realidade, estas teenologias fo- ram usadas, por uma pequena elite, como instrumentos dé po- der para ampliar a distancia entre 0 povo ¢ a elite (Pattison 1982), entre mulheres € homens (Ong 1982). Nas comunidades tradicionais européias, havia duas cultu- ras diferenciadas, que tinham por base a divis&o econémica de trabalho entre os sexos: a cultura dos homens e a cultura das mu- Iheres. Os universos culturais dos homens ¢ das mulheres desenvolveram-se num patamar de igualdade, mas em duas linhas diversas, cada sexo possuindo seu proprio tipo de saber tradicio- nal, suas prdprias formas de lidar com 0 amor, a vida, a morte, anatureza e a religidio, suas prdprias caneSes e géneros literdtios, seus prdprios instrumentos musicais ¢ até suas proprias formas de dangar e cantar, As tradicdes das mulheres cram geralmente mais ricas e diversificadas que a dos homens. Apesar das exce- ges, podemos afirmar que, no conjunto, as tradigdes masculi- nas desenvolveram-se na linha da narrativa épica. Suas dancas eram freqiientemente caracterizadas por um tipo de performan- ce “‘herdica’” ¢ espetacular, enquanto as mulheres criavam seus géneros na linha da narrativa lirica, adaptando as dangas aos sen- timentos que desejavam expressar, Ambos os sexos revelavam estratégias variadas de exclustio do outro sexo de seus universos culturais. As mulheres, por exemplo, paravam de cantar quando surgia um homem ou, no século XIX, recusavam-se a cantar suas cangdes para folclo- ristas masculinos que tentavam coleté-las. Os homens reuniam- se em grupos fechados para contar ou cantar seus gabs ou swanks, como ainda fazem hoje em dia, ainda que o tipo de performance e o batismo dos géneros tenha mudado muito desde entao, Entretanto, geralmente, esta exclusdo no era com- pleta: muitas vezes, os dois sexos imitavam ou apropriavam-se das cangdes um do outro. Nestes casos, a cang&o ou a estbria nao era simplesmente apropriada, mas também adaptada a seus gostos e estilos, Estes fatos provam que mudangas estranhas ¢ radicais de- o “TENDENCIAS E IMPASSES vem ter ocorrido nas sociedades ocidentais nas quais os géneros femininos nao existem mais (excetuando-se, talvez, as cantigas de ninar) e nas quais, oficialmente, temos apenas uma cultura, monopolizada pelos homens e apresentada como a tinica © ex- clusiva tradigao do mundo ocidental. Jsio nos induz a formular algumas questdes de grande im- portdncia para a pesquisa feminista da historia literéria. © que aconteceu na histéria da cultura ocidental que provocou o desa- parecimento das ricas tradigGes femininas? Como foi possivel para 6s homens, cujas culturas orais tradicionais eram menos varia das que as das mulheres, estabelecer um monopélio que nao pos- sufam nas culturas orais tradicionais da Europa? Como os ho- metis puderam impor 0s mitos de sua paternidade cultural exclu- siva, na qual, até muito recentemente, todos acreditavamos? RECONSIDERANDO UM MITO Para aabertura do circulo hermenéutico que tem sido construido de forma tao cuidadosa no discurso das ciéncias humanas — no qual cada elemento confirma o sistema e vice-versa —, devemos pro- mover uma alteragao radical dos conceitos ¢ pressupostos da his- {dria iterdria. Uma desconstrugao que seguiré duas linhas centrais: 1. Adesconstrucao do préprio sujeito masculino: 0 homo sa- ‘piens da.cultura ocidental, bem como o “*heréi'” das obras iterdrias. 2. A desconstrugio de sua genealogia literdria, do mito de uma inica literatura. : ote No que se refere & desconstrugdo do homo sapiens, 0 sujei- to/génio masculino que criou a cultura ocidental, é importante perceber que a nog&io de “autor” teve, no passado, sentidos ex- tremamente diferenciados. Por exemplo, Homero foi a pessoa que compés a Ifada, ou 0 artista que recitava a épica, ou 0 copista que a transcreveu? Provavelmente nunca saberemos a resposta, mas pelo menos podemos garantir que ele nao era, de forma al- guma, um “autor” no sentido moderno da palavra. Na literatu- ra medieval européia, 0 “autor” cujo nome encontramos nos ori= ginais pode ser o copista de uma cangao, um bom intérprete, © ‘compositor ou simplesmente alguém que se apropria dos origi nais de ontra pessoa. REPENSANDO A HISTORIA LITERARLA 6 Este exemplo mostra como uma histéria da literatura baseada numa definic2o monolitica de escrita e de autoria pode reforgar © mito de que a literatura ocidental foi criada por escritores homens. ‘Uma outra estratégia de desconstrugdo pode ser desenvolvi- da por meio da andlise das relagdes do autor com as estruturas politico-sociais de seu tempo. Em vez de criar a imagem de um genio individual, auténomo e superior, este tipo de histéria lit réria poderd revelar a dependéncia do autor em relago aos dis- cursos de seu tempo, e mostrar como seu desempenho ¢ ligado as estruturas da sociedade. De forma similar, a psicandlise pode ajudar a descobrir que as obras de um autor (ou parte delas) ndo so produtos de um génio auténomo e autoconsciente, mas expressdes de conflitos inconscientes, temores ¢ desejos nao admitidos abertamente. A critica feminista trabaiha freqiientemente nesta diregao, demons- trando que 0 que encontramos nas obras dos autores nao sao, necessariamente, verdades essenciais ¢ universais, mas conflitos pessoais, sexuais, emocionais e de poder. Os heréis (personagens, sujeitos) de obras literdrias também devem ser reconsiderados. Os trabalhos de Mieke Bal sao, neste sentido, uma contribuigfio fundamental. Desde a publicagdo (1977) de Narratologie, a autora vem desenvolvendo uma nova teoria do sujeito com base no pressuposto de que a nogao do sujeito humanistico unitario, auténomo e individual é uma ilusao. Mie- ke Bal decompée este sujeito em trés categorias: 0 narrador (que conta a histéria), 0 focalizador (cuja visio ¢ apresentada) ¢ o(8) ator(es). Em seus estudos sobre o sujeito nas narrativas biblicas, que se baseiam em trés questdes centrais — quem conta? quem vé/fo- caliza? e quem age? —, ela demonstra a ambigiiidade dos herdis, nas narrativas, sua falta de unidade, bem como a evolucao, mu- dangas e contradigdes em suas posigdes e papgis de sujeito. O contronto das respostas que Mieke Bal propde com as interpre- tagdes dos tedlogos e intérpretes da Biblia sobre essas mesmas narrativas revela o cardter ambiguo e falso das interpretacées ba- seadas no conceito humanista unitario de sujeito/herdi masculi- no biblico. Por isso, estes intérpretes por um lado tentam ocultar ou resolver as ambigilidades e contradigdes dos personagens mas- culinos da Biblia e, por outro, alterar, mutilar ou mini IDENCIAS E IMPASSES 56 personagens femininas (como Dalila, Deborah ou Ruth), que nao se adequam as concep¢Ges de mulher, ou do lugar da mulher nas sociedades do século XX. ‘A decomposigao do sujeito/herdi biblico nos elementos que 9 constituem (narrador, focalizador, ator) e a recomposigéio de sua ambigitidade original tm se revelado excelentes estratégias de leitura para a identificagao da ideologia das obras literérias, para o mapeamento das complexas manipulagoes do leitor, e pa- lise da recepgao tradicional das obras pela critica e pela literdrias. Para a historiografia literdria feminista, ofe- recem instrumentos para a critica das imagens que os homens criaram sobre si mesmos ¢ sobre as mulheres em suas obras, e para a identificacdo dos recortes ideolégicos da critica mascu na e da histéria literdria tradicional. A DESCONSTRUGAO DQ MITO DE UMA LITERATURA UNICA Os prineipios da desconstrucdo dos discursos da hist6ria literdria foram formulados por Foucault em sua Lecon inauguraleno Col- lege de France (1970), a partir de quatro premissas metodoldgica: — 0 principe de discontinuité. Em vez da procura da conti nuidade, unidade e tradicdo, a observaciio de gaps, descontinui- dades, quebras ¢ contradicdes nos discursos. : 9 principe de renversement, Elementos, idéias, conceitos, até hoje considerados positivos (como unidade de sentido, con- tinuidade), devem ser analisados em seus aspectos negativos: a exclusiio de sentidos, idéias e personagens que nao se adeqiiem quadros preestabelecidos. A hist6ria literdria nao é apenas de- Tinida — como tem sido ensinado até hoje — a partir de uma selecdo natural e positiva, nem apenas a partir da sobrevivéncia de obias realmente superiores do passado. Ao lado de uma sele- $40 positiva, houve também uma selecdo negativa por meio da Qual obras/autores importantes foram excluidos. Eo que Fou- cauli chama de jew négatif. aoa —- 0 principe de spécificité, Que formas de violéncia foram impostas aos fatos, a realidade, aos seres humanos pela introdu- cdo de novos discursos, géneros ou estilos? Em outras palavras: como uma ideologia especffica foi propagada nas obras de um dado perfodo? Como foram descnvolvidas ideologias novas ou parcialmente novas? REPENSANDO A HISTORIA LITERARIA 6 — 0 principe de V’extériorité, No lugar de simplesmente glo- rificar a autoria, o heroismo individual, aoriginalidade, deve-se le- var em consideracao as condigSes ¢ as circunstancias externas, as estruturas sociais, culturais ¢ icleoldgicas que permitiram que dis. cursos especificos se impusessem e obscurecessem outros discursos, A historiografia literdria feminista traz uma contribuigéo no. va para a desconstrugao do discurso da histéria literaria tradi- cional, porgue junta, aos quatro principios definidos por Fou- cault, uma nova premissa, que ndo é simplesmente um quinto prinefpio metodoldgico, apesar de intimamente relacionada aos principios de Foucault, determinando conseqiiéncias fundamen. tais para todos cles. Seu ponto de partida é a percepcto de que a historia literdria é um dos discursos de uma sociedade que se baseia essencialmente na desigualdade entre os sexos. Isto resul- ta no fato de que mudancas nas estruturas sociais ou culturais terdio conseqiiéncias diversificadas para homens ¢ mulheres. Por exemplo, certas mudancas culturais consideradas como progres- So para todos os seres humanos freqiientemente provam ser ga- nhos para os homens, mas perdas para as mulhere: Pressupde-se, portanto, que o discurso da historia literéria deve ser estudado prioritariamente como um sistema de relacdes de género, cujos cédigos subjacentes dizem respeito as estrutu- ras de poder na sociedade. A primeira questo sera ento: 0 que significam ou significaram os fendmenos que descobrimos (quan- do analisamos os discursos segundo as sugestdes de Foucault) para as mulheres e 0 que significam para os homens? UMA HISTORIOGRAFIA FEMINISTA DA LITERATURA OCIDENTAL A reescrita da historia da literatura ocidental demanda trés ati- vidades distintas: 1. A desconstrugao da historia literdria tradicional como par- te do discurso das ciéncias humanas. 2. A reconstrugdo das diversas tradig6es da cultura femini- ha marginalizadas ¢/ou silenciadas. 3. A construgao de uma nova histéria literaria, como pro- duto de diversos sistemas socioculturais inter-relacionados, mar- cados pelas relagdes de género. Isto implica a elaboragao de uma histéria dialética com duas pistas inter-relacionadas, mas que, a partir da introdugdo da es- 6s "TENDENCIAS E IMPASSES crita nas culturas verndeulas européias, comecaram a se orientar fm direcdes opostas. A cultura masculina inicia um processo con- tinuo de crescimento, reforco ¢ monopolizacao da cultura escri- ta, contrabalancado pela exclusio das mulheres desta cultura ¢ pela progressiva marginalizacdo, deformagdo ¢ obliteracao das fradigdes orais femininas. A relagdo entre essas duas vertentes cul- turais tem sido dialética: os homens imitaram e se apropriaram dos géneros femininos ¢, ao mesmo tempo, os transformaram. ‘As mulheres reagiram, mas pelo menos uma parte desta reagto nao foi mais determinada pelos recursos de suas préprias tradi- goes, mas pelos novos padrdes criados pelos homens. Foi por meio da introduco da escrita nas linguas verndécu- Jas européias que a primeira desproporcaio essencial entre homens e mulheres foi estabelecida. A partir deste momento, os homens tiveram duas culturas: uma, predominantemente oral ¢ tradicio- nal, e outra estrangeira, escrita, e apresentada como superior. A histéria da literatura medieval, examinada a partir desta perspec- tiva, mostra as formas de coalizaio entre estes dois tipos de cult! taca progressiva exclusto das mulheres dos dominios masculi- nos. A invengdo da imprensa alargou esta distncia por ter per- mitido a propagacdo da visio de mundo masculina numa escala muito maior do que a feminina, além de se constituir numa ar- ma extremamente eficiente na luta contra as culturas populares. ‘A partir dai, as culturas populares foram sendo progressivamen- te substituidas por novos tipos de cultura “popular”, ctiados por artistas da sociedade burguesa, disseminando a visdo de mundo de suas classes. Esse fendmeno € hoje considerado a origem da cultura de massa (Burke 1987, Gottner-Abendroth 1982). Mais uma vez, a cultura européia havia eriado duas tradigSes cultu- rais distintas: a cultura erudita e a cultura de massa, FORMULANDO NOSSAS PROPRIAS QUESTOES ‘Uma historiografia feminista deverd colocar, para cada perfodo (oralidade, escrita, imprensa, comunicagaio de massa), as seguintes indagagées relacionadas as questdes de género: se que mulheres e homens criaram no perfodo em ques- to? Que idéias e imagens tinham eles sobre si e sobre 0 outro sexo? Como homens e mulheres apresentaram temas como amon, natureza, experiéncia religiosa, morte ¢ outros? — Que estratégias foram usadas para a exclus%o do sexo oposto de seus universos culturais? REPENSANDO A HISTORIA LITERARIA ° — Como poderiamos relacionar as idéias expressas por mu- Theres e homens aos cddigos que sublinham seus respectivos dis- cursos frente as estruturas econdmicas, sociais ¢ politicas de seu tempo? — Como estas idéias, imagens e relagdes tém sido interpre- tadas até hoje? Quais os recortes ideoldgicos destas interpreta gGes? Como estes recortes foram apropriados pela critica litera~ ria, histéria e ciéneias humanas? Para cada periodo de transigao, ¢ necessirio ainda que estas perguntas e respostas sejam especificadas com clareza: '— Quais as mudaneas que ocorriam entao na distribuigao de géneros entre os sexos? Qual a parte assumida pelos homens © quais os novos tipos de literatura que criaram? Qual pretendia ser a nova divisdo de trabalho cultural entre 05 sexos? — Existiam novas estratégias ou mecanismos de exclusaio das mulheres em Areas tradicionalmente delas ou de bloqueio de sua fala ou escrita no novo contexto? Como reagiram as mulheres? — Quais as mudaneas ocorridas nos conceitos, idéias ¢ ima- gens tradicionais sobre os homens, as mulheres, o amor, a natu- reza, a religido, o trabalho? '— Que tipos de violéncia os novos discursos impuseram a homens e mulheres? — De que forma estes fenémenos vém sendo interpretados pelos pesquisadores; como os representam em seus discursos; quais, 98 pressupostos nao explicitos de suas interpretagdes? Finalmente, novas questées devem ser formuladas para ca~ da perfodo: — Quais os clementos que reforgam o poder masculino nas novas estruturas sociais ou culturais? — Como as mulheres conseguem manter suas tradigdes ape- sar do fato de se tornarem progressivamente mais invisiveis? Que mudangas introduzem? Como se adaptaram a novos padrées cria~ dos pelos homens? Como resistem as idéias, imagens ¢ concei- tos, cada vez mais opressivos, propagados pelos homer — Como estas formas de cultura e de resisténcia femininas tm sido interpretadas, ou esquecidas, nos discursos das ciéncias humanas? (Spender 1982) Repenssar e reescreve a historia Liter4ria numa perspectiva 7 “TENDENCIAS E IMPASSES feminista, pressupSe, assim, em primeiro lugar, aprender a colo- car novas questdes que possibilitem a revisio de idéias estabele- cidas, das interpretacdes acerca destas idéias e das teorias decor- rentes destas interpretagdes. Isto implica uma alteracdo radical no paradigma das ciéncias humanas, cujo ponto de partida é a descoberta de que, mesmo nas ciéncias humanas, ndo ha seres humanos, nem existéncia humana, a ndo ser como homem ou como mulher, BIBLIOGRAFIA. irrasologie. 2+ edicao, Hes, Utrecb. 1986 Fesnmes Imaginaires. 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